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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 246

19 de abril de 2014

Boa noite a todos, sejam bem-vindos!

Hoje eu queria fazer algumas observações um pouco soltas a respeito de um tema que é o mesmo da apostila "Problemas de Método nas Ciências Sociais" (ou nas Ciências Humanas). Isso motivado por uma das propostas de trabalho de aluno que me chegaram que é a de um grupo chefiado pelo Ítalo Lorenzon. Como eu havia mencionado o caso da escola de roteiristas de Hollywood, chefiada nos anos 40-50 por John Howard Olson, que era um grupo de ativistas comunistas que então orientaram toda a produção de roteiro cinematográfico naquela época, eu havia sugerido que fizessem uma pesquisa exatamente na linha daquilo que foi proposto na época pelo próprio Olson. Ele ensinava que o pessoal do cinema que fosse simpatizante ou militante do movimento comunista não deveria fazer filmes comunistas, mas filmes normais ao gosto da platéia americana, colocando apenas uma ou duas breves e sutis mensagens comunistas em algum ponto do filme. E pelo que estive observando, essas mensagens de fato estão lá e é praticamente impossível encontrar algum filme onde não haja esse elemento. E isso prosseguiu, e quando chegou nos anos 60, isto é, depois de vinte anos com o sistema funcionando, então o terreno já estava maduro para que mensagens ou comunistas ou antiamericanas mais explícitas fossem colocadas nos filmes. E aos poucos essas mensagens foram tornando-se praticamente obrigatórias: não há praticamente um seriado de tevê ou um filme onde você não tenha algum forte elemento antiamericano, que já não parece antiamericano ao público de hoje, de tão acostumados que eles estão.

Por que eu propus essa linha de investigações que esse grupo topou? Eu fiz isso porque os preceitos dos métodos que eu explicara naquela apostila já se encontram, atualmente, até mais claros para mim.

O primeiro deles é o seguinte: toda e qualquer ciência começa com uma série de distinções a priori, isto é, que não fazem parte ainda do campo daquela ciência, mas, ao contrário: vão delimitar esse campo e torná-lo possível. Tais distinções, como são a priori, não se referem evidentemente aos fatos que a ciência vai estudar, e sim ao simples campo de possibilidade dentro do qual esses fatos se observam. Em geral, esses preceitos constituem-se quase que de obviedades, mas obviedades que podem ser esquecidas, com resultados absolutamente catastróficos.

Em ciências humanas, uma das maiores dificuldades consiste na diferença entre o modo pelo qual observamos a nós mesmos e o modo pelo qual observamos os outros. Nós tomamos consciência de nós mesmos como centros agentes, isto é, as nossas ações, por assim dizer, partem de um núcleo pessoal com o qual nos identificamos, que chamamos de eu ou de meu. E essas ações vão, por assim dizer, de dentro para fora, subentendendo-se que as expressões dentro e fora não são muito adequadas, elas são apenas figuras de linguagem. Seria errado dizer que a psique está dentro do sujeito. A psique de certo modo é inespacial, ela não contém em si mesma uma referência espacial, não há uma sede da psique. Dizer que a sede da psique é o cérebro é a coisa mais absurda do mundo, porque o cérebro só funciona se tiver todos os dados que já recebeu do corpo, e do corpo inteiro. O cérebro não possui nenhuma autonomia, ele não é um agente, por assim dizer, é uma peça de um conjunto. Então nós observamos a nós mesmos como forças agentes ou forças criativas, como centros produtores de uma ação, e observamos os outros como corpos que se movem no espaço.

Essa diferença é intransponível, ela é assim, ela é da natureza das coisas. E, evidentemente, quando há uma proximidade maior com a pessoa, você tenta pelo menos vê-la também como se fosse um centro agente. Por exemplo, se uma pessoa o ama ou o odeia, você tem a noção de que ela está fazendo isso, por assim dizer, desde dentro, quer dizer, não é só uma reação epidérmica. Não é como um tijolo que cai na sua cabeça ou um vento que bate, não é uma ação puramente impessoal e mecânica. Porém, a impressão de mecanicidade aumenta à medida que aumenta a distância entre você e as pessoas observadas; as pessoas que você não conhece e que você vê, não individualizadamente, mas como um grupo ou como uma coletividade. Quanto maior a coletividade que você está observando, maior é a tendência de esquecer que cada um daqueles indivíduos considerados é um centro agente também, ou seja, que ele tem uma vida interior, que ele tem um para si, um em si e que, portanto, tanto quanto você, ele supõe que tem razões para agir assim ou assado, mesmo que essas razões sejam falsas. Assim como enganamos a nós mesmos, os outros podem se enganar a si mesmos, mas não é este o ponto no momento. Ou seja, existe algum mecanismo interno íntimo, algum movimento interno íntimo que se expressa nas ações deles.

Mas quando você vê as pessoas como uma coletividade, a tendência quase que incoercível da mente humana é uniformizar as motivações na medida em que elas produzem uma conduta similar. Mas o erro disso é tão monstruoso que, você imagine numa eleição, por exemplo, todos os motivos que as pessoas possam ter para não votar num candidato ou para votar nele. Esses motivos são enormemente variáveis, o resultado que eles produzem é uniforme, ou seja, tantos por cento votou contra o fulano. Mas de fato você não sabe por que eles fizeram isso. Para descobrir o porquê, você precisaria escavar um pouco além da uniformidade da conduta e buscar a multiplicidade dos seus motivos, o que é extremamente difícil e se torna realmente impossível quando a análise não parte de um conhecimento que você tem de você mesmo, da sua posição na sociedade, dos fatores que formaram a sua mentalidade e que hoje determinam a sua conduta.

Dito de outro modo, uma aguda consciência autobiográfica é a condição de toda e qualquer ciência social possível, porque, fora disso, você está examinando os seus objetos, isto é, os outros seres humanos, como se fossem apenas coisas. Mas eles só são coisas naquele seu teatrinho mental onde você é Deus onipotente e os outros são apenas a sua criação; é só nesse teatrinho que as condutas alheias são mecânicas enquanto as suas são espontâneas e criativas. Na verdade, a conduta de qualquer ser humano provém de camadas muito profundas da personalidade, que às vezes você não tem acesso -- pode ter um acesso conjectural. Ou seja, a idéia de que as ações humanas têm motivações humanas é um desses preceitos a priori, que são absolutamente indispensáveis na ciência social, ou seja, antes de realizar qualquer estudo sociológico, antropológico etc., essa premissa você vai ter de aceitar; e onde você, observando os fatos, tirar conclusões que a contrariem, você está destruindo o próprio método, o próprio preceito metodológico fundamental.

É claro que, também, nem tudo o que se observa nos seres humanos são ações humanas: existe um certo coeficiente de reações fisiológicas ou até mecânicas. Falamos, por exemplo, todos os reflexos condicionados, todos eles existem, [10:00] mas não são jamais suficientes para explicar uma ação humana. Qualquer ação humana, por mais simples que seja, contém uma constelação de elementos formadores que não tem como você reduzir a reflexos condicionados. Primeiro porque essas cadeias de reflexo são impossíveis de reconstituir uma a uma. Por exemplo, imagina o ato de receber uma carta, lê-la e responder: imagina a imensidão de dados que entraram em linha de contas só neste ato. E para você supor que todos esses atos foram praticados por reflexos condicionados, seria preciso que algo os tivesse condicionado antes. E, veja, cada reflexo condicionado é adquirido na base de repetição e estímulo. Ou seja, para explicar o simples ato do sujeito de receber uma carta, lê-la e responder -- que já é complexo em si mesmo --, você precisaria apelar a um círculo enormemente maior de condicionamentos recebidos anteriormente. Isso é o que se chama em latim explicar obscurum per obscurius, quer dizer, o obscuro pelo mais obscuro ainda, e isto é evidentemente impossível. Quer dizer, só por este fato nós já vemos que a proposta behaviorista é impossível e inviável sob todos os aspectos; a não ser que ela se limite a estudar aqueles atos exclusivamente que podem ser explicados mediante algum reflexo condicionado acessível, cognoscível por sua vez.

Em caso de dúvidas vocês leiam o livro The Ghost in the Machine do Arthur Koestler, que é o livro que enterrou o behaviorismo de uma vez por todas. Logo nos primeiros capítulos, ele mostra a impossibilidade de explicar o aprendizado da linguagem por reflexo condicionado, e ele apela curiosamente à teoria do Chomsky, que é teoria da Gramática Geracional, que está muito mais certa nesse sentido do que o behaviorismo. Mas o próprio behaviorismo seria impossível se você não atribuísse aos seus objetos alguma vida interior suficiente, pelo menos, para eles responderem aos reflexos. Quer dizer, se não tivesse vida interior nenhuma, se se tratassem de meros corpos mortos, eles não teriam reflexo condicionado. Então mesmo a explicação mais mecânica e mais impessoal possível requer a admissão de que alguma vida interior o outro tem e de que, nesse sentido, ele deve ser semelhante a você. Inversa e proporcionalmente, é impossível explicar qualquer dos seus atos por reflexo condicionado, sobretudo o desejo de estudar reflexo condicionado. Quer dizer, como explicar que o indivíduo se dedique a uma coisa tão complexa quanto à psicologia por ele ter sido condicionado a isso? Isso é impossível.

Se a idéia da redução behaviorista falha com relação à conduta alheia, muito mais ela falha na explicação da sua própria conduta. Sobretudo, a coisa mais óbvia é que você não pode explicar por reflexo condicionado aquilo que já foi condicionado. E existe uma atividade humana que se chama aprendizado, e o aprendizado é aprendizado daquilo que você não sabe ainda; então ele está aberto a estímulos que você ainda não recebeu -- isto é necessariamente assim. Como você vai explicar uma ação por um reflexo condicionado futuro e hipotético? O simples ato de construir essa hipótese por si também não pode ser explicada por um reflexo condicionado. Quer dizer, a expectativa de estímulos não é por sua vez um estímulo.

Tudo isso cria extremas dificuldades que, quando explicadas assim, são óbvias, são patentes: todo mundo reconhece que elas existem. Porém, quando se trata de analisar fatos reais do mundo histórico-social, as pessoas esquecem isso com uma facilidade impressionante, e, por isso mesmo, têm uma facilidade impressionante de explicar as ações alheias por motivos simplórios e mecânicos. Por exemplo, em todo o debate político deveria, suponho eu, ter como base algum conhecimento prévio das ciências sociais -- por que o indivíduo vai discutir política se ele nunca se interessou nem mesmo por ser um ciência política? --, nesses debates a atribuição de motivos simplórios e mecânicos é a regra, ou seja: a regra é não entender as outras pessoas. Portanto, tudo o que o indivíduo diga nessas condições não significa absolutamente nada, não tem nenhum alcance sobre a realidade e só pode ser entendido nas outras duas claves da linguagem -- a clave expressiva, onde o indivíduo busca expressar o que está sentindo, ou a clave apelativa, onde ele está procurando induzir os outros a uma conduta assim ou assado.

O ideal, no caso, é você conhecer tão bem a sua própria história interior, a formação dos seus sentimentos, das suas idéias, e também todos os condicionantes sociais que cercaram você desde o início e que lhe dão hoje uma posição muito determinada na sociedade -- sempre está em um lugar, e não em dois. O ideal então é conhecer tudo isso, para você aplicar toda esta grade de distinções quando vai analisar qualquer conduta alheia. Acontece que, neste caso, a percepção que você tem da conduta alheia começa a ser tão rica que se torna inexpressável, e você vai ter de reduzi-la lingüisticamente a certos conceitos gerais que, forçosamente, simplificarão essa conduta e, de algum modo, vão deformá-la. Porém, eu acredito que, quando você lê os grandes cientistas sociais, por trás dessas simplificações, você adivinha a percepção complexa e rica que eles estão tendo, do mesmo modo quando lê uma obra de ficção, você adivinha para além do que está escrito uma série de sentimentos, expectativas, reações etc. que têm de estar presentes na mente do autor para que ele escreva aquilo o que escreveu -- isso é um dos temas do nosso próximo curso "Como tornar-se um leitor inteligente".

Isto quer dizer que toda e qualquer leitura tem um coeficiente de adivinhação que vai além de tudo o que nós podemos perceber num primeiro momento. Por exemplo, se você está lendo uma narrativa, você imagina ou não o cenário onde aquilo se deu? -- imagina visualmente ou espacialmente, às vezes até muscularmente. Claro que você imagina. Ora, se você imagina, isso quer dizer que o autor também estava imaginando, e ele pode ter imaginado aquilo de maneira mais parecida ou menos parecida com o que você está fazendo no momento. Mas isso se aplica também a leitura de livros de história e de ciências sociais. Por trás de cada conceito abstrato, existe uma constelação de imagens, e são essas imagens que dão para o autor, para o sociólogo, para o cientista social a concretude do que ele está falando. Então isso quer dizer que varar a teia dos conceitos abstratos para chegar a uma apreensão do imaginário é a única maneira de escapar do abstratismo total, onde os conceitos se produzem uns aos outros sem qualquer conexão com a realidade concreta. E, no caso das ciências humanas, o abstratismo seria o mais mortal dos pecados porque não há ação abstrata humana, não há situações abstratas na realidade: todas as ações são particulares e concretas, tudo o que foi feito alguém fez.

Mas como este treino do imaginário é totalmente desprezado nas faculdades de ciências sociais (aqui nos EUA também, embora não tanto), o resultado é que as pessoas fazem ciência social, ciência política, na base de uma fantasmagoria de conceitos que se produzem uns aos outros, e isto acaba não tendo absolutamente nada a ver com a realidade, e este é o motivo pelo qual eles falham ao dever principal da ciência que é, com base no que aconteceu, prever mais ou menos o que vai acontecer no próximo capítulo. O número de previsões erradas que circula por aí da boca de altos especialistas é uma coisa monstruosa. No Brasil são praticamente todas [00:20]. Eu não vi ninguém prever nada do que fosse acontecer ao Brasil, há vinte anos não vejo isso, há vinte anos não vejo uma análise correta, com uma previsão razoável*.* Isso se tornou tão raro no Brasil que muitas vezes as pessoas dizem que tenho dom profético porque faço isso. Mas isso não é profecia, isso aí chama-se ciência política. Eu acredito firmemente que existem meios de conhecer objetivamente e cientificamente a sociedade humana e de, em linhas gerais, você prever certos desenvolvimentos -- não todos, mas alguns. E se não fosse possível isso, então não vejo para que dedicar tanto tempo às ciências sociais. Se é para você não conseguir entender nada do que está acontecendo e não prever nada do que vai acontecer, então para que estudar isso aí?

Por exemplo, quando as pessoas, de uma seqüência estatística determinada, tiram conclusões, eles geralmente erram, por quê? A estatística é um resultado abstrato muito distante dos fatos concretos e dos agentes concretos. É como o resultado de uma eleição -- fulano teve tanto por cento dos votos, o outro teve tantos por cento dos votos --, isso aí é apenas uma equação matemática que formula o resultado final, não descreve absolutamente o processo que está em andamento. Mesmo que essas estatísticas lhe revelem uma constante, essa constante é apenas como se fosse os picos de várias montanhas -- e só o pico, só tem aquela pontinha. E essa pontinha não lhe permite reconstituir a topografia da região, porque você só sabe a altura das montanhas, não sabe do que elas são feitas, não sabe qual foi a sua formação geológica e não sabe mesmo sequer a largura delas. Além disso, você só pega os picos mais altos, você não sabe quantos picos menores existem em volta. Na verdade, você não saberá é de coisíssima alguma.

Um exemplo disso é o famoso Paul Kennedy que, nos anos 80 (em 1985, eu creio), publicou o livro Ascenção e Queda das Grandes Potências baseado na constância da relação entre o crescimento do orçamento militar das nações e o seu crescimento econômico. E ele via que que quanto mais crescia o orçamento militar, mais aumentavam as crises econômicas e mais diminuía a produção, por assim dizer. Então, com base nisso, vendo o crescimento do orçamento militar americano, ele disse que os EUA iriam cair na década seguinte e iria subir a União Soviética. Na verdade, o que houve foi a dissolução da União Soviética e um período de pelo menos vinte anos de predomínio americano quase absoluto -- que hoje está entrando em contestação, mas está entrando em contestação não na área econômica e não na área militar, está na área cultural e propagandista.

É claro que isso foi um erro monstruoso, mas baseado na falsa impressão de objetividade das estatísticas em si mesmas. Uma estatística jamais pode ser objetiva, ela nunca é um dado objetivo porque ela é apenas a resultante final de um processo, ela é uma seqüência de abstrações. E abstrações em si mesmas não são objetivas nem subjetivas. Abstrações, como o próprio nome diz, foi extraída de algo, e se você não sabe de onde ela foi extraída, então ela, por si mesma, não significa nada. Por exemplo: o crescimento do orçamento militar é um fenômeno que acontece sozinho? A estatística apenas mostra o quanto cresceu, não mostra porque cresceu, quem a fez crescer, que forças políticas estavam por trás, que interesses econômicos estavam por trás, não mostra absolutamente nada. Quando a pessoa se apegar às estatísticas e números considerados de maneira mais ou menos isolada, é claro que isso é um fetiche a que o indivíduo se apega para ter uma falsa impressão de domínio intelectual da situação. Claro, quanto mais você pode quantificar os dados à mão, mais tem impressão de dominá-los porque mais aquilo lhe parece claro. Nada mais claro do que um cálculo matemático que qualquer um pode repetir. Mas esse cálculo só se refere a uma parte dos dados -- e nem sequer aos dados em si mesmos --, ele se refere, por assim dizer, à quantificação de outros dados. Também, como se fazem as estatísticas, de onde que elas saem? Quer dizer, uma estatística jamais pode lhe indicar algo sobre a confiabilidade das estatísticas.

Em princípio, uma estatística é feita de uma série de fatos de uma mesma espécie que foram observados, anotados e repetidos. Ora, a espécie dos fatos é por sua vez uma abstração. Quer dizer, você tem um conceito genérico de uma espécie e você só vai observar aqueles fatos na medida em que eles coincidam com o conceito da espécie, e não sob outros aspectos. Isto quer dizer que toda estatística é uma abstração construída em cima de uma infinidade de outras abstrações, e ela está portanto sempre muito longe do processo concreto. É claro que ela serve quando você conhece os fatos concretos ou conhece na máxima medida possível os fatos concretos, e você pode então quantificá-los. Sobretudo, você vai ter de quantificá-los quando quiser apreender tendências, porque uma tendência não-quantificável é um contra-senso. Se você não é capaz de quantificar uma tendência, pelo menos de modo aproximativo, você não sabe se essa tendência existe ou não. Uma tendência pode ir de 0 a 100%.

Por exemplo, um indivíduo levou um tiro. Qual a tendência de ele morrer ou de escapar? Você chega para o médico e pergunta: "Doutor, ele vai sobreviver?". Ele responde: "Existe uma tendência de 0 a 100%". Quer dizer, ele pode morrer ou ficar vivo, e eu não sei absolutamente nada, é isso o que ele está dizendo. Portanto, tem de haver o predomínio de uma tendência, e esse predomínio é nitidamente quantitativo. Ainda que você não possa quantificar exatamente, seria uma quantificação exata na sua inexatidão, quer dizer, o cálculo exato de um coeficiente de inexatidão: temos aqui uma possibilidade de 60% e a margem de erro é tal. Se você tem isso, então você não conhece nada da tendência. Eu só costumo falar em tendências quando tenho certeza de que ela é maciçamente mais poderosa do que as outras em volta. Seria pelo menos da ordem de 70-80%, se fosse quantificar. Se está abaixo disso, então eu não posso falar de tendência, tenho de falar apenas de possibilidades.

Por exemplo, o pessoal estava com medo de que Vladimir Putin invadisse a Ucrânia, quando de fato não invadiu. Ele apelou para um plebiscito, ele fez uma manobra política, infiltrou agentes aqui e ali e obteve então esse resultado na Criméia, que não foi uma invasão, foi uma ocupação militar, foi o simples resultado de um plebiscito. E eu disse: ele não vai fazer guerra nenhuma enquanto não conseguisse derrubar o dólar. Por que penso isso? Eu parto do princípio de que Vladimir Putin é um sujeito extremamente inteligente e capacitado, e ele não vai fazer as coisas pelo modo mais difícil antes de ter tentado o mais fácil, sobretudo quando esse mais fácil é uma condição prévia para a ação subseqüente. Uma guerra custa muito dinheiro e, no presente momento, os recursos da Rússia não são tão abundantes assim. Quer dizer que se ele não deixar o adversário numa desvantagem econômica que dificulte o empreendimento guerreiro, a guerra simplesmente não vale a pena. E ele não é nenhum louco, ele não vai entrar nisso aí. Todo mundo com medo de que ele fizesse isto: "Vai estourar uma guerra". Não vai. Noventa por cento de que não vai. Tem os 10% que seria o coeficiente de loucura, mas é 90% [de chance de] que ele não vai fazer isso.

Do mesmo modo, quando eu anuncio certas coisas que acabam acontecendo, como por exemplo quando começou o movimento gayzista e eu disse que em breve vai começar a campanha pela pedofilia, isso não foi um cálculo, eu tinha o documento de discussões que os intelectuais ativistas já tinham [00:30] isso na linha de conta, já estavam planejando isso, e a possibilidade que eles não o fizessem era muito remota, porque não havia nenhum obstáculo. Então, eles fazerem isso, partirem da discussão interna, para uma campanha externa da luta pelos "direitos", é só uma questão de tempo. Nós temos que esperar que eles criem a massa crítica, que eles tenham o número suficiente de adeptos e de pessoas dispostas a lutar por isso na mídia, no parlamento etc., e dai eles o farão. Assim como tem outras propostas para adiante que já foram estudas desde os anos 50 e que também vão se transformar de meras hipóteses em ações, na medida em que houver os instrumentos para isso. Este processo que existe com o Pastor Scott Lively em que quando ele falou contra o gayzismo, trazendo uma acusação de crime contra a humanidade. Quer dizer, crimes contra a humanidade foram cometidos pelos nazistas, pelo Pol Pot, a extinção de populações inteiras. E de repente o conceito é transferido a um simples delito de opinião. E delito de opinião que em si não tem gravidade alguma, pois ele não pregou nenhuma violência contra os gays, nem nada, só diz que é moralmente proibitivo pois a Bíblia diz que sim. Então, a idéia de rotular isso como um crime contra a humanidade é evidentemente uma idéia hiperbólica, forçada. Mas nós conhecemos o procedimento estratégico desses indivíduos que é realmente forçar a hipérbole até que ela adquira perante o público a validade de uma expressão literal. Então, você começa chamando de crime contra a humanidade, soa como um exagero, mas com o tempo de tanto a coisa ser repetida se torna corriqueira e a pessoas repetem isso. O próprio termo homofobia quando apareceu era considerado um termo ridículo, e logo ele é consagrado em lei: é uma simples questão de tempo. Então, quando você consegue o apoio dos granes órgãos de mídia é claro que o seu vocabulário será incorporado gradativamente a grande mídia e nós sabemos que não existe outra fonte da linguagem popular exceto a grande mídia -- e este é o detalhe importante, é aí que a gente sai da mera conjectura de hipóteses para uma certeza matemática. A certeza matemática é que em uma sociedade x a maior parte das pessoas mais dia, menos dia, começará a usar os termos que a mídia usa e no sentido que ela usa porque não há outra influência linguística mais poderosa. Se você é um individuo diferenciado, que passa o dia lendo Shakespeare, Platão etc., você tem uma fonte de vocabulário enorme, mas se você não tem e a sua fonte é a televisão e a mídia diária, é dali que você vai tirar a sua linguagem. Nós sabemos a extrema dificuldade que existe para um ser humano conceber aquilo que ele não consegue dizer. Portanto, os limites da sua linguagem acabam sendo -- se não os limites da sua imaginação, mas pelo menos daquilo que da sua imaginação você consegue compartilhar com os outros -- então mesmo que você perceba, sinta e imagine mais coisas, você só vai dizer uma parte e essa parte coincide com o repertório dos instrumentos linguísticos que você tem. Então, nestes casos, você pode apostar em certa uniformidade de conduta, independentemente das motivações subjetivas, pois as motivações subjetivas, que são diferenciadas, se tornarão uniformizadas pelo fator linguístico. Não sabemos o que as pessoas estão imaginando, são às vezes milhões de pessoas, mas nós sabemos qual é o repertórios de expressões verbais a disposição delas. Então, na hora que as várias experiências individuais passam pelo filtro da linguagem elas se uniformizam. Portanto, também acontece outro fenômeno: se há uma diferença entre o que as pessoas estão sentindo e percebendo e aquilo que elas podem dizer, e essa diferença vai se tornando extrema, então você tem um caso de histeria generalizada -- onde as pessoas veem uma coisa, mas elas não têm como dizer aquilo, então elas dizem outra aproximativa, simbólica e analógica. E isso que é analógico acaba com o tempo por se consolidar em convicção, ou seja, toda a vez que elas sentirem as mesmas coisas elas dirão as mesmas coisas as quais foram ensinadas a dizer, pois não tem a capacidade expressiva pessoal, e esta é uma distinção absolutamente crucial entre as pessoas que tem uma expressão linguística pessoal e as que não têm. Evidentemente a diferença de padrão de conduta é imensa, diríamos como Montaigne que essa diferença é maior da que a que existe entre um homem e um ganso. Então, sabemos que determinadas pessoas por não terem uma linguagem pessoal só poderão se comunicar em certas claves pré-determinadas, que são as únicas acessíveis. E que essas claves funcionaram para elas como explicações verdadeiras da sua conduta. Mas, na medida que as explicações não coincidem realmente com as motivações internas, o individuo tem que escolher: ou continua vivenciando de novo toda a sua experiência interna e a expressando de modo inadequado, ou a própria expressão de tanto ser usada como explicação se torna efetivamente a explicação. Isso quer dizer que a motivação acaba sendo modificada pela limitação linguística. O indivíduo começa fingindo e copiando uma linguagem que não é a dele e que não é adequada aos seus sentimentos, e acaba adequando os sentimentos a linguagem, pois o contrário ele não pode fazer. É mais fácil você mudar a vida interior de uma pessoa do que dar a ela os instrumentos linguísticos para que ela se expresse. Isso demanda aprendizado e muito tempo, e mais ainda, ninguém vai adquirir esses instrumentos de expressão linguística se não os quiser. Por exemplo, aqueles que estão tentando aprender a escrever bem: imagem o trabalho que você tem, quanto tempo leva para formar um bom escritor. Ao passo que esta adaptação do sentimento a linguagem pode ser instantânea. Pode ser que a primeira vez que você expressa seus sentimentos de uma forma inadequada você imediatamente já se adapta a esta forma inadequada, pois ela passa a coincidir com a sua autoimagem, e a autoimagem é por si mesma um fator produtor de conduta. Então, todas essas coisas que eu estou falando - de forma um pouco anárquica - tem que ser levados em conta em qualquer análise, de qualquer situação político-social que seja. Quer dizer, é claro que é impossível imaginar concretamente um por um o que se passa na cabeça de milhões de pessoas. Você terá que simplificar de algum modo, mas é necessário que por trás dessa simplificação exista certa tensão onde você está procurando realmente imaginar o que as pessoas estão sentido. Ora, nós sabemos que entre um conceito abstrato e a percepção concreta só existe um elo que é a imaginação. Isso quer dizer que o uso da imaginação das ciências sociais, aliás, nas ciências naturais também, é de uma importância absolutamente crucial.

É curioso que nos anos 60 um famoso sociólogo esquerdista americano chamado Charles Wright Mills publicou um livro chamado de Imaginação Sociológica, onde ele dizia exatamente o que estou dizendo. Só que isso se perdeu de vista, houve vários ídolos da esquerda dos anos 60 que foram esquecidos, talvez porque a mensagem deles se tornou inconveniente, e esta é uma delas. Outro caso é do Ivan Illich que falava contra a educação pública, contra o sistema médico etc. Mas na medida que o pessoal da esquerda foi assumindo o poder aqui e ali, assumiram o poder de administradores da educação pública, da saúde pública etc., tudo que eles tinham contra o establishment se torna favorável na medida que o establishment são eles mesmos. [00:40] Por exemplo, estes percalços e essas contradições na evolução até uma certa linha partidária, seus debates internos das suas dificuldades etc., isso é esquecido com uma facilidade assombrosa, pelo simples fato de que nós temos que classificar as pessoas segundo a linguagem partidária existente, por exemplo, esquerda e direita. É claro que a facção com a qual você não simpatiza é mais fácil de você mecanizar e reduzir, digamos, de você olhar a conduta de todos aqueles membros como se fosse apenas a repetição de certo padrão mecânico porque você não sabe como aquilo se formou. E você às vezes não tem idéia de que a própria conduta mecanizada tem que ter surgido de algum lugar.

Praticamente nenhuma conduta surge mecanizada: ela tem que surgir de alguma iniciativa mais ou menos criativa e mecanizar-se aos poucos através de vários mecanismos dos quais o principal é esse da linguagem que estou falando. Por exemplo, você recebe uma influência ideológica qualquer, que no começo pode ser enormemente complexa e cheia de nuances, como é o marxismo, por exemplo, mas você não tem o vocabulário de Karl Marx, você não tem a capacidade expressiva de Karl Marx, então você vai expressar aquilo em uma versão simplificada, que pode ser simplificada até o limite da imbecilidade - como é nas nossas universidades. E essa imbecilidade vai ser o seu marxismo particular, que pode coincidir com um milhões de outros idiotas em volta. Então, o ponto central de toda essa coisa é que o único instrumento de conhecimento que nos temos a respeito da ação humana é o conhecimento que nós temos de nós mesmos. Isso não quer dizer que as pessoas tenham as mesmas motivações, mas, para ter uma motivação totalmente diferente da sua, é necessário que este indivíduo seja da mesma espécie e que, portanto, ele tenha mais ou menos o mesmo repertório de possibilidades que você tem. Só que aí surge o problema de inverosimilhança, ou seja, toda aquela conduta que é muito diferente da minha tem motivações que se eu as conhecesse me pareceriam inverossímeis. Vencer essa impressão de inverossimilhança até você chegar a compreender a ação do outro tal como ela efetivamente foi sendo gerada e gestada dentro dele tem que ser um esforço permanente, ainda que o objeto do seu estudo sejam milhões de pessoas. Quer dizer, o fato deles serem milhões faz com que eles sejam uma massa somente desde o seu ponto de vista, e não em si mesmos: não existe o homem massa em si. Para você fazer do individuo humano um homem massa dá muito trabalho, e, além disso, ele só será um homem massa em determinados aspectos da sua conduta, e não em todos. O individuo que chegasse a ser totalmente massificado em todos os aspectos da sua conduta já seria um psicopata, evidentemente. Então, esta impressão de inverosimilhança que nós temos contra as modificações das motivações alheias tem que ser vencida de qualquer maneira, mesmo quando se trata de condutas aparentemente absurdas ou efetivamente absurdas. Mesmo a conduta absurda tem que se gerar por meios que pareçam razoáveis para o seu portador, seu agente.

Por exemplo, outro dia eu li um artigo sobre o Zé Dirceu, "Calvário", que tem uma ilustração tirada do filme do Mel Gibson, Paixão de Cristo, e o Zé Dirceu com uma coroa de espinhos. Aí lá pelo meio da matéria o sujeito diz "não, mas o Zé Dirceu não é um santo, nem um monstro, ele é apenas um ser humano". Bom, você está dizendo que ele é um ser humano agora, mas a proposta inicial da matéria foi apresenta-lo como um novo Jesus Cristo. Então, é o tal negócio: você acredita que ele é realmente um novo Jesus Cristo, e que ele está padecendo um calvário, ou que ele é apenas um homem comum? Isso quer dizer que a diferença entre a Vida, Paixão e Morte do Nosso Senhor Jesus Cristo e a experiência do Zé Dirceu não foi examinada, foi usada apenas como um esquema linguístico, os dois casos. O indivíduo, ao comparar o Zé Dirceu e Jesus Cristo, assumiu que foi excessivo, então resolveu atenuar. O que essas duas operações têm a ver com a realidade da vida do Zé Dirceu? Nada. É apenas um indivíduo manejando a sua própria linguagem para, por um lado, dar uma impressão de escândalo que choque o leitor, e, por outro, para não parecer louco. É tudo uma operação do indivíduo com ele mesmo, não tem absolutamente nada a ver com o objeto do qual ele está falando. Ainda assim, nós temos que admitir que o desejo de influenciar os outros politicamente e o desejo de não parecer louco, de parecer normal, são dois desejos perfeitamente normais ao ser humano. Não há nada de louco nem em uma coisa nem em outra. A coisa só se torna louca no confronto entre todo este mecanismo do autor do texto e o objeto do qual ele está falando, o qual não tem nada a ver com a história. É uma coisa muito interessante você ler artigos de jornal e polemicas etc., sob este aspecto, se perguntando sobre se aquilo que o indivíduo está dizendo tem algo a ver com o seu objeto ou é se um jogo interno, um jogo de autoimagem que o indivíduo está fazendo. Ele parece estar falando de algo, mas na verdade ele está tratando é dele mesmo e de uma impressão que ele quer dar, em parte para os outros mas, sobretudo, para si mesmo. Isso quer dizer que há discussões públicas que podem ser, na sua totalidade, apenas um jogo de autoimagens, onde o objeto está completamente ausente. Porque para você fazer com que o objeto fale, se apresente, só tem um jeito: você vai ter que partir da posição que você está e ver por onde ele aparece na sua vida, e como ele aparece. Ou seja, de novo você tem o elemento autobiográfico, quer dizer, em que ponto da minha vida, em que ponto estava eu quando este objeto a primeira vez me apareceu. Em segundo, em que medida ele me apareceu com uma projeção de mim mesmo, ou como uma coisa estranha.

Todo esse fator de autoanalise, de autoconhecimento, é crucial nas ciências sociais, pois até para você explicar um individuo por reflexos condicionados, bom, você tem que saber como os reflexos condicionados funcionam em você. Se bem que em geral quem apela a este expediente não explica as suas ações por reflexos condicionados, só as dos outros. E aí você tem a base da falsidade. Além dos reflexos condicionados, você tem uma série de outros fetiches explicativos: o interesse econômico, o interesse de classe, os complexos de infância, as más intenções, as intensões ocultas inconfessáveis etc. Tudo isso aí são suposições que você faz quando você não está conseguindo examinar exatamente o objeto como ele é em si mesmo. Eu imagino, por exemplo, se eu fosse escrever uma biografia do Zé Dirceu. Então, você imagina aquela cena de que ele, depois de cinco anos de casado, confessa para a mulher que 'eu não sou eu, eu sou um outro sujeito, estou indo para Cuba e tchau mesmo'. Bom, a coisa mais fácil do mundo é dizer que ele é um vigarista [00:50], que ele é um mentiroso frio e psicopata etc. Pode ser que seja tudo isso, mas como isso se processou dentro dele? E como ele se tornou assim? Se você não sabe, então a conduta dele para você é um ponto de interrogação, e isso é o máximo que você poderia dizer. Ou seja, não entendo a conduta dele. Para entender é preciso que você a vivencie como uma possibilidade sua própria. Todos nós temos um limite das nossas possibilidades, tem coisas que nós não podemos fazer. Não podemos e sabemos que não podemos. Isso para nós demarca o território, o limite, entre o verossímil e o inverossímil. E aquilo que para você é inverossímil, você deve simplesmente confessar que não está entendendo. No caso do Zé Dirceu eu até entendendo mais ou menos o porquê ele fez, eu o conheci quando era jovem, no começo da sua formação. Tenho uma idéia das coisas que se passam na cabeça dele -- ou pelos menos se passavam naquela época. Assim como ele, conheci muitas outras pessoas. Mas, mesmo assim, eu teria alguma dificuldade quando chegasse a este ponto, porque esta conduta dele com a mulher não estava previsível na conduta de juventude dele e muita coisa aconteceu nesse ínterim.

O gênero biografia é muito importante por causa disso: é estudando muitas biografias que você vai ampliando a sua noção do verossímil, vai chegando às vezes a entender as condutas humanas que são mais distantes das suas possibilidades. Isso não quer dizer que você tenha que permanecer moralmente neutro perante essas condutas: a objetividade das descrições não tem nada haver com a neutralidade moral -- absolutamente nada. Não é porque uma conduta me parece condenável que eu não a entendo. O problema é quando eu a condeno porque não entendo. Mas tem certas condutas que quanto mais você entende, mas vai lhe parecer condenável. A abstinência de juízo moral não é uma exigência metodológica legítima, apesar de tudo que diz Marx Weber, que diz que tenho que fazer a abstração dos valores. Ele afirma isso e em seguida afirma que eu tenho que investigar os valores que estavam em jogo na conduta de fulano. Mas se eu começo a neutralizar os meus valores, eu me torno insensível aos valores dos outros. Então a proposta dele é inviável, não dá para fazer isso. Eu capto o valor que está embutido na conduta do outro pelo meu sentimento de valor, não tem outro. Se eu neutralizar a mim mesmo como observador, então todos os outros valores se tornam equivalentes, e, na hora que eles se tornam equivalentes, eles não são mais valores, são apenas nomes de valores. Então os nomes de valores são como ticket de comida: você não vai comer o ticket, você vai trocar ele por comida, preenchendo aquele nome com os sentimos reais, imaginações reais etc. Não importa por onde você entre na questão, o problema da autoconsciência continua sendo central nas ciências humanas. Não tem como você escapar disso. Se você tentar se esconder por trás ou de métodos quantitativos, ou de conceitos gerais, ou, mais até, do apelo aos computadores para que eles façam o serviço por você, tudo isso reflete um processo extremamente patológico no qual o culto da razão, que começa no século XVIII, evolui para o desejo de você se desvencilhar da razão e colocar lá um simulacro de razão que são os computadores. Um computador não é dotado de razão, é dotado da capacidade de imitar certos mecanismos que para nós simbolizam indiretamente os procedimentos cognitivos da nossa razão. Quer dizer, para você admitir que um computador conhece alguma coisa, seria preciso você admitir que ele também tem uma consciência judicativa; que ele, portanto, é sujeito das suas ações; e que ele pode ser culpado ou inocente. E logo nós estaremos processando computadores. Quando existe a abstinência, a supressão e a abstração do juízo moral, absolutamente tudo se torna incompreensível. Em vez da abstinência de valores, o que nós precisamos ter é uma consciência ainda mais aguda dos valores, dos nossos e dos alheios. Ter consciência de um valor alheio significa assimilá-lo de algum modo. Mas você pode assimilá-lo negativamente, ou seja, como algo que você não pode aceitar ou que lhe parece inumano ou assim por diante. Quer dizer, a rejeição de um valor é também uma assimilação, é uma possibilidade de ação que você não tinha antes, e que agora você tem porque você a conhece. Por exemplo, pela mentalidade de um Pol Pot, para nós pode ser difícil de imaginar, não só pela monstruosidade da coisa, mas pela barreira linguística. Teria que conhecer muitíssimo bem a língua local, com todas as suas nuances para estudar isso etc., e acaba por se tornar inacessível. Quer dizer, nossos julgamentos sobre o Pol Pot só serão válidos na medida em que a conduta do Pol Pot é tipificada segundo um modelo que coincide com outros: Stalin, Hitler, etc. Portanto, não é um julgamento direto sobre a pessoa concreta, mas sobre um modelo. Para o juiz de direito isso é justamente o que se chama de tipificação, quando a conduta se enquadra com um modelo que já está predefinido no código, e isso para o juiz é suficiente para ele lançar a sentença. Mas isso também quer dizer que em grande parte dos casos o juiz vai sentenciar no escuro, apenas pela tipicidade e não com um conhecimento efetivo daquele caso. Também temos que levar em conta qual é o nível de exigência moral que esse juiz faz sobre si mesmo, e sobre o exercício da sua profissão: aquele que é apenas um indivíduo de tipo rotineiro, que quer fazer apenas aquilo e ir para casa, então a tipificação é mais do que suficiente; mas ele pode ter outras presunções, ele pode ter a presunção de ser justo ou de ser bondoso, ou de modificar a sociedade no sentido que ele acha o certo. Então todas essas motivações do juiz interferirão na compreensão que ele tem do processo. Isso quer dizer que o elemento subjetivo em todos esses problemas não se opõe ao objetivo. Ao contrário, a subjetividade é uma condição da objetividade. Eu só posso chegar ao conhecimento objetivo de certas condutas humanas na medida em que eu me aprofundar na minha subjetividade, ao ponto de poder integrar nela muitos elementos da subjetividade alheia. Então, a ilusão de você poder neutralizar o desvio subjetivo, o preconceito subjetivo, através de uma grade de conceitos objetivos que torna essas diferenças irrelevantes, é a pior ilusão de todas e, na verdade, é uma ilusão quase psicótica, uma ilusão de poder. É a ilusão de que você pode ver a humanidade de fora, como se você fosse uma espécie de deus ex machina: você está fora da engrenagem vendo aquilo funcionando como você vê um carro com motor a explosão funcionando, sem que você tenha nenhuma responsabilidade naquilo. Essa é pior das ilusões, é a mais disforme que existe, porque se existe um preceito que é inevitável nas ciências humanas é que nós vemos a própria espécie, e não outra. Portanto, o conhecimento ali se identifica com a participação e ele é uma forma intensificada de participação, e não uma observação desde fora. A chave do negócio é a participação consciente e a responsabilidade integral pela posição que você desempenha naquele conjunto. Por exemplo, eu acho muito engraçado o hábito Brasileiro de perguntar o que você acha, se gosta ou não gosta do Vladimir Putin, se gosta ou não gosta do Obama etc.

O gostar e o não gostar, [01:00] se eu gosto ou não gosto de alguma pessoa, isso deve ter alguma importância para ela também. Mas se não tem importância nenhuma, se não existe um feedback, o meu gostar ou não gostar se refere a uma entidade abstrata, e não a uma pessoa concreta. Refere-se a uma figura pública, estereotipada. Essa pergunta simplesmente não se faz. Mas no Brasil é a pergunta típica, como você está reagindo ante a atuação pública de uma pessoa que te desconhece, que você não afeta de maneira alguma e da qual você não recebe nenhum feedback. Ora, o gostar ou não gostar é um elemento da nossa convivência diária onde nós recebemos um feedback, por exemplo, vamos supor que você arrumou um emprego e você odeia o seu patrão. Mas você precisa dele por causa do emprego. Então, qual é a sua preocupação? É ocultar o ódio. Porque você quer receber dele um feedback que não se refere ao ódio, mas simplesmente ao trabalho que você está realizando. Então você tem uma espécie de dupla comunicação com ele, e isso é uma relação muito simples. Agora você imagina em um casamento ao longo de 30, 40 anos de convivência como os feedbacks vão modificando a sua conduta. Mas eu não recebo feedback nenhum de Barack Obama nem de Vladimir Putin. Isso significa que a minha reação emocional à figura dele não é um bom caminho para eu chegar à compreensão daquilo que efetivamente está em jogo. Eu teria de começar por ver a minha posição, ou seja: no que que eu sou afetado pelas ações deles? Se é que eu sou. Porque essas ações, em geral, só acertam nos seres humanos individuais a longuíssimo prazo, então é tudo conjetural.

Esses são alguns dos preceitos que eu uso nas análises que eu faço. É claro que você só vai entender uma delas se você ler muitas. Porque se você pegar um artigo com uma conclusão, esta é a conclusão que eu cheguei, partindo das premissas que estão declaradas aqui. Mas não é a única conclusão que eu tenho, não é o único corpo de premissas que eu já usei; isso pode ser examinado por muitos outros lados.

Eu sempre escrevo os meus artigos de modo que eles constituam uma espécie de mostruário sistemático de alguma coisa que eu já expliquei em aula, ou expliquei em apostila. O leitor meramente jornalístico não sabe disso, então é evidente que ele vai pegar essas conclusões como se fossem a expressão de uma opinião minha, e de uma preferência minha. Sempre vai ser assim. Mas, eu confesso que tudo que eu escrevo, no fundo, é só para os meus alunos. Os outros leitores eu vejo ou como alunos em potencial, ou como pessoas que vão tirar daquilo um proveito muitíssimo limitado. E eu fico espantado de como é pequeno o número de pessoas que são capazes de, por baixo daquilo que está dito, descobrir outras coisas que o sujeito pode ter dito em outros lugares, ou pelo menos levantar a hipótese. Será que em tal outro lugar ele não disse algo diferente? No Brasil, quando as pessoas descobrem algo um pouco diferente elas já dizem "contradição!", então espera-se que tudo que o sujeito escreve seja a expressão linear de uma opinião, com um gosto ou não gosto, e tudo dentro de uma lógica implacável, que das premissas se segue inapelavelmente às consequências. Ou eles não pegam a diversidade de perspectivas, ou quando pegam a vivenciam como se fosse uma contradição. Só isso aí já é um sinal de como o analfabetismo funcional se disseminou no Brasil. É evidente que isso não tem nada a ver com esquerda e direita. O analfabetismo funcional é igualmente bem repartido entre os membros de todos os credos, todas as religiões e todos os partidos políticos, no Brasil. Pelo menos nisso, nós somos extremamente democráticos.

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Bom, em primeiro lugar, eu gostaria de observar o seguinte: esta aula não teve propriamente um tema; ela foi um conjunto de notas de rodapé que eu já devia ter dado muito tempo antes, porque elas são válidas na compreensão de praticamente tudo que eu estou explicando neste curso. Sempre é preciso levar isso em conta. Qualquer questão que a gente aborde, ela tem uma multiplicidade de aspectos -- quando escolhemos um aspecto, é só por uma necessidade do momento, e não porque aquilo seja necessariamente o mais importante -, e, onde você não tiver uma tensão entre hipóteses que são igualmente verdadeiras ou pelo menos verossímeis, então é porque não há atividade intelectual nenhuma. Há apenas um automatismo. A percepção dessas tensões e dessas dificuldades, ela é a própria vida intelectual.

Isso não quer dizer que nunca se chega à conclusão nenhuma. Chega-se, sim. Porém, a vida humana é constituída de conflitos, de ambiguidades e dificuldades. Então não vejo porque os resultados de uma ciência que procura conhecer o ser humano tal como ele é realmente, não deva ter as mesmas características. A descrição de uma contradição, ela é em si mesma uma contradição, ainda que só num dos seus níveis (claro, ela não é uma contradição dentro dela, mas ela incorpora uma contradição).

Aluno: Na aula sobre o mundo dos princípios, o senhor ensinou dentro de uma conotação negativa que a ciência moderna (citando como exemplo Newton e Descartes), foi nascida sobre ocultistas, que criaram o mito do terreno do conhecimento neutro como uma forma de sobrepujar e desmontar o conhecimento da Igreja sobre a realidade. Porém, na aula 243, o senhor ensinou que o reaparecimento do pensamento ocultista na Europa fez a Igreja perceber que o pensamento escolástico, baseado nas formas substanciais e na utilização da dialética e da lógica, se mostrou insuficiente para a pretensão da teoria do pensamento universalmente válido.

Bom, em primeiro lugar, não foi isso. E em relação a essa segunda parte, o que eu disse foi que perceberam que o pensamento escolástico, baseado nas formas substanciais e na utilização da dialética e da lógica, não era suficiente para deter a onda ocultista -- ele deixava aberta uma brecha para o ocultismo --, que nesse sentido ele precisava ser reformado ou complementado. Foi isso que Descartes e Mercenne perceberam.

Quanto a esta dupla linha de causas, as duas causas existem. Por um lado, houve primeiro uma onda ocultista; em seguida, uma ocultação dessa onda ocultista. Na hora em que a ciência moderna começa a se constituir como um domínio independente e soberano, ela varre para debaixo do tapete as suas origens ocultistas. Por outro lado, existia uma reação efetiva contra o ocultismo, principalmente da parte de Descartes e Mercenne. Essas duas linhas existem. Você tem um elemento declaradamente, ostensivamente contrário à Igreja, e você tem uma reação interna da Igreja, as duas caminhando no mesmo sentido, de criar um terreno neutro, definido sobretudo pelo uso das matemáticas. Lembre do que eu estava dizendo na primeira parte: quando vê duas pessoas fazendo a mesma coisa, às vezes elas estão fazendo a mesma coisa por motivos diferente ou até opostos. E é exatamente o que acontece aqui. Portanto não se admite a uniformização dos motivos, onde há uma conduta uniforme; as duas condutas estão tendendo para a mesma coisa, mas por motivações completamente diversas.

Todas essas narrativas históricas que apresentam o advento da ciência moderna como um processo unilateral, num sentido ou materialista, ou anti-cristão, elas estão muito erradas -- você tem todos esses elementos misturados.

Aluno: O COF está fenomenal. Obrigado pela oportunidade de aprender.

Olavo: Obrigado eu.

Aluno: Por favor, uma vez que o catolicismo não contém elementos esotéricos, a não ser no caso de heresias pontuais, como gnosticismo e montanhismos entre outros, para René Guenon o catolicismo seria uma organização iniciática?

Bom, em primeiro lugar, não é verdade que o cristianismo não contém elementos esotéricos. Ele não contém elementos [1:10] secretos, mas se formos usar a terminologia de René Guenon, é evidente que os sacramentos, eles na medida em que são a iniciação cristã, conforme dizia João Paulo II, então são elemento esotéricos por natureza. E quanto à pergunta "se para René Guenon o catolicismo seria uma organização iniciática": a teoria do René Guenon é que o cristianismo surgiu como uma organização iniciática. Portanto, uma organização relativamente discreta, mas que em função da inexistência de instituições religiosas válidas no momento, ele se externalizou e se tornou uma religião popular. Eu não acredito nesta teoria de maneira alguma, porque o próprio Cristo declara que nada ensinou em segredo. Poderia ser uma organização esotérica, mas não iniciática. Exotérica pelo conteúdo interior ou místico do seu ensinamento (místico que dizer aquilo que é escondido, que não é fácil de você ter acesso). Ou seja, não é fácil de ter acesso, mas está aberto a todo mundo. Em vez de você ter uma escalada de iniciações que você recebe de um mestre, tudo lhe é oferecido ao mesmo tempo, e a profundidade da sua participação depende exclusivamente de você. O mesmo rito sacramental você pode entendê-lo como uma cerimonia exterior social, como um mero rito de agregação, ou você pode entendê-lo no sentido místico da sua santificação e divinização, como explica o padre Arintero.

Isso quer dizer que no caso do cristianismo, as noções de iniciação, esoterismo e exoterismo, elas não se aplicam no sentido estrito e quase material que elas têm no mundo islâmico, onde você tem a religião popular, para todos igual, e você têm as tariqas, que são organizações iniciáticas onde existem, ademais dos ritos religiosos, outros ritos específicos para fins de iniciação. Isso não tem no cristianismo -- os ritos são os mesmo para todo mundo. Mas os níveis de participação são muito diferentes. Então colocaria em ação aquilo que o René Guenon chama de iniciação virtual. Quer dizer, o sujeito recebeu a iniciação, recebeu no batismo. João Paulo II diz claramente, "o batismo é o começo da iniciação cristã". Ele recebeu a iniciação, mas entre a iniciação ser recebida e ela ser efetivada, isto é, se tornar uma posse espiritual efetiva e que está em ação, pode transcorrer uma vida inteira. E a iniciação pode permanecer virtual até depois da morte do sujeito

Aluno: Na última aula o senhor comentou sobre a necessidade de biografias intelectuais, incluindo nisso Leibniz. Sei de uma edição da Cambridge, escrita por Maria Rosa Antognazza, Leibniz: An Intellectual Biography.

Olavo: Eu não conheço esse livro; eu gosto muito do livro do Yvon Belaval, sobre Leibniz, parece um livro muito compreensivo. Em matéria de outras biografias intelectuais eu recomendo muito a do Nikolai Berdiaev, Ensaio de Autobiografia Espiritual. Mas existe uma infinidade desses livros, tanto de filósofos grandes quanto filósofos menores. Rousseau tem uma autobiografia intelectual; o próprio Descartes -- nós vemos que as próprias Meditações Metafísicas são uma narrativa autobiográfica de algum modo.

Aluno: Quando jovem fui apresentado à obra de René Guenon por intermédio de uma pessoa que a estudava. Sobre a exposição da doutrina dos ciclos cósmicos, da tradição hindu, me ocorreu a seguinte dúvida: considerando o afastamento relativo de uma idade de ouro para uma idade de ferro, me parecia um paradoxo que a pessoa de Jesus Cristo tinha vindo à Terra em um período que, segundo explicava René Guenon, coincidia com a etapa derradeira do ciclo cósmico. O sujeito não soube como explicar.

Bom, isto de fato não tem explicação. Mas o que suscita a dificuldade é o seguinte: a doutrina dos ciclos cósmicos só pode ser compreendida (entendo eu), de maneira analógica, e não de maneira lógica e literal. Na medida em que você tem um ciclo descendente, você tem ao mesmo tempo um ciclo ascendente, se não essa coisa seria impossível.

Se você imaginar, guenonianamente, tudo que Guénon escreve é mais ou menos inspirado naquele verso do Jorge Manrique, "todo tiempo passado fue mejor", quer dizer, que a história humana está sempre declinando. Nós não temos muito exemplo disso. Por exemplo, quando você lê no Antigo Testamento a história de Abraão, Isaac e Jacó, aquilo ali é uma seqüência de mentiras e perfídias absolutamente formidável. E se você disser que não vou houve um aperfeiçoamento espiritual e moral, com o advento do cristianismo, muito tempo depois, então o cristianismo teria de estar muito abaixo da conduta de Jacó, que engana o seu pai duas vezes, e obtém uma vantagem meio ilícita sobre o irmão, e assim por diante. Abraão uma vez mente, dizendo que sua mulher é sua irmã, e depois Isaac faz a mesma coisa; tudo isso não são exemplos de conduta, então você vê que um certo requinte, um certo refinamento moral só apareceu depois. Como é que nós podemos ver isso dentro duma decadência cíclica? Não há decadência alguma, houve uma elevação formidável. O próprio Cristo diz: antigamente Deus permitia que a gente desse uma carta de divórcio para a mulher e mandasse ela embora. E Cristo ainda diz que Ele permitia isso por causa da dureza de coração, mas agora que vocês já receberam o evangelho, a coisa ficou diferente. Então houve um upgrade, e não uma descida. Talvez os adeptos dos ciclos cósmicos expliquem isso como restaurações parciais dentro de uma decadência geral. Mas se existem restaurações parciais, isso quer dizer que você tem ciclos ascendentes dentro dos ciclos descendentes, e tem ciclos descendentes dentro dos ciclos ascendentes, e assim por diante.

Portanto, em hipótese alguma essa doutrina dos ciclos poderia ser entendida como uma cronologia em sentido literal. A história é inevitavelmente duas coisas ao mesmo tempo: tudo que é humano é ao mesmo tempo uma linha que não volta atrás -- ninguém fica mais jovem --, e por outro lado, ela é composta de ciclos (os dias, as noites, as estações do ano etc.). Então você tem esses dois elementos, a linearidade e os ciclos, numa espécie de tensão permanente. O ciclo é onde as coisas recomeçam, mas quando elas já não recomeçam como começaram antes -- elas já estão numa fase temporalmente posterior, e assim por diante.

A própria relação de anterioridade e posterioridade, linearidade, ciclo, tudo isso vem ao mesmo tempo e de maneira tensional dialética. Quando você estuda essas coisas, você tem de aproveitar essas formas, esses esquemas, para enriquecer a sua imaginação, e não tomá-las como se fossem uma tradução do fato objetivo. Esses elementos estão presentes na objetividade, mas de maneira simultânea e tensional. Todo mundo tem essa experiência: você têm os dias e as noites, que se sucedem ciclicamente. Mas eles não se sucedem ciclicamente no sentido que tudo se repete. Repete o mesmo ciclo num outro capítulo.

Esse duplo elemento, sincronia e diacronia, eles também estão presentes ao mesmo tempo, e nunca se ajustam perfeitamente, e nem se separam. Aos poucos, você vai adquirindo o hábito da verdadeira dialética, que é de você observar o trabalho das contradições, dentro de um quadro cuja unidade, de algum modo, permanece.

Aluno: Também sobre a obra de René Guenon, há um trecho no qual ele explica a atuação de uma organização esotérica, sobre os conflitos de ordem mundana, em que ela influenciava os grupos em disputa e sempre tirava o melhor proveito da situação. Talvez eu seja por demais ingênuo, mas para uma organização que se pretende espiritualmente superior, me parece um traço de desonestidade.

Sim e não. Como diz o próprio René Guenon, o segredo é da natureza mesma do poder. Isso quer dizer que as pessoas que determinam de algum modo o rumo das coisas não vão conseguir se explicar pra todo mundo. Um certo coeficiente de [1:20] manipulação é absolutamente inevitável.

Você imagina, o que aconteceu quando Moisés desceu do alto do Sinai? O pessoal já estava cultuando o bezerro de ouro, eles não estavam entendendo nada do que estava acontecendo. Então, isso quer dizer que quando Moises manda quebrar o bezerro de ouro, eles não sabem porque ele estava fazendo isso, eles não entenderam o que ele estava fazendo. Quanto tempo eles levaram para entender depois os dez mandamentos? Então, isso quer dizer que Moises tinha uma chave que tinha sido dada a ele por Deus, do qual os outros não participavam.

Então, a idéia de uma política transparente é a idéia mais imbecil que existe no mundo. A autoridade não pode ser transparente jamais, mesmo que ela quisesse, pois você só pode ser transparente a quem entende o que você está fazendo. Você acha, por exemplo, que todos os meandros da história, da geopolítica etc., são compreensíveis para qualquer um a qualquer momento? Qualquer eleitor, só porque tem o título de eleitor pode chegar e falar "aqui meu título de eleitor, eu entendo tudo", só por que está com o título de eleitor? Isso não existe.

Então, o elemento de segredo está sempre presente. Aliás, foi isso que eu escrevi essa semana no Diário do Comércio, não saiu ainda, mas lá diz que o que você observa, na verdade, não é só que o poder tem um elemento essencial de segredo, é que só vale a pena você ter o segredo se você conseguir desprover do segredo o seu inimigo, ou seja, você permanece secreto e ele é exposto à plena luz pública. Então, isso é um dos mecanismos mais constantes da política do Século XX e foi justamente isso aí que deu a vantagem aos regimes totalitários sobre as democracias. Então, por exemplo, um regime totalitário pode infiltrar pessoas na mídia de uma democracia e fazer ali o trabalho de desinformação, ou seja, você divulgar na própria mídia do adversário informações que são contra ele. Mas as democracias não podem dar o troco na mesma moeda em um regime totalitário porque você não tem a imprensa livre, então nada se publicará contra o governo. Imagine se a CIA conseguisse infiltrar um monte de gente na mídia soviética: não adianta, eles não vão poder publicar uma linha. Desde que a mídia é um órgão do próprio governo e o governo é o serviço secreto em última análise, então é guerra assimétrica. Isso é uma das constâncias.

O elemento do segredo sempre existiu, e quando você entra nessa coisa iniciática, a coisa mais óbvia do mundo é que, se nós não entendemos a vida interior nem mesmo de pessoas que são iguais a nós, como que é que vamos entender a vida interior de um grande místico? O quê que o padre Pio conversou com Nosso Senhor Jesus Cristo? Não dá para você entender. Não há nenhum intuído do segredo no sentido de enganar você, mas você de certo modo está barrado, você não tem acesso aquilo. Nós não podemos esquecer o seguinte, eu já expliquei em outras aulas (inclusive dei um curso sobre isso): todas as nossas percepções são fragmentadas, percepção tátil, visual etc. Nós só pegamos pedaços e momentos das coisas e no entanto nós sabemos que as coisas em si mesmas, e mesmo nós, não podem existir só momentaneamente. Não existe, digamos assim, um universo como um pisca-pisca, que existe e para de existir, existe e para de existir. Não pode ser isso. Tem que ter uma existência permanente por baixo. E tudo que é permanente é para nós inacessível. Daí por exemplo, vamos dizer, certas práticas de concentração, através da repetição de certas preces jaculatórias, baixam, vamos assim dizer, o ritmo das mudanças para afinar o indivíduo com algo da permanência, mas é somente algo. Não estou nem falando de mistério divino, mas de processos históricos que duram duas, três, quatro gerações, eles podem se tornar imperceptíveis para pessoas cujo o senso de temporalidade é mais curto.

Imagina, então, o mistério da eternidade, por exemplo, querer imaginar a vida eterna, como é que vai imaginar a vida eterna dentro de um tempo limitado que você tem pra imaginar? Você não consegue. O objeto que você está tentando imaginar transcende e engloba a sua imaginação inteira e mais tudo que você é aqui, então não dá. Isto quer dizer que Platão estava certíssimo com o negócio da caverna. O mundo que nós vivemos não é uma ilusão, mas é só um pedacinho insignificante. Esse pedacinho, que é transitório, impermanente, fragmentário, todo picotado, se assenta numa permanência que nós sabemos que existe. Já é o negócio do Parmênides -- o ser é ou o não ser não é -- nós sabemos disso, nós sabemos que o ser é e o não ser não é, mas só conhecemos pedaço do ser entremeados do não ser, e isso é a estrutura da nossa vida. Não tem como escapar disso, mesmo que você esteja persuadido da permanência da eternidade, isso não quer dizer que vá conhecê-la em vida, pois isso é autocontraditório com o próprio esquema da existência terrestre. Então, esse esquema é contraditório em si mesmo; nós somos uma contradição viva.

Hoje mesmo eu estava anotando uma notinha no Facebook. Aristóteles definia o ser humano como um composto indissolúvel de corpo e alma. Então, por um lado nós temos a indissolubilidade do corpo e alma que é o que define a nossa fusão, e por outro lado nós vivemos a perspectiva iminente da morte, que é a separação de corpo e alma. Então nós temos a fusão de corpo e alma, nós temos a separação, nós temos as duas coisas ao mesmo tempo. Porque ao mesmo tempo que estamos vivendo, estamos morrendo pouco a pouco. Então, está presente a fusão indissolúvel de corpo e alma e ao mesmo tempo está presente a solubilidade dessa fusão. Para você ver até que ponto aqui a nossa vida é contraditória. Por isso mesmo a oração classifica esse mundo como um vale de lágrimas. As lágrimas não tem fim. Nós vivemos sempre nessa tensão. O sexo é o momento que vivenciamos a fusão de corpo e alma de maneira mais intensa. Mas ao mesmo tempo o sexo é só um momento, ele acaba. E em seguida você tem a consciência da morte e da separação. Por isso é até recomendável que, se você está angustiado, não procure se consolar fazendo sexo, pois isso vai piorar as coisas, é a mesma coisa que agarrar um palito de dente para não naufragar. Só faça sexo quando você estiver calmo o suficiente para saber que não adianta nada. Então, essas contradições são a nossa vida, a nossa própria constituição. A inseparabilidade de coisas que serão separadas fatalmente. A inseparabilidade essencial de coisas que serão separadas, mais dias menos dias, fatalmente.

Aqui ele comenta que Mário Ferreira dos Santos observa que na modernidade os ritos iniciáticos tinham se tornado apenas formalismo, não acarretando uma mudança interior do sujeito, isso seria realmente necessário? O René Guénon que entende mais de Maçonaria que eu e o Mário Ferreira juntos, ele nos diz que, essas iniciações elas jamais são puramente formais, as iniciações são virtuais, ou seja, o sujeito que está recebendo a iniciação tem acesso aquela experiência espiritual superior. Mas esse acesso não precisa ser efetivado, ele depende de que o individuo faça mais isso e mais aquilo e mais aquilo outro. Do mesmo modo que no cristianismo, você ser batizado significa que você já está integrado no Corpo de Cristo. Você está tão integrado como padre Pio ou São Francisco de Assis, mas nem por isso você tem o conhecimento de Deus que eles têm, nem o amor a Deus que eles têm e a identidade com Deus que eles tem. Tudo isso precisa ser efetivado. O rito de iniciação abre, por assim dizer, uma possibilidade. Ele te dá um direito. É como você ter uma conta no banco, mas o sujeito vai precisar assinar um cheque, ou ir até o banco e tomar uma providência para efetivar isso.

Aluno: Dada a tentativa de golpe que Platão participou, foi preso e vendido como escravo, não estaria ali em uma mentalidade revolucionária, em Sócrates, por ter obedecido a pena de morte dada pelo estado na sua mentalidade conservadora?

Olavo: Pode ser isso. Nós não sabemos exatamente o teor da revolução que esse amigo de Platão preparava numa ilha, [1:30] não temos idéia disso. Eu sei que a idéia dos reis filósofos não é uma coisa que Platão esperasse realizar, porque ele mesmo, naquele ciclo das formas viciosas, mostra que, por mais perfeito que seja o regime, ele vai decair. Tudo está sujeito a deterioração, nós estávamos falando disso agora mesmo. Tudo está sujeito permanente a deterioração e ao surgimento de novos fatores, de modo que a vida se alimenta da morte e a morte se alimenta da vida, por assim dizer. Tudo é assim. Portanto, o regime perfeito não pode existir e Platão estava altamente consciente disto. Portanto, a idéia da transfiguração dos tempos, que é característica do movimento revolucionário, vai chegar ao fim da história e nós vamos inaugurar uma coisa totalmente diferente. A fé metastática, como dizia Eric Voeglin, isso está ausente em Platão. Mas nós não sabemos a medida da profundidade das reformas que esse governante apoiado por ele pretendia fazer, então a resposta é talvez sim e talvez não. Eu acho que jamais saberemos né.

Aluno: Qual a base da visão antropológica do homem no Marxismo?

Olavo: Essa base é essencialmente gnóstica, que é a idéia da auto-salvação. Em outras palavras, não há um deus no céu; deus é uma criação nossa e nós o projetamos lá. Então quem opera a salvação do homem é o próprio homem. Só que a salvação, evidentemente, terá que ter um outro sentido, pois não pode ser mais a eternidade da alma, a imortalidade da alma. Ela terá de ser um processo intra-histórico, um processo que se dá dentro da história e que inaugura então uma nova sociedade. Essa é a idéia. O homem para Karl Marx é sobretudo transformador da natureza. É o homem que se apropria da natureza e a transforma segundo suas necessidades, os seus desejos e os seus sonhos. Então essa capacidade de transformar a natureza para Karl Marx é tudo. Essa capacidade é inerentemente a capacidade de divinizar-se e, portanto, torna-se "o senhor da sua própria história". O que, se você examinar bem, é uma expressão auto-contraditória. Você será senhor da sua história passada ou da sua história futura? Se você vai determinar a sua história futura, significa que você tem o domínio dela desde já, então ela não é futura é apenas uma extensão do presente, será uma repetição do presente. Ser o senhor da história é uma expressão que aplicada ao ser humano é inteiramente absurda: o ser humano é jamais será o senhor da história.

Aluno: queria conversar contigo sobre o Osvaldo Vieira, o que o senhor acha das pesquisas e das divulgações dele? Ele cunhou um vocabulário muito particular para explicar suas descobertas, não acha isso abstratismo?

Olavo: olha, eu não sei, eu acompanhei as pesquisas do Osvaldo Vieira até certo ponto e vi que ele tinha uma coleção de fenômenos absolutamente fantásticos e tudo aquilo comprovado. Não se pode negar que esses fenômenos existem. Quando você diz que ele criou um vocabulário muito particular para explicar isso, mas isso eu não sei, pois eu nunca li suas explicações eu só li sobre os fenômenos, eu não sei até onde ele levou a elaboração teórica dessas coisas, eu realmente não sei. Aquela coleção de fenômenos, por mim, na época, já me pareceu que fazia dele um pesquisador que merecia respeito. Porque aquilo é muita paciência e muita observação e uma dedicação extraordinária. Mas as suas conclusões eu não as conheço.

Então, por hoje é só. Lembrando que essa aula de hoje, tem muita gente que diz que aula é muito dispersa. Mas, elas são dispersas porque elas consistem em notas de rodapé de outras aulas, e não são exploração de um assunto específico. São critérios para a compreensão, não só de muitas coisas, mas para a compreensão deste próprio curso. Cada uma dessas notas vocês tem que levar em conta quando ouvir cada alma dessas aulas. Em todas elas, por traz delas há muito mais percepções e muito mais dificuldades, contradições e intenções, e o objetivo do curso não é de maneira alguma dar uma doutrina pronta, pois eu também ainda a não tenho. Mas abrir vocês para um mundo imensamente fecundo e rico dessas contradições, que por um lado nos assombra, mas por outro são um motor da nossa atividade intelectual. Contradições que no esquema dessa vida não terão soluções jamais, e que você saber que elas têm soluções na outra vida resolve as coisas para a outra vida, mas não para esta. Isso porque o abismo entre o mundo da temporalidade e da eternidade continua. A temporalidade pode ser absorvida na eternidade, mas não ao contrário. Não tem um jeito de fazer a eternidade caber no tempo. Então, por assim dizer, nós somos vizinhos da eternidade, mas ela continua, para nós, invisível e fechada.

Outro dia eu estava vendo um documentário muito interessante, de um sujeito chamado Sid Rocks, sobre experiências de quase-morte. Aparecia um médico que passou por uma dessas experiências e ele dizia: a última respirada que você dá nessa vida já é a primeira da próxima. Ele diz: não é que nós passamos para a eternidade, a eternidade já está caminhando ao nosso lado. Sim, isso é necessariamente assim, não vejo como o tempo poderia escapar da eternidade, ele só pode estar dentro dela. Portanto, ela está aí e nos cerca o tempo todo. Tudo aquilo que é eterno e permanente -- e a necessidade do eterno e permanente eu não preciso insistir nela --, está aí o tempo todo. Mas justamente porque está aí o tempo todo é inacessível pela nossa estrutura temporal de existência, onde tudo é mesmo momentâneo, picotado etc.

Algumas pessoas estão me enviando os necrológios. Eu não preciso ler os necrológios, na verdade é melhor que eu não os leia. O necrológio é para você mesmo, para seu controle, para que você de tempos em tempos o refaça e veja como os ideais que norteiam a sua vida vão se esclarecendo aos poucos. Eu posso ler um ou outro se você quiser que eu leia; eu até leio. Mas não é necessário, não é um exercício escolar, é um exercício interior, uma prática interior, e você de vez em quando deve refazê-lo para remapear a sua vida e ver onde é que você está.

Eu, por exemplo, estou com 67 anos, e revendo a minha vida vejo o que eu queria fazer e o que eu fiz. Eu vejo que de fato uma coisa é muito parecida com a outra, nesse sentido eu me considero um homem muito afortunado, porque o normal é as pessoas perderem o rumo do que elas querem fazer, elas apagarem o seu ideal e se adaptarem a outra coisa. Nesse sentido a sua vitória é uma derrota ao mesmo tempo, porque o sujeito sai vitorioso num campo que não é o dele, ele vive uma vida que não é a dele e, pior ainda, se ele tem alguma sorte nisso aí. Fred Devinie dizia que uma grande vida é um sonho de juventude realizada na idade madura. Nesse sentido eu estou muito satisfeito com a minha vida, mas esta é uma avaliação que muitas vezes eu tive que refazer e na maior parte das vezes eu não estava satisfeito absolutamente. A minha satisfação começou a vir muito tardiamente, mas isso é natural, muitas vezes é assim mesmo. Você começa a só fazer as coisas mesmo depois dos 50. A não ser que seja uma vocação de tipo juvenil como as vocações das artes ou da matemática, às vezes é juvenil. Em filosofia é difícil você ter uma vocação juvenil. Em filosofia e educação é difícil uma vocação desse tipo. É normal, aos educadores, particularmente, que eles errem uma, duas, três, dez vezes, até acertarem alguma coisa.

O necrológio é sua medida de aferição de você mesmo: em que capitulo estou da minha porca vida, onde é que eu preciso ajustar o percurso, onde que eu me perdi, onde que preciso recomeçar, e assim por diante. É para o seu próprio uso e não para o meu uso. O que é para o meu uso são as suas propostas de investigação.

Eu gostei muito que esse grupo do Ítalo topasse a proposta, aliás a idéia foi minha, eu chutei a idéia e alguém pegou, e eu acho muito bom isso aí porque é um grupo de pesquisa muito definido, muito claro, não tem ambiguidade, é só a questão de trabalhar na mesma direção e vocês terão o resultado.

E nós temos nessa semana, começa dia 28/04 até 03 de maio, o curso "Como tornar-se um leitor inteligente", do qual, de certo modo, essa aula foi uma prévia. Está bom? Então até semana que vem muito obrigado.

Transcrição: Guilherme Vargas, Hestefani Lira, Matheus Hahn Oliveira e Mayna Dantas.

Revisão: Éricson Rojahn, 04/09/2018 [ericson.rojahn@gmail.com]