Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 273
6 de dezembro de 2014
Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
Hoje vamos retomar o assunto do Kant, que ainda deve nos ocupar durante algumas semanas, pela sua extraordinária importância para a compreensão da situação do mundo moderno. Vou começar por uma espécie de retrospecto do que dissemos nas outras aulas e depois anunciar o programa do que vamos fazer em seguida.
Nós vimos que Kant não é somente um filósofo acadêmico, dedicado a questões técnicas, mas é efetivamente o ideólogo de um movimento político de longuíssimo alcance, que com certeza não se identificava com nenhum partido político ali do momento, mas que pretendia orientar o curso das coisas na história européia, de modo a chegar a um certo estado de coisas que ele tomava como ideal. Esse estado de coisas tem algo a ver certamente com a democracia moderna, mas com algumas peculiaridades, especialmente no aspecto religioso. E não se esqueçam que, quando Kant traça o movimento do Iluminismo, ele declara que esse programa tem como foco central a religião. A concepção que Kant tem da religião nesse mundo futuro é de que, em primeiro lugar, a religião é uma obrigação para o ser humano porque ela é um imperativo categórico: a própria nobreza da nossa situação, do nosso estatuto em comparação com os animais, depende --- segundo ele --- da crença em Deus, vista na sua perspectiva cristã consagrada. Porém essa religião, em primeiro lugar, não pode ter um clero que se intitule o portador de uma verdade revelada e imutável, o que já é eliminar a possibilidade da Igreja de cara, porque, ali no próprio Evangelho, o próprio Cristo diz "O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão", então, a idéia de uma doutrina fixa é essencial para todo o cristianismo, tanto na sua versão católica quanto na sua versão ortodoxa ou protestante. Claro que a simples divisão da Igreja nesses três ramos diz respeito à interpretação que se faz do texto sagrado, mas a doutrina que está ali fixada nos Evangelhos não pode ser mudada de jeito nenhum e tem de ser retransmitida de geração em geração de maneira imutável. Como Kant diz que isso é não apenas maligno, mas criminoso, é claro que a existência de um clero assim concebido se torna inviável e, portanto, torna inviável a própria Igreja; então teríamos, evidentemente, um novo tipo de cristianismo diluído em mil e uma escolas filosóficas e interpretações diferentes e no qual os próprios membros do clero são de algum modo convidados a contestar o conteúdo da doutrina da Igreja; que é exatamente o que acontece hoje em dia. Essa é a situação que temos hoje.
Se analisamos, por exemplo, o que aconteceu com o Leonardo Boff --- que aderiu a essa Teologia da Libertação do padre Gutierrez e publicou uma série de livros dando uma interpretação marxista ao Evangelho, ou seja, incorrendo num delito que, teoricamente ou pelo texto da lei, deveria implicar uma excomunhão imediata --- veremos que ele foi simplesmente solicitado a manter um silêncio obsequioso durante algum tempo e depois voltou a escrever normalmente. O fato de que a própria Igreja tenha aceitado que o indivíduo tivesse essa conduta mostra que já estamos num Estado kantiano, isto é, enquanto membro do clero ele é obrigado a repetir uma certa doutrina, mas, enquanto intelectual, ele pode falar o que quiser e pode falar contra a própria doutrina --- não há nenhum problema. Essa é exatamente a situação que Kant descreve como a situação ideal, com o agravante de que, enquanto sacerdote, o cidadão fala só para um reduzido círculo de fiéis, mas, enquanto intelectual, ele fala para o público letrado em geral. Então o sujeito pode pregar a sua religião imutável num pequeno círculo, mas, quando se dirigir ao público letrado de maneira geral, ele pode falar contra a sua religião. Não só pode, mas é de certo modo convidado a fazer isso, porque é o programa do Iluminismo: "ouse saber", "pense com sua própria cabeça", etc... É claro que isso inviabiliza totalmente a existência da Igreja, e é quase impossível que o Kant não percebesse essa conseqüência e que, portanto, a desejasse.
Se vocês procurarem na internet vocês encontrarão uma infinidade de páginas maçônicas que colocam Kant nas nuvens e que alegam uma influência maçônica nas idéias dele e uma influência das idéias dele na Maçonaria. Não se sabe se ele foi membro ou não da Maçonaria. A Maçonaria esteve muito próxima de outros pensadores da época: por exemplo, Hegel foi financiado pela Maçonaria para escrever certas coisas, embora não fosse membro. E o Fichte, que também não se sabe se foi membro ou não, fez uma apologia da Maçonaria. Ele publicou um livro chamado Filosofia da Maçonaria, que é uma obra apologética. Não se trata aqui de repetir a vulgar propaganda antimaçônica de sempre, mas apenas de assinalar que a Maçonaria de algum modo está associada a este imenso movimento da chamada laicização (ela é uma promotora desse movimento) e que é natural a aproximação dela com filósofos que estão metidos no mesmo processo, entre os quais, evidentemente, o Kant. Temos então essa idéia do mundo ideal que o Kant estava planejando para os próximos séculos, e cuja visão que ele tem é bastante complexa e sutil, não é nem um pouco dogmática nem esquemática, ao contrário, ele tem plena idéia da complexidade da coisa e das dificuldades. Ele diz que "nem mesmo sabemos se isto é possível, se chegaremos a isto ou não, mas, de qualquer modo", e isto ele enfatiza, "é nossa obrigação lutar para que este novo mundo se realize".
Existe uma associação muito íntima entre essa concepção do Estado futuro e a concepção antropológica do Kant, a concepção que ele tem da natureza humana, onde ele diz que a grande e, na verdade, única diferença que existe entre o ser humano e os animais é a perfectibilidade do ser humano, ou seja, os animais vivem programados por um instinto que não vai mudar, então geração após geração eles vão fazer exatamente as mesmas coisas, ao passo que o homem pode se aperfeiçoar e evoluir conscientemente. Quando vamos ver o que [0:08:06] Kant entende por 'evolução consciente', é exatamente a evolução em direção a um estado de coisas final que ele apresenta como a ordem legal perfeita, a qual teria de ser, segundo ele mesmo, de escala mundial, porque, do mesmo modo que a ordem político-jurídica deve articular as relações entre as pessoas, ela não pode fazer isso se ela não articular também as relações entre os Estados. Portanto, é um Estado Mundial definido por uma certa ordem jurídica no qual a religião ocupa um lugar dentro desta ordem, e é um lugar, evidentemente, subordinado e limitado às exigências do Iluminismo. Então, é a situação que nós realmente vivemos hoje.
Em todo esse período moderno, quando as pessoas enfocam isso, é quase inevitável --- [0:09:09] e em oitenta por cento dos autores isto acontece --- que já partam de uma situação de gratidão ao mundo moderno : "Olha, graças a esses gigantes do Renascimento nós temos hoje a técnica, temos a democracia, temos a ordem jurídica, temos mais isso, mais aquilo, mais aquilo... e esta é a situação em que vivemos". Então já partem de uma descrição do estado de coisas que subentende certos valores, e subentende uma interpretação da história dos quatro ou cinco últimos séculos. Por ser a base de tudo o que eles vão dizer em seguida, essa interpretação, por si mesma, não precisa ser discutida. Por exemplo, eu acabo de ouvir as conferências do Luc Ferry sobre o Kant; Luc Ferry é um grande [0:10] especialista em Kant, conhece o Kant de trás para diante e é um excelente expositor, de algum modo. Mas, de cara, ele já entra neste ponto: "a filosofia do Kant aparece como a culminação de um processo maravilhoso que nos libertou da idéia grega da ordem cósmica, e nos libertou do cristianismo, e mais isso, e mais aquilo, e graças a isso nós temos este maravilhoso mundo moderno". Que todos os horrores do século XX também façam parte do mundo moderno, é um detalhe que parece desprezível. Quer dizer, o século XX não foi o século da democracia; foi o século do nazismo, do comunismo, da revolução chinesa e tudo o mais. Aí existe uma confusão entre fato e valor. Se tomarmos o mundo moderno como um conjunto de fatos históricos, então veremos que o predomínio das liberdades, da ordem democrática, é muito relativo e, de fato, minoritário. Temos esses benefícios numa área pequeniníssima do planeta: em uma parte da Europa Ocidental e em uma parte das Américas; no resto só se vêem revoluções, ditaduras, guerras... o tempo todo. Mas, se definimos o mundo moderno em função de um valor que ele representa, então, naturalmente, todos os fatos que não têm nada a ver com este valor, ou que o desmentem, são afastados e ficamos com a impressão de que a humanidade vive num outro estágio marcado pela democracia, pela liberdade, pela ciência etc. --- a humanidade inteira e não somente uma parte dela. Esse quadro é puramente ideológico e orienta uma grande parcela das interpretações que se fazem da história filosófica desse período. E é claro que isso parece bastante razoável para um estudante universitário que acaba de chegar na universidade e que está vivenciando pessoalmente um dos benefícios do mundo moderno --- a instrução dada à massa popular ---, para ele tudo isso parece verossímil. Só que, quando vamos examinar a coisa desde o ponto de vista histórico, com olhos de historiador, vemos que destes pressupostos todos nenhum foi provado, nenhum foi examinado em profundidade. E, evidentemente, nós não podemos aceitar isto com uma credulidade boboca; nós temos que examinar para ver se as coisas foram realmente assim. Por exemplo, até hoje não vi a mais mínima prova de que o desenvolvimento da tecnologia moderna deva o que quer que seja à filosofia moderna. Nunca vi nenhuma prova disso. Digo mais: o desenvolvimento da tecnologia é diferente do desenvolvimento da ciência; ele tem a sua dinâmica própria, e, em geral, as invenções tecnológicas se anteciparam às descobertas científicas; muitas descobertas foram feitas raciocinando sobre inventos que já existiam. Por outro lado, esse desenvolvimento extraordinário da tecnologia já tinha começado na Idade Média, sobretudo entre os monges, e quando vamos ver a contribuição das ordens monásticas para o desenvolvimento da tecnologia, é uma coisa monstruosa. Inclusive no Brasil. Se você estudar a vida do padre Landell de Moura... acho que oitenta por cento das coisas que foram inventadas no Brasil foi o padre Landell de Moura quem inventou.
A articulação da história da tecnologia com a história da ciência e com a história da filosofia está muito mal feita. Se aquilo que nos orienta no estudo que estamos fazendo é uma síntese confusa, na qual [0:14:25] vemos tudo misturado, aparece a Capela Sistina, René Descartes, o telescópio e as grandes navegações, tudo misturado, então temos a impressão de uma transição mundial que causou tudo, e na qual as mesmas causas que determinaram o curso das idéias na história da filosofia produziram também os inventos tecnológicos, e também a democracia, etc. Ademais, é altamente duvidoso que essa visão popular consagrada da história desse ou daquele período corresponda aos fatos, porque quanto mais se pesquisa, mais se descobrem os elementos esotéricos e ocultistas que desencadearam todo esse processo, e também uma disputa de poder que havia por trás de tudo isso. Nós temos que investigar tudo isso. Já faz algumas décadas que os historiadores estão escavando essas coisas, de modo que, se nós nos perguntamos assim: por que a biografia de Isaac Newton foi tão escondida durante três séculos? Um homem que passa a vida escrevendo tratados teológicos, e tratados de ocultismo, e tratados de alquimia aparece como uma espécie de cientista do século XIX, como um cientista materialista com uma concepção inteiramente moderna, totalmente desligada de qualquer pressuposto religioso-teológico, quando na verdade ele não era nada disso. Por que isso aconteceu? Isso é um fenômeno muitíssimo estranho.
Quando vemos uma ocultação persistente e repetida de algum fato, então certamente algum interesse houve por trás disso. Não pode ser uma simples coincidência. Praticamente, quando Newton morre, a biografia oficial dele já, recortadinha e bonitinha, estava pronta. Eu suponho que houve alguma discussão dentro da Royal Society, que tinha sido fundada por Elias Ashmole mais ou menos na mesma época (Elias Ashmole era um maçom e um alquimista), e deve ter havido alguma discussão lá, chegando-se à conclusão de que, no confronto com a Igreja, seria melhor colocar contra a Igreja não uma crença gnóstica, mas uma versão higienizada da ciência moderna. "Não vamos mais falar desta parte. Vamos nos ater à discussão científica que nos dará mais autoridade." Deve ter havido alguma coisa desse tipo, porque, quando uma conduta uniforme se impõe a gerações e gerações de pessoas durante algum tempo, é impossível que isso tenha surgido do mero acúmulo de coincidências; alguém deve ter tomado a decisão, e a mantido ao longo do tempo.
Quando vemos a história das organizações esotéricas que continuaram agindo no mundo e tendo um poder cada vez maior na Europa e nos Estados Unidos --- podemos praticamente definir os Estados Unidos como uma república maçônica, como eu defini no Jardim das Aflições ---, aí é que surge aquele problema de que tratei em apostilas antigas de *'*Quem é o sujeito da História?', 'O que é a ação histórica?' E a base que eu usei para investigar isso é a seguinte: só se pode falar que existe uma ação na história --- uma ação histórica --- quando esta ação se prolonga para além do prazo da duração do indivíduo; tudo aquilo que morre com ele não entra na história. A ação tem de se propagar. Por exemplo, quando vemos o império napoleônico: o código civil napoleônico, de certo modo, está em vigor até agora, uma parte da distribuição dos Estados que Napoleão fez continua lá. Então isso tudo tem efeito histórico, porque Napoleão morreu, mas suas ações se prolongam. Do mesmo modo que as ações de Lênin. Elas se prolongam até agora; você tem um movimento comunista que existe ainda, depois da morte de Lênin. Esse sujeito realmente foi um agente histórico, porque as suas ações o transcendem de algum modo. Partindo disso, nós vemos que uma segunda condição para haver a ação histórica é a continuidade dos agentes. Então já não podem ser agentes individuais apenas; é necessário que as ações de um indivíduo se articulem com as ações de outros que visam a consolidar no tempo a linha de ação adotada por aquele primeiro, de modo que os efeitos continuem se produzindo de maneira mais ou menos uniforme. [0:20] Isso quer dizer que quando você lê um título como, por exemplo, História do Brasil ou História dos Estados Unidos... O Brasil é um agente histórico (O Brasil como nação)? Claro que não. Para ser um agente histórico, é necessário que haja um plano de ação e uma ação coerente durante algum tempo. Um país inteiro não pode ter isso, de maneira alguma. Você não vai dizer que duzentos milhões de pessoas se reuniram e chegaram à conclusão: "vamos seguir este curso de ação pelo próximos séculos, alcançar tal e qual resultado". Nenhum país fez isso. Dentro do país existem grupos, facções, organizações etc., que, estes sim, são agentes históricos e que na verdade duram mais do que o país. Se [0:20:44] pensarmos assim, por exemplo, eu mencionei a Maçonaria... A Maçonaria já existia antes de existir os Estados Unidos, e se acabar os Estados Unidos, amanhã ou depois, a Maçonaria continuará. Assim como a Igreja Católica existia antes de aparecerem os impérios católicos da Idade Média ou o grande império romano-germânico; ela existia antes do sacro império romano-germânico e continuou a existir depois dele. Então ela é o agente histórico, e não o império.
Esse estudo da ação humana e das condições da ação humana é uma coisa absolutamente essencial para a História. Isso é o que Ludwig Von Mises chamava praxiologia, o estudo da práxis, o estudo da ação. E o próprio Karl Marx, embora use muito a palavra práxis, só entende a práxis sob o aspecto do movimento revolucionário e não tem uma teoria praxiológica geral, sem a qual a própria interpretação que ele faz da luta de classes fica meio capenga. E quando estudamos a História com base nessas exigências metodológicas, por assim dizer, então vemos que toda a História desse período está muito mal contada e que tem que começar tudo de novo; nós não sabemos de fato quem fez o quê e por que as coisas aconteceram; e sobretudo não sabemos, das crenças populares que se tornaram dominantes, como se tornaram dominantes e quem as impôs. Dá a impressão de que foi tudo um processo espontâneo e que as nossas crenças usuais transmitem simplesmente os fatos do século passado. Mas isso não é assim, de maneira alguma. Por exemplo, o simples fato de que, embora as pessoas estejam estudando Kant desde que ele publicou a Crítica da Razão Pura, em 1781, até hoje um estudo como este que estou propondo nunca tenha sido feito. Quer dizer: o homem tem um projeto de mundo, e em seguida desenvolve vários estudos teóricos sobre este ponto, aquele ponto, e dá a impressão de que o projeto de mundo é um mero acréscimo, um mero apêndice da obra filosófica. Mas está na cara que é o contrário! Se o sujeito tem um projeto geral para o universo e para a humanidade e, ao lado disso, ele trata de certas questões de gnoseologia, de ética, de moral, etc., é claro que esses estudos estão subordinados ao projeto geral, e não o contrário. É diferente do caso de um filósofo que tenha passado a sua vida inteira tratando só de questões técnicas de filosofia e que, no fim da vida, as vezes dá um palpite sobre a História. Como foi o caso de Edmund Husserl. Em Edmund Husserl você não encontra um escrito político, um escrito sobre a situação histórica, nada, absolutamente nada. Até que ele chega aos setenta anos de idade e faz aquelas conferências sobre a crise das ciências européias, onde ele esboça uma interpretação do estado de coisas. Neste caso se pode dizer que essa concepção histórico-política é apenas um apêndice, um complemento da obra da vida do cara. Mas no Kant não. Kant formula seus ideais políticos ainda bastante jovem e permanece fiel a eles até o fim da sua vida. E algumas dessas idéias ele aperfeiçoa no fim da vida, dá mais detalhes, mas sem mudá-la no essencial. O programa Iluminista a que ele adere aos trinta e poucos anos --- talvez tenha aderido antes, mas o primeiro documento é aos trinta e poucos anos --- permanece imutável ao longo de todas as mudanças da sua filosofia. Veja que, no lado técnico-filosófico, ele mudou de idéia muitas vezes. Mudou de idéia tantas vezes que há momentos em que as pessoas não sabem o que o Kant está querendo dizer, porque ele diz sim aqui e não ali, e as interpretações do Kant são um bicho de sete cabeças. Desde o dia seguinte da publicação da Crítica da Razão Pura, ninguém sabia exatamente o que o cara queria dizer, só sabia que aquilo era importante (daqui a pouco nós vamos voltar a este assunto). E ao longo de todo este período --- duzentos anos --- ninguém lembrou de fazer isso: subordinar a filosofia de Kant ao projeto de mundo que ele tinha. O que me parece coisa óbvia.
Só por este fato, vê-se que a nossa ignorância dos séculos passados é enorme. E a ignorância, a falta de conhecimento, freqüentemente é suprida pelo quê? Por símbolos e sínteses confusas que fazem para nós as vezes de um conhecimento. Quer dizer, o sujeito tem uma história da carochinha na cabeça, mas aquela história para ele é real. É claro que a História pode ser contestada desde o ponto de vista daqueles que foram vencidos no processo. Quem disse que a História é a História dos vencedores? Não, não é. Muitas vezes é o vencido que usa a História como instrumento de vingança, e até pode virar o jogo através do uso da História. Como aconteceu no próprio Brasil; o Brasil é o exemplo característico disso. Quer ver o que é um sujeito inculto e pomposo, é o que repete esta frase: "A História é a História dos vencedores". (Eu não lembro exatamente quem foi que disse isso, qual historiador, foi um historiador do século XIX, e as pessoas repetem achando que estão dizendo uma coisa muito profunda). Às vezes quem escreve a História é o vencedor, e às vezes é o perdedor. No Brasil isso ficou claro a partir de 1964: quando houve a grande derrota da esquerda pelo movimento civil-militar de 1964, o pessoal comunista imediatamente monopolizou a narrativa histórica e a usou como instrumento político contra o estado de coisas, e acabou ganhando. Então, como é que a História é a História dos vencedores? A História é um instrumento que pode ser usado ou para consolidar uma vitória obtida ou para revertê-la; ela é um instrumento político como qualquer outro. Não existe essa norma de ser o vencedor ou o perdedor quem faz a História; às vezes é um, às vezes é outro, às vezes são os dois. Também não deixa de ser característico, ainda, do caso brasileiro, que uma revisão da História oficial consagrada do regime militar e tudo mais só tenha começado agora, quando o pessoal que era adepto dos militares ou que tinha alguma simpatia por eles foi totalmente derrotado, esmagado embaixo da bota esquerdista, então agora eles começam a querer escrever a História. De novo, pela segunda vez, são os perdedores que estão tentando fazer a História. Qualquer que seja o caso, é preciso ver que toda concepção geral da evolução histórica que se consolida popularmente nunca tem base na História propriamente dita. Ela é feita de sínteses confusas obtidas por uma espécie de mescla de imagens. Essas imagens às vezes não têm nada a ver uma com a outra, mas, como aparecem todas juntas, dão uma ilusão de unidade. Por exemplo, essa coisa que mencionei: qual é a relação exata da história da tecnologia com a história da ciência e com a história da filosofia? Com a história da filosofia, eu garanto para vocês, não tem praticamente relação nenhuma. Eu duvido que algum sujeito, para inventar um palito de fósforo, tenha tido que estudar René Descartes ou Francis Bacon. Ninguém faz isso. Em geral, o pessoal que vai para o lado da tecnologia tem um interesse filosófico muito reduzido. Também existem dois livros volumosos que foram escritos recentemente (uma obra coletiva) sobre a obra científica dos jesuítas, e acho que não tem nenhuma organização no mundo que tenha contribuído para o avanço da ciência e da tecnologia como os jesuítas. É aí que parece que a imagem que se tem da História é realmente capenga. Ninguém traçou isso direito. Não se sabe exatamente o que aconteceu.
Agora, o que eu sei é o seguinte: filosofar desde uma visão consagrada da História, como faz o Luc Ferry nessas conferências --- que no mais são muito boas, do ponto de vista técnico são maravilhosas ---, é arriscar-se certamente a interpretar tudo às avessas. [0:30] No caso do Kant, por exemplo, você lerá em muitos manuais --- escritos até há uns vinte anos atrás --- que Kant demonstrou a inviabilidade da metafísica. Eu digo: mas a metafísica continua existindo como se nada tivesse acontecido! As obras de metafísica continuam saindo a todo o momento, e, sobretudo, quando você analisa como foi que Kant tornou inviável a metafísica, você percebe que a operação bélica que ele move contra a metafísica é tão fraca, tão frágil, tão furada, que eu acho incrível que alguém tenha levado isto a sério por mais de meia hora.
Por exemplo, a idéia que ele tem de que o conhecimento humano, o processo de conhecimento, divide-se em matéria e forma é uma idéia que ele tomou de Aristóteles. Mas como é que ele interpreta matéria e forma? Ele diz que a matéria do conhecimento é dada pelos objetos, e a forma é dada pela nossa mente. Porém, ao mesmo tempo, ele reconhece que essa mente, essa espontaneidade da mente, não poderia entrar em ação sem algum estímulo, sem algum agente do mundo exterior que a provocasse. Então você tem de receber um dado do exterior e você enforma este dado. Mas, espere aí: este dado --- que vem do exterior --- ele vem porque, se os objetos não tivessem nenhuma forma em si mesmo, os estímulos que recebemos seriam totalmente homogêneos, e você não distinguiria nem um elefante de um charuto, nem um prato de comida de um edifício. Então alguma forma estes objetos têm de ter. E, quando Kant diz que nós vemos tudo através do nosso esquema de percepção --- portanto nós não vemos os objetos tal como eles são em si mesmos, mas amoldados à nossa estrutura de percepção --- é esta estrutura de percepção que dá a forma dos objetos tal como os percebemos. Por exemplo: eu estou vendo este, esse e aquele objeto, mas eu não os estou vendo em si mesmos, e sim só aquilo que minha estrutura de percepção permite. Dizer isso e não dizer nada é a mesma coisa, é dizer que você não enxerga nada, a não ser através de seus próprios olhos, e que você interpreta através de seu próprio cérebro, quem é que não sabe?
Porém a ênfase que Kant dá é a de que o nosso entendimento é a força ativa organizadora do universo exterior. Agora vejamos se isso é possível: para que um objeto apareça aos meus olhos de acordo com a filtragem que a minha estrutura de percepção faz dele, é necessário que ele, em si mesmo, tenha a capacidade de fazer isso. Ou seja, o objeto me transmite algo que é captado pela minha estrutura de percepção. Se não fosse captado, eu não perceberia nada. Por exemplo: nós não percebemos certos sons que um cachorro percebe. Ou seja, ou a coisa pode ser amoldada à minha estrutura de percepção porque ela se comunica com ela, ou o objeto tem, em si mesmo, esta propriedade de passar para mim esta impressão amoldável à minha estrutura de percepção, ou ele não tem. Então, algo da coisa em si mesma eu sei necessariamente. Quando Kant diz que nada podemos saber da coisa em si mesma, eu digo: não! Ao contrário! Algo da coisa em si mesma você tem de saber necessariamente. Você mesmo acabou de dizer que ela lhe transmite uma impressão que é amoldável à sua estrutura de percepção. Se o objeto não tivesse essa capacidade, você não perceberia nada. Ou seja, não basta que a sua estrutura de percepção seja capaz de apreender o objeto. O objeto tem de ser apreensível por ela. Este é o ponto número um.
O segundo ponto é que nunca ninguém viu um objeto isolado, sozinho, pairando no ar. Por exemplo: eu pego esta xícara de café e digo que não existe nada, [que] só existe esta xícara de café. Nunca ninguém fez isso. Sempre você viu objetos relacionados uns aos outros, objetos colocados em diferentes posições do espaço. E você vê esses objetos sendo usados e manipulados por outros seres. Você vê um cachorro comendo uma lingüiça, você vê um gato bebendo um prato de leite e você vê os seres vivos se relacionando uns com os outros. Portanto, por exemplo, aqui você tem três pessoas: A, B e C. Cada uma vê as outras duas de acordo com a sua estrutura de percepção, e as outras duas as vêem de acordo com a estrutura de percepção delas que, por sua vez, não é a minha. Então, cada ser humano tem a sua estrutura de percepção, e cada um amolda os estímulos à sua mente. Só que, para isso, é necessário que cada objeto tenha, em si mesmo, a capacidade de ser amoldado à estrutura de percepção de diferentes seres, senão ele poderia ser percebido só por uns e não por outros. Volto ao exemplo das freqüências de som que um cachorro capta e nós não. Essas freqüências são amoldadas à estrutura de percepção do cachorro e não à nossa --- por isso mesmo nós não percebemos. Mas, daquilo que percebemos, é absolutamente necessário que os objetos tenham, em mesmos, a capacidade de ser amoldados à estrutura de percepção de cada ente que os percebe: um ser humano, outro ser humano, um gato, um cachorro, um elefante... E é absolutamente necessário que esta capacidade esteja no objeto em si mesmo, e não só na estrutura de percepção dos sujeitos cognoscentes, porque, se estivesse só na estrutura de percepção, então não haveria como distinguir os vários objetos. Eles têm de ter algo em si mesmo. Eles têm de ter uma capacidade de transmissão de estímulos que já é amoldável à estrutura de percepção deste, e deste, e deste [sujeito cognoscente]. E, se cada um deles [sujeitos cognoscentes] percebe o objeto de um jeito diferente, é porque suas estruturas de percepção são diferentes, embora o objeto seja o mesmo, o que implica que este objeto tenha, em si mesmo, uma forma adequada para adaptar-se à estrutura de percepção de cada um. Um exemplo --- que eu já dei há vários anos --- é o da águia, do sapo e do mosquito. Uma águia enxerga há vários quilômetros de distância. Ela vê um sapo lá adiante e diz: é o meu almoço! Enquanto isso, o sapo --- que só enxerga há alguns metros de distância --- vê o mosquito e também diz que "é o meu almoço". Podemos conceber que estas diferentes visões fossem intercambiáveis? Isto é, podemos conceber que a águia visse como o sapo, e o sapo, como a águia? Não, pois eles têm a estrutura de percepção que os limita. Porém, invertamos a pergunta: seria possível que a águia fosse percebida pelo sapo como o sapo percebe o mosquito? Ou seja, do jeito como o sapo enxerga um mosquito há um metro de distancia, ele poderia enxergar ali uma águia? Isso seria impossível. Cada um desses objetos tem não somente sua estrutura de percepção, mas sua estrutura de transmissão, sem a qual ele não seria nada. Cada ente tem a capacidade de irradiar certas informações que serão recebidas diferentemente por diferentes sujeitos cognoscentes investidos de diferentes estruturas de percepção. Um mosquito tem cerca de mil olhos, por exemplo. Ele não vê um sapo, ele vê mil sapos. Mas o mosquito tem uma forma que transmite imediatamente ao sapo a informação de que ele é comestível, assim como o sapo tem uma forma que transmite imediatamente à águia que ele também é comestível. Mas pergunto: a águia transmite a mesma informação ao sapo? O sapo, quando vê a águia, pensa que é o seu almoço? Ele nem vê a águia. Isto é, as diferentes estruturas de percepção são impensáveis se não houver as diferentes estruturas de transmissão --- ou de comunicação. [0:40] Isso significa que, independentemente do que elas são em si mesmas, algo delas em si mesmas necessariamente eu tenho de saber. Eu sei que, em si mesmas, elas têm essa capacidade e que, se não tivessem essa capacidade, não poderiam ser percebidas.
Portanto, o "em si mesmo" deixa de ser esse grande enigma. Que o que nós percebemos são os recortes fenomênicos, e não as coisas em si --- isso é certo. Porém, nós sabemos que estes recortes fenomênicos são diferentes para diferentes sujeitos cognoscentes e sabemos que a coisa em si tem a capacidade de irradiá-los diferentemente para os diferentes sujeitos cognoscentes. Portanto sabemos que cada objeto existente é um feixe de informações que se diversifica conforme os diferentes sujeitos cognoscentes. Ora, isso significa que um mesmo objeto, um mesmo ente, ao longo de usa existência, será percebido de muitas maneiras diferentes por muitos seres diferentes, mas também [significa] que ele tem, em si mesmo, esta capacidade de irradiar todas essas informações diferentemente para distintos sujeitos percipientes. Senão eles não o perceberiam de maneira alguma.
Quando nós saímos daí e voltamos a estudar Aristóteles e sua pergunta sobre o que é a essência de um objeto, vemos que Aristóteles entende a essência não como algo estático, imutável e limitado, mas como um algoritmo, como uma fórmula de transformações possíveis. Aristóteles é o inventor da evolução orgânica, ou seja, [ele diz que] um ser tem sua fórmula que determina todas as possibilidades de transformação ao longo do tempo. Aristóteles foi um grande estudioso de embriologia: ele estudava o desenvolvimento de um mesmo ser desde a sua fecundação, da sua gestação, e ao longo do seu desenvolvimento. Então ele evidentemente estava consciente de que, se estivesse estudando um gato --- e ele fez uma descrição da embriologia do gato que é considerada até hoje a mais perfeita que existe ---, o gato era o mesmo desde o seu estado fetal até o instante em que ele morria. Então o que é a essência deste gato? É a fórmula de suas transformações possíveis --- que exclui outras transformações como impossíveis. O gato não vai se transformar numa tartaruga, nem em um ser humano. Isto é a essência.
Ora, então o conjunto das informações que este ser passa aos outros, aos sujeitos cognoscentes, ao longo de sua existência, faz parte desta essência. Quer dizer, um gato pode transmitir impressões de gato ao longo de sua existência para diferentes seres. Todas estas informações que ele pode passar estão contidas na sua essência, e esta abrange todas as transformações possíveis por que ele pode passar e todas as amoldagens que ele pode sofrer às diferentes estruturas de percepção dos diferentes sujeitos que o percebem. Se isso é a sua essência, se a essência de cada ser é a fórmula de suas transformações possíveis e a totalidade das percepções que se pode ter dele ao longo da vida, então isso é o mesmo que dizer que nós sabemos praticamente tudo da coisa em si, isto é, da essência daquele ente. Então a coisa em si deixa de ser este mistério. Dizer que eu percebo somente as aparências fenomênicas é dizer praticamente nada. Claro que a gente percebe as aparências fenomênicas, e não a coisa em si. A coisa em si existe no tempo como um processo de transformação e como um processo altamente complexo de intercâmbios com o meio ambiente e com os outros seres, e neste processo incluem-se todas as informações que ele emite e que ele recebe de todos os seres que o percebem. Nós sabemos que isto é a realidade da coisa em si. Nenhum sujeito é imbecil de achar que, quando ele está vendo um gato, ele está vendo o gato inteiro, em toda a história do seu desenvolvimento. Quando você vê o gato ele tem uma idade "x" --- ou ele é pequenino, ou ele está crescido ou ele está velho. A percepção tem esta característica: ela só percebe o que está presente no espaço e no tempo neste momento. Para que a percepção, para que os cinco sentidos apreendessem por si mesmos uma essência, seria preciso que a essência se reduzisse ao estado presente deste objeto --- o que não é possível. É isso o que nós percebemos? Nós só percebemos o que está presente no espaço e no tempo neste momento.
Porém, eu já expliquei em outras aulas que, quando você percebe um ente, você não percebe somente seu estado atual, mas você percebe uma tensão, um conjunto de possibilidades que ele tem e, se você não perceber esse conjunto de possibilidades, então você não é capaz de distinguir um gato de uma tartaruga ou de um poste. Quando você percebe um poste, você sabe que ele não vai sair andando, e, se ele não trouxer em si mesmo esta informação, de maneira imediata, você não vai saber que ele é um poste. [Da mesma forma], quando você vê um gato já está dada, na forma dele, a possibilidade de certas ações que ele pode fazer e de outras que ele não pode. Por exemplo: ele não tem asas, ele não vai voar. Mas se você vê um pássaro, você vê que ele tem asas que ele pode voar. Essa capacidade que todos os seres têm, sejam os seres vivos, sejam os seres não vivos, está embutida na percepção imediatada. [No entanto] quem capta isso não são apenas os cinco sentidos, [mas] é a sua consciência por trás dos cinco sentidos. É isso que eu chamo de o círculo de latência: são ações latentes que podem ser desencadeadas a qualquer momento e que fazem parte da forma lógica e também da forma visível daquele ente. Por exemplo: será que você precisa ser muito inteligente para saber que, quando você percebe uma bola e um cubo, não é o cubo que vai rolar? Qualquer bebê entende isso imediatamente. Portanto, essa propriedade de rolar é inerente à forma visível da própria bola e não é inerente à forma visível do cubo. Se o cubo rolasse, e a bola ficasse assentada sobre um de seus lados, você veria que todo o universo está funcionando de uma forma diferente do que você esperava. Mas isso nunca acontece! Se considerássemos como percepção sensível somente aquilo --- prestem atenção, isto aqui é uma sutileza --- que é percebido pelos sentidos enquanto tais, você só perceberia formas estáticas, porque não existe nenhum sentido que tenha a propriedade da continuidade. Todas as sensações que você tem são momentâneas. Por exemplo, quando você está piscando, você só percebe um ponto de cada vez. [No caso da] audição também: você não presta a atenção naquilo continuamente. Você "pega" um som, depois outro som, depois outro som. Isto é, existe um órgão qualquer que costura todas estas percepções, e este órgão não é a inteligência humana. Nós não precisamos pensar para fazer isso. Não é um raciocínio que você faz. Como eu percebo o movimento de um gato? Com os meus olhos eu vejo só recortes do gato, mas eu sei que ele está se movendo. Com os meus olhos eu captei estes distintos recortes do gato, posições do gato, e depois eu montei esse movimento na minha mente? Ou será que, além dos cinco sentidos, eu tenho um órgão que percebe a continuidade dos movimentos, e depois a razão decompõe [essa continuidade] em pedaços separados? [0:50] Kant diz que o tempo é uma forma a priori da percepção, ou seja, [diz que] só percebemos as coisas no tempo. Então é claro que a percepção não pode se limitar aos cinco sentidos. Tem de haver um órgão de percepção das coisas no tempo, e um órgão de percepção das coisas em movimento. Isso quer dizer que na percepção de qualquer objeto eu já tenho uma noção do que ele é em si mesmo, eu já tenho uma noção da sua essência --- e não posso não ter. É claro que eu só pego aspectos fenomênicos, mas esses aspectos fenomênicos estão ali para me transmitir as possibilidades que uma essência manifesta naquele momento. Se existisse somente o aspecto fenomênico recortado, sem nada por trás, eu não perceberia nada. Isso que é importante: quando você está percebendo o aspecto fenomênico, você está percebendo a essência por trás. Se não percebesse, você não seria capaz de saber que o gato que agora está deitado é o mesmo que antes estava andando.
Então, você veja a imensa fragilidade que Kant tem da noção de forma e matéria. Se essa crítica kantiana da metafísica não correspondesse a uma expectativa ou a um desejo que estava vivo na cultura e na sociedade da época, ninguém prestaria a atenção nisto. Se Kant teve a repercussão que teve, é porque as pessoas queriam ouvir isso, queriam se livrar da metafísica para, através disto, se livrar da religião. Viram que "está aí a nossa chance!". Isto quer dizer que Kant inaugura uma série de filosofias da negação cuja crítica profunda ainda não foi feita, na verdade. Tem alguma coisa aqui e ali. Toda esta idéia de filosofia crítica começa, na verdade, com Descartes. Esse negócio da dúvida metódica --- eu já mostrei que não existe, que ela é apenas uma figura de linguagem. O próprio Luc Ferry se trai quando diz que a dúvida metódica é uma dúvida retórica. Veja a palavra que ele usou: ela é retórica, ou seja, é só um modo de dizer, não é uma coisa que você vai fazer. Do mesmo modo, a filosofia crítica de Kant é crítica só retoricamente. Uma verdadeira filosofia critica examina, em primeiro lugar os seus próprios pressupostos. Isso aí, com Kant, ninguém fez. Mesmo seus piores críticos. Por exemplo, Jacob [Sigismund Beck] se revolta contra Kant, mas a mente dele está presa dentro do universo kantiano. Até no século XX tem gente esperneando contra o Kant. No século XX você vê Nicolas Hartmann, Ortega y Gasset, todos esperneando. Não conseguiram sair de dentro. Isso quer dizer que a crítica em profundidade tem de ser feita na base da pergunta: se não fosse assim, como seria? Ou: para que as coisas sejam assim, o que mais é preciso ser? Daí você está testando a teoria até as suas últimas conseqüências. Mas acontece que, quando um filósofo formula uma teoria pela primeira vez, ele não formula só o que ele está pensando. Ele formula a própria colocação da pergunta. É difícil você sair do horizonte mental dele para ver as coisas de fora. Durante muito tempo, quer você goste ou não, concorde ou não, você está girando dentro do esquema que ele determinou. O kantismo se torna uma espécie de jaula dentro na qual estão presos os seus adeptos e os seus opositores durante muito tempo. E o kantismo é uma coisa que, se você começar a examinar por este lado que eu estou dizendo, não sobra nada. Ele tem de ser rejeitado no todo. Isto está tudo errado da primeira à última linha. Há, claro, acertos acidentais. Isto é uma característica da filosofia moderna. Eu já expliquei para vocês. Quando você pega a filosofia antiga -- Aristóteles, Platão, São Tomás de Aquino, Duns Scotus ---, eles estão certos no geral e cometem erros no particular. As filosofias modernas, ao contrário, estão erradas no geral, mas cometem acertos no particular. Por exemplo, você não pode aceitar a visão hegeliana de que Deus começou a tomar consciência de si mesmo na hora em que criou o mundo, e essa consciência culmina na pessoa de Georg Friederich Hegel. Você não pode aceitar uma coisa dessas. Isso é loucura. Mas isso não quer dizer que Hegel não faça análises brilhantes deste ou daquele período histórico, deste ou daquele fenômeno. Kant também faz, mas a sua filosofia tem de ser rejeitada como um todo. É uma proposta impossível. Como eu expliquei para vocês, a dúvida cartesiana é um projeto irrealizável. Não é que ela esteja errada, é que não dá para fazer! Do mesmo modo, com a crítica kantiana: não dá para fazer. Você vai descobrir as condições a priori do seu conhecimento --- por trás de tudo o que a humanidade enxerga existe uma estrutura, e você enxerga a estrutura porque você tem uma visão transcendental --- aquilo que se revela na experiência, mas que depois de analisado se mostra que preformou a experiência, as condições prévias da experiência, às quais eu posso retornar por uma análise crítica. Então Kant faz uma análise crítica de tudo o que a humanidade percebeu desde o início do tempo e das categorias da razão e diz que tudo o que nós [a humanidade inteira] percebemos está enquadrado aqui. Bom, acabamos de demonstrar que não é assim. Tem muito mais coisas que a gente percebe que não está aí. Por exemplo, a amoldagem dos objetos de acordo com a nossa estrutura de percepção. Para que os objetos sejam percebidos, é necessário que eles se adéqüem à nossa estrutura de percepção. E essa perceptibilidade deles pela nossa estrutura de percepção tem de estar neles, e não na nossa estrutura de percepção. Portanto, algo da coisa em si temos de saber. E quando vemos que este algo coincide exatamente com o que Aristóteles denominava essência, então eu não posso perceber a mais mínima aparência fenomênica sem captar instantaneamente a essência do objeto que eu estou vendo.
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Aluno: Eu li um post no Facebook de autoria de Francisco Razzo. Ele faz cinco perguntas: (1) Afinal, do que trata a filosofia de Olavo de Carvalho? (2) No que a sua filosofia efetivamente tem contribuído para a história da filosofia? (3) Qual é o problema central das suas reflexões filosóficas? (4) Seu pensamento está inserido em qual tradição e com quais filósofos se pode dizer que ele dialoga? (5) Quais as contribuições significativas para a epistemologia, metafísica, ética, filosofia política, etc. e etc.?
Olavo: Eu acho que essas perguntas só podem ser formuladas por pessoas que desconheçam totalmente tudo o que fiz ao longo de minha vida, que não tenham nem lido meus livros nem acompanhados os meus cursos, nem coisa nenhuma. Não é possível que o sujeito não saiba a resposta disso, a não ser que ele ignore tudo e esteja chegando agora. As cinco perguntas se respondem automaticamente por este curso e por tudo o que publiquei. Quando ele pergunta, por exemplo, em qual tradição está inserido [o meu pensamento], [em] nenhuma, nenhuma, nenhuma. Eu transito entre elas sem nenhum problema. E quais filósofos eu dialogo? Eu já publiquei um livro sobre Descartes e sobre Aristóteles, então pelo menos com esses dois estou dialogando. Estou dando um curso sobre Kant, estou dialogando com Kant também. Sem contar a infinidade de coisas que publiquei sobre Karl Marx. Acho que aí se responde automaticamente.
"No que a sua filosofia efetivamente tem contribuído para a história da filosofia?". Este é um problema para a história da filosofia e não para mim. Não cabe a mim fixar antecipadamente o lugar que vou ocupar na história, isso seria uma presunção absurda. Eu tenho alguma idéia dos efeitos culturais gerais que o meu pensamento pode ter no presente momento do Brasil, mas meu horizonte não vai muito além disso. Se fosse para me situar num momento da história, eu diria que é o momento atual, claro, da demolição da filosofia moderna. Não sou eu o único que está empreendendo isso, ela tem sofrido todo tipo de ataque desde muitos lados, a começar pelos próprios pós-modernos. Eu acho que toda essa mitologia da filosofia moderna está sendo demolida agora, e estou participando disso, simplesmente.
[Quanto às] contribuições significativas para a epistemologia, metafísica, ética, filosofia [política, etc.]. Nunca escrevi uma linha sobre estética. É curioso, o sujeito já deu dois cursos sobre filosofia política, ele poderia ouvir os cursos. Qual é a contribuição dele? Está aqui. Você pega os dois cursos de filosofia política e soma como todos os artigos no qual exemplifiquei o que estava dando ali. Você terá ali umas quatro mil páginas de contribuição.
Mas por que ele não vai pesquisar em vez de lançar essas perguntas? Ele está lançando retoricamente apenas, é só para fazer de conta que a resposta de tudo é nada. Qual é a filosofia de Olavo de Carvalho? Nada. É só retórica, não é séria essa pergunta. Se fizesse a sério, investigaria.
Aluno: Gostaria apenas que o senhor elaborasse um pouco mais a idéia de que a essência não se resume ao estado presente.
Olavo: Os cincos sentidos só podem perceber um objeto no espaço e no tempo em que ele está, em que você está ali também, portanto os cincos sentidos só percebem a presença imediata. Porém, quando Kant diz que o tempo é uma forma a priori da percepção, ou seja, você percebe tudo no tempo, então é necessário que você perceba também as transformações temporais, as quais não podem por si mesmas ser acompanhadas por nenhum dos cinco sentidos. Então quer dizer que, além dos cinco sentidos, temos um outro órgão de percepção do tempo que nos permite apreender, por exemplo, a continuidade de um movimento. A idéia de que tudo o que percebemos são momentos e fragmentos é uma idéia errada. Você percebe fragmentos com os cinco sentidos, mas por trás disso você tem a percepção de tempo, a vivência de tempo. Por exemplo, sabemos que o olho humano só pega um ponto de cada vez e o resto articula como se fosse um fundo. Se vocês se perguntar: [mas] se eu só percebo um ponto de cada vez, como tenho a impressão de estar vendo conjuntos? É muito simples: não é só olho que está percebendo, existe uma consciência por trás. A consciência percebe no mesmo instante em que o olho percebe, e não tem como separar uma coisa da outra. Você pode distinguir, mas não separar.
Aluno: Tendo em vista as novas e impositivas leis antitabagísticas, eu resolvi criar um site pró-tabaco: www.liberdadedefumo.com. Estou me baseando no site da Forces, mas gostaria de ter o apoio de alguém que dominasse melhor o idioma inglês ou pelo menos alguém que estivesse disposto a entrar nessa luta comigo.
Olavo: Procurem o site dele os que puderem ajudá-lo a traduzir o material da Forces, que é muito bom.
Aluno: Durante a aula o senhor falou de Luc Ferry. Ele fala no final do livro A Nova Ordem Ecológica que o comunismo acabou. Podemos confiar nele no conjunto de obras ou é um embusteiro persuasivo?
Olavo: Ele não é nem uma coisa nem outra. Ele é sujeito que se desiludiu com o comunismo, como toda a intelectualidade francesa. E sabemos que é quase um reflexo automático quando um indivíduo, imbuído da mentalidade moderna, desilude-se com o comunismo, ele passa imediatamente para o Iluminismo, como aconteceu com o nosso Gianotti, o próprio José Guilherme Merquior e muitos outros. Ele recua um capítulo do movimento revolucionário e adere ao que veio antes. Mas é uma reação automática que não revela muito o espírito crítico. O espírito crítico deveria pôr em dúvida não somente o marxismo ou esse movimento revolucionário em particular, mas todo o ciclo moderno, e na verdade toda a história da filosofia. Ou seja, por que temos de necessariamente nos situar a nós mesmos dentro de uma etapa da história da filosofia, aderindo a essa etapa? Por que não podemos ficar no ar e transitar entre várias épocas? Goethe dizia que para você escapar da mediocridade do tempo presente, você se refugie naquilo que nunca foi atual, naquilo que não está vinculado a um momento de tempo. Essa é uma capacidade que o ser humano tem. Por exemplo quando você vê a formação de Santo Tomás de Aquino: ele recebe muita influência do ambiente, mas ele está muito mais ligado a Aristóteles, que foi mil e quatrocentos antes, do que a tudo o que estava no seu ambiente. É uma capacidade que temos. Quer dizer, se eu quiser moldar minha mentalidade pelos ensinamentos de Lao-Tsé ou de Platão, eu posso fazer perfeitamente.
Essa vinculação à época é por si mesma um preconceito moderno. [1:10] O homem é filho do seu tempo. Para você ser filho do seu tempo, você precisa ser filho da realidade, você precisa existir na realidade como um todo para existir no seu tempo também. Você tem o seu tempo, que é um horizonte em volta de você, mas por trás desse horizonte existe uma realidade muito maior, e você está dentro de uma coisa porque você está dentro da outra. Eu posso ser alguém do meu tempo porque posso transitar entre todos os outros tempos, senão eu não poderia. Senão o horizonte da época o limitaria de tal maneira que você não poderia entender nada do que veio antes. Às vezes isso acontece, às vezes certas tradições, certos ensinamentos são apagados de tal maneira que se tornam incompreensíveis depois.
Mas, veja, em pleno século XX aconteceu o fenômeno como esse arqueólogo polonês Schwaller de Lubicz que esteve estudando no Templo de Luxor e a ciência egípcia durante trinta ou quarenta anos e interpreta tudo à luz da ciência egípcia. Qual é a dificuldade de fazer isso? Qual é o problema? Se até dentro da perspectiva da ciência egípcia um indivíduo pode se situar, por que eu não posso me situar na perspectiva platônica ou aristotélica? Por que sempre tenho de ver tudo com os olhos do meu tempo, como se meu tempo fosse uma autoridade terminal, coisa que por definição ele não pode ser? Se fala tempo, é uma coisa que está transcorrendo e que vai acabar. Você está vivenciando uma época da história da cultura, daqui a pouco você estará em outra, e o que era tido como certo aqui, será errado ali e assim por diante. Estar num certo tempo é uma posição relativa, e não absoluta, não é um limite absoluto. Para que um homem seja filho do seu tempo, é necessário que ele seja filho da espécie humana antes.
Ademais, você nasce com as características biológicas da espécie que são permanentes, durabilíssimas, e a cultura do seu tempo você só vai adquirir depois aos pouquinhos. Ou seja, se você não desenvolver primeiro as características humanas gerais, muito menos poderá se impregnar da cultura do seu tempo. Portanto, a cultura do seu tempo é superposta a algo que podemos chamar a natureza humana. E pela natureza humana você participa de todas as épocas e pode transitar livremente entre elas e compreender e participar das perspectivas as mais antigas e exóticas. Você veja o impacto que teve no século XX europeu o estudo de tradições orientais milenares que ninguém conhecia antes. Começa a se interessar por isso no século XIX, mas ainda incipiente, com os chamados orientalistas. No século XX, quando Richard Wilhelm publica a tradução do I Ching, isso vira a cabeça de tanta gente e, de repente, você tem um monte de gente raciocinando como se fosse um chinês do século V antes de Cristo. E qual é a dificuldade de fazer isto?
A idéia de que todo homem é filho do seu tempo é como a conversa de que a história é a história dos vencedores. É um lugar-comum, é um chavão. E chavão só serve para impedir você de pensar e de entender as coisas. Ser filho do seu tempo é a mesma coisa que dizer que você nasceu do dia tal, a tantas horas: não vai fazer diferença. Em segundo lugar, a idéia de que você tem de ser um homem do seu tempo o aprisiona na opinião atual, e na opinião atual de certo grupo que certamente será diferente de outro grupo. Por exemplo, se você é iluminista liberal, você acha que é você um homem do seu tempo, mas do seu lado tem um marxista que acha que você é um monstro antediluviano. Ou seja, você atrás na história, ele está na frente. Quem está na frente e quem está atrás? Tudo isso, evidentemente, é relativo. Isso são poses, são atitudes. Na verdade, são fingimentos, são identidades que o indivíduo veste em si mesmo como fantasias para reforçar o seu ego periclitante. Na verdade, se você tem uma personalidade intelectual bem formada, você está à vontade em todas as épocas, sempre consegue pensar como um sujeito de agora, como consegue pensar como o do século XIX, século XVIII ou século IV antes de Cristo. Essa dificuldade realmente inexiste.
Porém, essa coisa de ser um homem do seu tempo às vezes é mais do que isso, às vezes é uma identificação tão profunda com certo círculo profissional, sobretudo os professores universitários no Brasil, que chega a ser uma escravidão mental. Por exemplo, quando o cara diz que o sujeito estudar astrologia o desmoraliza. Por quê? O que ele sabe a respeito? Ele estudou alguma coisa? Acompanhou o debate astrológico do século XX? Ele sabe alguma coisa? Não sabe nada. Então está baseado no quê? Numa opinião popular que ele pegou do Fantástico, do Globo. Não é intelectualmente respeitável ele dizer uma coisa dessas. Por exemplo, o tempo que fiquei estudando astrologia foi suficiente para eu entender uma coisa: o horóscopo de nascimento tem algo a ver com o caráter do sujeito e algo você pode identificar, só que esse algo é muito pouco. Então é uma coisa real que merece ser estudada, merece ser aprofundada, porém não dá base para fazer o que os astrólogos fazem. Porque os astrólogos pegam o seu horóscopo e fazem uma análise da sua personalidade inteira e fala horas, descobre o seu inconsciente, os seus complexos. Tudo isso é charlatanismo. Porém, é um charlatanismo que se baseia num núcleo de verdade factual estatisticamente comprável.
Quando as pessoas perguntam se a astrologia é uma ciência ou uma pseudociência --- eu já falei isso anos atrás ---, ela não é nem uma ciência nem uma pseudociência, ela é um problema científico que tem de ser resolvido mais dia menos dia. E a falta de interesse por esse problema científico demonstra pouca inteligência. O indivíduo se contenta com mitos, com opiniões circulantes ou com a do grupo. Por exemplo, se ele é um astrólogo profissional, ele adere ao grupo dos astrólogos profissionais e defende a astrologia com unhas e dentes como se fosse uma ciência, um saber superior, etc. Por quê? Porque isso lhe dá uma identidade grupal e uma segurança. E se ele é um professor universitário que está fora disso, ele vai falar da astrologia com uma superioridade imensa, embora não conheça nada a respeito. Já chegou ao absurdo de eu ser criticado por pessoas que são astrólogas pessoalmente e apreciadoras da astrologia, como aquele tal de Magnavita, ele é astrólogo profissional! É um professor universitário e fica descendo o cacete em mim: "Eu estou acompanhando crendice?". E a astrologia dele? Se você lê a astrologia, não é um estudo crítico como eu fiz, é astrologia mesmo. O cara adere à astrologia, acredita que é um saber revelado, alguma coisa assim. Isto pode, mas fazer um estudo científico, objetivo, não pode.
Eu trabalhei com isso algum tempo e parei no instante em que percebi que um fundo de verdade tem aqui porque factualmente e estaticamente você comprova que tem correspondência. Só que o que você tira do horóscopo de nascimento? Duas ou três informações, e isto é tudo. Por exemplo, quando a Veja foi me desafiar... "Se lhe dermos um horóscopo de um sujeito que você não conhece, você consegue descrever a personalidade dele?". Consigo, com três condições: (1) dizer se a pessoa existe ou não existe; (2) dizer se é homem ou mulher; (3) eu faço questão de que seja uma pessoa conhecida para podermos conferir o que vou dizer, porque, se for um zé mané, como vou saber se acertei ou não? A Veja topou e me trouxe o horóscopo. Eu li e dei a descrição da personalidade do Fernando Gabeira, com muita exatidão. Só tem o seguinte: aquilo que eu disse era tudo o que se podia tirar desse horóscopo. E um astrólogo profissional o que faria? Daria uma consulta de horas, fingindo descrever a personalidade inteira do cara e fazer uma análise em profundidade. E aí entra no charlatanismo. Qual é o limite entre o que existe de saber e o que existe de falso saber ou charlatanismo na coisa? Esse é que é o problema.
Você precisa ver que essa questão da astrologia preocupou uma das melhores mentes da humanidade: Santo Tomás de Aquino, Goethe, Carl Jung e muitos outros. Então é um problema sério. Mesmo que fosse crendice, ainda resta explicar por que essa crendice conquistou tantas mentes assim ao longo do tempo? Qual é o fenômeno? Se você não se interessa por isso é porque você é um sonso, é um cara intelectualmente passivo, que repete as opiniões do seu meio ambiente. O problema existe, tem de ser investigado. Depois de tê-lo investigado com toda a seriedade durante um tempo, cheguei à conclusão de que você tira duas ou três informações, mas isto é tudo, não dá para fazer mais nada. Você tem ali uma base factual que justifica um estudo científico da coisa. [1:20] Mas dizer que astrologia é uma ciência? Ela não é. Também é uma pseudociência? Não é porque tem uma base factual mínima. Existe um fenômeno astrológico, e este fenômeno tem de ser estudado.
Também falei mil vezes: como o sujeito quer saber se a astrologia funciona ou não funciona, se ele não investigou o fenômeno alegado pela astrologia por outros meios? Se existe uma relação entre uma coisa e outra, tem de poder ser comprovada por meios não astrológicos. Se você prova por meios não astrológicos que não existe, então a astrologia, toda ela, cai. E se você prova que ela existe, isso não prova que a astrologia funciona; prova que o fenômeno que ela estuda existe, mas não quer dizer que o que ela diz sobre o fenômeno seja verdadeiro. Essa confusão é universal, está disseminada em tudo quanto é lugar. E mostra o quê? Falta de senso crítico, falta de inteligência ajuntada com uma presunção adolescente na verdade, para não dizer psicótica, como é caso desse menino Francisco Razzo. É um poço de complexo de inferioridade imenso, poço de inveja, quer dizer, é uma pessoa inteiramente fracassada, uma nulidade total e que gosta de assumir ares desafiadores para dizer coisas que ele nem conhece.
Voltando ao Luc Ferry. Luc Ferry é um grande conhecedor da obra de Kant e um excelente expositor da obra de Kant. Mas, como ele passou por esse fenômeno que é a transição do marxismo para o Iluminismo, então o Iluminismo para ele passa a ser o horizonte máximo de compreensão. Eu acho que pessoas assim deveriam ser expostas a um banho de culturas orientais durante um tempo. Isso basta para libertar você da sua prisão temporal. Você estava preso no século XIX, marxista, agora está preso no século XVIII, iluminista. Por que você não passa para o século XVII, XVI, III, II e não sai da esfera européia para tentar ter uma visão mais universal das coisas? O que eu acho obrigatório para a formação intelectual do nego. Se ele não tem uma visão universal capaz de compreender e assimilar várias civilizações, então ele vai ser sempre um provinciano, vai passar de um tipo de provincianismo para outro. Em suma: você vê a proposta iluminista em si mesmo não estava errada: sapere aude (ouse saber). Em si está frase está corretíssima, só que ninguém ousa, isto é só dá boca para fora. Se você tenta realmente saber, evidentemente vai mais dia menos dia descobrir certas coisas que o colocarão em oposição frontal a certos grupos que são, por sua vez, provincianos e que tem um horizonte intelectual limitado e ao mesmo tempo uma presunção fora do comum.
Se pegarmos essas cinco perguntas aqui, elas se aplicam perfeitamente ao Francisco Razzo, no sentido negativo. Qual é a filosofia de Francisco Razzo? No que ele contribuiu? A resposta é sempre nada, nada, nada, nada, nada. Mas as minhas contribuições estão todas registradas, ou por escrito ou em gravações, e estão acessíveis a qualquer um.
Aluno: O senhor conhece as investigações de David Hockney sobre o realismo na pintura renascentista de Caravaggio, Jan van Eyck e outros? Ele afirma que o realismo da pintura renascentista foi alcançado pelo emprego de um técnica de espelhos e lentes.
Olavo: É verdade isto. Ele não foi o primeiro que disse isto, mas sem isso seria impossível dar aquela impressão de profundidade. Quando você vê o quadro de Velásquez, As Meninas, no qual você percebe que no fundo tem um espelho. Tem uma cena aqui em que estão as meninas com cachorro, uma empregada etc., e no fundo tem um espelho onde aparece o rei e a rainha. E você vê que Velásquez conseguiu colocar você na perspectiva do rei, como se você fosse o rei observando aquela cena e se vendo no espelho. Isso aí não é fácil! O sujeito não pode fazer tudo isso só por imaginação, ele precisa ter algum aparato físico que o ajude a conceber melhor essas coisas. Não conheço [as investigações de David Hockney], mas a tese em si, tal como você a resumiu aqui, é óbvia por si mesma.
Aluno: Quando Kant diz que não é possível conhecer a coisa em si, o que ele quer dizer?
Olavo: Ele quer dizer que tudo o que percebemos está delimitado pelo nosso aparato de percepção. É a mesma coisa que dizer que você percebe só o que você percebe e nada pode saber da coisa em si mesma. Que é a coisa em si mesma? A coisa considerada independentemente da percepção que você tem dela. Se você pensar bem, esta frase que dizer o seguinte: você nada pode saber a respeito daquilo que você nada pode saber. Ou seja, não percebe aquilo que você não percebe. De certo modo é tautológico. Mas, como tudo o que é tautológico, por outro lado, é completamente vazio.
Procurei demonstrar durante essa aula que é impossível perceber uma aparência fenomênica sem saber algo da coisa em si, é o contrário. A coisa em si é inacessível? Não, ela é acessível, e precisamente por que ela é acessível, que ela pode ter, para mim, uma aparência fenomênica, senão ela não teria nenhuma. Duas coisas: ele contrasta espontaneidade da mente e o dado que vem de fora, que é imposto de fora. Se a forma dos objetos dependesse inteiramente da minha espontaneidade, então eu poderia transformar uma tartaruga num elefante e qualquer coisa. O próprio Kant reconhece que não é assim, ele diz: "Algo tem de me ser imposto". Eu digo, e este algo é apenas uma matéria sem forma? Impossível! Não podemos perceber nenhuma matéria sem forma, é impossível isto aí. Alguma forma o objeto tem de ter. Ele tem de ter uma forma para poder me transmitir uma aparência, que será diferente da aparência que ele transmite a outra pessoa. Por exemplo, se aqui tem um cubo, eu sei que estou vendo o cubo por um lado e que a pessoa que está na minha frente está vendo o cubo pelo outro. Portanto, é por que o cubo o quê? Tem dois lados ou mais lados, pode ser visto por vários lados. Se não percebo nem isso, então não estou percebendo nada. Para que eu perceba uma aparência fenomênica, é absolutamente necessário que o objeto tenha a capacidade de me transmitir esta aparência fenomênica como transmite outras aparências fenomênicas a outros seres que o percebem. E esta capacidade tem de estar nele, não pode estar em mim.
Aluno: O senhor tem recomendado combater os comunistas na nossa igreja, clube, escola, enfim, onde estivermos. E na nossa família, como devemos combater o comunismo dos nossos queridos parentes?
Olavo: Esta coisa é muito grave. Normalmente, se você vive numa democracia estável, você pode dialogar com qualquer idéia que seja --- comunista, marxista, fascista, racista. Qualquer idéia deve ser encarada, em princípio, com neutralidade, compreensão e, como diria Coleridge, com a suspension of disbelief. Ou seja, você suspende a sua descrença, suspende a sua suspeita e ouve aquela idéia com o máximo de compreensão possível. Em princípio, podemos fazer isto. Porém, quando a situação se precipita e já não se trata de idéias, mas de uma luta de vida e morte pela implantação de um sistema comunista, então aí a coisa mudou de figura. Isto quer dizer que qualquer tolerância exercida neste momento consiste em dar a vitória ao adversário. E esta vitória implicará a implantação de um regime totalitário, assassino, genocida. Já sabemos como é isto, o Brasil não vai ser exceção. Onde quer que você se aproxime do comunismo, começa o genocídio, como já começou na Venezuela, como já teve Cuba, etc.
Mais ainda eu lhe digo: você vê que o nosso governo está empenhando, primeiro, em desarmar a população, segundo, desarmar a polícia, mas ele não faz nada para desarmar as quadrilhas de narcotraficantes, e está fazendo algo para armar os militantes do MST. Eu o desarmo e me armo a mim mesmo. Estou fazendo isso por uma boa intenção? É impossível. A democratização dos meios de violência é uma condição sine qua non para a democracia. É aquela tese de Carroll Quigley: quando todo mundo tem acesso às armas você tem uma época de democracia e igualdade; quando as armas se tornam privilégio de uma minoria, você tem uma época de totalitarismo. Isso aí é o óbvio, não precisa explicar muito. Quando você vê que o governo está centralizando o poder armado na mão não dos órgãos estatais --- porque ele está desarmando órgãos estatais, como a polícia ---, mas na mão do partido, então você vê que existe um projeto de implantar um regime de força. Por que existe esse projeto? Porque o partido no poder esgotou a sua fase de popularidade, ele perdeu o encanto, a mística dele acabou, e por todos os lados você vê explodir revoltas contra ele. Então das duas uma: ou ele cai do poder, ele aceita cair do poder, ou ele vai tentar se manter. Para ele tentar se manter, agora só tem um jeito: precisa ter uma política de força ou pelo menos a garantia de poder exercer uma politica de força se necessário. Para isso, ele está tentando se armar e armar os seus partidários, exatamente como fez Hitler [na Alemanha], onde, para ter uma arma, você precisava ter uma carteirinha do partido nazista. Vê se alguém vai invadir um acampamento do MST, apreender as armas deles. Nunca que vão fazer isso, ao contrário: vão entregar mais algumas armas.
Em seguida você vê que o governo está acelerando a formação da Unasul. A Unasul tinha entrado em decadência, tinha pifado. Eles estão restaurando agora com urgência. Por quê? Através da Unasul, você tem convênios que o exército de um país pode atuar no outro. Isto quer dizer que, como o governo não tem por si mesmo uma força armada suficiente para implantar um regime de força e não dá tempo de construí-la, então ele precisa ter essa garantia de, em casos de emergência, poderá utilizar-se legalmente de exércitos estrangeiros. Numa situação desta, é o momento de dialogar de igual para igual, democraticamente? Não, isso aqui é uma disputa de poder, e de poder armado --- passou para outra fase. Chegou ao ponto em que, para resumir, ou o Brasil acaba com o PT ou o PT acaba com o Brasil. Acabar literalmente, integrar o Brasil num governo latino-americano, onde qualquer exército pode invadir o país a qualquer momento, legalmente. Vem lá um nego da Venezuela ou de Cuba matar brasileiro, e isso será legal. Isso é absolutamente intolerável sob qualquer aspecto que seja. E acabou o diálogo: agora vocês usam os instrumentos que têm e nós usamos o que temos. Você tem os truques, a política parlamentar, a propina, os meios de administrativos, tem tudo isso. E nós o que temos? Temos o povo revoltado. Cada um tem uma arma. As perspectivas do povo são melhores a longo prazo, mas a precipitação dos acontecimentos favorece o quê? O governo que tem meios de ação a mais curto prazo. Esta é a situação. Acabou o diálogo e qualquer tolerância para com comunista se torna a esta altura um verdadeiro crime.
Quanto aos seus queridos parentes, eu digo: se você faz questão de que eles gostem de você, você está liquidado. O problema é o seguinte: você tem amor por eles? Então xingue-os, humilhe-os. Por quê? O sujeito estar comprometido como o comunismo é um pecado monstruoso, não é bom para ele. Você tirar qualquer neguinho do comunismo é um bem que você faz para ele. Se isso custar a humilhação dele, [qual é o problema?] Quantas vezes você não é obrigado a humilhar uma pessoa para tirá-la de um vício, da criminalidade? Por exemplo, o sujeito está metido em drogas: tudo o que você falar contra a droga vai humilhá-lo. Não tem jeito de fazer isso de maneira doce. Se você descobriu alguma, sorte sua. Mas em geral isso não é possível. Em segundo lugar, na presente situação não há tempo.
Por outro lado ainda, a rejeição que você tem dessas idéias, que já não são somente idéias, são projetos de poder, é um elemento fundamental para formar a sua personalidade. Qual é a sua rejeição do comunismo? É uma rejeição hipotética, puramente teórica? Você tem suas objeções porque o comunismo é improdutivo. Mas se vier um regime comunista, você vai aceitar? É assim a sua reação? Isto cria um tipo de personalidade, isso cria tipo Geraldo Alckmin, José Serra, essa gente toda. Por outro lado, se a sua rejeição for definitiva, você fala que morre para que isso não aconteça, aí a sua personalidade é outra. Aí é uma questão de quem você quer ser. Não o que você quer ser, mas quem você quer ser. É importante essa demarcação de território. Você pode tolerar uma idéia diferente, mas não pode tolerar um projeto de poder diferente, sobretudo se esse projeto de poder já está se armando. Está se armando para quê? Para fazer afagos na sua cabeça? Trata-se de preservar a sua vida e a dos seus próprios entes queridos, porque as primeiras pessoas que morrem em uma revolução comunista são os próprios comunistas. Sabemos que isso acontece em todas as revoluções. Da elite de líderes que fez a Revolução Cubana, só sobrou dois, Raul Castro e Fidel Castro, os outros todos foram assassinados. Na Revolução Russa a mesmíssima coisa, Revolução Chinesa a mesmíssima coisa. Em todo lugar onde você vê uma revolução comunista, isso acontece. Ninguém mata tantos comunistas quanto os comunistas. Quantos a direita matou? É "x". Quantos os comunistas mesmo mataram? É muito mais, é incalculável. Pode ter certeza de que muitas dessas pessoas que estão entusiasmadas com o PT, amanhã ou depois elas se desiludirão tarde demais, quando estiverem em risco de vida. Quantas pessoas não se arrependeram do comunismo quando elas já estavam na cadeia comunista, quando estava no gulag?! Quantos marxistas sérios! Leia a história de Plekhanov ou leia a história de Trotski. A hora que o sujeito percebeu que se meteu numa enrascada, era tarde, agora ele ia morrer. É disso que você está preservando essas pessoas.
Transcrição: Felipe Vitorino, Susana Festner e Jussara Reis de Abreu
Revisão: Henrique Bernardes