Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 221
21 de setembro de 2013
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Eu queria continuar hoje com uma prévia do curso Sociologia da Filosofia, que pretendo dar. O que me inspirou a dar este curso foi o livro do Randall Collins, chamado The Sociology of Philosophies. Como o próprio título indica, e como eu faço questão de diferenciar pelo meu título Sociologia da Filosofia, o trabalho dele é muito bom, mas ele enfoca a sua atenção mais na convivência entre os grupos de filósofos e na posição dos filósofos como um grupo na sociedade em geral. É claro que esse é um trabalho muito importante, mas eu achei que precisava fazer outra coisa para completá-lo, que é a sociologia da filosofia enquanto tal ou de cada filosofia em particular. Quer dizer, investigar não a filosofia como um produto que está pronto e que entra no debate e no mercado, e que interage com outras filosofias e exerce a sua influência histórica, mas investigar qual é a raiz sociológica de cada filosofia em particular; ou seja, em que medida o conteúdo e a orientação de uma filosofia em particular é influenciado pela posição social daquele filósofo desde o seu nascimento, portanto, muito antes de ele ter uma filosofia pronta. A filosofia não surge do nada, ela sempre tem uma origem numa situação local e pessoal muito determinada, e é justamente essa parte que o Randall Collins não examinou (ou pelo menos não examinou suficientemente) no seu livro, que tinha um objetivo completamente diferente.
Ali tomarei alguns exemplos de filósofos em particular e analisarei a sua posição na sociedade --- desde a família e da classe social em que ele nasceu ---, e vamos ver o quanto desses elementos sociologicamente descritíveis funcionaram para eles; seja como motivos, como inspirações, como obstáculos, seja como problemas ou como parte da sua temática e do seu objeto de meditação, e assim por diante. É claro que não pretendo responder à pergunta de qual é a determinação social do conteúdo das filosofias, porque eu acho essa questão absolutamente inútil e não é disso que se trata a minha investigação. O que eu quero é compreender a situação social de cada filósofo em particular e a relação que ela tem com a filosofia, não a sua força determinante. Mas tão logo essa questão surgiu na minha cabeça, já há bastante tempo, aparece em decorrência dela a questão metodológica: o que teríamos de observar para descrever a situação de um indivíduo na sociedade, desde a sua infância, de tal modo que a sua filosofia vá surgindo da sua vida, da sua busca de si mesmo, da sua auto-realização, aos poucos; quais são os aspectos, quais são os ângulos pelos quais nós teríamos de encarar essa vida, a vida desta consciência de modo a poder descrever a situação social e a elaboração que o indivíduo considerado fez a partir dela.
Eu não acredito que possa haver outro método melhor senão começar a examinar dessa forma --- e isso é uma coisa que todo estudo biográfico deveria levar em conta, pois são elementos sem os quais toda a sociologia se tornaria completamente oca. Esses ângulos pelos quais nós vamos examinar devem corresponder estruturalmente à situação objetiva na qual o indivíduo se encontra. Dito de outro modo, nós poderíamos perguntar quais são os determinantes estruturais de toda a vida humana no planeta terra, ou seja, quais são as condições dentro das quais o indivíduo vive desde o instante em que nasce; aliás, até durante a gestação ele já estava dentro delas. Ou seja, qual é o quadro de referência mais geral, universal e onipresente (presente para todos os seres humanos, invariavelmente), e cuja listagem e descrição permitirá, então, uma análise melhor e mais exata do que seria cada situação social em especial? As distintas situações sociais que nós podemos abordar variam em função de um quadro de referência que permanece estável e o mesmo, ou seja, a diferença surge de um fundo de identidade, pois aquilo que não tem identidade alguma, que não tem semelhança alguma, não pode também diferir por ser totalmente heterogêneo. Por exemplo, nós não podemos perguntar como diferem uma equação de segundo grau e uma banana. Não é possível nenhuma comparação e, portanto, nenhuma diferenciação tem sentido. A diferenciação é possível sob um fundo de identidade assim como a percepção de toda mudança depende de um fundo de permanência, porque se tudo mudasse ao mesmo tempo, a mudança se tornaria absolutamente imperceptível e, aliás, inviável. No caso de um sujeito doente, por exemplo, é necessário que ele conserve a sua identidade durante a doença, senão não saberemos que quem está doente é ele e não o vizinho. O intuito da investigação é saber como descrever a situação do homem no planeta terra da maneira mais abrangente possível, de tal modo que depois as distintas situações sociais e históricas possam se diferenciar dentro desse quadro. E usando os mesmos critérios que nós usamos para descrever esse quadro, usaremos para diferenciar as distintas situações sociais e históricas.
Eu fiz aqui uma lista do que me parecem ser esses elementos determinantes do ser humano na vida terrestre, sem que essa lista pretenda, por enquanto, ter uma ordem hierárquica; quer dizer, eu não sei exatamente quais são, dessas várias condições, as principais e quais são as derivadas e, portanto, também não sei se alguns dos elementos que eu listei poderiam ser reduzidos a outros, de alguma maneira. Mas se existe um que predomina sobre todos é a famosa presença total, do Louis Lavelle. Se o indivíduo não está presente a um mundo que está presente a ele, então a história dele nem começou, ele não existe neste planeta ou ele só existe como um corpo sem nenhum elemento de consciência, então não é possível contar a consciência dele. Eu não posso contar, por exemplo, a experiência que uma pedra teve na terra, embora ela esteja fisicamente presente. A presença total de que fala Louis Lavelle --- que é a presença do eu ante um mundo que também está, simultaneamente, presente a ele ---, como ele mesmo diz, é a primeira e a mais universal das experiências e eu não vejo como divergir disso. É claro que essa presença é anterior à própria distinção de sujeito e objeto, porque num primeiro momento ela não implica nenhuma diferenciação entre aquilo que está em mim e aquilo que está no mundo; as coisas aparecem todas misturadas e a distinção só vem aos poucos. Também essa distinção, até do ponto de vista físico, é meio problemática. Por exemplo, quando comemos, um elemento do mundo exterior se incorpora ao nosso organismo; uma parte contribui para estruturar o nosso organismo por dentro e outra parte é expelida. Então nesse ponto, que é um dos dados mais elementares, já vemos que a distinção entre o interno e o externo não é muito clara, que ela é antes uma distinção funcional do que uma coisa estritamente ontológica --- o negócio de Descartes: existe aqui um ser que é constituído totalmente de subjetividade, ou seja, da capacidade de falar para si mesmo, e lá outro ser que existe sob a forma de uma presença física marcada pela extensão, pelo número. Essa distinção ontológica absolutamente não existe, mesmo porque a minha própria consciência também é marcada pelo número, pelo menos. Não se pode dizer que a consciência tenha uma extensão, porém ela tem um número, uma quantidade. Porque a consciência não é contínua, ela é descontínua; você não está consciente o tempo todo e não está consciente na mesma medida. Por exemplo, agora estou aqui falando para vocês e estou consciente do que estou falando, de que vocês estão aí e de que há uma sala em volta; eu não estou prestando atenção na sala, mas sei que ela está aí. Então há uma diferença de intensidade entre essas duas faixas de consciência, uma que está no foco e outra que está em volta. Nisso aí já entra o elemento quantitativo na própria estrutura da consciência. E se esse elemento de quantidade é o que caracteriza o mundo exterior, então nesse sentido eu teria de dizer que a minha consciência tem algo de exterior. Então essa distinção não é uma diferença de substâncias --- "existe aqui uma substância pensante e lá uma substância extensa", como dizia Descartes; essa distinção, tomada assim, é absolutamente [0:10] impossível. Mas alguma distinção existe, e essa distinção vai se elaborando sobre o fundo da presença total tal como a descreve o Louis Lavelle, de modo que não precisamos voltar a este tema.
Dito isso, dentro dessa presença total, e como manifestação da presença total que chega até a nossa consciência, existem vários elementos que estão ali que não são elimináveis, que são determinantes objetivos da nossa presença no mundo e que constituem o quadro geral dentro do qual as diferentes biografias humanas e as diferentes situações histórico-sociais podem ser diferenciadas. Por exemplo, desde o primeiro momento da nossa existência aparece para nós a distinção entre signo e coisa. Se não houvesse signo de nada, também não existiria consciência humana. E se as várias coisas existentes não tivessem a capacidade de funcionar como signos umas das outras, também nada seria possível e não haveria uma história para ser contada. A distinção e a relação de signo e coisa é um elemento que é constante na nossa experiência desde o início. E as relações entre signos e coisas também são muito variáveis, porque algo que é signo sob um aspecto pode também ser coisa sob outro aspecto. Até uma palavra: a palavra é um som, ou um grafismo, portanto ela é alguma coisa, e essa coisa indica para nós alguma outra que não é ela, mas às vezes é ela própria. Um exemplo é se eu escrevo a palavra "palavra"; ela indica a palavra em geral e ela é, ao mesmo tempo, uma palavra, portanto ela é uma coisa da espécie mesma que ela designa. No outro extremo nós temos signos que não designam absolutamente nada, como, por exemplo, a palavra "nada" --- ou seja, a coisa que ela representa é uma ausência de coisa. Então temos aí toda uma escala em que o signo é a coisa, até um signo que não pode ter uma coisa a que se referir. Tudo isso se impõe para nós como uma situação objetiva da qual não podemos fugir. Isso quer dizer que não há nenhuma interação possível entre o ser humano e o seu meio físico e humano/social sem esta distinção e a relação entre signo e coisa; não há escapatória.
Quer dizer que quando vamos descrever uma situação humana qualquer --- seja uma situação pessoal, histórica, social etc. --- sempre entra isso aqui. Por exemplo, quando dizemos que fulano conheceu ou tomou consciência de tal ou qual coisa, ele tomou consciência dessa coisa através da presença dela ou através de um signo dela? Isso é uma diferença absolutamente fundamental. Posso dizer, por exemplo, que Aristóteles conhece o pensamento de Aristóteles pela sua própria experiência direta, quer dizer, esses pensamentos para ele não são um signo, mas uma coisa, embora essa coisa se constitua de signos que ele pensou. Mas para ele foi uma experiência real e direta; não dizemos "isso é uma coisa", mas nós a conhecemos através de signos. E na hora em que deciframos esses signos construímos para nós uma outra coisa que é o nosso próprio pensamento, o qual é uma coisa, portanto é algo realmente vivido e não apenas significado, embora se constitua de significados. Então, este é o primeiro elemento a levar em conta em qualquer estudo desse tipo: como se equacionam e se relacionam, nessa situação, os signos e as coisas na consciência deste indivíduo, ao longo da sua história. Não há escapatória, não há a menor possibilidade de dizer algo sobre o indivíduo humano sem colocar isso em questão imediatamente.
Em segundo lugar, o fato de estarmos vivos e presentes no planeta terra nos submete, imediatamente, ao espaço e ao tempo. E com relação ao tempo, toda e qualquer temporalidade humana é vivida em duas dimensões ao mesmo tempo. A primeira é a dimensão linear --- "El tiempo que ni vuelve ni tropieza" (o tempo que não volta e não tropeça), acho que é uma poesia de Jorge Manrique. Isto é, é o irreversível. E, por outro lado, também não escapamos do aspecto cíclico de toda temporalidade. O número de ciclos que nós vivemos é imenso. Para começar, o ciclo dos dias e das noites; também o ciclo das estações, os ciclos econômicos etc. Nós estamos dentro de muitos ciclos, os quais não seriam perceptíveis se não houvesse, por outro lado, a linearidade para medi-los e para contrastá-los.
Por exemplo, quando dizemos que um dia dura 24 horas, a simples contagem de um a vinte e quatro significa que não há retorno. Passou das 4 horas, só serão 4 horas de novo no dia seguinte. Portanto, no dia seguinte, as 4 horas do dia seguinte são enfocadas dentro de uma perspectiva cíclica, mas as 4 horas de hoje, quando passam, elas não voltam mais, então estão dentro da temporalidade linear. Por outro lado, se a temporalidade fosse totalmente linear, nós não poderíamos reconhecê-la, porque haveria somente a diferença de minuto a minuto, de segundo a segundo, de maneira absolutamente irreversível, e não poderíamos sequer comparar este momento com um outro momento. Portanto, toda a vida humana, desde que ela começa, está colocada dentro desta dupla dimensão de tempo: a linearidade (ou irreversibilidade) e a ciclicidade (ou repetição). Nem a linearidade é absoluta, desde que ela é escandida e atenuada pelos ciclos, nem os ciclos são absolutos no sentido de que nenhum deles escapa totalmente à linearidade --- ou seja, tudo o que se repete, se repete um pouquinho diferente, e tudo que é diferente é um pouquinho semelhante. Quando contamos a vida de um indivíduo, por exemplo, nós supomos que ele passará da infância para a adolescência, da adolescência para a vida adulta e da vida adulta para a velhice. E isso acontece com todos os seres humanos, a não ser que eles morram antes. Mas mesmo aqueles que morreram antes (...) se uma criança morre aos dois anos de idade, por que nós dizemos que ela morreu cedo? É porque há uma expectativa de que ela siga essas etapas. Então, essas etapas são cíclicas sob certos aspectos, quer dizer, cada ser humano que nasce as repete, portanto essas quatro etapas seriam o ciclo da vida humana, e é vivida linearmente por cada indivíduo, no sentido de que quando ele chega à maturidade ele não volta à adolescência e nem da adolescência volta à infância. Então essas etapas são lineares sob um certo aspecto, no aspecto da vida individual, e são cíclicas com relação à continuidade das gerações, pois cada nova geração repetirá essas mesmas etapas.'
Também, além dessas condições que eu assinalei, há mais duas. A primeira é o caráter narrativo e descritivo, ao mesmo tempo, de toda vida humana. Quer dizer que toda vida humana tem uma estrutura narrativa, mas também tem uma estrutura descritiva, no sentido dos elementos que nela permanecem imutáveis --- a começar pela própria identidade das pessoas. Quando dizemos que uma pessoa nasceu em tal lugar, por exemplo, é preciso que esse lugar seja descrito e não somente narrado; supõe-se que, no ambiente físico em que ela nasceu, algo permaneceu estável durante algum tempo e pode ser descrito, e não somente narrado --- se o ambiente mudasse de minuto a minuto, também seria indescritível. Mas, ao mesmo tempo, dentro desse ambiente [0:20] acontecem fatos que se sucedem e que não podem ser propriamente descritos, apenas narrados. Então quer dizer que desde o momento em que nascemos não estamos só presos dentro de uma grade de espaço-tempo, mas justamente por isso estamos presos dentro de uma grade de descrição e narração. A narração e a descrição são os elementos que, subjetivamente, correspondem ao tempo e ao espaço. Isso quer dizer que o nosso pensamento também está, desde o início, condicionado a essas duas formas das quais ele não pode escapar. Quando uma criança pergunta, por exemplo, "onde está o brinquedo que estava aqui?". O "aqui" é um aspecto descritivo: por exemplo, é uma mesa, uma cama, o chão, que permanece onde está; mas o brinquedo já não está mais lá, ele estava. Nessa simples frase vemos o cruzamento da descrição e da narrativa. Não há como escapar disso e, portanto, a distinção e articulação entre os elementos descritivos e narrativos é algo que está presente em toda a vida humana e sem os quais nós não podemos compreendê-la de maneira alguma.
Porém, dentro disso existe um outro aspecto que também está presente em toda a vida humana neste planeta, que é o seu aspecto escalar. Tudo o que nos acontece, tudo o que nos rodeia, acontece dentro de uma certa escala; ou seja, é mensurável e comparável até certo ponto. Por exemplo, a simples passagem dos dias e das noites mostra que as coisas não acontecem dentro da mesma escala. Você pode estar com mais ou menos sono, você pode estar mais ou menos desperto. Durante o dia você está mais ou menos ocupado, mais envolvido em certas atividades e menos em outras. Tudo isso implica uma multidão de escalas com as quais nós medimos as coisas o tempo todo. Nós manejamos essas escalas quase sem pensar, mas elas estão presentes o tempo todo.
Os elementos que vimos até agora são:
1º. A Presença Total;
2º. Os ciclos, as etapas --- linearidade e narrativa;
3º. As escalas.
São condições que se impõem a toda e qualquer vida humana.
Em 4º. lugar, mas não necessariamente pela ordem, aparece o seguinte: toda e qualquer presença humana neste planeta implica um jogo entre o possível e o impossível --- o que dá para fazer e o que não dá para fazer. Nós não podemos conceber nenhuma ação que seja absolutamente possível sem nenhum obstáculo, e nem podemos conceber a impossibilidade absoluta de qualquer ação. Sempre há uma gradação do possível e do impossível. Note bem que até os animais têm a percepção disso. Eu já lhes dei, muitas vezes, o exemplo do gato que vai saltar por cima de um muro e fica medindo a força que terá de fazer para chegar ao alto do muro. Ele não pula direto, ele estuda o caso. Ele está fazendo como se fosse uma equação trigonométrica. O que ele está medindo? Ele está comparando as suas possibilidades com a resistência do obstáculo, portanto com a impossibilidade. Então, uma certa gradação e um conflito permanente entre o possível e o impossível faz parte da estrutura de toda a vida humana e é uma condição da qual, também, ninguém escapa.
Isso quer dizer que só podemos compreender uma vida humana qualquer se conseguirmos, a cada momento da sua narrativa, distinguir o que o personagem podia fazer e o que ele não podia fazer, e essa distinção é sempre de tipo também escalar; ou seja, o jogo do possível e do impossível é descrito, e só é descritível, em termos escalares. Portanto, a possibilidade e a impossibilidade são um dos muitos tipos de escalas que aparecem. Mas eu não creio que a noção do possível e do impossível possa ser reduzida à de escala; embora seja uma espécie de escala, ela tem a sua presença própria.
Falei do tempo e da linearidade, e que a linearidade era algo como a irreversibilidade. Porém, a irreversibilidade tem, também, uma presença própria que não consiste somente na sua diferença em relação aos ciclos; tem o aspecto da fatalidade. Portanto, a fatalidade não se distingue só por não ser um ciclo, por não ser uma coisa repetível, mas ela tem algo a ver com o cruzamento entre a noção da linearidade do tempo e a noção da impossibilidade. Quer dizer, através da irreversibilidade do tempo nós vivemos a impossibilidade no tempo. Por exemplo, quando uma pessoa morre, ela não voltará mais. Nós tomamos consciência do irreversível das maneiras mais incríveis, mas um dia todos nós começaremos a pensar nisso. Eu comecei a pensar neste assunto da maneira mais cômica, no dia em que eu derrubei um brinquedinho na privada e ele foi pelo ralo. Então pela primeira vez eu pensei: "nunca mais!" Foi uma tragédia enorme! Outros podem tomar de maneiras mais trágicas: se morre um bichinho, morre um irmão, morre a mãe, ou algo do tipo. Esse aspecto da morte, da nossa mortalidade, não representaria nada para nós se ela não viesse junto com essa irreversibilidade, com o aspecto da fatalidade; que é a total impotência: aconteça o que acontecer, isso não acontecerá mais.
Também, é quase impossível que você consiga pensar o nunca mais sem que você tenha embutido nisso aí a noção de eternidade --- aquilo que sempre foi, é e será. Quer dizer, alguma relação com a eternidade sempre temos. Também, uma outra condição que determina a nossa vida é aquilo que dizia Aristóteles: "tudo o que existe só existe sob a forma de entes individuais". Não existe existência genérica, não vemos uma espécie ou um gênero circulando por aí. Estamos rodeados de entes individuais. Mas, por outro lado, esses entes individuais estão dentro de uma grade que, para nós, representa identidade, semelhança, diferença e analogia. Note bem que isso não é uma coisa que nós pensamos; a partir do instante em que nascemos, nós estamos realmente dentro de uma rede de identidades, diferenças, semelhanças e analogias (que é uma mistura de semelhanças e diferenças). As coisas são idênticas em si mesmas, cada uma é idêntica a si mesma, tem a sua identidade, tem o seu em si. Por outro lado, elas sempre têm semelhanças, que podem ser mais ou menos acidentais ou parciais --- por exemplo, a semelhança de cor entre dois objetos ---, mas também pode ser uma semelhança estrutural. A semelhança é estrutural quando é esta semelhança que faz com que o ente seja o que ele é. Por exemplo, um gato preto e uma bola preta têm uma semelhança de cor. Porém, um gato preto tem semelhanças com outros gatos que não são externas, mas são justamente elas que fazem com que ele seja um gato. [0:30] Outro exemplo: as gatas dão a luz a gatinhos, não dão luz a bolas, a hipopótamos e nem tartarugas. Quer dizer que essa semelhança estrutural tem algo a ver com o processo que traz aquela coisa à existência, seja esse processo de ordem natural ou de ordem humana. Por exemplo, quando você vê um vidreiro produzindo garrafas: elas têm a forma de garrafa porque foi seguido o mesmo processo para fabricar uma e para fabricar a outra, e assim por diante; portanto, essa semelhança tem algo a ver com o processo que faz com que essas coisas sejam o que são. Do mesmo modo, um gato é um gato porque ele teve uma gestação de gato no ventre de uma gata. Aí há apenas uma semelhança, mas é uma semelhança essencial ligada à própria natureza daquele ente, ao passo que a semelhança entre um gato preto e uma bola preta é uma semelhança acidental e que vem de fora. O gato poderia ser branco ou malhado sem deixar de ser gato, e a bola poderia ser marrom, azul ou de qualquer outra cor sem deixar de ser uma bola.
Nós estamos colocados, desde o início, dentro de uma rede de identidades, semelhanças, diferenças e analogias. Algumas nós percebemos, e outras não percebemos. Algumas pessoas dizem que isso é uma forma da percepção humana, que não tem nada a ver com as coisas de fora. Isso é inteiramente inviável, porque, se fossem apenas formas da percepção humana, elas não poderiam acertar; se elas não coincidissem com a estrutura dos objetos a que se referem, elas não poderiam acertar --- nós tomaríamos bolas por gatos, tartarugas por hipopótamos e assim por diante. Isso seria desastroso para a nossa sobrevivência, pois nós não conseguiríamos distinguir uma pedra de um sanduíche (comeríamos pedra e atiraríamos sanduíches uns nos outros), isso tornaria inviável a vida humana. Portanto, é absolutamente forçoso reconhecer que essas não são formas da nossa percepção, mas são estruturas da nossa existência, que determinam a nossa presença no mundo físico e determinam, ao mesmo tempo, a nossa maneira de percebê-lo. Mais ainda, sinceramente eu não acredito que as estruturas da nossa "percepção" estejam no nosso cérebro --- isso é uma impossibilidade pura e simples. Isso implicaria que o nosso cérebro tivesse o mundo em miniatura, onde já estivessem todas as distinções, as aproximações, as etapas, as diferenças (...) tudo pronto, só faltando aplicá-las à esta ou àquela criatura ou àquele ente em particular. Isso não pode ser, pois é exagerar brutalmente a capacidade do nosso cérebro. Essas estruturas estão no nosso cérebro em potência, ou seja, nós temos a capacidade de captá-las. Mas não quer dizer que nós nasçamos com todas elas prontas. Elas têm de ser de novo e de novo reaprendidas. E qual é o livro no qual reaprendemos isso? É o mundo no qual estamos. Por exemplo, as distintas modalidades de tempo, a noção do ciclo e da irreversibilidade (...) tudo isso está no mundo e o mundo nos lembra dessas coisas; ele nós trás isso de novo e de novo, de maneira que, mesmo que desapareça do nosso cérebro, no dia seguinte temos de perceber aquilo novamente. Quase todo o mundo já teve a experiência de acordar sem saber quem é e nem onde está. Então você olha o quarto, reconhece o lugar onde está e então aquilo tudo lhe é trazido de volta. Nesse caso, a presença do mundo foi o recurso mnemônico que refresca a sua memória, que a reaviva.
Para você ver como é absurda a suposição das formas a priori da percepção como se fossem uma coisa inata que está dada em nós, experimente suprimir imaginariamente a presença de todo e qualquer mundo em torno e você verá quanto tempo essas formas a priori levam para desaparecer da sua mente e transformar tudo numa pasta geral. Esses experimentos de privação sensorial, por exemplo; enterram o sujeito num buraco de cinqüenta metros de profundidade, o cercam de aparatos que neutralizam as suas percepções e o resultado é que ele não aguenta cinco minutos. Ou seja, nós precisamos das sensações do mundo externo até para que a nossa mente funcione. É por isso que eu digo que essas condições não podem ser olhadas de uma maneira kantiana, como se fossem formas a priori que estão em nós. Não, elas não estão em nós; elas não são formas do nosso ser, são formas da nossa presença no mundo, portanto há algo delas que está em nós e algo delas que está no mundo, e nessa interação, justamente, é que elas aparecem. Isso quer dizer que tudo nos chega sob a forma de presenças individuais. Mas o que é a presença individual senão, para nós, cognoscitivamente, uma mistura de semelhança e diferença? Você percebe a individualidade de um ente porque a destaca de outras individualidades presentes. O gato está em cima da mesa; eu vejo que existe a mesa e existe o gato, que a mesa não é um gato e que o gato não é uma mesa. Portanto, a individualidade não nos aparece de uma maneira pura, mas aparece num contexto de diferenças. E, se é verdade que tudo que chega ao nosso conhecimento nos chega sob a forma de entes individuais, também é verdade que nenhum ente individual nos chega sozinho e separado das semelhanças e diferenças que os unem aos outros entes. Tudo isso vem junto, isso é o quadro dentro do qual nós estamos; os entes são realmente individuais e eles realmente têm semelhanças e diferenças, e realmente alguma dessas semelhanças e diferenças são acidentais enquanto que outras são essenciais. Isso quer dizer que a relação entre indivíduo e espécie já está dada num primeiro instante. Há muito tempo eu escrevi uma apostila dizendo que não é possível que, para formar a noção de uma espécie, é preciso ter experiência de vários indivíduos dessa mesma espécie --- ou seja, seria preciso ter visto muitos gatos para formar a noção da espécie gato. Porque o primeiro gato que você vê, ou ele já tem nele todas as características da espécie, ou ele não terá jamais; ou ele tem tudo o que faz dele um gato, ou está faltando alguma coisa que só outro gato tem (e isso não é possível). Quer dizer que a noção da espécie está dada imediatamente na forma do indivíduo: ele, por assim dizer, exibe a sua espécie, mesmo que essa espécie tenha só um exemplar. Quando você vê o segundo gato, você não está juntando pedaços inconexos para daí formar a noção da espécie; ao contrário: a noção da espécie você já pegou no primeiro indivíduo, e você descobre que o segundo indivíduo é somente mais um exemplar da mesma espécie.
Também, uma coisa importantíssima: qualquer ente individual que chegue à sua presença, você nota instantaneamente nele aquilo que eu chamei de círculo de latência. Não vou re-explicar tudo sobre o que é o círculo de latência agora, mas significa o seguinte: você não percebe aquele ente só como um corpo inerte que está presente, mas como um conjunto de ações e paixões possíveis. Por exemplo, ao ver um gato e uma bola, você sabe que pode chutar a bola e ela irá para onde você quer sem reclamar; mas você sabe que não chutará o gato sem que ele reclame e sem que ele tente não ser chutado, pois se ele não tivesse essa capacidade ele não seria um gato, não seria um ser vivo. Tal percepção é imediata. Se você fosse aprender cada uma dessas coisas por experiência, você não teria passado da primeira até hoje. Portanto, a percepção de um ente não é só a percepção da sua forma estática, mas a percepção do seu círculo de latência --- círculo de latência é aquilo que ele pode fazer ou aquilo que você pode fazer com ele.
Por exemplo, pelo simples fato de ver o chão, você sabe que pode deitar nele, e ao ver o teto, você sabe que não pode deitar [0:40] no teto. Sem saber isso, não sabemos que o chão é chão e nem que o teto é teto. Isso quer dizer que toda percepção é dinâmica, ela já expressa um leque de relações e potências possíveis; um leque de virtualidades possíveis. Essa também é outra condição da qual nós não podemos escapar, pois estamos dentro disso, nascemos e vivemos dentro disso. E, nesse sentido das semelhanças e diferenças, a percepção de que existem espécies é inerente à percepção do indivíduo, porque, se você percebe o círculo de latência, é claro você não o perceberá inteiro, pois o círculo de latência nunca é inteiro, ele sempre está em aberto. Por exemplo, antes de inventarem cuícas ninguém tinha na percepção do círculo de latência do gato a sua possibilidade de transformar-se em cuíca; é uma possibilidade que ele não tinha antes e passou a ter porque o ser humano inventou.
Algumas possibilidades você percebe. Se não perceber nenhuma, então é o mesmo que dizer que você não percebeu nada; seria um objeto totalmente irreconhecível, sem uma forma definida e, portanto, sem um círculo de latência definido. Porém, quando você percebe o círculo de latência, instantaneamente percebe variações possíveis. E são essas variações possíveis que encaixam automaticamente aquele indivíduo na sua espécie. Percebemos, por exemplo, um gato e instantaneamente sabemos que aquele gato poderia ser maior ou menor sem deixar de ser gato. Se você vê um gatinho crescendo, por exemplo. Ou, ainda, pelo simples fato de o gato se mover você vê que ele se transforma, muda, sem deixar de ser ele mesmo. Mas tem outras coisas que não podem ser mudadas sem deixar de ser elas mesmas --- é aquela história de você não poder comer o bolo e conservá-lo ao mesmo tempo; entra aí o aspecto da irreversibilidade.
A percepção de cada indivíduo traz junto, imediatamente, uma percepção --- ou, pelo menos, uma antecipação --- das variações possíveis que poderiam existir sem que ele deixasse de ser ele mesmo ou sem que ele deixasse de pertencer à mesma espécie. Por exemplo, se o primeiro gato que você viu foi branco, você concebe que ele poderia ser preto, porque essa cor é admissível na estrutura dele. Mas você não concebe que aparecerá um gato verde com bolinhas cor-de-rosa; há uma incoerência intrínseca nisso, uma incoerência estética. Portanto, a noção da coerência estética já lhe traz, em princípio e virtualmente, a idéia de espécie. Logo, a distinção de indivíduo e espécie já está dada na percepção do primeiro indivíduo. Quando um bebê pede para mamar e depois pede para mamar de novo ele sabe que essa mamada não é a última, que depois vem outra. Se ele não soubesse que viria outra, não pararia de mamar, jamais. Então, a espécie "mamada" já veio junto com a primeira mamada. O bebê sabe que esse é um ato cíclico. E também sabe que as várias espécies têm relações entre si, e é isso que é a diferença entre espécie e gênero --- é uma espécie que está dentro de outra espécie. Por exemplo, todos os entes que se movem por si e os que só se movem quando são movidos: isso não nos dá claramente a distinção dos seres vivos dos demais, mas é um indício dela, porque há também seres vivos que não se movem ou que raramente se movem.
Toda esta coisa de indivíduo, gênero e espécie é uma condição dentro da qual nós existimos e, portanto, é também uma forma da nossa percepção. Porém, repito: essa forma da nossa percepção só está no nosso cérebro em potência. Se sumisse o mundo à nossa volta, as nossas formas de percepção acabariam. Ou seja, a nossa estrutura de percepção é continuamente renovada pela presença do mundo, o que mostra que ela não está no nosso cérebro, mas na estrutura do mundo, que o nosso cérebro vagamente imita. Nisso também está dado, imediatamente, o senso de hierarquia; é outra condição dentro da qual nós existimos. Em primeiro lugar, a hierarquia de importância, à qual corresponde para nós a hierarquia da nossa atenção. Quer dizer, as coisas não são igualmente importantes para nós; desde que nascemos é assim. Por exemplo, [você] mamar é mais importante do que saber se a luz está apagada ou acesa. Um bebê pode dormir em paz com a luz acesa, mas não pode dormir em paz se estiver com fome; então já há uma hierarquia, imediatamente.
Ou seja, nem tudo para nós tem o mesmo valor e a mesma importância. E, note bem, esta é uma avaliação subjetiva, mas se fosse totalmente subjetiva ela independeria das condições exteriores; mas não, eu estou falando justamente da hierarquia da importância das coisas exteriores. Isso quer dizer que em torno de cada indivíduo há uma seleção de prioridades que se impõem a ele e que ele percebe de maneira mais ou menos clara. Existem diferenças de hierarquia conforme as várias pessoas, mas o fato mesmo de existirem essas diferenças mostra que a hierarquia não está nem na cabeça de um e nem na de outro. Por exemplo, uma criança que continua brincando até às três horas da manhã e não quer ir dormir; o pai e a mãe sabem que é mais importante, para ela, ir dormir do que continuar brincando, mas ela acha que não. Isso quer dizer que um tem um senso de hierarquia e o outro tem outro senso de hierarquia; um tem uma escala e o outro tem outra. Mas o simples fato de que um tem uma e outro tem outra significa que o fator hierarquia está presente em ambos, abarca ambos e não é uma coisa subjetiva. A percepção de hierarquia também é uma coisa que você vai exercitar todos os dias, cada vez que decide fazer uma coisa e não outra, cada vez que você presta mais atenção a uma pessoa do que em outra; cada vez que você sente um senso de urgência ou de emergência você está fazendo um julgamento de tipo hierárquico. E, evidentemente, se não houvesse essa estrutura hierárquica em toda a nossa volta, também não poderia existir nenhuma hierarquia na sociedade --- se bem que a experiência da hierarquia social nós já fazemos desde o bercinho. A criança sabe que é a mãe que lhe dá de mamar e não ao contrário, portanto sabe que ela depende da mãe e não a mãe da criança; isso já desde o início. Em segundo lugar, a sua mãe ou o seu pai --- mas em primeiro lugar a sua mãe, que é a pessoa com quem tem mais contato --- são muito maiores do que você. Ela [a sua mãe] tem um poder que você não tem e, ao mesmo tempo, você sabe que ela é a fonte da sua subsistência. Então a criança cria pela mãe uma espécie de fascínio, uma adoração, e é daí que vem toda a noção da hierarquia social, do poder, da obediência etc.
Isso também não é uma condição que está subjetiva em nós, é uma situação na qual vivemos. A prova de que não é subjetiva é que toda esta rede da qual eu estou falando --- os ciclos, a linearidade, a irreversibilidade, as etapas, a possibilidade e a impossibilidade etc. ---,nem sempre nós percebemos corretamente. A nossa percepção dessas coisas pode variar sem que isso afete a grade real dessas condições. Então em cada momento também é possível distinguir na consciência do indivíduo qual é o seu grau de percepção dessas coisas e qual é a estrutura da grade em si mesma. Pessoas que gastam mais do que podem pagar, por exemplo: existe uma possibilidade objetiva e existe uma percepção deficiente dessa possibilidade objetiva. Ora, uma percepção deficiente não vai melhorar a sua conta bancária, pois a condição objetiva continua a mesma.
Dessa mesma noção de hierarquia surge outra que também é [0:50] objetiva, que é a noção de família e comunidade; há as pessoas próximas e as estranhas, as pessoas junto às quais você se sente protegido e as pessoas que você teme. Isso também é uma condição que se impõe a nós desde o início, pois ninguém nasce conhecendo todo o mundo, ninguém nasce sendo parente de todo o mundo. É esta noção do "nós e eles". Nós nascemos desta condição: nascemos com uma mãe, e não outra ou outras; um pai, e não outro ou outros --- se bem que essas funções podem ser trocadas por outras pessoas, mas a relação continua a mesma. Família e comunidade são elementos, são condições externas dentro das quais nós nascemos e das quais nós temos uma percepção que também pode ser diferente de indivíduo para indivíduo. Por exemplo, o nível de segurança que você sente com relação à sua família e os estranhos. Se você é maltratado na sua família, você pode fugir dela e buscar o apoio e a proteção de um estranho. Então a situação inverteu, mas a relação entre o próximo e o estranho continua; só que, no caso, é a família que virou o estranho e o estranho virou próximo. Mas a grade de relações continua do mesmo modo.
Isso significa também que existe, na condição humana, o elemento do medo. O medo não é um componente subjetivo nosso; nós nascemos dentro de uma situação que tem elementos temíveis em si mesmos, e a nossa percepção desse elemento temível pode variar --- podemos ter mais medo de certas coisas e menos medo de outras, o que não significa que isso seja uma medida realista e exata da periculosidade dessas coisas. Eu me lembro de uma vez em que um bode ameaçou chifrar o Pedro, que tinha uns três anos, e ele abaixou a cabeça e ameaçou chifrar o bode. Se fizesse isso ele ficaria sem cabeça, evidentemente. Quer dizer que ele não teve medo nenhum do bode, mas era para ter algum. E pode ter outras crianças que vêem um gatinho e ficam com medo, sendo que ele não vai fazer nenhum mal para elas; às vezes podem ter medo até de objetos inanimados. Não vamos confundir o temível, o perigo, como componente objetivo da situação, com o medo, como reação subjetiva. Mais certo seria eu dizer que o que constitui uma condição objetiva na qual nós vivemos é a periculosidade e o medo.
Também, nós estamos dentro de uma situação na qual somos constantemente induzidos a fazer previsões. A estrutura da nossa ação é baseada na nossa capacidade de previsão ou de antecipação, e essa capacidade de previsão ou antecipação pode dar certo ou errado. Portanto nós estamos dentro de uma situação que nos impõe a previsão e, ao mesmo tempo, a imprevidência. Previsão porque sem previsão não há ação, e imprevidência porque nós não nascemos sabendo fazer previsões. E, evidentemente, também faz parte dessa condição humana a possibilidade do sucesso e a possibilidade do fracasso; esses elementos estão totalmente presentes. E junto com essas várias condições, que nos são impostas pela realidade na qual nós vivemos e que não são apenas partes da nossa mente, tem aquilo que eu chamei de trauma de emergência da razão. Ou seja, o ser humano é o animal racional, ele nasce com a capacidade de articular os vários elementos da experiência, articulá-los em um todo mais ou menos organizado, elaborar planos dentro disso e comunicar os seus planos a outras pessoas de modo que a ação de todos seja convergente no mesmo sentido --- tudo isso é a razão. Só que os problemas e desafios da vida que requerem e que só podem ser enfrentados mediante uma articulação racional e um planejamento racional, uma ação racional, nos chegam muito antes que nós tenhamos o pleno exercício da razão. O homem é um animal racional por natureza, mas isso não quer dizer que todos os instrumentos da razão estejam à sua disposição. A começar pela linguagem, pois não nascemos sabendo falar, e a capacidade do cálculo também temos de aprender; ou seja, nos apropriamos dos meios da razão, que até certo ponto nos permitem nos virar e nos sairmos mais ou menos bem dentro do ambiente. Mas esses problemas chegam para você todos de uma vez, como se você fosse o portador total da razão. Veja que, quando eu me refiro a isso, estou falando desde os problemas práticos imediatos --- por exemplo, o problema da sua subsistência; toda criança, a partir do momento em que nasce, precisa de um alimento, de um abrigo, de proteção etc., e tudo isso tem de ser racionalmente organizado para que a criança não morra, mas a própria criança não tem a capacidade de dar tudo isso a si mesma. Ou seja, ela já está objetivamente dentro do problema, mas subjetivamente ela não tem meios de lidar com isso. E, na medida em que nós vamos crescendo, nós vamos nos apropriando dos instrumentos da razão, mas de maneira muito progressiva. De modo que, quando chegamos à idade madura, nós já estamos atrasados, pois todos aqueles problemas já nos cercaram, já nos afetaram e já deixaram marcas antes que tivéssemos a capacidade de articular racionalmente, até mesmo de maneira narrativa. Quando você chega aos vinte um/vinte e dois anos já lhe aconteceram mil coisas que você não é capaz nem de narrar. Isso quer dizer que os nossos problemas chegam para nós como se eles partissem do pressuposto de que nós somos entes racionais capazes de lidar com eles, mas nós não somos. Nós nos tornamos isso aos poucos, e quando nos tornamos --- é um processo que, na verdade, jamais termina, você vai aprimorando os instrumentos da razão até morrer --- estamos sempre atrasados.
Existe a idéia de que os vários poderes da razão não têm de ser todos exercidos por um único indivíduo, de que há uma divisão de trabalho (cada um faz um pouco). Mas tem o seguinte: e a organização da sociedade? Quem a organiza e quem diz que ela foi organizada racionalmente da melhor maneira? Isso nunca acontece, jamais. Se você tenta fazer uma sociedade totalmente planejada, você reduz a complexidade dos problemas sociais à simploriedade da sua mente e você cria um monstrinho --- como aconteceu na Revolução Francesa, por exemplo. Se você deixa tudo à mercê do acaso também não funciona, pois a sociedade não se organiza por si mesma, sem que alguém a organize. Então quer dizer que sempre há uma tensão entre a organização e a desorganização, entre o racional e o irracional, e isso não nos abandona jamais. Isso não é uma condição que existe na nossa mente, mas uma condição real na qual nós existimos.
Mais ainda: no processo de conquista dos instrumentos da razão, a razão nos aparece como uma espécie de domínio intelectual da situação que é prévio e é uma das condições do domínio efetivo, real, prático. Porém, ao longo do tempo nós vamos vendo amostras de domínio de certas situações. Quando era moleque, por exemplo, eu tinha um amigo um pouco mais velho que conseguia saltar qualquer obstáculo; aquilo que para nós era impossível ele vinha e fazia. Era um sinal de domínio. Mas esse sinal, para mim, só existia intelectualmente, na minha mente; eu não conseguia fazer a mesma coisa. Para conseguir fazer a mesma coisa eu precisaria treinar anos a fio, enfrentando outros obstáculos --- cansaço, dor e mil e uma inconveniências, coisas que ele tinha feito e eu não. Essas pessoas que nos mostram um poder, portanto um domínio racional sob a situação externa, elas passam a funcionar para nós como símbolos da razão. Só que o apelo aos símbolos [1:00] não nos traz o poder respectivo. Por exemplo, uma das importâncias da figura paterna é que o pai representa o domínio racional da situação para aquela criança. Muito mais tarde, em situações em que o indivíduo não tem mais um pai a quem recorrer, e nas quais ele próprio precisa dominar racionalmente a situação, haverá uma tendência incoercível de se apegar a novos símbolos; por exemplo, a um governante, ou a uma pessoa qualquer que funcione [para você] como uma espécie de talismã e perto da qual o sujeito se sente protegido. Isso quer dizer que o próprio processo de conquista dos instrumentos da razão nos traz de volta elementos irracionais que já deveriam ter sido superados em uma etapa interior, e nós nunca vencemos isso por completo.
Vamos supor que uma certa ordem de problemas você tenha dominado completamente: você sabe tudo a respeito daquilo, sabe como controlar a situação. Outro dia eu vi um documentário sobre um velhinho de sessenta e oito anos que foi atacado por um urso e matou o urso com um canivete. É claro que ele ficou todo estropiado também. Ele era um caçador experiente, com quarenta anos de experiência naquilo, mas estava ali esfolando um veado que tinha acabado de matar e o urso veio pelas costas. Ele sabia que aquilo poderia lhe acontecer, mas foi um momento de distração que bastou para que acontecesse a desgraça toda. Isso quer dizer que mesmo o domínio racional mais aprimorado não funciona igualmente em todas as horas do dia. Você pode estar distraído, cansado, com sono, doente, por exemplo. Um pianista que domina o piano, se estiver com quarenta graus de febre na cama, será que toca tão bem? Ele não domina o instrumento naquele momento. Quer dizer que mesmo o domínio mais alto é precário, e nós nunca superamos isso.
A tensão entre o racional e o irracional --- que, portanto, traz o previsível e o imprevisível, o sucesso e o fracasso etc. --- também é outra condição real na qual nós estamos. Nós não escolhemos isso, isso não é subjetivo. Tudo que é subjetivo você pode inventar ou desinventar na hora que quiser. Por exemplo, agora estou livre e quero pensar em bananas, então penso em bananas; quero pensar em hipopótamos, eu penso em hipopótamos. O subjetivo depende inteiramente de nós. Mas este jogo do racional e do irracional e essas dificuldades ao longo da conquista dos instrumentos da racionalidade não fomos nós que inventamos. Se tivéssemos sido nós os inventores, nós poderíamos desinventá-las e dizer "agora não acontece mais nada disso, agora o problema está resolvido". Basta você tentar isso uma vez para ver que não é assim, que você não tem o domínio dos meios de domínio e que, portanto, ela é uma situação objetiva e não um elemento subjetivo seu.
Esse, para mim, é o quadro das condições reais que se impõem ao ser humano desde que ele nasce, e é dentro dessa grade de referências que vão surgir as várias diferenças entre as várias biografias individuais, entre os vários horizontes de consciência individuais, e assim por diante. E, usando essa grade, eu acho que nós podemos chegar a compreender a mente do indivíduo muito profundamente. É claro que não tanto quanto ele mesmo, mas às vezes podemos até saber algumas coisas que ele não sabia. A minha idéia na sociologia da filosofia é aplicar essa grade à biografia de alguns filósofos e ver como que, desse quadro real de condições dentro das quais ele existiu desde o instante do seu nascimento, foi se formando, primeiro, a curiosidade filosófica, o desejo de compreender. Você pode se perguntar: por que o desejo de compreender é tão intenso em algumas pessoas e tão baixo, tão tênue em outras? A resposta é muitíssimo simples: é porque estas segundas pessoas se apegaram mais aos símbolos da razão, elas transferem o domínio da situação para outras pessoas; quer essas pessoas existam, quer não existam. Podem transferir a uma pessoa ou a uma comunidade. Por exemplo, você tem uma dúvida que não sabe resolver, mas acha que alguém na comunidade científica talvez deve saber e então você pode ficar tranquilo. Na maior parte dos casos isso é uma ilusão, você chega lá e vê que ninguém sabe nada.
A responsabilidade pelo uso da razão é inerente à condição humana, mas em muitos casos ela pode ser exercida de uma maneira delegada: você transfere aquilo a um outro e você tem a ilusão (ou o sentimento, pelo menos) de estar vivendo dentro de um quadro racional que, se não é dominado por você, é dominado por alguém na sociedade. A tentação de operar essa transferência é contínua, porque a toda hora nós verificamos a insuficiência do nosso domínio racional da situação. Quando você percebe que não está entendendo nada e que não tem mais ninguém no mundo que esteja entendendo, você pode ficar apavorado. Aí só se você for realmente um filósofo, um herói da inteligência: "ninguém está entendendo nada, mas eu terei de entender de qualquer jeito". Isso pode acontecer também, mas é raro. Em geral, quando você está pensando em uma coisa aqui, tem outra pessoa que está pensando a mesma coisa em outro lugar.
Essas são as condições externas e, portanto, as perguntas que nós temos de fazer e o critério com que nós vamos descrever a situação social. Isso quer dizer que tem muitos elementos que as pessoas imaginam que são constitutivos da situação social, mas que não são elementos primários da situação. Por exemplo, a disponibilidade econômica que uma pessoa tem, ou seja, a sua capacidade de operar a mais ou a menos com propriedades, com bens dos quais ela necessita para viver. Isso não é um componente primário da situação, porque a situação econômica depende desses outros elementos que eu disse, e esses elementos absolutamente não dependem dela. Seja você um pobretão ou um milionário, por exemplo, o problema da previsão e da imprevisão está presente para você do mesmo modo. Se você é pobre tem de pensar no que vai comer nas próximas duas horas, e se você é rico tem de pensar onde investir esse dinheiro para não perder tudo; e assim por diante. A angústia perante a preservação ou perda dos bens financeiros é a mesma para o pobre e para o rico, apenas há a diferença de escala. Isso quer dizer que a condição econômica e, portanto, a "classe social" a que o indivíduo pertence não é um dos elementos fundamentais. A classe é um dos elementos da gradação do possível e do impossível, é um dos elementos da hierarquia, mas ela, por si mesma, não é um elemento primário. Daí vemos que a simples idéia de explicar história pela luta de classes é muito remota e, na verdade, muito secundária. Não que a luta de classes não exista --- ela existe ---, mas ela não é um elemento primário e não pode ser jamais. E uma das coisas que nós verificaremos na história da filosofia é que muito raramente a ideologia pessoal de um filósofo coincidiu com a ideologia atribuída à sua classe; isso muito raramente.
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Aluno: Não é de hoje que a questão da individualidade e da generalidade dos seres ocupa as minhas reflexões. [1:10] Devo confessar que às vezes a expressão "só existem existentes individuais" me parece um pouco obscura e confusa. Por um lado, a individualidade dos seres é bastante óbvia, só que por outro nunca percebi um ser individual que não estivesse dentro de um conjunto de determinações gerais. Em outras palavras, os existentes parecem ter os dois aspectos inseparavelmente. De fato nunca vemos uma idéia genérica de vaca nem as vacas existem como idéias gerais. No entanto, nunca vimos nenhuma vaca individual que não seja também a vaca geral que não manifesta a idéia geral de vaca perfeito ou imperfeitamente. Numa curiosa inversão, nunca vimos um existente individual puro que parece mais uma abstração nesse sentido do que a realidade. Esse é o começo de uma reflexão que venho fazendo. Poderia dizer se estou enfocando o problema de uma maneira filosoficamente válida?
Olavo: Na verdade está, e é mais ou menos isso que Aristóteles diz e mais ou menos o que eu estava dizendo.
A estrutura da espécie já está dada inteiramente no primeiro indivíduo exemplar dela que você conhece. Ou seja, ela não é uma coisa distinta. A maior prova de que a espécie não é distinta do indivíduo é que uma espécie que tenha um só exemplar nem por isso deixa de ser uma espécie. Vamos supor que desapareçam todos os gatos e só sobre um; ele tem todas as características da espécie nele, ela não desapareceu por causa disso. Encarar um ente como indivíduo ou como espécie é uma simples distinção de ponto de vista, não é uma coisa substantiva. Não há uma diferença substantiva de uma coisa a outra, a não ser que você denomine "espécie" o conjunto numérico dos indivíduos existentes. Então é claro que esse conjunto enquanto tal, quantitativamente, não está contido no indivíduo. Mas esse conjunto não é a espécie, a espécie é só o que há de comum entre todos eles. Se a espécie fosse o conjunto dos indivíduos, então uma espécie que desaparecesse, uma espécie extinta, deixaria de ser espécie --- coisa que ela não deixa. Podemos falar de espécie extinta porque a espécie não coincide com a totalidade numérica dos indivíduos que a exemplificam, mas apenas com os traços estruturais comuns que estão presentes em todos eles.
Portanto, a rigor, não há diferença entre indivíduo e espécie. Indivíduo é uma noção quantitativa, e espécie não é; espécie é um conceito geral descritivo. É daí que surge toda a confusão a respeito. A pergunta "o que existe são indivíduos ou espécies?" não é a pergunta que Aristóteles está respondendo. Tudo o que chega ao nosso conhecimento, que chega à nossa presença, são indivíduos, e isso é uma frase absolutamente incontestável. Porém, se o indivíduo chegasse desprovido dos traços que definem a sua espécie, ele próprio estaria indefinido, porque o mesmo Aristóteles que diz que nós só conhecemos indivíduos, diz que o indivíduo em si enquanto tal é inapreensível; ou seja, você não pode dizer nada a respeito dele. Tudo o que você disser de um indivíduo você estará dizendo dentro dos critérios que descrevem a espécie, não há outra maneira. A individualidade pura --- que é um conceito limite, um conceito absurdo --- seria o indivíduo que não tem nenhum dos traços da sua espécie. Então ele não tem traço algum, porque se você conseguir descrevê-lo, você descreveu a sua espécie, ainda que ela tenha um só representante.
Aluno: Gostaria que o senhor falasse do livro O Segredo*.*
Olavo: Bom, eu não li este livro e o conheço só por ouvir falar. Mas aqui nos EUA o número de publicações, livros e vídeos desse tipo é uma coisa impressionante. O sujeito chega para você e diz que toda a sua vida é uma enganação, que você está vivendo uma ilusão, mas que ele tem o segredo que vai lhe mostrar a realidade das coisas. Quando vemos [do que se trata] é sempre uma banalidade atroz. Chegam para você e lhe dizem que estão fazendo uma oferta que é para poucas pessoas, que há uma sociedade secreta e você, como é um tipo muito especial, foi escolhido para receber essa revelação.
O sujeito que foi o criador da UPS, a empresa de transporte, ficou milionário jogando poker e com o dinheiro criou a empresa. Ele tem uma sociedade secreta desse tipo. Eu tive vontade de entrar nisso só para ver o que era. Era tipo O Segredo: vou lhe mostrar o segredo do universo e como você adquirirá poder. Fui ver e o livro era um tratado de sacanagem, só ensinando como enganar os outros. Era o manual do mensalão; isso aí não é muito diferente, não.
Aluno: De que modo a mente revolucionária, que detesta a realidade, se relaciona com essa grade de determinações a que todos estamos sujeitos.
Olavo: A primeira característica da mentalidade revolucionária é a sua ambição de fugir dessa grade de determinações, de alcançar uma supra-realidade na qual estaremos livres dessas determinações. Quando eu comecei o estudo da mentalidade revolucionária eu disse que não tinha condição de estudar a origem histórica, que eu descreveria somente a estrutura --- os elementos que são repetitivos e permanentes. Mas agora, com as coisas que estudei depois, eu já sei claramente qual foi a origem. A origem foi realmente nos movimentos messiânicos do séc. XV que queriam trazer o Juízo Final à força; eles mesmos realizariam o Juízo Final imediatamente: matariam todos os maus e implantariam o reino de Jesus na terra. Isso aí, evidentemente, já é a negação de todas as condições que determinam a nossa existência, que é uma espécie de transferência da vida terrestre para um conjunto de possibilidades que só é concebível na escala da eternidade. Por exemplo, dizer que o conhecimento universal, a ciência universal explica tudo. A ciência universal que explica tudo, por definição, não pode estar ao alcance de um ente mortal e limitado; não é possível. A ciência total é incompatível com a nossa condição parcial e limitada, portanto é uma expressão hiperbólica que nós usamos e que por si mesma só é concebível como impossível, só é concebível na base de uma assíntota --- a curva que vai aproximando e aproximando, mas não chega jamais. Até o verbo aproximar neste caso é um pouco inexato, porque como pode haver aproximação se não há um ponto de chegada?
O problema com a mentalidade revolucionária é justamente a revolta contra a condição da existência humana. Na hora em que o sujeito se revolta e tenta superá-la, aí mesmo é que ele se torna ainda mais escravo dela, porque abdica da capacidade de lidar com ela racionalmente, e conserva a razão só para determinadas finalidades específicas; por exemplo, aqueles revolucionários Taboritas eram completamente loucos, mas no campo da estratégia e tática militar eles não eram loucos, eram muito racionais. Em economia eram completamente doidos porque diziam para as pessoas pararem de trabalhar e só viverem de assaltos, então a única atividade econômica taborita era roubar quem não era taborita. É claro que isso pode durar apenas até certo ponto, pois quando acabar a última vítima acaba tudo, acaba você junto. Mas do ponto de vista de estratégia e tática militar eram extremamente racionais; criaram, inclusive, algumas táticas que não existiam na época e deram um baile em várias tropas reais, imperiais e papais que foram mandadas para acabar com eles.
Essa abdicação da razão é, evidentemente, parcial; é um engano, um engodo. O sujeito se faz de irracional e na verdade não é. Acho que realmente a mentalidade revolucionária pode ser descrita em termos de rebelião contra a estrutura da realidade e, por isso mesmo, de inversão. Inversão do tempo, por exemplo. É como eu disse, não há como escapar nem da irreversibilidade nem dos ciclos; ou seja, nem da sucessão de diferenças e nem da repetição parcial. Não temos como escapar disso. Um sujeito pode dizer que agora vai instituir um negócio onde não haverá mais mudanças, não vai mais ter um fim da história e agora tudo será eterno. O simples fato de o indivíduo dizer isso desde a sua própria temporalidade terrestre já é uma incongruência tremenda. Deus pode transcender a condição terrestre porque não está nela, Ele só submete-se a ela quando quer; só fez isso uma vez e não pretende fazer de novo --- não, ninguém crucificará Jesus novamente. Nesse caso é o efeito sem causa.
A mentalidade revolucionária é de fato representada pelo Barão de Münchhausen, que estava se afogando e saiu da água se puxando a si próprio pelos cabelos. É como aqueles desenhos do Escher: a escada que termina no seu próprio começo, a mão que se desenha a si mesma etc. A mentalidade revolucionária é exatamente isto, uma confusão do mundo da representação com o mundo da existência física e real. Realmente é uma coisa doente.
Aluno: As coisas externas são produtos da nossa mente, o ser é que transforma o meio ou vice-versa, ou foi o meio que influenciou-lhe o ser e houve uma adaptação?
Olavo: Eu acabei de explicar isso aí. Nem mesmo as chamadas formas a priori da nossa percepção são inteiramente subjetivas, nem isso está na nossa mente. Não haveria formas a priori da percepção se o mundo fosse suprimido e sobrasse apenas o nosso cérebro. As famosas formas a priori são as estruturas do próprio cosmos dentro do qual nós estamos, e que nos recordam [1:20] e trazem de novo, e de novo, e de novo, para nós, esse mesmo conjunto de relações que gradativamente nós nos tornamos capazes de apreender. Portanto é a mesma coisa que dizer que praticamente nada está na nossa mente. Eu não acredito nem mesmo que a memória seja um depósito; a memória é simplesmente a capacidade que você tem de repetir certas coisas se você receber do mundo externo os estímulos necessários para isso. Por que precisamos de recursos mnemônicos? Por que precisamos de bibliotecas, de arquivos? Por que precisamos de cursos de aprimoramento da memória? Tudo isso nos vem de fora! É a mesma coisa que dizer que a nossa memória está espalhada aí pelo mundo; nós só conectamos, somos uma espécie de relé, um ponto onde duas coisas se ligam. Não somos um depósito de coisíssima nenhuma.
Aluno: Antes de perguntar, agradeço imensamente os seus ensinamentos. (...)
Olavo: Sou eu que agradeço.
Aluno: (...) No Gênesis encontramos a narrativa da Torre de Babel. Nosso mundo atual não se parece com o lá descrito? A nova ordem imposta ao mundo, grandes cidades cheias de luz, cores e edifícios altíssimos, alta tecnologia. (...) O mundo atual é o futuro que já se desenha. Parece ser o mundo em que tudo se resolve com o simples apertar de um botão. (...) E o desenvolvimento de uma ciência que pretende abarcar todo o conhecimento possível, mas a cada anúncio de descoberta fica claro que nada é sabido. (...) A cada nova utopia, a cada nova revolução, isso é apenas mais uma tentativa de apropriação do mundo pelo homem em virar as costas a Deus. Tudo isso não seria a narrativa da Torre de Babel, uma vez deixada a nós há milênios e que hoje parece esquecido?
Olavo: Essa é exatamente a posição do Jean Brun. Jean Brun é um filósofo protestante, e, para ele, o conjunto da história do saber humano é uma série de tentativas das quais nós não podemos escapar e as quais nós somos obrigados a empreender de uma maneira ou de outra, mas cada problema que se resolve gera dez outros problemas. Quer dizer, se é a limitação intrínseca da condição terrestre, nós não podemos e nem temos como escapar dela. Só escapamos dela na morte e na passagem à eternidade. O resto é tudo uma tentativa de se criar uma eternidade de brinquedo para nós, aqui; e essas promessas sempre falham. Ou seja, os empreendimentos humanos só estão bem adaptados à estrutura da realidade quando eles aceitam a sua própria limitação, quando eles sabem que vão resolver um pedacinho do problema, e com o risco de criar outros. Essa é realmente a condição humana.
Eu recomendo que vocês assistam a um documentário, que tem na Amazon, chamado Alaska: The Last Frontier (Alaska: A Última Fronteira). É sobre uma família de suíços que veio antes da guerra, comprou um terreno imenso e decidiu viver de uma economia de subsistência, levando para lá alguns equipamentos modernos, mas vivendo totalmente separados da civilização. Lá não tem estrada, a única maneira de se comunicar é de avião ou por barco e leva um tempão para chegar lá, além de ser arriscado e às vezes não dá para chegar. Então eles têm de resolver todos os seus problemas. Assista a este documentário e você vai o que realmente é a condição humana na sua crueza: cada problema que o sujeito resolve aparece outro, e outro, e outro (...) eles nunca podem parar de trabalhar, nem cinco minutos. Por exemplo, você quer ter um cavalo para te ajudar puxando o arado; ótimo, você arrumou o cavalo. Agora tem de dar de comer ao cavalo, e para dar de comer a ele você tem de plantar o feno, mas só tem quatro meses de verão, e depois oito meses de inverno, então nesses quatro meses você tem de plantar o feno, ele tem de crescer, você tem de cortá-lo e guardar o feno em um lugar onde não dê uma praga, não dê nada, para você ter algo para dar ao cavalo durante aquele tempo. Acontece que, durante o tempo em que você está lá cuidando do feno, vem uma raposa e come as suas galinhas. Então você tem de parar e correr atrás da raposa --- o que leva um, dois, três ou quatro dias até você achá-la. E você está lá caçando a raposa e pensando "tenho de pescar para acumular peixe, para secá-lo para o inverno". Então tudo o que você fizer estará deixando de fazer outra coisa que você teria de estar fazendo.
Você tem aí o resumo da condição humana na sua crueza material. Todos nós vivemos diante dessa condição humana, só que com a divisão de trabalho cada um só faz um pedacinho e não se lembra do pedacinho que o outro está fazendo. Dá a impressão de que é muito natural, por exemplo, ter luz elétrica, ter uma casa confortável, um carro com gasolina, etc.; ter tratamento para tudo. Mas isso é resultado da divisão de trabalho e de um encadeamento de causas que normalmente as pessoas não sabem recompor na cabeça. Se você perguntar a um cidadão que se acha culto de onde saíram todas as coisas que tem dentro da casa dele, como é que elas foram parar lá, ele não saberá responder. Porém, aquela família no Alaska sabe de onde veio tudo o que eles têm, tudo o que eles comem, tudo o que eles usam, um por um. Outra coisa, o sujeito tem de prever tudo. No instante em que está plantando algo, ele tem de prever quando o rio vai congelar porque tem de pescar os peixes antes disso. E é preciso uma certa quantidade de peixes --- é preciso saber a quantidade exata de que precisarão durante oito meses: o sujeito, a sua família, os seus cavalos, o cachorro, as suas vacas, todos. Cada uma dessas pessoas é um gênio assombroso, é um Leonardo da Vinci; eles sabem tudo, prevêem tudo. É claro que às vezes dá errado. Por exemplo, o sujeito estava fazendo um pasto e no meio do pasto tinha um toco de árvore que ele tinha de tirar dali. Foi com um machado e não deu, foi com um trator e não deu, fez tudo e depois resolveu explodir o toco: fez um buraco no toco e o encheu de pólvora, colocou um pavio, saiu todo mundo correndo e ficaram esperando, mas nada; fizeram uma vez, duas vezes etc.. Primeiro foram os amigos do sujeito, depois a família e, no fim, ele estava sozinho tentando explodir o toco. Ele levou quinze dias para explodir o raio do toco! E, enquanto isso, atrasou a preparação do resto do pasto, atrasou a pescaria, atrasou a caça, atrasou tudo. Se quebra uma máquina, por exemplo. Eles foram para lá com algumas máquinas e de vez em quando compravam algumas. Para comprar uma máquina eles têm de ir de barco, por 150 milhas num frio desgraçado; então compram a máquina e a colocam no barco para trazer. Se a máquina quebra não há mecânico, eles têm de saber tudo [sobre ela]. Então eles consertam tratores, automóveis, aquela máquina de ir na neve, consertam ferramentas, consertam a eletricidade da casa que é feita por eles mesmos --- enfim, têm de saber tudo.
Ali você tem, em miniatura, a situação material do ser humano. Note que até uma tribo de índios tem todos aqueles problemas. Há uma segunda série de documentários chamada Yukon Men (Os homens de Yukon), que é o mesmo problema vivido, mas não em uma família e sim numa cidade de duzentas pessoas. O problema é o mesmo e até pior: há um pouco de divisão do trabalho, mas acontece que ninguém pode viver só de um trabalho. Por exemplo, eles fizeram um encanamento para passar água quente para a cidade. O sujeito que conserta o encanamento também tem de acumular peixes e carne para o inverno, então ele também tem de ser caçador e pescador. Mas para ser isso ele precisa ter um certo número de cachorros para puxar o trenó, e os cachorros não param de comer, portanto ele também tem de prover a alimentação dos cachorros; e assim por diante. Todo o mundo tem todos os problemas, ninguém escapa. Isto é que eu achei notável: cada um dos membros dessas duas comunidades conhece o problema da comunidade como um todo. Existe a divisão de trabalho, mas não existe o trabalho invisível, que o sujeito está fazendo do outro lado e que ninguém sabe o que ele está fazendo. Por exemplo, enquanto nós estamos conversando aqui, há um hospital ali, com gente atendendo emergências, tem o sujeito que foi atropelado, tem o guarda que está perseguindo um ladrão não sei onde, tem o sujeito da companhia de eletricidade que está trabalhando de plantão nesta hora, e enquanto você dorme ele está lá acordado etc.; nós nunca pensamos nessas coisas! Mas numa comunidade pequena nós vemos tudo isso funcionando.
Eu recomendo muito que vocês vejam isso para que percebam que o problema da sociedade humana é o mesmo, naquela situação e na nossa. Só que aqui a divisão do trabalho picota as coisas e torna tudo invisível para as pessoas, então elas não sabem de onde vêm as condições que sustentam a existência delas. [1:30] É claro que uma coisa como a mentalidade revolucionária não pode surgir em um lugar desses, como não surge em uma tribo de índios. Uma coisa que eu também pensei vendo isso é que os problemas que essa cidadezinha ou essa família têm são os mesmos que uma tribo de índios tem. Se recuarmos para a idade da pedra, o homem de Neanderthal tinha todos esses problemas e, se ele não tivesse uma capacidade de previsão idêntica à que essas pessoas têm, a espécie teria acabado. Portanto eu imagino que o homem de Neanderthal deveria ser monstruosamente inteligente, porque cada um também tinha de controlar tudo --- a caça, a pesca, a agricultura, a saúde, a segurança; ele tinha de pensar em tudo ao mesmo tempo. O homem médio de hoje não tem essa capacidade.
Desse ponto de partida que é a condição real do ser humano na terra até surgir uma coisa tão absurda e tão louca quanto a mentalidade revolucionária teve de passar muito tempo. Isso quer dizer que o isolamento entre cada indivíduo e a condição objetiva que rodeia a sociedade foi tornando cada vez maior --- o hiato. Então as pessoas já não sabem mais onde elas estão e o que assegura a sua subsistência. Elas simplesmente não sabem e começam a imaginar coisas. É por isso que o Dr. Müller, que era um gênio da psicologia clínica, dizia que às vezes algumas pessoas adoecem e ficam neuróticas simplesmente porque subiram socialmente, e na medida em que elas sobem vão ficando mais afastadas desses problemas básicos, e então perdem o verdadeiro controle intelectual da sua vida e começam a viver de mitos. Então ele recomendava uma queda de posição social. Houve um sujeito rico que chegou lá com uma neurose e ele mandou o sujeito trabalhar três meses em uma olaria fazendo tijolos, e o sujeito sarou só de voltar aos básicos --- "quem não trabalha não come, e você terá de ficar o tempo todo lidando com barro, com terra". O sujeito sarou. A terapia foi genial!
A mentalidade revolucionária é uma dessas fantasias loucas que só podem surgir em um meio urbano altamente elaborado, com altíssima divisão de trabalho, onde há pessoas suficientemente deslocadas da realidade para presumir a sua capacidade de ação ao ponto de acharem que podem instaurar a eternidade aqui. Eu lhes garanto que nenhum esquimó ou índio jamais pensou em uma estupidez dessas, e esse pessoal do Alaska também não pensa essas coisas.
Às vezes há ali situações desesperadoras. Faltam dez dias para vir o inverno, que serão oito meses, e durante a maior parte dele é tudo escuro o tempo todo; a duração dos dias vai diminuindo até que some. Então não dá para fazer absolutamente nada e eles têm de ficar trancados em casa. E o sujeito pensa: "eu não tenho comida suficiente para o inverno". Houve dois sujeitos que ficaram desesperados e precisavam dar um jeito, e eles ouviram falar de uma ilha não habitada, onde só havia animais selvagens, que ficava há 150 milhas. Eles pegaram um barco, se encheram de água, percorreram a ilha e não encontraram nenhum animal selvagem --- nada, absolutamente nada. "Mas pensamos que estaria cheio de ursos, mas não há nada aqui! Só tem tatu bola!" É desesperador. Eles tiveram de voltar correndo. "E agora, o que vamos fazer? Vamos ter de catar moranguinhos?" Eles não têm um minuto de descanso, então não conseguem escapar da realidade e isso é o que eu acho mais bonito. Eles não conseguem escapar nem da rede das condições que pesam sobre a comunidade e nem dos vínculos de causa e efeito, do cálculo de possibilidade e impossibilidade; não conseguem escapar disso por um minuto, não dá para sair voando para a fantasia. É por isso que todos eles, embora a vida seja duríssima, dizem que não saem de lá por nada deste mundo, porque se saírem de lá irão para um hospício. Um deles fugiu para lá quando ainda era jovem por ter cometido um crime ou porque era bêbado e os problemas sumiram. Virou uma pessoa normal, honesta, racional.
Aluno: A luz não seria um exemplo de generalidade, já que não se faz luz com fóton?
Olavo: Ninguém jamais viu um fóton. Um fóton não é um elemento da nossa experiência, mas uma abstração científica obtida com aparelhos complicadíssimos e depende da colaboração de muitas pessoas. Daí você descobre que existe algo que talvez seja um fóton e que você equaciona matematicamente, mas que não é um dado da sua experiência. A luz, para nós, não é um objeto. Ela só se torna um objeto através de uma série de elaborações científicas cada vez mais abstratas e que arriscam nos colocar em um plano de falsidade e fantasia ontológica terrível, no qual o indivíduo vai confundir os objetos da experiência com objetos da experiência científica. O que é uma experiência científica? É uma coisa feita através de aparelhos e de cálculos complicadíssimos; aparelhos, por sua vez, cujo manejo não é aprendido cientificamente, mas é aprendido quase que esotericamente --- um técnico mais experimentado ensina o outro através de gestos, de olhares, de toda uma comunicação não-verbal. Depois de tudo isso descobrem que há um treco chamado "fóton". Esse fóton não é um objeto, de maneira alguma, e a luz também não é um objeto. A luz é o meio, é um quadro dentro do qual se dá a nossa experiência. Ela só pode ser concebida ontologicamente assim. Agora, quais são os elementos que a compõem, que a tornam possível? Isso é um problema muitíssimo remoto e secundário. Então a luz não é um objeto, portanto não é uma individualidade; e os fótons também não são individualidades, mas são hipóteses provisoriamente confirmadas por experiências --- não passam disso.
Aluno: Lendo os primeiros capítulos de O Mínimo que você precisa saber para não ser um idiota e ouvindo a sua aula da semana passada, pensei muito nos meus filhos pequenos. Gostaria de saber se há algo a fazer para tentar protegê-los desde já de virarem imbecis juvenis, tendo em vista que as escolas brasileiras estão tomadas por professores esquerdistas.
Olavo: Só há um jeito. Você só vai conseguir fazer isso se você se tornar a referência principal deles e se tiver mais autoridade do que a escola. Mas, para isso, você precisa ser um pólo de atração mais interessante do que a escola. Você precisa, primeiro, fazer com que a sua ligação afetiva com os filhos seja muito profunda; isso você tem de fazer desde o primeiro dia. Você tem de ser o suporte, o abrigo afetivo, tem de ser a vacina contra o medo, contra a tristeza, contra a depressão. Você tem de ser o lugar para onde eles voltam quando estão tristes ou quando se sentem fracos, você precisa criar um elo de confiança. Você só o conseguirá criar se você não quiser educá-los --- a sua função não é educar os seus filhos. "Eu quero que o meu filho seja assim ou assado, então vou treiná-lo para que seja isso ou aquilo." Se você fizer isso, já estará usando o seu filho como instrumento, e essa não é a coisa certa. Você não tem de ser propriamente o educador de seus filhos, mas o exemplo do que eles querem ser quando crescer. Você tem de agir com elas exatamente do jeito que gostaria que o seu pai tivesse agido quando você era criança; quer o pai tenha agido, quer não tenha. Mesmo que você tenha ficado órfão existe um pai imaginário na sua cabeça. O que você queria que o seu pai tivesse feito?
Ou seja, você tem de ser uma coisa boa na vida deles. Agora, se você quer que eles alcancem tal ou qual objetivo, então o objetivo tornou-se a coisa boa e você será o instrumento malvado que vai forçá-los para que eles cheguem lá. Se você entrou por aí, já entrou pelo lado errado. Você não tem de educar os seus filhos, mas tem de ser a pessoa a quem eles se dirigem quando têm dúvida --- você não é o professor, mas uma espécie de balcão de informações. E você tem de desenvolver neles a confiança no que está falando, o que exige uma sinceridade muito profunda. E também a consciência da sua autoridade de pai: você não é igual aos seus filhos, não é um coleguinha deles, não é um amigo deles, mas é eminentemente o protetor deles, e o protetor tem de ter autoridade. O que é autoridade? Autoridade significa que eles querem te obedecer, eles procuram a sua orientação. Mas para que eles façam isso é preciso que você não fique impondo essa orientação a todo momento; então quanto menos interferir, melhor. E quanto mais eles sentirem que você tem amor por eles, [1:40] que você é o protetor e é a pessoa confiável, então eles estarão vacinados contra qualquer besteira. Se eles confiarem mais em você do que no professor, está resolvido o problema. Não é muito complicado, não é preciso fazer homeschooling, coisa alguma. Eu nunca tive tempo de fazer homeschooling. Na verdade eu nunca ensinei coisa alguma a nenhum dos meus filhos, eu só respondia o que eles perguntavam. Mas se você se propuser "agora vou fazer um programa de homeschooling etc.", então você já virou uma espécie de administrador, uma espécie de prefeito.
Cada um encontra o seu arranjo, mas eu acho que estes princípios aqui são fundamentais. As pessoas pensam muito na formação dos filhos, e não na personalidade. A personalidade da criança não se desenvolve com o ensino que você transmite, mas pela convivência real. Não pode ser uma coisa planejada na sua cabeça, tem de ser a transmissão constante do amor, da proteção, da solidariedade. O filho tem de saber que você estará do lado dele aconteça o que acontecer. E enquanto é pequeno não dê bronca, só dê bronca depois que eles estão maiores. Até os cinco anos a criança não tem a noção de eu muito clara. E se não tem a noção de eu, como vai ter a noção de culpa? Espere um pouco, tenha paciência. É o que está na Bíblia: não atormente o seu filho. E quando a Bíblia diz que é para usar a vara, ela não está se referindo a bebê pequeno, ora! Vá pegar um do seu tamanho! Quando o filho já tem quatorze, quinze anos, aí você já pode ser meio durão com ele, mas quando é pequenininho tem de ser no "só love". Não há outro jeito, senão você vai infundir o medo nele.
E, outra coisa, não fique brincando muito com as crianças. "Ah, eu tenho de jogar futebol com o meu filho, porque se eu não fizer isso o que ele dirá de mim?" Você é o pai! Que palhaçada é essa? Vai ficar brincando como se fosse criança? Você tem de ter aquela distância senão ele não se sentirá seguro perto de você. Muitas vezes eu observei que os meus filhos faziam perguntas e pediam autorização para fazer as coisas mais óbvias: "Pai, posso ir ao banheiro?" "É claro que pode!" Daí eu fiquei pensando por que eles pediam autorização para essas coisas e cheguei à conclusão de que quando fazem essas coisas com a autorização do pai, eles vão com mais prestígio, mais autoridade aos seus próprios olhos. Ele não é um zé mané qualquer que está indo ao banheiro, ele está cumprindo uma ordem de uma pessoa importante.
Eu não acho que criança seja rebelde, a criança tem um instinto de obediência inato. Elas procuram o pai e a mãe para isso. Mas se você ficar se metendo muito e impondo a eles coisas que eles não entendem, eles vão ficar atrapalhados. Também sobre não entender, faça uma coisa: nunca dê explicação para um filho. Se você o mandar fazer certas coisas e ele perguntar "por que?", diga que foi porque você mandou. "Ah é, está certo. Ele é meu pai e me mandou, então eu vou fazer." É este senso de ter amor à autoridade, você tem de transmitir isso a eles.
Primeiro, mostrar que você está sempre ao lado deles; sempre. Segundo, não incomodá-los, não atormentá-los, como diz a Bíblia, ou ficar interferindo muito. Você fica de longe olhando para eles terem segurança, mas não interfira muito. Não desça do seu pedestal para ir brincar, isso é um fingimento. Você não tem de jogar futebol com os filhos ou brincar de não sei o quê com eles. Faça vários filhos para um brincar com os outros e você fica lá cuidando dos seus negócios. Você não faz parte do time, você é o guarda do estádio! Veja se o guarda vai parar de proteger as pessoas e ir lá jogar também --- isso não é possível. Eu demorei para entender essas dicas, mas entendi e sei que elas funcionam, e são as coisas mais simples. Vá a uma tribo de índios e veja se vai ter um índio brincando com o filho. Nunca. O filho é que imita o pai: ele quer brincar daquilo que o pai está fazendo, isso é o normal. Não sou eu que tenho de virar criança, ele é que tem de virar adulto. Isso é a coisa mais óbvia. Eu me lembro que quando era criança brincava tentando imitar o que os adultos estavam fazendo.
Um aluno aqui me escreve uma longa carta que é uma espécie de narrativa de um problema pessoal. Eu não vou responder aqui, e também eu não acho que o problema que você conta seja tão grave. Só quero observar uma coisa: você está escrevendo muitíssimo bem. No mínimo algum talento literário óbvio você tem, e vai ser por aí que você vai encontrar a solução dos seus problemas.
Eu acho que não dá para responder mais nada, já fomos longe demais. Vamos parar por aqui. Para quem quiser, ainda dá tempo de se inscrever no curso Sociologia da Filosofia, que será de 30 de setembro a 5 de outubro. No meu site olavodecarvalho.org tem todas as dicas para quem quiser se inscrever. Eu queria agradecer muito a atenção de todos e até a semana que vem.
Transcrição: Mariana Belmonte
Revisão: Antonia Javiera Cabrera Muñoz
Revisão Final: Leonardo Yukio Afuso