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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula nº 215

10 de agosto de 2013

Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.

Desculpem o atraso. Em razão da tempestade aqui na região, a transmissão está realmente muito ruim e pode cair a qualquer momento. Se isso acontecer, desculpem novamente.

Nós vamos continuar aqui com o texto do Jean Brun. Mas antes eu vou ler um artigo que acabei de mandar para o Diário do Comércio, pois está de algum modo relacionado com o nosso assunto de hoje: a transformação da noção de verdade a partir de Nietzsche. O artigo chama-se "Mais inépcia acadêmica" 1:

No debate da TV Cultura com o intelectual católico Sidney Silveira, talento superior que merecia adversários bem melhores, um sr. Ricardo Figueiredo de Castro, professor de História Contemporânea na UFRJ, deu um show de ignorância à altura do que é de se esperar da classe universitária hoje em dia, enquanto seu colega Paulo Domenech Oneto, professor de Filosofia Política na mesma instituição, preferiu caprichar na baixeza e na mendacidade, como seria mais próprio de um ministro de Estado.

O primeiro, com aquele olhar de tranqüilidade soberana que dá a qualquer um os ares de uma tremenda autoridade científica, assegurou que "os conservadores de hoje em dia, como os do século XIX, tendem a pensar o processo histórico desde uma perspectiva rígida, formalista, que não aceita a mudança".

Sei o quanto é injusto, cruel e desumano exigir que um professor universitário de hoje em dia conheça alguma coisa, mas, se esse professor de história conhecesse ao menos a história da sua própria disciplina, saberia que o senso do tempo, da história e da mutabilidade foi introduzido no pensamento europeu por historiadores intelectuais conservadores, em reação contra a idéia dos revolucionários de 1789 que, inspirados na física newtoniana, acreditavam numa sociedade moldada segundo os cânones universais e imutáveis da Razão.

Os nomes de Georg W. F. Hegel, Edmund Burke, François-René de Chateaubriand, Leopold von Ranke, e, mais tarde, os de Jacob Burckhardt e Hippolyte Taine, deveriam bastar -- para quem os leu, é claro, o que não é absolutamente o caso -- para eliminar qualquer dúvida a respeito.

Já entre os revolucionários, nem mesmo em Karl Marx aparece claramente o senso da "mudança como algo inerente ao processo histórico", para usar os termos do prof. Figueiredo, já que a visão marxista da história é a de um processo predeterminado por leis tão imutáveis quanto as de Newton, caminhando de fatalidade em fatalidade até desembocar inexoravelmente no socialismo.

A elevação da "mudança" às alturas do mito abrangente e força universal soberana não aparece no pensamento ocidental moderno antes de Nietzsche -- aliás, um discípulo de Jacob Burckhardt --, embora tenha tido alguns precursores na fileira do anarquismo e também em alguns obscuros representantes da intelectualidade revolucionária russa pré-marxista.

Essas discussões da intelectualidade russa não se tornaram conhecidas na Europa Ocidental antes do sucesso de Dostoievski na França. Esse sucesso aconteceu, na verdade, somente no século XX, graças a um pequeno livro de André Gide sobre Dostoievski. Antes circulavam umas traduções muito ruins, que alimentavam toda sorte de confusões e provocaram então reações muito negativas -- ninguém gostava do Dostoievski. Mas quando, por volta de 1920, foram publicados o livro do André Gide e traduções melhores, o pessoal começou a ler Dostoievski e a tomar consciência das discussões que havia na intelectualidade russa. São páginas e páginas de Dostoievski, em que uns camaradas se enchem de vodca e discutem noite adentro as idéias mais estrambóticas de um movimento socialista pré-marxista. E naquela época já havia esse senso da mudança enquanto tal, a ponto de o movimento revolucionário ser designado com a simples expressão "o movimento", de maneira que havia uma espécie de idealização do movimento e da mutabilidade enquanto tal. Mas isso foi na Rússia. No Ocidente, isso só pega realmente a partir de Nietzsche, como nós vamos ver.

É uma coincidência feliz ou infeliz o sujeito mencionar isso justamente quando estamos estudando o mesmo assunto.

Confiante na sua devota ignorância histórica, o referido sentenciou ainda que os conservadores "tendem a exagerar o papel dos políticos de esquerda na condução do processo de transformação, como se este fosse gerido por pequenos grupos de intelectuais, e não algo que faz parte da dinâmica da sociedade".

Ele deveria ter ensinado isso a Lênin, que zombava de todo "espontaneísmo", como ele o chamava, e enfatizava mais que ninguém o papel da vanguarda revolucionária. Poderia também ter dado lições a Georg Lukács, para o qual a consciência de classe do proletariado não era sequer uma realidade presente, mas uma possibilidade abstrata a ser concretizada pela ação da elite. (...)

Ele falava em "consciência possível". Antes se acreditava em consciência de classe como um fenômeno histórico real, uma coisa presente. E Lukács disse que não, que o proletariado tem apenas a possibilidade de ter uma consciência de classe, e esta possibilidade tem de ser ativada pela atuação da elite.

(...) Poderia também passar uns pitos em Antonio Gramsci, para o qual a força criadora da revolução está acima de tudo na elite intelectual. Ou então poderia escrever uma tese de que Lênin, Lukács e Gramsci foram conservadores.

Para vocês terem idéia de como as pessoas estão longe do próprio assunto que lecionam: elas não têm a menor idéia disso. A bibliografia marxista sobre o papel da elite é imensa. Eu poderia até citar aqui todo o fenômeno da evolução do pensamento marxista, desde a idéia inicial de ideologia de classe proposta por Marx até o estado atual, em que Ernesto Laclau diz que a propaganda revolucionária cria a classe que depois ela diz representar. Ou seja, chegamos aí no elitismo completo: a função da elite é tudo, e a classe que a elite representa é uma invenção dela mesma. E vem esse cara dizer que são os conservadores que pensam assim? Como? Então, evidentemente ele está falando de um marxismo que desconhece por completo.

É claro que na sociedade há processos de transformação espontâneos mesclados à ação planejada de grupos políticos. Já expliquei que a descrição meticulosa desses dois fatores, bem como a análise das suas múltiplas relações e interfusões, é a chave de toda a narrativa histórica decente.

Vocês devem se lembrar da regra do Georg Jellinek (que já citei várias vezes), de que tudo na história e nas ciências sociais depende de conseguir distinguir os processos que resultam de um plano, de uma ação premeditada, e os que se formam pela confluência espontânea e impremeditada de vários fatores. Em parte, os primeiros fatores (os fatores planejados) se diluem na multidão das correntes que se fundem anarquicamente na sociedade, e, por sua vez, os processos espontâneos também são absorvidos dentro dos planos que se remanejam para levar em conta o curso impremeditado das coisas.

O exemplo mais clássico disso seria o plano de Stalin de usar o nazismo como, conforme ele chamava, o "navio quebra-gelo" da revolução, ou seja, alimentar a formação do exército alemão. Pelo Tratado de Versailles, a Alemanha estava proibida de ter um exército, mas a Rússia cedia o seu território e dava ajuda técnica, dinheiro e armas para formar um exército alemão no território russo, preparando a Alemanha para atacar as potências ocidentais, com a idéia de que, como o nazismo era uma revolução sem suporte teórico, algo irracional, os alemães eram os loucos que ganhariam e não levariam, então a Rússia iria atrás dos alemães e tomaria tudo. Esse era o plano, e foi posto em execução.

Stalin alimentava o nazismo de um lado e, nos demais países, como Inglaterra e França, fazia uma brutal campanha antinazista. Isso é característico da estratégia comunista: agir por dois lados opostos ao mesmo tempo, mais ou menos na base da tese-antítese para produzir uma síntese. O próprio Stalin já estava pronto para invadir a Alemanha: assim que ela atacasse as potências ocidentais, ele a atacaria pelas costas. O exército russo inteiro já estava na fronteira, preparado para isso. Mas Hitler [0:10] fica sabendo, e então invade a Rússia. O plano tinha vazado. A Rússia imediatamente muda toda a sua política no Ocidente, criando a estratégia do front popular -- então não se falava mais em revolução comunista, apenas em democracia, paz etc. --, angaria o apoio ocidental, derrota a Alemanha e toma metade da Europa, como planejado no começo. Houve evidentemente um imprevisto, mas que foi reabsorvido, e Stalin deu a volta por cima.

Isso acontece inevitavelmente em todo e qualquer plano porque ninguém é capaz de levar em conta todos os fatores ao mesmo tempo, sempre acontece alguma coisa que não estava no programa, e é preciso modificar o plano. Isso faz parte da natureza do plano. O economista Pierre Mercier chamava o plano de "o antiacaso": existe uma força anárquica do acaso e existe a razão humana que tenta rearticular os elementos irracionais e reordená-los dentro de uma racionalidade.

Isto é o mínimo que temos de saber a respeito dessas coisas. E não há uma fórmula que se possa [saber] de antemão. O que predomina na história são leis anônimas e impessoais ou é a ação deliberada dos indivíduos? Não há resposta teórica para isso. Você precisa estudar os fatos como foram, caso por caso. Por exemplo, você vê que a central de planejamento mais organizada, mais unitária e mais poderosa do mundo, a da elite globalista, já errou no cálculo muitas vezes devido ao surgimento de movimentos nacionalistas aqui e ali. A idéia do governo mundial era que estivesse implantada desde 1980, e até agora, de certo modo, não está. Todo plano pode ser muito difícil, e há uma luta permanente contra o acaso. É necessário estudar isso aí caso por caso: distinguir em cada circunstância quais foram os elementos que foram entrando em jogo. Porque, é claro, se você tem um plano, o outro lado também tem. É a história do Mané Garrincha: Você já contou isso para o outro time? O técnico explica a estratégia, mas o outro time também tem a sua. E essa luta constante entre o acaso e o plano é o tecido mesmo da história.

[queda de transmissão, cancelamento da aula]

Transcrição: Jussara Reis de Abreu

Revisão: Carla Farinazzi e Jussara Reis de Abreu

Revisão Final: Elisabete Franczak Branco

Footnotes

  1. O artigo foi publicado sob o título "Professores": <http://www.olavodecarvalho.org/semana/130819dc.html\>.