Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 223
12 de outubro de 2013
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Eu queria nesta aula fazer duas coisas: a primeira é comentar um artigo que eu mandei para o Diário do Comércio --- que não saiu ainda --- que é muito pertinente aos nossos interesses aqui nesse curso. O segundo é dar alguns esclarecimentos sobre a questão do tradicionalismo guenoniano --- a respeito dos quais eu recebi dezenas de consultas através do Facebook --- que são impossíveis de esclarecer nas dimensões desta rede social.
Mas, antes de tudo, eu queria pedir um favorzinho àqueles que, dentre vocês, sejam advogados. Existe no Brasil uma associação nacional de educação domiciliar (homeschooling) que tem feito muitos progressos; já é um movimento considerável. Mas está enfrentando algumas dificuldades e precisa de uma assessoria jurídica; não na questão de legislação, mas na maneira de enfrentar certos obstáculos e certos inimigos. O nome do presidente da associação é Ricardo Iene Dias e o e-mail é [contato@aned.org.br]{.ul} . Então se houver dentre vocês algum advogado, que se disponha a dar uma ajuda, essa associação fica em Belo Horizonte. Se houver alguém de Minas, melhor; mas de outro estado também é possível que dê alguma ajuda. Escreva para ele dizendo que é aluno do Seminário e que está disposto a dar alguma assessoria nisso. Muito obrigado desde já.
Então deixa eu primeiro ler e comentar este artigo, que eu não sei o dia que vai sair, mas que, na verdade, eu estou escrevendo mais para vocês mesmo. Vamos lá: o título do artigo é; "O idiota em sentido estrito1".
Termos como "idiota", "imbecil", "mentecapto" etc. podem ser usados como meros xingamentos. Neste caso, não indicam nenhuma deficiência mental objetiva no indivíduo a que se aplicam, mas somente a raiva que os falantes sentem dele --- a qual pode até mesmo ser, e freqüentemente é, causada pela percepção de uma superioridade intelectual que os incomoda e humilha.
Não uso jamais --- repito: jamais --- esses termos com esse sentido. Quando digo que alguém é idiota ou imbecil, ou quando o sugiro mediante outras palavras, é porque notei claramente, na pessoa de quem falo, uma ou várias das 28 deficiências intelectuais assinaladas pelo célebre educador romeno Reuven Feuerstein (v. por exemplo [http://educacaodialogica.blogspot.com.br/2013/07/as-28-deficiencias-da-inteligencia.html)]{.ul}),..."
Esta frase é, na verdade, muito otimista porque em todos os casos que eu examinei, por exemplo, de pessoas célebres e ilustres opinadores, com quem eu troquei umas palavras --- seja pela mídia impressa seja pela internet --- eu notei não uma nem duas mas, no mínimo, quinze ou dezesseis dessas deficiências. Então isso não é uma coisa para brincar. É uma coisa muito séria: isso é uma medida objetiva de capacidade intelectual; eu até escrevi uma coisa na época mostrando que essas deficiências haviam se tornado endêmicas e quase obrigatórias no Brasil.
"...as quais resultam sempre em julgamentos impulsivos, deslocados da situação.
Esse erro, o mais freqüente hoje em dia entre os debatedores brasileiros de qualquer assunto, corresponde esquematicamente à falácia lógica que os antigos denominavam "ignoratio elenchi", em que o sujeito pensa ter provado alguma coisa quando de fato provou, se tanto, outra completamente diversa. Isso acontece, evidentemente, quando o cidadão é incapaz de entender qual o ponto em debate. É impossível que um estudante não adquira esse vício quando adestrado desde pequeno para remeter tudo de volta, sempre e sistematicamente, a meia dúzia de chavões tidos como universalmente explicativos, em vez de tentar perceber o que está realmente em jogo na discussão. O apelo compulsivo a rótulos infamantes como "fascismo", "fundamentalismo religioso", "preconceito e discriminação", "racismo", "homofobia", "teoria da conspiração", "elite exploradora" etc., é hoje praticamente obrigatório e funciona como substitutivo socialmente aprovado do esforço de compreender aquilo que se pretende impugnar mediante o emprego fácil e desesperadoramente mecânico desses termos.
O controle "politicamente correto" do vocabulário tenta vestir uma camisa-de-força verbal no adversário, mas termina por aleijar intelectualmente o próprio usuário desse artifício, reduzindo-o à condição de repetidor histérico de insultos completamente despropositados.
Como o que no Brasil de hoje se chama "educação universitária" consiste eminentemente em adestrar os alunos nessa prática, não é de espantar que quatro entre cada dez estudantes das nossas faculdades sejam analfabetos funcionais, o que não significa que os outros seis tenham uma inteligência à altura das funções para as quais ali se preparam.
Demonstrações de inépcia em doses francamente escandalosas são freqüentes não só entre maus estudantes, mas entre pessoas que ocupam os postos mais destacados na esfera da alta cultura neste país. Quando, por exemplo, o escritor Luiz Ruffato é aplaudido pela mídia ao classificar como "genocídio" a redução do número de índios brasileiros de quatro milhões (número hipotético) para 900 mil desde os tempos de Pedro Álvares Cabral até hoje, tanto ele quanto sua platéia demonstram que não têm a menor idéia do que venha a ser um genocídio e só usam a palavra como reforço da identidade grupal dos "bons" contra os "malvados". "Pensar", no Brasil, significa que o sujeito se apaixona por um símbolo do que lhe parece "o bem" e "a justiça", e imediatamente liga o gerador de lero-lero para acabar com o mal no mundo.
Outro tanto deve ser dito do dr. Miguel Nicolélis, que se escora na sua autoridade de neurocientista para dizer que Jesus, Abraão e Maomé eram apenas esquizofrênicos que imaginavam falar com Deus. Esse homem estuda o cérebro há décadas, mas ainda não se deu conta de que é impossível encontrar, nesse órgão, qualquer prova de que algum objeto pensado exista ou inexista fora dele.
Isto aplica-se a Deus como a um gato, a uma pedra ou a uma banana. Aplica-se aliás até ao próprio cérebro. Com toda a evidência, o ilustre membro da Academia Pontifícia de Ciências não entende o alcance da sua própria afirmação, produzida no gerador de lero-lero para fazer bonito ante pessoas que também não a compreendem. Seis meses de estudo das "Investigações Lógicas" de Husserl não lhe fariam nenhum mal."
Este parágrafo está enormemente compactado e compactado de propósito: porque eu sei que se esse parágrafo cair na mão do Miguel Nicolélis, ele não vai entender este mesmo parágrafo. Então, em primeiro lugar, ele diz que Jesus, Abraão e Maomé são esquizofrênicos, que imaginavam falar com Deus: então está supondo, em primeiro lugar, que o Deus do qual falavam não existe. E, em segundo lugar, que este fenômeno pode ser explicado mediante a fisiologia do cérebro. Saber se Deus existe ou não existe é um problema que não pode ser resolvido pelo exame do cérebro, assim como nenhuma outra representação que corresponda a algum mecanismo neuronal pode ser confirmada como verdadeira ou falsa --- no sentido de que exista objetivamente --- pelo simples exame do cérebro.
Ou seja, a relação cognitiva entre sujeito e objeto supõe os dois --- supõe o exame dos dois. É impossível, somente pelo exame do sujeito, saber se uma percepção dele é verdadeira ou falsa. Isso é uma coisa absolutamente elementar, mas que não faz parte da neurofisiologia. Fisiologia cerebral estuda o cérebro, ela não estuda o conhecimento (isso é importante). Ela não tem o menor alcance sobre o fenômeno cognitivo em si, mas somente sobre as reações cerebrais que a assinalam ou acompanham. Isto aqui é o típico exemplo do que Edmund Husserl chamava de psicologismo. E eu já disse para vocês que na história da filosofia dificilmente houve uma refutação mais bem-feita e mais completa do que aquela que Edmund Husserl, na introdução das Investigações Lógicas, faz contra o psicologismo. O psicologismo é a teoria segundo a qual as leis do conhecimento, ou as leis da lógica, correspondem às leis do funcionamento da psique; e, portanto, também, entre elas, o funcionamento do cérebro. E ele demonstra que o conhecimento coloca problemas que estão infinitamente além da esfera puramente psicológica.
Quer dizer, você conhecendo o funcionamento do sujeito, você nunca vai descobrir se o objeto existe ou não. Isto é uma coisa elementar, e que [0:10] ninguém deveria precisar de formação especializada em nada para perceber isso; deveria ser instintivo no ser humano. Isso é a capacidade instintiva de você distinguir; a distinção entre sujeito e objeto é o requisito elementar de qualquer percepção que você tenha. Isso quer dizer que você vai comer um bife e não sabe que o bife está fora de você? Então basta você pensar o bife e ele está comido.
Mas a formação universitária pode abafar essa capacidade de percepção simples, e substituí-la por construções verbais enormemente complexas que, na verdade, estão estupidificando o sujeito. Isto acontece por quê? Não é culpa da formação universitária, é uma coisa que vem desde a infância, desde a escola elementar. Se o sujeito já é educado nesse socioconstrutivismo, ele já está preparado para adquirir esta deficiência mais cedo ou mais tarde. Depois vem toda esta pressão desse vocabulário politicamente correto; essa necessidade compulsiva de você estar bem na fita perante tal ou qual grupo. Isso aí emburrece o indivíduo necessariamente. Eu acredito seriamente que este estado de inépcia endêmica é o maior problema social brasileiro. Porque se você não tem os agentes, a ação não se perfaz. Então qualquer projeto --- seja de ordem cultural, educacional, econômica, obras públicas etc. --- esbarrará nisto. Os agentes não estão qualificados e, portanto, a ação não se perfará.
Este exemplo que eu dei do Luiz Ruffato me impressionou muitíssimo. Isso porque houve dois discursos na feira de Frankfurt: primeiro foi o Michel Temer que foi lá e fez apologia do governo PT e de si mesmo; depois veio o Luiz Ruffato, que descreveu um panorama aterrador do Brasil, mas lançando toda a culpa na elite que até a pouco dominava o país, isentando, portanto, o presidente e o governo. E dizendo que houve progressos, que houve a integração social de 42 milhões de pessoas. Isto é uma das coisas que mais me impressionaram, porque aqui nos EUA --- ou em qualquer outro país do mundo --- o número de pessoas que dependem de ajuda do governo é considerado um índice de pobreza. É uma calamidade na verdade; e no Brasil isso virou de repente um título de glória. Como é que o indivíduo não percebe que 42 milhões de pessoas que estão recebendo dinheiro para não fazer nada são dependentes do governo? Elas não são a solução, elas são um problema que terá de ser resolvido mais dia ou menos dia. Então, penso eu, como é que nós faríamos para transformar esses 42 milhões de beneficiários, de pedintes, em 42 milhões de trabalhadores? Primeiro vai ser preciso arrumar 42 milhões de empregos: mas você não pode arrumar 42 milhões de empregos porque você não tem capital; e por que você não tem capital? Porque você deu para eles.
Então criou um círculo vicioso; é um problema quase insolúvel. Você vai precisar de uma injeção de dinheiro de outro lugar. A injeção de dinheiro pode vir do investimento estrangeiro, mas o investimento estrangeiro é diminuído pelo fato de que a economia cresce pouco. Então conseguiram criar um negócio que não tem solução. E os caras se gabam disso como se fosse uma vitória. E eles são sinceros nisso; eles acreditam realmente.
E o camarada não é um bocó --- porta voz do governo ---, ele é um escritor que, inclusive, fez fama de ser um sujeito independente, que na frente do ministro descreve o estado calamitoso e que é louvado precisamente por isso. De maneira que pareceu ali em Frankfurt --- não sei: a platéia devia ser quase toda de brasileiros, na verdade --- que havia um contraste entre o Michel Temer e ele; mas eles estavam falando exatamente a mesma coisa.
O negócio do genocídio é uma coisa incrível, porque o genocídio é a liquidação de uma etnia. É um empreendimento planejado e continuado por um governo; é um governo contra sua própria população. Que governo pode continuar a execução de um plano genocida durante quatro séculos? O Brasil nesse período passou pelas capitanias hereditárias, teve a colônia, depois teve a independência e a monarquia, depois teve a república e diversos golpes de estado; o governo trocou muitas de vezes. E este projeto de liquidar os índios continuou maravilhosamente intacto durante 400 anos. Mas só um jumento para pensar em uma coisa dessas. E, em segundo lugar, quando você vai para certas regiões, como nós estivemos em Roraima, você vê que a população de cidades inteiras é de índios --- são índios que vestiram calça, camisa e estão vivendo como a sociedade branca, mas, racialmente, são índios. Não há prova de que eles foram liquidados; o número de índios dessas cidades é muito maior do que três milhões. E, em segundo lugar, houve guerra entre brancos e índios; em uma guerra você tem de contar quantos morreram de um lado e quantos morreram do outro. Então, primeiro: o número que serve de ponto de partida é hipotético; não houve o recenseamento de índios. Ninguém vai dizer que Pedro Álvares Cabral chegou lá com a tabela do IBGE, entrevistando índio por índio, para saber quantos tinham; é um número hipotético. E, em segundo, não há a menor prova de que eles morreram em vez de integrar-se na sociedade, que é o que a gente vê com os olhos da cara. Inclusive eu lembro que lá os caras reclamavam; diziam: mas por que só o índio de tanga tem direitos? Nós também somos índios. Todos diziam isso lá.
Se você diz que o índio é um componente importante da nossa população, quer dizer, da totalidade da população brasileira há uma parte, grande, que é índio ou descendente de índio. Se você diz isto, então é impossível não admitir, ao mesmo tempo, que os índios se deslocaram das suas tribos para se integrar na sociedade branca; as duas coisas ao mesmo tempo não é possível. Ou os índios se integraram ou eles foram liquidados: se eles foram liquidados não poderiam integrar se com uma parcela importante da nossa população, da qual certamente vai muito além de três milhões. Como é que um sujeito que é escritor --- e que é aplaudido não só como escritor, mas como uma mente independente --- não consegue fazer um raciocínio desse? É um negócio muito impressionante: o indivíduo não consegue representar mentalmente o que ele está dizendo; ele está raciocinando somente com as palavras.
Outro dia tinha um cara no programa do Jô Soares --- um americano ou inglês --- e ele dizia: nós, anglo-saxões, pensamos primeiro e falamos depois; vocês, brasileiros, falam primeiro e pensam depois. Eu acho que isso é otimismo, porque o sujeito fala primeiro e ele não pensa depois; ele fala, ele ouve o que disse e passa acreditar pelo simples fato de que ele ouve. A dificuldade na aquisição da linguagem, que é característico desses camaradas, faz com que a simples capacidade de falar tenha sobre ele um poder persuasivo: "se eu consegui falar é porque deve ser verdade".
E você nota claramente, na redação do discurso do Luis Ruffato, a precariedade do domínio que ele tem do idioma. O sujeito é um subescritor que de repente vira um herói nacional porque misturou umas coisas óbvias. Ele fala, por exemplo, dos homicídios brasileiros; mas não sei por que ele o reduz a 32 mil por ano --- quando nós sabemos que são 70 mil. E, ao mesmo tempo, ele menciona esse mal resultado dos estudantes brasileiros nos testes internacionais, e atribui a culpa à elite que, até algum tempo atrás, dominava o país. Espera aí: quando essa elite dominava o país, as crianças daquela época estão hoje com vinte a trinta anos; não são elas que estão sendo testadas. As que estão sendo testadas, são aquelas que foram ensinados segundo os novos cânones adotados pelo governo atual e pelo governo anterior; desde, no mínimo, o tempo do FHC; cujo ministro já era o Paulo Renato que, diante do fato de os estudantes brasileiros tirarem último lugar nos testes internacionais, comentou; "poderia ter sido pior".
O quê que o cara quer dizer com isso? Existe algum lugar depois do último? Criaram uma categoria especial para brasileiros? "Sub-último"? Então é evidente que esse sujeito, também, quando fala, não está representando mentalmente o que fala. Você tem a frase, você tem a imagem mental que aquilo corresponde e depois da imagem mental você tem o objeto. Nós não podemos nos deixar enganar nem mesmo pela imagem mental; nós temos de saber que a imagem mental é uma coisa e o objeto é outra. O objeto tem muito mais características, muito mais traços do que aquele que nós conservamos na nossa representação mental.
Todo sentido do fato concreto --- que eu tenho insistido tanto em desenvolver entre vocês --- é justamente esse pressentimento [0:20] do que existe para lá da nossa representação. Vocês lembram do exemplo do cachorro. O sujeito está andando pela rua e tem um cachorro deitado: o que ele vê do cachorro é simplesmente a forma visual e nada mais, mas ele sabe que aquele cachorro vai agir como cachorro. Então você tem você tem o círculo de latência, que não é percebido com os cinco sentidos, mas é antecipado. Na verdade, ele não é um pensamento que você faz, é uma reação instintiva que você tem de se preparar para qualquer resposta que o cachorro dê à sua presença. Se nós não tivéssemos essa capacidade, nós teríamos somente as percepções das formas visuais e estaríamos totalmente perdidos no espaço.
Vocês se lembram que, logo das primeiras aulas, eu dei o exemplo daquele teste que foi feito com as cartas2. O teste, para aqueles que não leram aquelas aulas, era o seguinte: era colocado quatro pilhas de cartas (duas vermelhas e duas azuis). A pilha de cartas vermelhas dava prêmios em dólares altos, mas também aplicava multas altas, ao passo que a pilha de cartas azuis dava prêmios e multas amenas. Com isso, observou-se que o número mínimo médio de cartas viradas até que o sujeito percebesse que a distribuição dos prêmios e multas não era aleatória era de cinquenta. Após tirar cinquenta cartas, a pessoa percebia que era mais vantajoso tirar as cartas das pilhas azuis. Ao mesmo tempo, conectava-se a palma da mão da pessoa a um eletrodo medidor de suor. E as medidas de suor começavam a aumentar quando a mão da pessoa se aproximava das pilhas vermelhas a partir da décima carta; a partir daí, havia uma tendência a pegar menos cartas das pilhas vermelhas e mais das azuis. Isto quer dizer que os indivíduos já tinham tomado a decisão de preferir as cartas das pilhas azuis quarenta jogadas antes de perceberem que tinham tomado esta decisão. A reação imediata e irrefletida estava no fundo da elaboração mental posterior e ela era mais certa.
Então esta percepção, instintiva e imediata, está por baixo de toda a percepção mais clara e mais consciente que nós temos. Se ela não existisse, a sua percepção seria inútil. O elo entre essa percepção imediata e a percepção mais consciente pode ser cortado --- e isso é fácil de fazer. É só você atravancar o cérebro do sujeito de informações, interpretações, esquemas etc. que bloqueia a percepção da situação imediata. Então, é isto que está acontecendo com as pessoas. Elas, por assim dizer, têm somente a formulação verbal e a representação esquemática correspondente. Mas nesta representação já não está presente aquela capacidade de antecipação, que é normal e instintiva no ser humano.
Então eles perderam completamente a noção do que se chama realidade: a realidade não está na nossa fala nem na nossa representação, mas está nos objetos que nos cercam, nas situações reais nas quais nós estamos vivendo e a qual nossos pensamentos se referem. Ela não está contida no nosso pensamento. Nenhuma representação humana é capaz de abarcar todos os detalhes e todos os acidentes que são necessários para compor o objeto real. Por exemplo: eu estou falando com pessoas agora, e cada uma delas tem um organismo que está funcionando o tempo todo; tem mil funções que estão em atividade. Eu não estou vendo nada disto mais eu sei que existe: tanto que se eu vejo que uma pessoa está ficando branca, pálida, tonta eu sei que algo se passou no organismo dela; o sujeito não precisa ver com o exame do laboratório para saber que aconteceu algo. Então esta antecipação é que garante para nós que as nossas representações têm algo a ver com a realidade.
Por outro lado, quanto mais abstrato é o assunto do qual você está falando --- quanto mais distante da experiência imediata --- também mais problemática é a relação da linguagem com a representação, e da representação com a realidade. Até chegar ao ponto em que o discurso adquire uma autonomia total, como acontece nesse do Luiz Ruffato.
Como é que o indivíduo não sabe que os resultados obtidos pelos estudantes, que estão com dez, doze anos agora, são resultados do ensino que eles receberam nos últimos seis ou sete anos, e não trinta anos atrás? Como é que o sujeito não sabe uma coisa desta? É porque ele simplesmente não pensou no que ele estava falando. Ele tem dois esquemas: "fracasso escolar brasileiro" e "a elite malvada exploradora". Ele junta os dois e forma uma frase. Então o que é isso? É um gerador de lero-lero, obviamente.
Então é evidente que este indivíduo não tem qualificação para ser um escritor, para representar a literatura brasileira. E, no entanto, ele é aplaudido não como um representante do oficialismo, mas ao contrário, como a intelectualidade independente e corajosa que se levanta contra o oficialismo. É alucinação completa.
Que raio de genocídio é este que diminui a população ao longo de quinhentos anos? Então é claro que o indivíduo conhece o sentido dicionarizado das palavras que ele está usando, mas elas não correspondem sequer a uma representação mental coerente. Isso porque não é possível você representar mentalmente um empreendimento genocida, que tenha prosseguido imperturbavelmente ao longo de quinhentos anos, sem você imaginar, ao mesmo tempo, a continuidade do governo que empreendeu isso. Se disséssemos "houve um genocídio no império chinês", então teriam dinastias que duraram quinhentos anos, e pode ser que elas fizeram o genocídio de certa comunidade que eles não gostavam, e durante quinhentos anos a perseguiram. Isso ainda é concebível. Mas no lugar onde o poder de estado não tem a menor continuidade, onde, na verdade, durante três séculos não houve nenhum poder de estado. No tempo das capitanias hereditárias, quem governava o Brasil? Ninguém governava o Brasil. Quando que o governo central adquiriu algum controle sobre o território nacional? Não adquiriu até hoje. Você vê parcelas imensas do território nacional onde o governo nunca esteve, não tem um agente do governo, não tem nada.
Eu me lembro que uma vez um sujeito me passou um documentário sobre a seita Meninos de Deus, Love Family, e me mostrou impresso um manual que eles tinham; manual de como entrar ilegalmente no Brasil. E daí eu, como estava querendo escrever um livro sobre estas coisas, continuei pesquisando e fui falar com um cara da Polícia Federal, e falei "olha, vocês não sabem disso? Vocês não têm um jeito de parar essa gente?" Ele disse "você sabe quantos funcionários eu tenho para verificar a fronteira? Cinco funcionários". Isso foi nos anos oitenta, e eu não acredito que esses cinco tenham aumentado muito. Então, um governo que tem um controle tão precário do próprio território, como é que ele pode empreender um genocídio contra inúmeras tribos de índios que ele nem sabe onde está!?
Quando eu leio uma palavra, eu procuro imediatamente o objeto que está por trás dela. Aliás, é por isso que não recomendo leitura dinâmica. Na leitura dinâmica você vai absorvendo as frases na esperança de que depois você vai recompor a representação, quando precisar dela. Mas, em geral, ela não faz isso: você reage ao discurso com outro discurso. Então não é bom. É melhor você ler mais devagar, mas tentando representar cada uma das coisas que você está lendo --- por mais difícil que isto seja. É claro que quanto mais abstrata a linguagem mais difícil será reconstruir a representação, mas você tem de fazer o esforço.
Eu sugiro o seguinte: quando vocês lerem esses termos filosóficos, produza imediatamente um exemplo concreto. Se você não chega no exemplo concreto, quer dizer que você não entendeu do que se trata. Por exemplo, eu acabei de usar a palavra psicologismo. O que é a palavra psicologismo? É você confundir um processo cognitivo com um processo psicológico. A psique é aquilo que está em nós, é a nossa atividade. Em toda a psicologia não se estuda nenhum objeto do conhecimento, só se estuda o processo cognitivo. Porém, a validade cognitiva deste processo está fora do alcance da psicologia; ela implica questões que se chamam lógica material ou teoria do conhecimento, e não existe nenhum meio psicológico de você investigar isso. Na hora que eu uso esse termo, tente lembrar ocasiões em que você cometeu um erro psicologista; em que você, examinando apenas a sua mente, concluiu algo sobre o objeto --- isso acontece conosco a toda hora, [0:30] mas esse é só um exemplo que eu estou dando. Mas você sempre tem de partir do termo abstrato para os objetos concretos. Claro que um termo abstrato possui milhares de objetos concretos possíveis, mas é para isto que serve exatamente o exemplo. O exemplo é aquilo que dá uma presença concreta a algo que está designado em uma noção abstrata. Por exemplo, as pessoas acreditam que se pode desenvolver a inteligência estudando lógica. Isto é impossível! Você pode estudar lógica e matemática pelo resto da sua vida que o seu QI não vai subir um único grau, porque a inteligência é a capacidade de apreender a realidade, não de criar construções abstratas. Construções abstratas, sem relação com a realidade, qualquer mentecapto é capaz de criar.
Então, só existe uma coisa que vai desenvolver sua inteligência: é o esforço de conhecer a realidade e compreender as situações reais que se lhe apresentam. Nem mesmo as situações escolares, porque toda situação escolar já é uma situação artificial, montada para que você aprenda a repeti-la. Por exemplo, testes de laboratório: você está ensinando química para os moleques e não quer que eles fiquem só nas fórmulas abstratas e vai exemplificar aquilo nas reações. Acontece que nas reações você não está lidando com objetos reais, objetos da vida; você está lidando com substâncias já depuradas e separadas para este fim, para fins de estudo químico. E você pode progredir muito no estudo da química continuando um idiota na vida em geral. Nenhum ensino especializado, de nada, pode realmente desenvolver a sua inteligência e para isso é que deveria existir a filosofia. Porém, a filosofia também se tornou um estudo especializado. Então, tem camaradas aí com Ph.D. em filosofia que são capazes de discursar horas sobre a filosofia de René Descartes, sobre o estruturalismo etc., mas se você der uma situação concreta para eles analisarem, eles não sabem.
Mais ainda: isto não é exigido do intelectual hoje em dia. O sujeito não é capaz de relacionar um fato com outro, não é capaz de pegar a substância do que realmente está se passando diante dele. Como a função de um intelectual público também não exige isto, o sujeito pode passar a vida inteira dando palpite errado, fazendo previsões que jamais se cumprem e ninguém vai reclamar. A capacidade de previsão é o teste da ciência. Eu estou fazendo previsão certa vai fazer vinte anos e isso não quer dizer nada. O acerto da previsão não é mais um teste do conhecimento do cara.
Então você veja que, ao longo dos últimos vinte anos, dos analistas políticos brasileiros, o único que fez previsão certa fui eu, o único, sempre. Eu não estou pedindo que me aplaudam por causa disso, mas não deveriam cobrar dos outros o acerto de previsões? Eu queria que pegassem o Arnaldo Jabor, Luis Fernando Veríssimo, Clovis Rossi que escreve na Folha de São Paulo, e perguntassem: "Mas como é? As coisas não aconteceram nada do jeito que vocês falaram, aconteceu outra coisa completamente diferente". Para que serve a previsão se não podemos nos orientar com base nela? Significa que fazer uma análise correta e prever o curso dos acontecimentos já não é exigível dos analistas políticos, sociológicos, econômicos etc. Então a análise começa a valer por si como se fosse uma obra literária, não precisa ter nada a ver com a realidade. E isso se tornou endêmico no país. Agora você imagina os diagnósticos que servem de base para discussões parlamentares e para elaboração de leis, que em seguida se tornarão obrigatórias e moldarão a vida das pessoas; aí você entrou na alucinação total.
Agora, quando as pessoas se acostumam com isto, aí elas se tornam facilmente manipuláveis por qualquer charlatão mais ousado que lhes imponham um slogan, um chavão, que elas vão continuar repetindo. Por exemplo, nenhum desses movimentos sociais que hoje existem --- o abortismo, o gayzismo, feminismo, cotas raciais, indigenismo, ecologismo etc. --- não há nenhum deles que não se baseie em um mito baseado em uma mentira inicial: você cria um símbolo e este símbolo --- a Susanne Langer dizia que o símbolo é a matriz de intelecções --- e na hora em que o símbolo entrou na sua cabeça ele cria as conexões, ele cria os silogismos. Um só símbolo contém alguns milhões de raciocínios que o ilustram de alguma maneira, sendo que você jamais precisa confrontar este símbolo com a realidade, ele produz o raciocínio por si mesmo. O símbolo existe para isso: é o hormônio da inteligência. Com um só símbolo você tem uma apreensão compacta de milhões de fatos possíveis. Mas é tudo apenas possível, não é a realidade. Quando você sabe usar o símbolo corretamente, você o usa como estimulante da sua imaginação, ou seja, o símbolo serve para você conceber hipóteses, mas não é para acreditar em todas as hipóteses.
Eu já expliquei esse método: você pega o símbolo, descasca as suas várias camadas de significado, as inúmeras coisas que ele pode significar --- que ele significa todas ao mesmo tempo --- e, destas, algumas serão verdadeiras, outras serão falsas e outras continuarão como hipóteses. Se você pega um verso de um poeta, por exemplo, ele pode querer dizer milhares de coisas. E é justamente por querer dizer milhares de coisas é que ele tem esse poder sugestivo, é por isso que mexe com a gente. Mas isso não quer dizer que tudo o que você pensa, tudo o que aquele símbolo lhe sugere, seja verdade. Então você tem de usar o símbolo como um estimulante inicial da imaginação.
A imaginação só conhece o mundo do possível, isto é, o mundo das hipóteses; tem pessoas que não têm capacidade de pensamento simbólico então elas não são capazes de conceber hipóteses. Esta é uma das deficiências assinaladas pelo Feuerstein na sua lista das vinte e oito. Então, se você não consegue conceber hipóteses, não deve continuar pensando, só vai continuar repetindo as mesmas coisas sempre. Porém, quando a atividade cognitiva pára na esfera simbólica, o possível para ela torna-se o real, a primeira hipótese que ela pensou se torna o real; quer dizer, a interpretação imediata do próprio símbolo leva o indivíduo a uma conclusão sobre a realidade externa, não sobre o símbolo. Isto quer dizer que todos os casos similares que evoquem para ele este símbolo serão interpretados da mesma maneira; então você pode criar coisas, como a violência antigay, condensada no símbolo do Matthew Shepard, que é o garoto que foi torturado barbaramente e morto por dois meninos. E aquilo ficou como símbolo da violência antigay antes que alguém saiba o que aconteceu realmente. Passam-se vinte anos e agora saiu o livro The Book of Matt: Hidden Truths About the Murder of Matthew Shepard, de Stephen Jimenez, um sujeito gay que ficou estudando o assunto durante treze anos e viu que não foi violência antigay coisa nenhuma, que um dos caras era amante do rapaz, um dos assassinos era amante do rapaz.
Isso quer dizer que o esquema do Matthew Shepard ficou valendo universalmente como símbolo da violência antigay; qualquer novo caso que apareça --- aparece um gay espancado --- você já associa imediatamente àquele símbolo e a interpretação já está dada. O símbolo, ao invés de ser o instrumento, o hormônio da inteligência, se tornou o paralisante da inteligência. E este é o modo de pensar de quase todo mundo, toda a população falante do Brasil --- que está abaixo do pensamento animal --- pensa assim. O animal, por mais adestrado que ele esteja em agir de certas maneiras (por exemplo, se aparece uma situação completamente diferente), ele sabe se adaptar, tem uma certa flexibilidade. Se não, essas espécies de animais não durariam três semanas, se não tivessem capacidade de aprendizado. Isso quer dizer que a capacidade falante, a capacidade linguística, [0:40] se tornou substitutiva da capacidade de aprendizado. Em cada situação nova, o indivíduo tem apenas a reação verbal de produzir novas frases que digam a mesma coisa. Então o que é isso? É o gerador de lero-lero mesmo, eu não estou brincando; é o automatismo mental.
Se você já é educado no socioconstrutivismo, então não é capaz de perceber sequer a diferença entre a estrutura da língua e a estrutura do seu pensamento, porque você é ensinado a estruturar a língua de acordo com o seu próprio pensamento; você vai criando a linguagem, por assim dizer. Então você não apreende a noção de que a língua é uma estrutura externa, de que a língua é um produto de cultura, de que já existe há milênios antes de você, que ela tem suas regras internas, tem seu modo de conectar palavras e significados etc., e que nada disso é invenção sua. E que, ao contrário: você vai de ter de aprendê-la, ou seja, vai ter de adaptar o seu pensamento à linguagem, e adaptar a linguagem ao seu pensamento. Mas, se o aprendizado da linguagem vai saindo naturalmente das construções que você faz, você nunca sequer vai perceber a língua como objeto, a língua como componente externo; e, portanto, você não será capaz de perceber o hiato entre falar e pensar. O simples fato de falar já virou o único modo de pensar a que você tem acesso, e isto é geral e endêmico no Brasil. Agora, você vem me falar "nós temos 70 mil homicídios por ano no Brasil. Nós temos falta de segurança pública, o sistema de saúde está ruim". Eu digo "eu tenho um problema aqui pior: falta o agente para resolver estas coisas". Não há pessoas qualificadas, e quando não há o agente, a ação não se perfaz.
Isto quer dizer que qualquer problema social que você me traga, eu vou dizer que é insolúvel, porque não tem os agentes. As pessoas dizem "nós temos de melhorar a educação". Elas estão loucas, porque quem vai melhorar a educação? Também falta o agente para isto. Porque o pessoal pensa assim: "Nós temos de resolver problemas sociais em bloco; então, se a educação está ruim, nós temos de educar o país inteiro". Mas para educar o país inteiro, você precisa de alguém que o eduque e essas pessoas faltam. A educação, por sua própria natureza, funciona como círculos concêntricos: um educa dez, que educam cem, que educam mil, que educam um milhão, e assim por diante. O problema número um é a educação dos agentes; você tem de ter meia dúzia de agentes preparados. E isto chama-se a educação da elite; não da elite no sentido econômico, evidentemente, mas a elite no sentido intelectual, no sentido das pessoas mais qualificadas. Isto eu dizendo também faz 30 anos, mas parece que as pessoas não ouvem. Elas acham que você educar a elite é elitismo. E o que é isto? É outro chavão, é outro engrama, por assim dizer, que entrou na cabeça dos caras, e se você viola esse sentimento igualitarista que está na base dessas reações públicas, as pessoas não conseguem pensar mais e não entendem do que você está falando. É o símbolo paralisante, claro.
Toda a elite falante e agente brasileira, em todos os setores da atividade pública (a ciência, a educação, a economia, a indústria, a saúde pública, a segurança pública), todos eles estão afetados disto. Então isto é um problema social monstruoso, e é claro que é o pior, o mais grave. Imagine a seguinte situação --- eu já dei esse exemplo há muitos anos: pegue aquele sujeito que, em primeiro lugar, está louco; em segundo lugar, está desempregado; em terceiro lugar, a mulher o abandonou; em quarto lugar, os vizinhos não o querem mais naquele lugar. Qual destes problemas você vai resolver primeiro? Se o cara não voltar a ter um pouquinho de sanidade, ele não vai poder resolver nenhum dos outros; portanto, pela ordem, primeiro, nós temos de cuidar da cabeça dele para que ele possa se tornar um agente capaz de tentar resolver os seus problemas, que são difíceis até para uma pessoa normal.
O problema mental brasileiro é o mais grave, mas é difícil você fazer compreender isso a pessoas que representam grupos de interesses e que sentem que os seus dramas, os seus problemas, as suas dores, são tão grandes que todo mundo tem de parar tudo para resolver o problema deles. Hoje em dia somente esses grupos de pressão têm voz na sociedade: se o sujeito é gay ele quer resolver o problema dos gays. E o resto? O resto da sociedade que se dane; a sociedade tem de se virar para resolver o problema deles, por mais traumático que isso seja para toda a sociedade. Você imagina, por exemplo, o indivíduo que acredita --- e muitos deles acreditam --- que a sua satisfação sexual, a sua liberdade de atender aos seus desejos sexuais, justifique que você modifique toda a sociedade por causa disso. É claro que é um louco. Ou a mulher que quer abortar; quer dizer, porque eu estou grávida de um filho e não quero tê-lo, então você tem de mudar a cultura, a religião, os hábitos das pessoas, tudo tem de mudar para se adaptar à minha necessidade. É claro que é coisa de maluco, só que isso se tornou normal e obrigatório.
Continuando a leitura:
Já nem comento os palpiteiros enragés que, em explosões verbais de uma comicidade irresistível, aparecem a toda hora professando dar cabo do Olavo de Carvalho de uma vez por todas. Um deles, a quem eu tentava explicar que não é possível ter serviço públicos gratuitos e ao mesmo tempo "acabar com a desigualdade social", não parecia entender que um serviço público só é gratuito quando custeado por alguém que não é o seu beneficiário: a redução da desigualdade social distribui as despesas mais equitativamente entre todos e acaba automaticamente com a gratuidade. Numa situação idealizada, onde todos tivessem ganhos equivalentes, das duas uma: ou todos pagariam contribuições iguais para custear os serviços independentemente de usá-los ou não, ou cada um pagaria proporcionalmente aos serviços que recebesse. No primeiro caso estaria imediatamente instaurada a desigualdade entre os que pagam sem usar e os que usam sem pagar. No segundo, os serviços não seriam gratuitos de maneira alguma."
É o que acontece na China, por exemplo: você paga o serviço público, é descontado do seu salário. O serviço público só pode ser gratuito em uma hipótese: de que existe uma faixa da sociedade, que é muito mais rica do que as outras, e você tira dinheiro delas para custear o serviço que será dado a outros; esses outros não pagarão absolutamente nada, e estes aqui pagarão e não usarão nada. É uma besteira você dizer: "mas os ricos também podem usar o serviço público". Você conhece algum rico que quando fica doente vai ao SUS? Não vai. Ele paga pelos serviços médicos que ele recebe e paga pelos serviços médicos que outros recebem. É por isso que esses serviços são gratuitos para aqueles que o recebem. Se houver, diminui a desigualdade social, acaba o serviço público na mesma hora.
O sujeito que prega as duas coisas ao mesmo tempo não está representando mentalmente o que ele está falando. Não é que a coisa não bate com a realidade, os próprios conceitos não batem um com o outro. Eu não preciso examinar nenhuma sociedade em particular para saber que a gratuidade dos serviços públicos depende de que eles sejam pagos por alguém que não os recebe: um paga pelo outro, e é por isso que para esse segundo é gratuito. É uma coisa em que não precisa examinar esta ou aquela sociedade. Curiosamente, quando eu coloquei isso no Facebook, apareceu um monte de gente dizendo: "mas o PT...", "em tal país..." Mas espera aí: eu estou falando no nível meramente conceptual, estou fazendo uma equação matemática, que independe de quaisquer fatos. Se você tem o conceito de saúde, de serviços públicos gratuitos, e você tem o conceito de desigualdade social, você pode criar uma equação matemática entre os dois; e esta equação será constante, independentemente dos casos concretos. Então o que acontece? É o julgamento impulsivo baseado na falta de compreensão daquilo que está sendo discutido.
[0:50] Neste caso você tem, não só um afastamento da realidade, mas uma incapacidade de apreender a própria relação entre os conceitos que você está usando; quer dizer, está falhando no próprio nível mental da coisa, não tem uma referência cognitiva aos fatos. É a mesma coisa que na escola o professor fazer uma conta de maçãs e você diz que não são maçãs, são laranjas. Mas o que tem a ver? É um erro deste tipo, é uma confusão entre o concreto e o abstrato. Se estou usando conceitos abstratos, eles têm uma relação entre si que independem dos fatos, mas os fatos, na medida que eles se enquadrem nos referidos conceitos, terão que obedecer a mesma relação, não tem como escapar.
"Por mais que eu explicasse, analisasse e desenhasse essa equação simples, o sujeito, homem de formação universitária, continuou esperneando e jurando que eu era um adepto da injustiça social.
Só pode haver divergência de opiniões entre pessoas com nível similar de inteligência e conhecimento. Com mentecaptos, só o que existe é uma dificuldade de comunicação quase invencível."
E esta é a situação geral no Brasil. Com vinte anos de experiência jornalística --- como formador de opinião eu comecei em 1993 com o Nova Era e a Revolução Cultural, então estou completando vintes anos, antes fazia outra coisa, era apenas um funcionário de redação --- nunca confrontei alguém com quem eu tivesse uma divergência de opiniões, nunca aconteceu isto. Só aconteceu confronto com mentecapto que não entendia o que eu estava falando. Eu gostaria que houvesse divergência de opiniões; quem não gosta? Você discutir com um sujeito que pensa o contrário de você, mas é um sujeito igualmente inteligente, honesto, sincero, capacitado. É claro que os dois vão se beneficiar desta conversa, mas fora disso cai naquele caso que falava o Daniel Brilhante de Brito: "o sujeito me convidou para trocar umas ideias, mas eu não fui não, porque eu ia sair perdendo na troca. Eu ia dar um monte de ideias para ele e ele não ia me dar nada". É isto que tem acontecido.
É curioso e não deixa de ser significativo que os mesmos imbecis com quem eu tive esses confrontos achem que é uma questão de divergência de opiniões, porque isso os lisonjeia. Tem um rapaz universitário, aliás, que faz uns vídeos na internet e diz "se você é da esquerda, então você é favor de serviços públicos gratuitos, da diminuição da desigualdade social etc. E se você é da direita, você quer o elitismo etc." O sujeito está pedindo uma coisa impossível. Se você pegar países altamente avançados --- países na Europa, onde o salário mais baixo que tem é de US$ 3.500,00 ---, todo mundo custeia o serviço público, não tem nenhum serviço público que seja gratuito, todo mundo paga imposto, então nada é gratuito. Pode haver uma diferença de proporção, mas basicamente a equação se mantém, e se a desigualdade social diminuir mais ainda, mais ainda diminuirá a gratuidade dos serviços públicos.
Quando uma pessoa exige essas coisas, que são manifestamente impossíveis --- como Renato Janine Ribeiro, que escreveu aquele artigo onde ele diz que Karl Marx não queria um Estado mais forte, não queria Estado algum, isto é, queria a abolição do Estado; e, por outro lado, ele diz que Karl Marx queria a abolição da propriedade dos meios de produção, mas não a abolição da pequena propriedade particular. Mas como você pode querer estas duas coisas ao mesmo tempo? Por um lado, vai preservar a pequena propriedade particular, e por outro lado, não existirá Estado? Se a pequena propriedade particular é conservada, é porque há uma diferença entre a propriedade privada e a propriedade pública, portanto continua existindo o Estado. Mas como você pode querer estas duas coisas ao mesmo tempo? É porque você não consegue representar o conceito do qual está falando. Isso não se trata de examinar uma situação social específica, aqui ou ali, mas simplesmente de representar mentalmente o conceito. O cara não consegue fazer isto; e é um professor, um intelectual cuja opinião é ouvida, e é porque a opinião dessas pessoas é ouvida é que os nossos alunos tiram os últimos lugares, que tem 70 mil homicídios por ano e que tem 42 milhões de pessoas na fila para receber dinheiro do governo e que os caras acham que isso é uma vitória e não uma derrota.
Que problemas nós podemos resolver com estes agentes? Nós não podemos. Por isso eu digo que só existe um problema social no Brasil: é a inépcia da elite agente. O único sujeito que está tentando atacar este problema sou eu. Vocês são uma elite agente; muitos já estão agindo na sociedade e mostrando um poder extraordinário. Vocês viram o que fez aí o Felipe Moura Brasil? Ele virou o mercado brasileiro editorial de cabeça para baixo. Um cara. E foi formado com estas lições. Alguém que eu nunca vi, eu só conheço o Felipe Moura Brasil por internet; todo o ensinamento que recebeu foi por internet. E está funcionando. Quer saber a razão? Formar uma bela elite agente não é difícil, tanto não é difícil que eu estou fazendo. Se eu estou fazendo, então outro pode fazer também. Porém, existe uma série de condições para isso: a primeira condição é que a educação, mesmo que seja a distância, é uma relação pessoal, na qual o educador tem de assumir inteira responsabilidade pessoal pelo o que ele está fazendo. Você tem de educar as pessoas dentro dos seus corações; é uma presença humana real, é uma influência humana real, não é uma técnica que você está repetindo aqui. Se não há esta responsabilidade real, então a coisa simplesmente não funciona: entra por aqui e sai por ali.
Agora, no país em que os professores estão mais interessados em comer suas alunas, ou alunos, e os alunos estão mais interessados em tocar fogo no cabelo do professor ou matá-lo, não vai dar. Se não há uma relação humana, verdadeira, franca, honesta, baseada no amor ao próximo, a educação não é possível. É por isso que se tem professores que antigamente ganhavam muito menos do que os de hoje e que obtinham resultados melhores. Eu cheguei a ter dois ou três professores assim. Eu lembro que na escola eu só aprendia aquilo onde eu sentia a presença real do professor, quer dizer, o interesse profundo que o professor tinha por aquilo que estava falando contaminava a gente. Eu me lembro que eu aprendi latim e biologia, acho que praticamente foi só isso que eu aprendi, porque tinha esses dois professores que eram loucos por aquilo que eles estavam ensinando e eles queriam que a gente entendesse aquilo, eles queriam desesperadoramente. Então, funcionava, era só por isso que funcionava; não porque eles fossem "melhores professores" do que os outros, talvez não fossem.
O homem do latim, por exemplo, tinha uns óculos fundo de garrafa e não enxergava um palmo adiante do nariz, ele nem sabia se tinha alguém na classe, mas queria tanto que a gente entendesse aquilo que a gente acabava entendendo. O professor de biologia era um tipo absolutamente extravagante: ele se caracterizava porque a aula dele não tinha duração. Ele era o professor mais antigo do colégio --- então todo mudo tinha medo dele --- e começava a aula na hora em que bem entendia, começava com quarenta e cinco minutos de atraso, e terminava três ou quatro horas depois; os outros professores ficavam na porta esperando a sua vez para entrar e ninguém tinha coragem de interromper. Mas você via que ele tinha uma mentalidade de cientista mesmo, se interessava profundamente por aquilo, amava aquelas coisas e isso passava para a gente de algum modo. Eu não digo que fossem os melhores professores do mundo; depois eu tive outros muito melhores. Eu aprendi mais com o doutor Juan Alfredo César Müller do que com qualquer outra pessoa.
Mas eu vejo que essa relação não é possível hoje em dia, tudo na educação brasileira está montado para que isso não se estabeleça. Em primeiro lugar, existem professores demais: na nossa universidade você tem um professor para cada oito alunos; nenhum país do mundo tem isto. [1:00] É claro que não é por falta de professores. E se há professores demais, o salário deles vai baixar, evidentemente. Em segundo lugar, vocês estão prometendo muito mais educação do que são capazes de dar. Hoje no Brasil praticamente não há crianças fora da escola. O problema do analfabetismo oficial é quase nulo, mas o problema é que o professor é um analfabeto funcional. Onde quer que você olhe tem um problema e você não tem o agente qualificado para pensar a respeito. Então o problema não será resolvido. Acompanhando as discussões no parlamento você vê que aquilo é realmente um hospício. A realidade não tem vez ali. O mundo da política é até perdoável porque em grande parte ele é um teatro mesmo. Mas se em nenhum lugar na sociedade você tem um grupo de pessoas interessadas na realidade mesmo, então acabou. A universidade deveria ser este lugar, mas ela não é porque você não é convidado a isto jamais. Você é convidado na melhor das hipóteses a exercer certas atividades que estão dentro do programa. A curiosidade e o impulso intelectual efetivo não têm vez na universidade brasileira. Não tem vez em parte alguma. Eu duvido que tenha algum problema mais grave do que esse.
Antes de responder aqui as perguntas, eu queria responder as perguntas feitas por Facebook a respeito de uma observação que eu tinha feito, onde eu tinha dito que todo o conceito atual do ecumenismo na Igreja Católica reflete a influência de René Guénon e Frithjof Schuon. Eu uso o Facebook como uma espécie de diário filosófico, onde lanço uma anotação que ou resume alguma investigação que estou fazendo ou alguma investigação que gostaria de fazer no futuro. Isso é o máximo, não é uma expressão formal e acabada de uma conclusão. É um tema a ser desenvolvido posteriormente. Portanto, é claro que qualquer discussão a respeito é prematura. Cabe pedir esclarecimentos, evidentemente, mas eu mesmo não os tenho na hora. E como não poderia deixar de ser, alguém apareceu dizendo que o René Guénon era contra o ecumenismo. Muito bem, o que eu disse foi que René Guénon influenciou a Igreja Católica e influenciou o ecumenismo e não que foi influenciado por ele. Então me deixe explicar qual era a perspectiva aí no caso. Quem deu a expressão mais formal e acabada da concepção dos dois a este respeito foi Schuon no livro da Unidade Transcendente das Religiões. A unidade transcendente das religiões é uma teoria segundo a qual todas as grandes religiões do mundo se apoiam num esquema metafísico que é idêntico ou ao menos similar. Metafísica é a estrutura da realidade ou, de outro modo, é a estrutura das relações entre o possível e o impossível. É o esquema da possibilidade universal e das possibilidades menores que são viáveis dentro disso ou aquilo que Leibniz chamava os compossíveis. Eu acho que essa teoria é bastante verdadeira e que ela está bem provada; Whitall Perry, que era um colaborador bem próximo do Schuon, fez uma coletânea dos textos fundamentais das grandes tradições religiosas, chamada A Tresury of Traditional Wisdom, livro de mil e quinhentas páginas, onde ele demonstra realmente a convergência das grandes religiões nestes tópicos fundamentais. Acontece que a estrutura da realidade, ou a dimensão metafísica, é uma coisa fixa, uma coisa que não muda absolutamente. É natural que todas essas religiões sejam convergentes neste caso porque se não houvesse uma adaptação profunda entre elas e a estrutura da realidade em geral, elas não teriam podido fundar civilizações e durar milênios. Claro, você pode se basear numa metafísica falsa para criar uma escola filosófica ou criar um partido político, mas não para criar uma civilização. Assim, a durabilidade dessas grandes religiões mostra que não há um desacordo profundo entre elas e a estrutura da realidade cósmica e espiritual que nos rodeia.
Porém, acontece que esse lado metafísico ou essa noção da estrutura da realidade é só um dos componentes de uma religião. Fora disso existe a intervenção efetiva que essas religiões fazem na vida dos indivíduos, visando a encaminhá-las a um destino espiritual, que no caso cristão se chama a salvação da alma. René Guénon enfoca a salvação da alma usando um conceito que, à rigor, só é legítimo para o Islam, que é o conceito de esoterismo e exoterismo. Exoterismo, como indica o prefixo ex-, ou seja, para fora, é a religião pública que se destina a todos os seres humanos --- à comunidade inteira ---, que consiste numa série de práticas regulamentares que o indivíduo tem de seguir. Ao passo que o esoterismo seria o lado mais interior que não é obrigatório para todos, mas aqueles que se interessam se dedicam a isso. A origem disso aí no Islam é um grupo de companheiros de Maomé que além das cinco preces diárias e das obrigações regulamentares islâmicas, se dedicavam a fazer certas recitações e exercícios de concentração. Perguntaram a Maomé do que se tratava e ele disse que não era obrigatório, isso não foi Deus quem prescreveu, eles fazem porque eles querem e porque eles têm uma vocação a mais. Essa é a origem das tariqas, que são organizações esotéricas islâmicas, onde as práticas religiosas são vinte ou trinta vezes maiores do que são as do Islam popular. Isto quer dizer que no mundo islâmico existe uma diferenciação formal entre o esoterismo e o exoterismo. Isso não existe, por exemplo, no hinduísmo. Não existe uma fronteira nítida entre essas duas coisas. E no cristianismo também porque o Cristo afirma claramente que Ele nada ensinou em privado, tudo ele ensinou em público. Essa é uma frase que tem de ser guardada: não há um ensinamento cristão exclusivo e dedicado a uma elite espiritual, o ensino é exatamente o mesmo para todos. E aí surge uma discussão entre Guénon e Schuon, no qual, Guénon dizia que existia um primordialmente um esoterismo cristão, que ele foi perdido ao longo dos séculos e que só sobraram resíduos desse esoterismo cristão na companheiragem --- que é uma organização de iniciações de ofícios que existia durante a Idade Média --- e, em parte, na Maçonaria. E o Schuon, ao contrário, dizia o seguinte: não, os sacramentos cristãos são a iniciação cristã; eles são o esoterismo cristão porque não há uma fronteira no cristianismo entre esoterismo e exoterismo. Existe apenas a profundidade maior ou menor do proveito que o sujeito tira do sacramento. Mas o rito será o mesmo. O rito cristão será iniciático ou não dependendo do proveito que o sujeito tire. Aí usando também o conceito do próprio Guénon de iniciação virtual. O indivíduo recebeu uma iniciação, portanto, ele tem acesso a determinadas realidades do mundo espiritual, mas não quer dizer que ele vai efetivar esse acesso imediatamente; depende do desenvolvimento posterior dele. A iniciação destina-se apenas a abrir uma possibilidade espiritual que cabe ao indivíduo realizar ou não. Usando este conceito guenoniano da iniciação virtual, Schuon dizia que os sacramentos cristãos são iniciáticos; eles são dados a todos e terão um proveito exotérico ou esotérico dependendo da profundidade da penetração individual nos mistérios espirituais que estão ali consubstanciados, por assim dizer.
[1:10] Guénon ficou louco da vida e rompeu relações com Schuon por causa deste ponto. Hoje nós vemos pelo Catecismo de João Paulo II que este assume integralmente a visão schuoniana. No Catecismo de João Paulo II está dito que os sacramentos são a iniciação cristã. João Paulo II não era nenhum trouxa para usar a palavra iniciação sem nem mais nem menos, sem ter consciência de que este tema da iniciação tinha sido posto em discussão no ambiente intelectual europeu por René Guénon. Hoje sabemos que a influência de René Guénon no meio cultural europeu, e especificamente francês, é enormemente maior do que as pessoas imaginam porque geralmente não é citado na mídia cultural mais popular. Mas um sujeito chamado Xavier Accart que teve a pachorra de mais de dez anos investigar todas as citações e menções diretas ou indiretas a René Guénon e, no fim, chegou à conclusão de que não há um escritor francês desde os anos 1930 que não fosse influenciado por René Guénon. Nenhum. Não há um estudo similar disso em outros países, exceto na Romênia. Na Romênia esse estudo não é necessário fazer porque todos os intelectuais romenos receberam diretamente a influência de Mircea Eliade, que recomendava o estudo do René Guénon inteiro e pedia, ao mesmo tempo, que nunca citassem Guénon. Todos têm consciência dessa influência guenoniana; estão todos dentro da problemática guenoniana e isso não é um segredo para ninguém. Ao passo que em outro lugar, sem ser um segredo, é uma coisa que todo mundo sabe, mas não se fala muito.
Quando você vai fazer as contas, verá que provavelmente não houve outro escritor mais influente no mundo nos últimos setenta anos. A influência dele começa pelo meio católico, quando ele começa a escrever na revista da Ordem Carmelita que se chamava Régnerait, "reinará", alcançando uma platéia católica enorme. Essa influência vai se disseminando pouco a pouco e, de repente, você vê no Concílio Vaticano II a Igreja se abrindo ao diálogo às outras religiões. Por que ela deveria fazer isto? Se na época, 1962, por exemplo, não havia esse fenômeno da presença islâmica maciça. Mas havia já uma discussão de tipo orientalista, uma penetração de culturas orientais feita evidentemente em dois níveis. No nível intelectual mais alto, pelo pessoal influenciado por René Guénon; no nível mais baixo e popular, pela turminha da Nova Era. É evidente que, dessas duas influências, a que pode ter chegado aos papas e ao Concílio não foi a da Nova Era, certamente.
Aluno: Alguma religião fez alguma reivindicação?
Ninguém fez exigência nenhuma. Há a presença das culturas orientais no nível popular através da Nova Era --- inclusive no cinema começa aparecer. As artes marciais orientais começam a aparecer no cinema na década de 1960. Antigamente, até 1960, todas as brigas eram feitas na base da luta de boxe leal ou desleal. A partir disso começa a entrar as artes marciais orientais, que agora são a presença geral. E assim por diante. Milhares de símbolos orientais começam a aparecer. O I Ching se dissemina muito e todo mundo começa a ler a sorte nele. Toda a penetração das religiões orientais só chega ao Brasil, é claro, através da influência da Nova Era. O pessoal que tinha lido Guénon e Schuon era meia dúzia. Eu lembro-me que no fim da década de 1970 e início da década de 1980, eu fui convidado por Jacob Pinheiro Goldberg e Ricardo Mauro Gonçalves, que eram ambos professores da USP, para um debate sobre essa questão das religiões. Só os dois sabiam alguma coisa a esse respeito e o restante do pessoal da USP sabia de coisa alguma. Citações de Guénon no Brasil só havia de Fernando Guedes Galvão, que era o tradutor de René Guénon e havia alguma menção no livro do Inácio da Silva Telles que era um homem brilhante --- amigo meu --- professor da Faculdade de Direito, mas que era um tipo não só esotérico como também absolutamente extravagante. Era o homem mais original que tinha no Brasil; era considerado um tipo exótico. Ele também era um grande apreciador de Julius Evola e estava perturbado havia muito anos. Ele como leitor de Evola queria visitar a casa onde morou Julius Evola, que constava ser um museu. Julius Evola tinha morrido fazia, aproximadamente, cinco anos, e fizeram na casa dele um museu. Telles telefonou para o museu, atendeu uma pessoa e disse que era Julius Evola. Todos os jornais tinham anunciado a morte do Julius Evola. Inácio ficou sem saber o que fazer, foi até o museu e lá estava Julius Evola; até conversou com ele. Inácio dizia que nunca mais tinha sido o mesmo desde aquele dia, que nunca entendeu o que aconteceu. Eu também entendi muito menos. Julius Evola era realmente outro caso.
Mas voltando, um autor que realmente discutia essa coisa tradicionalista era Inácio. Para os outros, aquilo era um enigma total, algo que nem existia. A idéia de um diálogo com outras religiões só pode ter surgido por essa via, não há outra pela qual pôde ter surgido. Você não vai dizer que os papas e os concílios estavam assim preocupados com a Nova Era. Não é possível que uma influência de nível tão baixo os tenha afetado de alguma maneira. Por outro lado, é impossível que eles não conhecessem as obras do Guénon por causa da longa polêmica que houve entre Guénon e o Cardeal Jean Daniélou.
O papa Paulo VI já tinha usado a expressão iniciação cristã que depois é consagrada no Catecismo da Igreja Católica. Isso é a mesma coisa que dizer que a Igreja Católica tomou partido nessa discussão entre Guénon e Schuon. Eu acho que Schuon tinha cem por centro de razão neste caso e que Guénon estava insistindo numa coisa impossível. É um tipo de obstinação maníaca porque ele disse que houve um ensinamento secreto de Jesus. Primeiro, ele está desmentindo o que o próprio Jesus falou; e segundo, se esse ensinamento permanecesse tão secreto durante dezoito ou, pelo menos, treze séculos para reaparecer só na companheiragem ou na maçonaria, aí já começa a virar teoria da conspiração. O fato é que ao colocar os sacramentos cristãos como iniciáticos, Schuon fazia a noção de tradição de Guénon perder oitenta por cento da sua força --- porque o Guénon dizia que o que há no Ocidente é o exoterismo e nós estamos vimos do Oriente com a parte superior, com a parte esotérica que vai dar o verdadeiro sentido espiritual do que vocês estão fazendo e, sem destruir a sua tradição religiosa, vai colocar uma cúpula nela, por assim dizer. Acontece que essa cúpula é dada pelos ritos iniciáticos que só os islâmicos tinham, praticamente dados só nas tariqas. Então é como se a Igreja Católica que se conservasse exatamente como estava com uma cúpula islâmica em cima. Eles eram nominalmente contra o ecumenismo pela seguinte razão: Guénon dizia que as tradições esotéricas não são misturáveis --- tem cada uma a sua integridade e devem ser aceitas como estão. Você não pode participar de duas ao mesmo tempo, não pode misturá-las e que tem de ser mantidas na sua pureza. É só no topo da realização espiritual que elas convergiam --- no sentido que falava Ibn Arabi, quando ele diz que o coração dele é ao mesmo tempo católico, budista, hinduísta, pois estava tudo convergindo ali no sentido da frase de Theilhard de Chardin: "tudo o que sobe, converge".
[1:20] Isso quer dizer que no topo as religiões seriam todas a mesma; porém, acontece uma outra distinção: o exoterismo, segundo Guénon, fornece somente algo que é a salvação da alma, porém, acima da salvação existem graus superiores de penetração que já são a realização da unidade suprema --- a transfiguração do indivíduo no próprio Deus. Você pode procurar qualquer menção a isso na tradição católica interna e não tem nada --- eu acho que pelo menos Nossa Senhora teria nos avisado disso.
É claro que se admite que no paraíso existem graus maiores ou menores de proximidade em relação à Deus. Por exemplo, se eu for salvo, como espero ser, eu certamente não serei colocado na mesma arquibancada de São João da Cruz ou São Francisco de Sales, deve ter outro lugar; eles têm a visão de Deus --- eu espero que eu possa ver Deus de vez em quando ---, eles O vêem o tempo todo. É claro que existe esta gradação no paraíso, porém não se menciona que não há a distinção formal do esoterismo e do exoterismo, portanto não há distinção formal entre a aquisição da salvação da alma e a garantia de um lugar mais elevado no paraíso. Na Igreja Católica, embora Cristo diga que todos devamos nos esforçar para ser perfeitos, Ele não está prometendo nada além da salvação.
O conceito de ecumenismo tem evoluído por meio de três etapas importantes. Primeira: o Concílio Vaticano II. Segunda: os encontros em Assis, já com João Paulo II, no qual o próprio João Paulo II participa de ritos de outras religiões. Terceira: as declarações do Papa Francisco que, praticamente, está dizendo que as outras religiões abrem caminho para a salvação. Isso é óbvio que é uma influência da unidade transcendente das religiões, não pode ser outra coisa --- a Nova Era é que não pode ser. O que não quer dizer que o pessoal tradicionalista do Guénon ou Schuon vá, por sua vez, subscrevê-la. É uma influência unilateral que atinge o Concílio, os Papas etc., mas que não retroage sobre eles, eles não estão comprometidos por isto.
Por outro lado, o que não se pode ignorar, de maneira alguma, é que, quando aparecem as obras de René Guénon, elas estavam tão imensamente acima de todo o diálogo europeu e as análises dele iam a tal profundidade que não havia o que responder, não havia contra-argumentos. Até as tentativas do cardeal Jean Daniélou para responder a Guénon me parece, às vezes, um pouco bobas --- ele aceita em grande parte Guénon, tendo-lhe grande admiração, mas ele diverge na questão do simbolismo da cruz, no qual Guénon vê um simbolismo universal e ele diz que a cruz reflete antes um acontecimento histórico. É uma objeção absurda porque Guénon já tinha dito que nada pode acontecer na história que já não esteja antecipado em símbolos eternos, por assim dizer. Então, é uma coisa que não responde nada.
Aluno: Você acha que é possível haver uma confusão quanto à identidade de René Guénon? Esses interlocutores não sabiam exatamente com quem estavam mexendo?
Olavo: Sim, certamente, porque Guénon se apresenta como um representante da tradição oriental. Ele diz: "nada do que estou dizendo é opinião minha, eu recebi isso tudo de representantes qualificados das tradições orientais (especialmente islâmica e hinduísta, portanto são gurus e sheikhs), estou apenas vendendo o peixe pelo preço que comprei e não é uma concepção minha, são concepções tradicionais que, na verdade, estão no fundo de todas as tradições religiosas de maneira mais ou menos idênticas, às vezes mais claras, às vezes menos claras, mas estão lá"; e estão mesmo, a concepção metafísica em todas as religiões é a mesma. Se há alguma diferença específica é a diferença da ação de Deus no mundo. Você ter as mesmas concepções metafísicas não quer dizer que Deus esteja agindo através de você das mesmas maneiras e nos mesmos lugares. A única maneira de diferenciar isto é através da ação pessoal e direta de Deus no mundo, ou seja, através dos milagres --- não tem outra pista para você perceber uma diferença.
É claro que toda obra de René Guénon é uma mensagem espiritual de uma importância extraordinária e transmitida desde uma altura que as pessoas não pegavam, quer dizer, ele estava falando realmente com autoridade. Esse corpo de doutrinas metafísicas que estão por baixo de todas as religiões, ele, de fato, tem uma autoridade sobre elas; quem é capaz de expressar isso adquire, instantaneamente, uma autoridade extraordinária. Porém, essa não foi a única mensagem importante desse tipo que veio no século XX, você tem a mensagem de Fátima que foi dada não por um representante das tradições, mas por Nossa Senhora pessoalmente. Então, confrontando a intervenção de René Guénon com a intervenção de Nossa Senhora só posso explicar essas coisas de um jeito: vendo a debilitação da Igreja Católica, a elite islâmica percebeu a possibilidade de dominá-la por cima sem remexer em baixo, sem mudar nada em baixo e ao contrário, até defendendo tudo que havia ali de ortodoxo, de tradicional etc.; e eu comprovei pessoalmente a intervenção do pessoal da tariqa do Schuon dentro da Igreja Católica através do pessoal do Monsenhor Lefebvre. Mas nesses casos, a gente nunca tem os fatos inteiros, só tem fragmentos de fatos, nós estamos ali como arqueólogos que descobrem um pedaço de um pote e deste pedaço tem de deduzir a estrutura social inteira --- não há outro método para isso. Se você esperar provas cabais, você vai esperar 200, 300 anos e às vezes não vai obter. Por exemplo, a história de certas sociedades iniciáticas: decorridos 300 ou 400 anos, ainda é reconstituída na base de fragmentos (você não tem os documentos de tudo). Mas, no caso, como se trata de você tomar uma atitude pessoal, "o que eu vou fazer?", você não precisa ter a prova inteira, basta um indício suficiente para que você razoavelmente se posicione perante essas coisas.
É claro que daí entendi finalmente a obra de René Guénon como uma intervenção, porque o Guénon no livro Oriente e Ocidente diz que o Ocidente só tem três saídas. Primeira: o caos geral da degradação completa. Segunda: a restauração interior da Igreja Católica. Terceira: a intervenção oriental. Quando o Guénon se transfere para o Egito e se integra totalmente na tariqa sob a direção do sheikh Elish El-Kebir, está na cara que a segunda opção estava excluída, quer dizer, a Igreja Católica não vai se restaurar. Então sobra a intervenção oriental. É justamente a partir daí, com a vinda do Schuon para a Europa, onde ele desembarca dizendo "eu vou islamizar a Europa", que começa a conquista da elite intelectual européia pelas tariqas, que é um processo de uma dimensão que você não pode nem imaginar --- por exemplo, na Universidade de Paris, metade dos professores já estão nas tariqas e você não sabe. O processo da conquista intelectual do Ocidente já está em curso há muito tempo e é exatamente isto que abre a possibilidade para uma ocupação também por baixo --- nesse processo sempre tem a ação por cima e a ação por baixo a qual deriva da primeira e não ao contrário. Estamos em pleno processo de ocupação intelectual do Ocidente que abre as portas para a ocupação política, econômica etc.
Nos EUA você já não [1:30] concebe, por exemplo, o tamanho da influência da Casa Real da Arábia Saudita na mídia, eles são os acionistas principais das grandes empresas de mídia aqui e é por isso que estas empresas já não usam os termos "terrorismo islâmico" e muitas notícias que dizem respeito a isso são simplesmente suprimidas, só circulam pela internet etc. Então, você tem uma ocupação por alto e por baixo ao mesmo tempo e, evidentemente, o grande operador dessa tradição foi Guénon auxiliado por Schuon. Acontece que Schuon, com o negócio dos sacramentos cristãos, abriu uma possibilidade que é a da Igreja Católica dizer: "nós não precisamos de nada disso, nós temos a linhagem inteira da escalada espiritual nos nossos simples sacramentos e vocês estão nos vendendo algo que nós já temos". Acontece que ninguém na Igreja Católica se tocou disso e ao contrário, a tendência é cada vez mais abrir-se para as outras religiões, o orientalismo etc., e com o presente Papa isto está acontecendo. De modo que essa elite da Igreja Católica abdicou da sua função e de explorar a possibilidade que estava nas mãos dela. Outra possibilidade que se abre ao mesmo tempo é a da ocupação da Igreja Católica pela Igreja Ortodoxa, que é o plano de Vladimir Putin e do Império Eurasiano --- quer dizer: "já que os católicos não se levantam, já que eles não assumem a arma que tem, nós vamos e tomamos deles" ---, restaurar o cristianismo sob a hegemonia da Igreja Russa. Então, você tem estes dois projetos em ação ao mesmo tempo, sem contar que também existe o esforço do projeto da elite ocidental, que é a de transformar a Igreja Católica numa espécie de supermercado da unidade das religiões --- você tem uma religião universal que é uma mistura de todas elas como no templo ecumênico da ONU, templo que serve para ritos cristãos, budistas, hinduístas etc. E a Igreja Católica cercada por isto aí, eu acho que dentro dela ninguém está entendendo direito o que está acontecendo, mas eu também não garanto que eu esteja enxergando tudo. Mas, sem dúvida, essa é a linha de investigação que tem de ser seguida.
Eu não recomendo aos meus alunos que saiam lendo René Guénon, Schuon etc. a não ser que já tenham uma imensa retaguarda filosófica, teológica etc. para entrar nisso, mas como as questões aparecem a todo momento --- e normalmente o que eu desejaria é que elas aparecessem ---, eu tive de dar esta explicação, pelo menos para acalmar um pouco as pessoas. Eu acho que esse processo é compreensível e vai se tornar cada vez mais claro para nós com o decorrer do tempo e à medida que eu for entendendo mais, vou passando-o para vocês.
Eu não vou responder às perguntas hoje, tem algumas muito interessantes que eu vou deixar para a semana que vem. Só quero fazer uma nota especialmente para o Pedro Henrique: sua mensagem não é para ser discutida aqui, podemos conversar pessoalmente depois, talvez pelo Skype, se tiver tempo, mas eu acho que você deveria entrar em contato com o Padre Paulo Ricardo e conversar a respeito dessas coisas.
Só para não dizer que não respondi à nenhuma pergunta, está aqui a do Carlos Lopes.
Aluno: Que tal um curso sobre o marxismo e a mentalidade revolucionária?
Olavo: Eu espero que esse Carlos Lopes não seja o mesmo que está vendendo os meus cursos ilegalmente por aí. Para que você quer que eu dê um curso sobre marxismo e mentalidade revolucionária? É para você vender ou é porque você tem curiosidade a respeito? Se for por curiosidade e supondo-se que possa haver dois Carlos Lopes ou que o Carlos Lopes tenha duas personalidades --- uma que é a do picareta que vende os meus cursos e outra que é a do aluno que assiste seriamente às minhas aulas ---, um curso sobre isso seria extremamente interessante, mas ele pode facilmente ser inserido dentro deste mesmo curso se nós pegarmos uns três ou quatro meses para tratar deste assunto. Certamente para mim, me ajudaria muito porque eu juntei tanto material sobre mentalidade revolucionária que eu não consegui escrever um livro, pois os pedaços foram ficando tão grandes que eu estou publicando-os separados, vai ser publicado o livro do Descartes (Visões de Descartes: Entre o Gênio Mal e o Espírito da Verdade), o livro do Maquiavel já foi publicado (Maquiavel ou a Confusão Demoníaca) e serão publicados outros livros que são fragmentos da mentalidade revolucionária. Então, dar um curso sobre isto seria uma maneira de juntar todo esse material e colocá-lo em ordem.
Transcrição: Cláudia Makia, Charles Santos, Tamas Souza, Evandro Santos de Albuquerque
Revisão: Éricson Rojahn
Footnotes
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Artigo em http://www.olavodecarvalho.org/o-idiota-em-sentido-estrito/ ↩
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Exposto na aula 15. ↩