Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 248
10 de maio de 2014
Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
Eu não lembro exatamente onde nós tínhamos parado na outra aula. Então, eu vou pegar aqui um tema relativamente novo (quer dizer, novo para esta fase, acho que já toquei nisso em outras ocasiões), em que vou tentar tirar da experiência filosófica antiga algumas lições que sejam úteis para a nossa vida prática de estudantes.
Então, vamos partir do seguinte princípio: a coisa mais óbvia e presente da experiência humana é a unidade do cenário onde vivemos. Se os vários entes − homens e animais − não estivessem permanentemente expostos a um mesmo fluxo de acontecimentos, toda a comunicação entre eles seria impossível. E, no entanto, a comunicação é um dos fatos mais constantes da nossa vida. Nós nos comunicamos entre nós, nos comunicamos com animais e eles respondem aos nossos estímulos, aos nossos signos, de alguma maneira.
Agora mesmo eu estava lendo um livro maravilhoso: Jim Corbett, Man-Eaters of Kumaon. É uma região da Índia onde ele caçou vários tigres comedores de gente, e ele diz que os tigres se tornam comedores de gente quando ficam velhos ou têm alguma doença que os impede de perseguir a sua caça normal (que, geralmente, são bichos de quatro patas). Quando ficam velhos ou doentes, eles apelam para uma comida de segunda categoria que somos nós, que é de mais fácil acesso. O ser humano não consegue correr como um coelho, nem tem chifres para se defender como um búfalo, e é geralmente indefeso. E uma coisa que em todos os capítulos (tem vários episódios de caçada de tigre), e em todos os episódios, você nota que o tigre sabe onde o caçador está e ele evita o lugar até o último momento. Então é evidente que há uma comunicação. Inclusive um dos recursos que ele usa é imitar a voz de uma tigresa chamando − e o tigre vem. Quando percebe que não é a tigresa, ele dá no pé. Então o bicho está muito informado. Mais ainda, existe vários animais em torno − veados, macacos, pássaros − que informam da presença do tigre e começam a gritar, e tudo isso é usado como sinal. Outros sinais, por exemplo: a grama que está no chão; às vezes ele vê uma grama caída e a grama está se levantando. Quer dizer que o tigre passou por ali há alguns minutos, e assim por diante.
Há uma infinidade de indícios, e eu vendo tudo isso penso como foi possível que alguém colocasse filosoficamente a questão da existência do mundo exterior, ou imaginasse poder explicar toda a presença do mundo pela simples estrutura do nosso cérebro, da nossa percepção, quando evidentemente não existe nem cérebro, nem percepção, nem coisa nenhuma sem essa permanente comunicação com o mundo exterior. Então, o fato é o seguinte: estamos todos no mesmo mundo e faz muito tempo que nós estamos lá, há milênios.
Essa experiência repetida parece até ser desmentida quando um indivíduo publica um livro onde ele coloca em dúvida a nossa possibilidade de conhecer o mundo exterior, porque evidentemente ele escreve para o mundo exterior, escreve para leitores que não são ele mesmo. Então aí nós temos o caso da "paralaxe cognitiva", por exemplo, quando Kant acredita que toda a unidade do mundo é construída na nossa mente. Quer dizer, o mundo é um conjunto de estímulos aleatórios, um conjunto de fragmentos e é a nossa mente que unifica tudo. Isso é evidentemente incompatível com a perspectiva de você publicar um livro que vai ser lido por uma outra criatura cuja existência unitária também foi estabelecida, criada, instituída apenas pela própria unidade da mente do escritor − isso realmente não faz sentido.
Mas, por outro lado, também é uma constante da vivência humana a multiplicidade e a diferença entre os círculos de experiência dos vários indivíduos, tanto homens, quanto animais. Nós sabemos que estamos nos comunicando no mesmo mundo, mas sabemos que não vemos esse mundo da mesma maneira. Por exemplo, se você pega os olhos de um sapo, o mundo do sapo tem 180 graus, o nosso já não tem tanto. Outros animais que têm uma visão mais estreita; existem animais que não enxergam cores, por exemplo. Hoje nós sabemos que os gatos enxergam tudo sob a forma de entes geométricos, eles geometrizam tudo. Então, existem muitas maneiras de ver esse mundo, e isso desde logo criou um problema para os primeiros filósofos − o problema do um e do múltiplo − qual é o padrão de unidade do mundo que está por baixo de todas essas experiências. Ora, essa unidade do mundo é pressuposta em todas as experiências. Ela é a presença dentro da qual nós estamos, mas ela não é um objeto da nossa percepção, não é um conteúdo da nossa consciência. Ao contrário, nós somos um conteúdo da unidade do mundo, mas nós não podemos apreendê-la. Na verdade, se pudéssemos apreendê-la, se pudéssemos enxergar o universo como um todo, em todas as suas dimensões materiais e espirituais, nós o abarcaríamos. Estaríamos, por assim dizer, fora e acima dele. Se não podemos apreender a unidade do mundo, não é uma deficiência nossa, isso é parte da estrutura da realidade.
Também essa diferença entre a consciência que temos de estar num mundo único e o fato de que só percebemos fragmentos ou pedaços, isso também é parte da estrutura da realidade. Essa tensão entre o um e o múltiplo não tem solução, e o simples fato de esperarmos uma solução é incompatível com a nossa modalidade de existência. Os animais, por exemplo: existe o famoso biólogo Uexküll que descobriu o conceito do umwelt, que é o mundo circundante. Cada espécie animal, ela só percebe certos fragmentos, certas partes do mundo, e esse mundo de cada espécie ou de cada animal é descritível até certo ponto. Isso quer dizer que esse animal nos percebe como parte do seu umwelt; ele não percebe todas as funções humanas, ele só percebe aquelas funções que o ser humano desempenha com relação a ele. Por exemplo, o tigre percebe o ser humano ou como caça ou como caçador, ele não se interessa por outros aspectos da existência humana e não tem conhecimento deles. Porém, essas duas funções ele conhece perfeitamente bem, assim como nós não sabemos tudo a respeito de tigres. Nós só sabemos aquelas partes que dizem respeito à nossa existência, seja pelo perigo que representam, seja pelo fato de que nós vamos caçá-los, ou pelo fato de que nós os colocamos em um zoológico e eles se tornam objeto de uma ciência que chamamos zoologia.
Desde o início da especulação filosófica aparece essa diferença brutal, esse abismo entre a presença, a percepção e a representação. Esse é um problema do qual jamais vamos nos livrar, isto é, nós estamos presentes ao mundo na sua totalidade e o mundo em sua totalidade está presente a nós. De algum modo todo mundo sabe disso, ou seja, todo mundo sabe e os animais também sabem que o mundo não se esgota no seu círculo de conhecimento. Sempre existe, para além do conhecido, o desconhecido e o desconhecido é uma presença. Você tem um horizonte; se esse horizonte fosse tudo, o mundo seria apenas um conteúdo de consciência seu, e se ele fosse um conteúdo de consciência você não poderia atuar nele. Quer dizer, o conhecimento seria oposto à ação. A possibilidade do conhecimento eliminaria a possibilidade de ação, assim como num cenário que você imagina − você não pode agir lá dentro, você não pode entrar lá dentro − [0:10] você só pode imaginá-lo, só pode pensá-lo, pode conhecê-lo de algum modo, mas nenhuma ação é possível lá dentro. O desconhecido é uma condição sem a qual não poderia haver um cenário conhecido no qual você pudesse atuar. Se não existisse o desconhecido existiria apenas nós.
Mais ainda, se nós abolimos a idéia de um mundo único no qual todos estamos, o mundo de cada um se torna único e absoluto. Então você chegaria no relativismo absoluto, e estes vários mundos seriam incomunicáveis e irrelevantes uns para os outros. Se eu tenho o conhecimento absoluto, se tudo o que existe é o que está na minha perspectiva e se, de certo modo, somente a minha verdade vale, então a verdade dos outros não me interessa absolutamente e ela se torna totalmente inacessível e irreconhecível. É claro que pessoas que afirmam o relativismo de maneira um pouco irresponsável não se dão conta disso, eles não percebem o que estão falando. Quando o indivíduo fala: "Não, cada um tem a sua verdade." Eu digo: "Bom, você tem a sua verdade, mas você participa da minha, ou não? A minha verdade é acessível desde a sua, ou não?" Mais ainda: "A sua é totalmente diferente da minha? Você não sabe nada do que eu sei, então como é que você está conversando comigo?"
O relativismo é um preceito metodológico que recomenda você não tirar conclusões totais de conhecimento parcial. É um mero procedimento metodológico, mas não quer dizer que ele, como descrição da realidade, como conhecimento objetivo, valha alguma coisa. Todo relativismo só faz sentido dentro da premissa da unidade do mundo. Existe um mundo unitário dentro do qual se recortam várias perspectivas individuais ou vários umvelts, inclusive o humano. Nós também temos um umvelt de alguma maneira. O nosso é certamente bem mais amplo que o dos animais, mas ele não abarca a totalidade. Por mais que nós saibamos, por maior que seja o nosso horizonte de consciência, sempre existe a tensão do desconhecido que sustenta o conhecido. Se nós não contássemos com o desconhecido, seríamos, por assim dizer, engolidos pela nossa própria perspectiva. Nós nos transformaríamos em centros e forças organizadoras do próprio mundo e não haveria outro mundo além do nosso, o que tornaria impossível qualquer ação ou comunicação, qualquer intercâmbio entre outras criaturas.
Sempre que uma pessoa diz que cada um tem a sua verdade, em geral, são pessoas que estão representando a coisa de maneira errada. O que se passa exatamente aí? Quando o indivíduo diz que cada um tem a sua verdade, ele não está dizendo uma coisa totalmente falsa − isso, até certo ponto, é verdadeiro. Nós sabemos que muito da experiência humana é de fato incomunicável, mas a pergunta seria: "Se tudo fosse incomunicável, como você poderia me informar que cada um tem a sua verdade? Eu nem poderia entender o que você está dizendo!" Se fosse verdade que cada um tem a sua verdade e ela lhe basta, não seria possível comunicar essa experiência. Ou seja, a possibilidade de comunicar que existe alguma incomunicabilidade mostra que essa incomunicabilidade não é total − que existe, evidentemente, uma tensão.
Porém, o fato é que, desde o início, se observa: 1º) que a percepção não abarca toda a presença e que a presença se manifesta sobretudo através da tensão entre o conhecido e o desconhecido, incluindo no desconhecido tudo aquilo que foi esquecido. O que eu sabia ontem, hoje já não sei − isso acontece principalmente depois dos 60 anos. Você começa a verificar que isso realmente existe − coisas que você sabia, de repente não sabe mais e se tornam novidade para você; 2º) nós temos a passagem da presença para a percepção, na qual existe o recorte e a perspectiva; 3º) nós temos o fenômeno da expressão, ou seja, temos de dar alguma forma àquilo que nós percebemos para que essa forma se estabilize e possa ser lembrada. Veja que qualquer cena que tenha presenciado, você nem pode e nem precisa recordar-se dela inteira. Você recorta uma cena e ela já lhe diz, de algum modo, tudo o que se passou. Por exemplo, eu lembro que uma vez que um maluco puxou uma faca para mim -- claro, houve vários acontecimentos que precederam isso −, mas não lembro, lembro só daquela cena e ela já me diz tudo, de algum modo.
Isso quer dizer que a percepção recorta a presença e a representação recorta a percepção. Em seguida, nós pensamos sobre esse conteúdo conservado na memória e não sobre a percepção em si. Quer dizer, você tem duas passagens. Isso mostra um dos maiores dramas cognitivos humanos que é a dificuldade de encontrar os conceitos descritivos para dizer o que você está pensando. Quando nós acompanhamos a história das origens da filosofia, vemos várias tentativas de expressar de algum modo a experiência da unidade do mundo e a experiência da multiplicidade. E essas tentativas, às vezes, nos parecem até cômicas pelo seu simplismo, mas só nos parecem simplistas quando projetamos sobre elas as exigências daquilo que nós sabemos hoje, ou seja, daquilo que foi descoberto pela ciência e que tomamos como uma imagem objetiva da realidade − até erroneamente.
Mas quando, por exemplo, o filósofo Tales dizia que o universo se compõe, no fundo, de água − haveria uma substância líquida por baixo de tudo −, o que ele estava querendo buscar com isso e qual era o pressuposto dessa mensagem? O primeiro pressuposto é que por baixo da matéria havia uma outra matéria. Isso quer dizer que a matéria toma várias formas, mas existe por baixo dela uma matéria-prima da qual tudo é feito e da qual as várias formas se diversificam. E o segundo pressuposto é que essa matéria-prima poderia corresponder, esquematicamente, a uma das matérias já diversificadas que é a água. Afinal de contas, quando nós pensamos, a água não é nada mais do que uma das muitas formas que as coisas podem tomar: a água, pedras, céu, nuvens, bichos etc. Então, seria esta a pergunta: "Por que uma dessas matérias já diversificadas deveria ser a matéria-prima?"
Entendemos que quando Tales falava da água, talvez ele não quisesse dizer essa água que corre nos rios, mas uma outra substância líquida qualquer que ele expressou como água. Isso quer dizer que a pergunta que ele coloca, como bem observou Aristóteles, é uma pergunta de ordem física, tanto que Aristóteles chamava esses primeiros filósofos de filósofos físicos, porque eles estavam interessados eminentemente no mundo material e buscando uma explicação material para o mundo material. Só que essa é uma física expressa em linguagem poética. Ou seja, como símbolo poético a água é perfeitamente adequada. Quer dizer que se não existisse algum tipo de matéria informe, também não poderia haver as matérias diversificadas e formadas, [0:20] porque todos os entes já teriam as suas formas definitivas e eles não poderiam nem se fazer e nem se desfazer. Todos os objetos seriam, por assim dizer, eternos na forma em que eles estão.
A existência de algo que se possa conceber como matéria-prima é, de certo modo, uma necessidade. Isso corresponde à experiência de que nós vemos as coisas se formarem e se desfazerem. Seria a pergunta: "Quando elas vêm, de onde elas vêm? E quando elas vão, para onde elas vão?" Se não existisse um fundo informe de onde as coisas aparecem e para onde elas voltam, nada seria possível. Porém, quem diz que essa matéria-prima contém por si mesma uma força explicativa? Esse é o pressuposto de Tales: se nós encontrarmos a matéria-prima, teremos encontrado a explicação de tudo o que existe. Mas quem disse que isso é uma explicação? Suponha a matéria-prima e você pode perguntar: "Mas por que ela se diversifica, se ela como matéria-prima já contém todas as condições que determinam e possibilitam a sua própria existência? Por que ela não permanece informe para sempre? Por que ela se diversifica em pedras, nuvens, animais etc.?"
Essa idéia de que a matéria que está por baixo da matéria contém, ao mesmo tempo, a explicação da matéria diversificada é um dos pressupostos da filosofia dos pré-socráticos. Claro que nem todos aceitaram essa premissa de que encontrar uma matéria mais informe por baixo da matéria formada seria também uma explicação. Além da matéria, você precisaria ter uma força agente. Então, essa força agente deveria ser encontrada ou dentro dessa matéria-prima (quer dizer, ela tem um força autocriante, por assim dizer), ou deveria haver uma terceira força de fora que teria de acioná-la, de alguma maneira.
Quando Anaximandro propõe, em seguida, como fundamento de todas as coisas, o que chama de o ápeiron -- quer dizer, o desconhecido, o que está para além de todas as diversificações --, ele não está falando uma coisa muito diferente. Nós podemos dizer que a água de Tales é, de certo modo, já o ápeiron; quer dizer, nós sabemos que essa água não é água, que é um indefinido: um indefinido que no curso da sua auto-criação se define e se diversifica nas formas dos vários objetos. Porém, é evidente que isso também não é uma explicação de maneira alguma. Isso é apenas uma divisão regional do mundo: dividiu o mundo em dois pedaços, um conhecido, um desconhecido; um constituído de formas definidas e o outro de uma matéria informe e indefinida, ou de uma coisa que você nem sabe se é matéria, mas você sabe apenas que ela é indefinida.
Essa idéia está subentendida de algum modo em todos os pré-socráticos: identificar essa divisão regional como uma explicação. Isso quer dizer que eles não sabiam direito o que era uma explicação. Mas, de algum modo, conseguiam expressar essa experiência fundamental do aparecer e do desaparecer: vindo da água, vindo do ápeiron, os entes se formavam e em seguida se desfaziam. Tem coisas que podem durar uma infinidade de tempo, mas você sabe que, mais dia, menos dia, elas vão se desfazer, como, por exemplo, as pedras. Elas podem ser desgastadas pela erosão, pelo vento, pela água etc. e acabam desaparecendo ou tomando uma forma completamente diferente. Ou seja, nós só vemos formas provisoriamente estáveis, mas todas essas formas provisoriamente estáveis estão colocadas em um mesmo mundo que continua existindo − ninguém teve a experiência de um mundo que cessasse e reaparecesse em seguida.
Nós sabemos que, por exemplo, quando dormimos não é o mundo que desaparece, é apenas nós que cessamos de ter certas percepções, mas temos outras enquanto estamos sonhando. E a simples experiência de acordar mostra que estamos de novo no mesmo lugar onde dormimos, a não ser que alguém tenha nos transportado, como acontece frequentemente quando somos crianças: dormimos na sala e acordamos na cama, porque alguém nos levou para lá. Mesmo isto, ao invés de nos sugerir uma mudança da aparência do mundo, nos sugere a estabilidade das relações familiares − foi minha mãe que me levou para lá, ou meu pai.
Então, toda essa experiência da impermanência do mundo se recorta sob o fundo da permanência da presença. Essa presença é inapreensível como conteúdo e consciência, mas é uma condição para que haja conteúdo e consciência. Se não estivéssemos no mundo, não poderíamos nos comunicar nem ter consciência de coisa nenhuma e não apenas a comunicação seria impossível, mas a minha própria comunicação comigo mesmo também seria impossível. Eu sei, por exemplo, que eu cresço, que a forma do meu corpo muda; primeiro cresço e depois envelheço, fico doente, me recupero e assim por diante. Eu passo por uma série de mutações e continuo, de algum modo, me comunicando comigo mesmo, apesar das mudanças do meu corpo. Mesmo isso seria impossível se não existisse a permanência da presença do mundo.
Quando um pouco mais tarde surge a idéia de que talvez não haja uma matéria-prima, mas muitas -- ou seja, as coisas não poderiam se transformar em outras, a não ser que algo as transformasse --, aparece com Anaxágoras a idéia do espírito noûs que mistura esses elementos. Essa já é uma idéia um pouco mais elaborada, mas por que existem os elementos? Na verdade, ele multiplicou a matéria-prima e apelou para um elemento externo (como eu disse, tinha de haver alguma força que movesse a matéria-prima); simplesmente ele multiplicou a matéria-prima e colocou um elemento externo. Este elemento externo mistura os elementos e depois os desmistura, os dissolve. Mas de onde surgem esses elementos? Se o mundo é constituído basicamente desses elementos, então é evidente que o noûs não pode explicar a existência do mundo − ele explica apenas as formas atuais. Dessa forma, continuamos sempre com o mesmo problema.
Depois existem várias outras versões: com Leucipo e Demócrito aparece a idéia dos átomos, que também não resolve o problema, porque continua sempre a mesma pergunta que mais tarde Leibniz expressaria como: "Por que existe o ser e não antes o nada? Por que existe alguma coisa?" Ainda que você reduza uma coisa à outra coisa, você não chegou a explicação nenhuma, apenas dividiu o mundo em pedaços. Mesmo que uma parte seja mais estável do que a outra, ainda assim continua sendo um elemento da presença e ela requer explicação. Você apenas complicou o problema em vez de resolvê-lo. Uma pergunta que nós podemos fazer é: "Porque esses primeiros filósofos buscaram uma explicação do mundo em vez de uma descrição da experiência do estar no mundo como só apareceria muitos séculos depois?" Isso quer dizer que eles estavam acostumados, de algum modo, à idéia de causa, de que a causa seria a explicação do efeito. [0:30] Essa causa, por sua vez, poderia tomar o aspecto ou de uma matéria mais profunda, ou de uma força imaterial qualquer.
Pela própria multiplicidade de explicações que surgem nessa época, você vê que todos eles estão, de algum modo, cometendo o mesmo equívoco: estão buscando uma explicação do mundo da percepção como se este mundo fosse a presença. Afinal de contas, o que nós vemos -- os seres formados, diversificados e individualizados -- são apenas objetos da nossa percepção. Então, esse não é o mundo da presença, é o mundo da percepção − é o mundo que nós percebemos. Como poderia o mundo que é da nossa percepção ser explicado por um fator físico externo? O mundo que nós percebemos não é em si mesmo um fenômeno de ordem física, ele é um fenômeno de ordem psicológica; ele está na nossa mente, de algum modo. E a nossa mente, por sua vez, está atuando a partir de percepções que ela colheu no mundo exterior, mas que sabemos que não correspondem a todo o mundo exterior, mas somente a uma parte dele − essa seleção perceptiva não é o mundo.
Isso quer dizer que todos eles estavam buscando a explicação de um fenômeno cognitivo com base em uma lei física subjacente. Você imagine quanto tempo teria de transcorrer até que o ser humano chegasse a desenvolver instrumentos para explicar as suas percepções a partir de fenômenos físicos, por exemplo, de ordem cerebral − mais de dois mil anos. Eles colocaram um problema que estava infinitamente acima da sua capacidade de lidar com ele, e por isso mesmo o máximo que podiam fazer era expressar em símbolos poéticos aquela impressão que tinham. Assim, seria uma física poética. Na verdade, os primeiros filósofos pré-socráticos são poetas da física: eles exprimem algo da experiência que o ser humano tem do mundo exterior, seja como presença, seja como enigma.
Mas a etapa seguinte aparece quando Sócrates se dá conta da dificuldade de encontrar os conceitos descritivos, dificuldade que os pré-socráticos não tinham percebido. Nós podemos dizer que eles expressavam a sua experiência de uma maneira mais ou menos direta e ingênua, às vezes com grande força poética e imaginativa, mas sem consciência do processo cognitivo usado. E é por isso mesmo que com Sócrates o foco se desloca do mundo físico para o conhecimento que o ser humano tem desse mundo físico. Sócrates se interessa eminentemente por algo que hoje nós chamaríamos de Teoria do Conhecimento e não diretamente pela cosmologia, ou pela descrição ou explicação do mundo físico.
Então, esse primeiro retorno da filosofia − desde o mundo ao ser humano − se repetiria muitas vezes na história. Sempre que a descrição do mundo físico parece ter alguma inadequação, algum erro, voltamo-nos para nós mesmos para examinar o nosso próprio aparato cognitivo, como fez David Hume, o próprio Descartes, Kant etc. E a recorrência dessa experiência, desse retorno, fez com que, durante pelo menos três séculos, a filosofia se concentrasse nesse problema do conhecimento humano e acreditasse poder encontrar no exame do aparato cognitivo humano a própria explicação do mundo exterior. Quando surge um idealismo subjetivo com Berkeley, ou quando surge o ceticismo de Hume, ou o criticismo de Kant, tudo isso reflete a seguinte coisa: nós falhamos em explicar o mundo exterior, então nós temos de examinar o nosso próprio aparato, como quando você olha para uma lente e está tudo borrado. Você vai examinar a própria lente para ver se tem algo errado nela, se tem alguma sujeira ou algo assim; vai corrigir o aparato, consertar a máquina fotográfica para que ela represente corretamente as coisas.
Porém, o que nós observamos nesses três últimos séculos em que predominou a filosofia idealista é que o exame do aparato cognitivo humano não era acompanhado de um concomitante exame do fenômeno da presença. Quando Kant chega a explicar todo o conhecimento humano pelo aparato cognitivo humano e diz que nós não temos conhecimento efetivo do mundo exterior, que conhecemos apenas aquilo que é percebido uniformemente por todos os seres humanos, então não podemos falar de conhecimento objetivo propriamente dito, mas de uma adequação. Por exemplo: por que a lei de Newton funciona? Nós não sabemos se ela corresponde exatamente ao mundo objetivo, mas sabemos que ela é adequada para todos os seres humanos, isto é, qualquer ser humano que refizer as contas de Newton vai encontrar o mesmo resultado. É claro que essa explicação é enormemente rebuscada, porque o fato de que todos os seres humanos vejam as coisas da mesma maneira não explica, por exemplo, a nossa comunicação com os animais ou com o próprio mundo físico em torno. Nós teremos de chegar, em última análise, à possibilidade de uma ilusão coletiva, ou seja, toda a humanidade enxerga as coisas assim, mas não sabemos se elas são realmente assim em si mesmas.
Mas com Sócrates, pela primeira vez, você vê este exame da incerteza, ou da imprecisão dos conhecimentos humanos e, sobretudo, ele coloca o problema da expressão. Eu acho que é a coisa mais genial que existe em Sócrates, porque quando ele pergunta para as pessoas: "O que é isso? O que é o Estado? O que é a sociedade? O que é o bem? O que é o mal?", e as pessoas respondem, ele corrige a expressão delas, não a percepção. Sócrates parte do princípio que as pessoas estão percebendo as coisas de maneira mais ou menos adequada, mas no salto da percepção para a expressão existe um equívoco qualquer. E isso acontece por um motivo muito simples: nós percebemos com o nosso corpo e, em princípio, sendo todos membros da mesma espécie, devemos perceber e ter a mesma experiência da presença do mundo, de algum modo. Ainda que a nossa percepção seja limitada, se nós pertencemos à mesma espécie, a [percepção] de todos nós será limitada mais ou menos do mesmo modo. Porém, a expressão é feita com uma linguagem que nós aprendemos e que é uma só para todos. Isso significa que é muito difícil você dizer as coisas exatamente como as percebe. Em geral, você usa expressões padronizadas para exprimir uma impressão que não é padronizada de maneira alguma, que é pessoal. Daí a necessidade que Sócrates encontra de espremer as pessoas para que elas cheguem a dizer o que elas estão realmente vendo, e ele tem de dar um suporte verbal para que elas façam isso.
Esse problema continua existindo pelos séculos dos séculos: nós não pensamos sobre o que nós percebemos, pensamos sobre o que nós expressamos, seja uma expressão, por exemplo, visual, uma imagem que você criou para lembrar alguma coisa e que não contém essa coisa inteira, mas é apenas um signo dela. Nós não pensamos sobre a presença e nem sobre as percepções; pensamos sobre as formas que nós criamos, pensamos sobre os signos. E, ao mesmo tempo, nós nos lembramos de que fizemos isso, ou seja, sempre podemos corrigir e perguntar: "Será que foi exatamente isso que eu percebi ou percebi uma coisa e estou dizendo outra?" Por exemplo, eu posso usar uma expressão padronizada, uma expressão uniforme que eu acredito que evocará no meu ouvinte exatamente uma experiência como a minha. [0:40] Nós estamos acostumados a dizer as coisas assim, mas é evidente que quando continuamos raciocinando sobre o que nós dissermos, as conclusões vão parar muito longe da experiência originária.
Essa necessidade de voltar da expressão à percepção, e da percepção ao fenômeno da presença -- isso eu considero o elemento mais fundamental do método filosófico. Ou seja, nós não sabemos dizer as coisas exatamente como vemos; nós sabemos dizer aquilo que todo mundo diz e, na melhor das hipóteses, quando nós conseguimos personalizar a nossa linguagem e dizer exatamente o que percebemos, não sabemos se o que percebemos expressa efetivamente a experiência da presença.
Podemos dizer que durante o período do idealismo filosófico, entre Descartes e Kant, a presença foi praticamente abolida e só interessava o que o ser humano pensava; só interessava o que se passava no sujeito. Isso culmina, evidentemente, em Fichte, quando ele diz que o eu é tudo o que existe. Mas qual eu? O meu eu ou o seu eu? A idéia de uma espécie de eu universal nos coloca o problema da Bíblia, quando Deus diz: "Eu sou o eu Sou". Nós podemos fazer sempre a seguinte pergunta: "Você tem certeza de que você é você mesmo? Você tem certeza da sua continuidade ao longo do tempo? Você não se esqueceu de muitas coisas? Você não mudou de conversa muitas vezes?" Eu recomendo o livro de David McRaney, You Are Not So Smart, onde ele mostra que muitas das nossas memórias são totalmente inventadas; que a nossa certeza de conhecer aquilo que conhecemos é incerta na maior parte dos casos, e que, em suma, a burrice e a estupidez acompanham o ser humano desde que ele nasce até quando ele morre. Então é melhor não confiar muito.
A certeza que nós temos da unidade do nosso ser é do mesmo tipo da certeza que nós temos da presença. Essa unidade não é um conteúdo de consciência e não pode sê-lo jamais. Se eu pudesse ver a mim mesmo, na minha totalidade, nada existiria fora dessa representação. Para que eu exista é absolutamente preciso que eu desconheça uma parte de mim mesmo, e esta parte que eu desconheço é a parte que está no mundo. A parte que eu conheço é a parte que está em mim -- o que está em mim também está no mundo, mas não da mesma maneira.
Essa atividade reflexiva que retorna da expressão à percepção e da percepção ao reconhecimento da presença, para mim é o cerne do método filosófico. E ele implica que todos nós saibamos que a nossa expressão é imperfeita; que ela é parcial, que a nossa percepção é parcial e que, para além de nós, existe uma presença infinita que garante, inclusive, a nossa continuidade no tempo. Não existe um ponto mais elevado do conhecimento que possamos chegar se não o reconhecimento dessa presença. Eu não digo nem consciência dessa presença, o que seria um pouco contraditório. Se eu dissesse consciência da presença, ela seria um conteúdo de consciência meu e nada existiria fora de mim. Então, digamos que devemos ter um reconhecimento, uma aceitação e, por assim dizer, um ato de humildade, de coragem intelectual − você saber que você está no desconhecido e que este desconhecido, de alguma maneira, sustenta tudo o que você conhece. Isso é um milagre permanente que sempre se repete e eu gostaria muito que os meus alunos chegassem a ter essa experiência, pelo menos com a constância que eu a tenho.
O filósofo Alain dizia que nós não conseguiríamos dormir se não tivéssemos certeza de que todos os problemas podem ficar para amanhã. Então, o dormir é um ato de confiança na constância do mundo. Por isso mesmo na Índia, a metafísica hindu identificou o máximo de consciência com o estado de sono profundo. É no estado de sono profundo que você está mais conectado com a realidade profunda, a realidade da presença, que não pode se tornar um elemento da sua consciência e que, perante a qual, a única atitude possível é a de reconhecimento e aceitação.
Aluno: Parece que todas as filosofias políticas estão conectadas a mentalidades ou à persuasões características, psicológicas ou pessoais. O conservadorismo, como Oakeshott disse, é comumente apresentado como uma persuasão. Lionel Trilling denominava, analisando a literatura americana e a história do pensamento liberal anglófono, uma mentalidade liberal que permeava essa corrente. Da mesma forma, o senhor estuda a mentalidade revolucionária como a fonte última das tradições políticas totalitárias, assim como Voegelin analisava as doenças da alma como fontes de algumas barbaridades. Entretanto, como João Pereira Coutinho diz no seu novo livro, há pessoas que são politicamente conservadoras totalmente alheias à personalidade do tipo conservador, havendo da mesma maneira políticos liberais que são pessoalmente sujeitos conservadores em suas vidas privadas. Essa elasticidade entre as qualidades psicológicas dos indivíduos e suas exteriorizações políticas podem ser explicadas por algo além das circunstâncias dessas pessoas, dos possíveis erros de análise do mundo político, dadas as limitações humanas?
Bom, eu acho absolutamente impossível você definir uma pessoa politicamente pela sua ideologia, isto é, só pelo conjunto das suas idéias. Mesmo porque, o que o indivíduo expressa publicamente, como porta-voz de uma ideologia, é só uma parte insignificante do que ele pensa, e os argumentos ideológicos usados nem sempre correspondem aos motivos reais que fundamentam as suas decisões. Então, quando nós entramos por aí, acreditando que ideologia é aquilo que o sujeito acredita, como se fosse uma espécie de fé, nós entramos numa confusão dos demônios. Isso quer dizer que eu nunca uso essas qualificações (comunista, conservador, liberal ou fascista etc.) para designar idéias ou convicções das pessoas, mas apenas a trama real de compromissos que as envolvem, compromissos que determinarão as suas ações, muito mais do que qualquer idéia ou convicção que elas tenham.
Isso é uma coisa que eu já deveria ter explicado nos meus artigos há muito tempo, porque às vezes as pessoas perguntam: "Ah, você acredita que o fulano é comunista?" Mas o que quer dizer "é"? Comunista não é uma coisa que você seja, é uma coisa que você está. Se você está metido no Foro de São Paulo, há uma rede de compromissos que você vai ter de atender de qualquer maneira: as suas ações não serão determinadas pelas suas convicções íntimas, mas por obrigações externas das quais você não pode fugir. Saber se o sujeito é comunista -- eu não sei nem se Stalin era comunista, porque seria um estado íntimo que nós jamais poderemos saber. Acho que todas as análises políticas correntes estão muito erradas por causa disso: elas acreditam que ideologias são corpos de crenças. Não são. Ideologia é um discurso de justificação de um certo grupo político que tem interesses objetivos, que tem uma estratégia, uma tática objetiva de ação, e que envolverá os seus componentes, os indivíduos que o compõem, na consecução dessas ações, pouco importando o que eles pensam.
Por exemplo, você não consegue nem mesmo ser cristão vinte e quatro horas por dia. [0:50] Mesmo o sujeito católico, que está lá rezando o dia inteiro -- ele nunca tem um momento de dúvida, ele nunca pensa ao contrário? Pensa. A mente humana é necessariamente dialética, ela vive por contradições. Então, você definir a crença de uma pessoa é quase impossível; mas definir o quadro social e político no qual ela está envolvida -- e que determinará as suas ações -- queira ela ou não, isto é muito possível. Portanto, eu prefiro usar essas qualificações apenas para designar grupos objetivamente existentes aos quais as pessoas pertencem e com os quais elas estão comprometidas, e não crenças íntimas. Eu não acredito que seja possível saltar da esfera da análise política para a análise psicológica profunda -- nem faz sentido, isso é uma confusão de planos.
Outro dia mesmo eu estava escrevendo sobre isso. Aparece um sujeito fazendo apologia do livre comércio, então todo mundo diz que ele é liberal. Mas Karl Marx fazia apologia do livre comércio, Lênin também, durante algum tempo. Como é que você vai definir ideologicamente ou psicologicamente o indivíduo por essas atitudes? Então dizemos que Lenin sempre foi comunista porque ele sempre esteve envolvido com essa organização, e as suas ações tem de ser coerentes com as finalidades da organização, de alguma maneira. Do mesmo modo, podemos dizer que todos os membros do Foro de São Paulo são comunistas, não pela sua convicção, não porque tenham lido Karl Marx e se persuadido daquilo -- isso não se coloca no nível da persuasão, mas do comprometimento efetivo, o que implica que muitas vezes, conforme as necessidades estratégicas e táticas da organização e da estratégia envolvida, pode haver avanços e recuos, pode haver inclusive contradições na própria atividade política.
Aluno: Gostaria de saber se o senhor recomenda a leitura da obra Teoria do Romance, de Georg Luckács. Isso é um discurso de agente ou é possível encontrar um exame sério e enriquecedor com respeito ao assunto.
Não, essa é uma grande obra, uma obra importante, na verdade. Pode ler sem problemas. Inclusive, na época que ele escreveu essa obra ele não era marxista ainda, era um discípulo de Wilhelm Dilthey; estava na esfera do que ele chamava de ciências do espírito. Depois ele introduziu algumas correções em vista da sua adesão ao marxismo.
Aluno: Existe algum exercício para podermos desenvolver a nossa percepção da presença, ou para retomar ela?
Eu dei vários desses exercícios no começo do curso. Se você continuar assistindo pela ordem, você vai chegar lá. Não tem pressa.
Aluno: Enviei em anexo um esboço de trabalho de conclusão, digamos assim, do meu primeiro ano do COF. Alcancei a aula 76, de 26 de setembro de 2010, e estou acompanhando as aulas aos sábados. O texto em anexo se refere ao Exame Nacional do Ensino Médio. Eu tenho aqui um pequeno projeto.
Esse projeto está muito bom, eu não vou lê-lo agora, porque está um pouco comprido, e acho que você deve mandar bala nesse negócio.
Agora, quero fazer um esclarecimento: eu disse para vocês que, a partir de um certo ponto, eu começaria a dar aulas com base em comentários dos projetos e/ou trabalhos enviados. Mas eu só farei isso a partir de outubro, porque a Marcela Andrade, durante o tempo que ela esteve aqui, nosso trabalho adiantou muito e ela disse que vai voltar por volta de outubro. Então eu aguardo a presença dela aqui, porque sem a ajuda dela, eu não poderei fazer isso -- inclusive, ela tem todos esses trabalhos classificados e catalogados. Esta fase só começará em outubro e daí eu analisarei melhor cada um desses trabalhos. Eu espero que todos os alunos se interessem pelos trabalhos de cada um.
Aluno: Gostaria de saber se o senhor indicaria as obras de François Châtelet para se aprender história da filosofia, história do pensamento político etc.
Não. Eu não gosto nem um pouco dessas obras do Châtelet, acho escritas num estilo intragável que é a decomposição da língua francesa, e acho que isso aí só vai atrapalhar. Existem muitas obras de história, muito melhores, inclusive anteriores. A história da filosofia é um ramo que sempre teve sorte, existem grandes historiadores (sobretudo os alemães): o Friedrich Schlegel, o Gomperz, o Eduard Zeller, mas muitos desses livros têm tradução. A história do pensamento grego, de Zeller, você encontra na internet, pelo menos os dois primeiros volumes. O Émile Bréhier é um grande historiador da filosofia, o Giovanni Reale -- tem uma infinidade de obras muito boas como esta do Guillermo Fraile, espanhol, editada pela BAC (Biblioteca de Autores Cristianos) em 8 volumes. Há uma infinidade de obras, não precisamos muito do Châtelet, não. E na tradução brasileira o estilo fica mais empolado ainda e só complica.
Aluno: O senhor já disse várias vezes que o estudante novo tende a fazer falsas analogias. Diga-me se a minha é verdadeira ou falsa. Você comentou que há um problema eterno entre a percepção dos fenômenos manifesta na realidade e a sua articulação em linguagem. E eu me lembrei de Kant e da escola desconstrucionista. O primeiro diz que abole a realidade, nos deixando apenas com os fenômenos e a sua percepção deles, e a segunda põe em dúvida a validade da nossa percepção, dizendo que a linguagem é que determina como você irá perceber as coisas. Essa analogia está certa?
Está certíssima. O desconstrucionismo é um dos filhotes longínquos de Kant. É uma espécie de kantismo. Uma vez eu fiz uma lista de escolas filosóficas, mostrando como a idéia de Kant, das formas a priori, de certo modo hipnotizou a intelectualidade europeia de tal maneira que, durante muito tempo, todo o mundo ficava procurando um a priori que está por trás da experiência e que é a chave de tudo. Quando você vai ver, o que é a luta de classes para o Karl Marx? É o a priori, é aquilo que está antes da experiência, que a determina, que dá a forma da experiência sem que você perceba, que depois você só percebe no curso da própria experiência, e analisando você vê que havia aquele pressuposto -- a ideologia de classe -- que estava no fundo.
O que são os arquétipos do Jung? Também são um a priori. O que é a estrutura da linguagem, de que fala o Benjamin Whorf, que a língua que você fala predetermina os seus pensamentos? É um a priori. O mundo está cheio de a prioris. Eu não acredito em nenhum deles, mas acredito que cada um deles tem algum papel. Tudo isso existe de algum modo, mas nenhum deles tem essa força explicativa e o descontrucionismo é apenas mais uma dessas escolas criadas pela obsessão do a priori.
Aluno: Eu estava conversando com um amigo meu sobre as vias que levam a Deus de Santo Tomás de Aquino, e em meio à conversa ele perguntou se existiam provas empíricas a respeito disso e de outros temas filosóficos. Eu disse que não se pode exigir da filosofia tal resposta, mas isso não o convenceu. E agora fiquei com esse problema na minha cabeça e não consigo resolvê-lo.
Olha, eu sempre achei que provas da existência de Deus são uma coisa perfeitamente inútil, porque é a mesma coisa que a prova da existência de uma pessoa. Deus não é um universal abstrato -- ele pode ser considerado como um universal abstrato e daí você pode desenvolver argumentos que mostram a sua necessidade, ou menos a sua possibilidade. Mas isso não vai convencer ninguém, porque entre o universal abstrato e a pessoa concreta de Deus continua havendo um abismo interminável. O que pode existir é a experiência concreta da presença e da ação divina. Mas aí o indivíduo precisaria estudar precisamente aquilo que ninguém quer estudar: os milagres que são intervenções divinas diretas. Por exemplo, se o indivíduo estudar a vida do Padre Pio, ele vai ver ali a presença e a ação de Deus de uma maneira absolutamente inequívoca. Mas isso aí é como provas que uma determinada pessoa existe ou existiu -- você pode provar que Napoleão Bonaparte existiu, mas você nunca vai obter uma prova apodíctica de que Napoleão Bonaparte existiu. [1:00] Aliás, você não pode provar que nada existe: toda prova de existência é sempre relativa. E Deus, nesse caso, não é exceção.
Você pode provar a presença e a ação divina, mas sempre pode sobrar a pergunta: "Quem garante que esse Deus que fez esta ação aqui é aquele de que fala a Bíblia?" Acho que a questão está muito mal formulada. Quando você fala "prova de existência" é uma prova geral e universal da existência de um ente individual específico, uma pessoa. Pessoa que, ao mesmo tempo, acumula as funções de causa universal. Tudo isto está muito mal colocado e confuso. Eu não sei para que serve uma prova da existência de Deus. O que você pode ter é uma experiência da presença, isso sim, da ação divina.
Mas, por exemplo: você pode dar uma prova da sua própria existência? Sim, você pode dar uma prova relativa de que você existe num determinado lugar e momento. Agora prove que você é o mesmo que está na sua certidão de nascimento. Não tem prova disso -- você precisaria dar a prova da continuidade temporal, o que é sempre um problema. O fato é que quando se fala de Deus está se exigindo um tipo de prova que não se pode dar com relação a nada, com relação a nenhuma pessoa -- é uma pergunta impossível. Do mesmo modo que, por exemplo, você conhece algumas pessoas: sua mãe, sua namorada, seu irmão etc. Você tem prova da existência delas? Não, o que você é tem é experiência de ter estado com elas aqui ou ali, e isso é o máximo que você tem. E você só prova a sua existência por uma indução baseada no senso comum, no senso da presença, de algum modo. Nós temos de trocar essa coisa: não é prova da existência de Deus, mas a busca de conhecimento pela presença. Isto sim vale a pena fazer e para isso você tem de, sobretudo, estudar aquelas ações nas quais Deus está presente de uma maneira manifesta e não subentendida como está na natureza, no curso normal das coisas.
Aluno: Gostaria de perguntar também se as pessoas que sofrem transtorno bipolar estão incapacitadas para a vida intelectual.
Claro que não. Tem um monte de caras com transtorno bipolar fazendo coisas ótimas.
Aluno: É correto dizer: 1º) O relativismo ganha força na modernidade desconsiderando o que já foi realizado pelos grandes filósofos, pois precisamos manter uma certa homogeneidade de pensamento e comportamento para sermos aceitos por diversos grupos, e que se afirmamos certas verdades somos de imediato excluídos como fundamentalistas? 2º) O relativismo é oposto à filosofia clássica? 3º) O relativismo culmina na desagregação pessoal e emocional dos seus praticantes?
Em primeiro lugar, não existe nenhum relativista. O relativismo é um pretexto, uma conversa, um pretexto ideológico. Se fosse para levar a sério o relativismo cairia naquele ponto que eu já abordei na aula: cada um tem a sua verdade; se cada um tem a sua verdade e ela lhe basta, ele está contido nela, então ele não tem acesso a outras verdades. Isto tornaria absolutamente impossível qualquer comunicação. Quando o sujeito disser que todas as verdades são relativas e cada um tem a sua verdade, você pergunta: "Mas você participa da minha verdade, ou não? Você conhece a minha verdade?" Você não sabe nada dela, absolutamente nada. Se a verdade está contida em você, você não pode conhecer nada da minha. Essa é uma atitude absolutamente inconsequente. Eu não conheço pessoas que sejam mais absolutistas e fundamentalistas que os relativistas, e acontece aí a mesma coisa que acontece na questão da ideologia: as pessoas estão levando a sério uma declaração de intenções, que não pode corresponder de maneira alguma à atitude real da pessoa. Temos de analisar as atitudes reais e não o rótulo que elas botam em cima.
Por outro lado, é evidente que o relativismo tem a sua razão de ser enquanto preceito metodológico. Isso deve valer em todas as ciências humanas, como uma precaução para você não tirar conclusões absolutas de fatos limitados. Agora, transformar isso numa postura filosófica é absolutamente impossível. É só algo que as pessoas dizem que estão fazendo, mas não estão fazendo realmente.
Aluno: A unidade do mundo não estaria sugerida na própria continuidade de tempo e de espaço?
Ao contrário, a continuidade do mundo é um pressuposto da continuidade de tempo e espaço. Essa continuidade não é matéria de experiência. Toda a nossa percepção de tempo e de espaço é recortada e limitada, porque se não tivéssemos a noção da presença do mundo, não poderíamos sequer pensar em continuidade de tempo e espaço. Nós aceitamos essa continuidade como uma exigência decorrente da presença do mundo, mas não que nós a conheçamos. Você precisa ver que, por exemplo, coisas como o ser ou o ser eterno não são objeto de intuição, e também não podem ser só um objeto de pensamento. Então, qual a atitude? É o famoso conhecimento por presença, uma aceitação de uma coisa que nos é imposta e que é uma pré-condição de todo o nosso conhecimento. Também não é uma crença, como se nós tivéssemos vários conhecimentos e temos uma crença na unidade do mundo. Aquilo que é crença está dentro da minha cabeça, é um conteúdo da minha consciência. Se fosse apenas um conteúdo da minha consciência, não poderia existir fora de mim e não ia me ajudar em absolutamente nada -- ia me deixar solto no espaço.
A existência de um mundo real presente é uma pré-condição do nosso conhecimento. E acho que um dos grandes erros filosóficos, como falava o Mario Ferreira, é a idéia de tentar prová-lo, de alguma maneira, quando ele é uma pré-condição de todas as provas possíveis. Por que temos de provar a existência do mundo, se nós precisamos estar no mundo para poder até discutir isso? Transformar a estrutura da realidade na qual vivemos, a presença na qual estamos, num conteúdo da minha consciência já falsifica tudo completamente. Eu posso ter um signo dela, não a consciência da presença como um conteúdo da minha consciência. Eu posso ter apenas signos dela, e daí eu vou tomar os signos como se fossem a realidade.
Acho que você aceitar a presença do mundo é uma condição até para que você dialogue. Para eu conversar com as pessoas, para publicar um livro, preciso supor que elas estão no mesmo mundo onde eu estou. Para que vou ter que provar que o leitor do meu livro existe? A coisa é tão absurda, se você pensar bem! Agora, desde o início da filosofia houve essa tendência de tratar os conteúdos de consciência como se fossem a própria realidade, quando eles são apenas um fragmento da realidade.
Por hoje é só. Eu outubro, quando chegar a Marcela, começaremos a tratar dos trabalhos dos alunos.
Até a semana que vem e muito obrigado!
Transcrição: Denis Rinaldi, Tamas Souza e Matheus Hahn Oliveira.
Revisão: Susete França