Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 211
13 de julho de 2013
Boa noite a todos, sejam bem-vindos!
Vocês devem ter encontrado na página um texto que usaremos na aula de hoje, do livro Filosofia e Cristianismo1 de Jean Brun. Vamos pular essa introdução e começar a leitura e o comentário pelo primeiro capítulo, que está na página 6, e vamos fazê-lo porque essa introdução na verdade é a conclusão do livro, e ela de fato se torna até difícil de compreender a quem não tenha lido o restante ou não tenha uma idéia anterior do que é o pensamento do autor. Para aqueles que nunca leram Jean Brun essa introdução é realmente problemática, e é melhor deixá-la para o fim, mas como introdução a este tema eu quero ler umas notas que tomei para outra coisa que estou escrevendo e que podem servir vagamente de introdução para esta leitura e comentário, porque dão uma idéia abreviada de um certo estado de coisas cuja explicação podemos encontrar justamente nesse livro. Eu pretendo continuar com ele durante quatro aulas, traduzindo uma parte por semana --- o texto não está completo, ainda vem mais coisa depois ---, e se possível levar a tradução até o fim e publicar o livro --- que eu acho de uma importância extraordinária --- no Brasil.
Jean Brun, que foi professor nas universidades de Dijon e de Rennes, é autor de uma obra vastíssima, com muitos livros importantíssimos sobre a história da filosofia antiga, sobre o epicurismo, sobre Sócrates e os estóicos, muitos [deles] publicados na coleção Que sais-je?, e é talvez o único filósofo do século XX do qual se pode dizer que seja um discípulo direto de Blaise Pascal, o que já o torna uma figura singular no panorama da filosofia francesa. Mas deixem-me ler as notinhas que tomei e depois explico o motivo.
"Desde os anos 60 do século XX brotou por toda parte uma onda de movimentos aparentemente diversos e conflitantes, tão múltiplos e variados nos seus estilos, nos seus objetivos declarados e nas suas esferas de ação que o cidadão comum não consegue sequer nomeá-los todos, quanto mais abarcá-los numa visão de conjunto minimamente ordenada. Dessa confusão de tendências provêm praticamente todas as idéias, símbolos, metas e valores que hoje inspiram as discussões públicas por toda parte."
Eu deveria ter dito que a linguagem das discussões públicas também foi forjada na década de 60.
"Tudo o que a civilização criou antes disso só é conhecido hoje pelos olhos da época que gerou esses movimentos. Todo mundo é de algum modo filho dos anos 60, mas filho gerado numa sessão de sexo grupal, que jamais viu o pai e só conserva da mãe uma lembrança muito nebulosa e longínqua. Raramente se encontra hoje em dia alguém consciente de até que ponto suas crenças, seus sentimentos e sua interpretação da vida foram determinados pelos anos 60, e de quanto essa época logrou ou apagar ou remanejar a seu modo todo o legado histórico anterior, desprovendo-o de sua voz própria.
Eis aqui alguns dos principais movimentos citados em desordem: contracultura, antipsiquiatria, Nova Era, Revolução Cultural, neocientificismo, imigracionismo, poder negro, indigenismo, liberação sexual, feminismo, abortismo, gayzismo, teologia da libertação, ecumenismo, orientalismo, tradicionalismo, sócio-construtivismo, animalismo, transumanismo, nova esquerda, lisergismo, drogas, rock'n roll e sucessores, redes globais, terceiro-mundismo."
E tem mais. A lista poderia continuar indefinidamente.
"Cada um desses gerou uma bibliografia inabarcável, debates sem fim e uma floração ilimitada de notícias, programas de TV e espetáculos de toda sorte.
Por trás dessa variedade desnorteante é possível destacar vários traços comuns que escapam geralmente ao observador leigo: (1) todos esses movimentos ocupam espaço na grande mídia mundial, que os trata invariavelmente com simpatia e lhes dá por vezes ares de acontecimentos intelectuais de primeira ordem; (2) todos têm apoio do show business; (3) todos contam com financiamentos bilionários e, com freqüência, com o apoio de governos ou de uma parte considerável da classe política; (4) todos acabam mais cedo ou mais tarde desaguando em mudanças fundamentais na educação, nos critérios públicos de julgamento e nas legislações civis e penais das várias nações; (5) essas mudanças são sempre uniformes por toda parte, eliminando diferenças nacionais e regionais e automaticamente fortalecendo o poder dos organismos internacionais sobre os governos locais.
Quem quer que se dê ao trabalho de examinar os escritos de seus principais porta-vozes e doutrinários notará ainda uma outra característica comum a todos esses movimentos: um vácuo intelectual formidável, preenchido pela mais grandiloqüente presunção de fazer tábua rasa do passado e inaugurar um novo mundo."
Então, essa é a situação na qual nos encontramos. Todos esses movimentos foram colocados em circulação mais ou menos ao mesmo tempo, são enormemente variados entre si, suas linguagens são diferentes, às vezes até mutuamente incomunicáveis, mas não há nenhuma esfera da atividade humana que não tenha sido afetada por eles, nas quais não tenham penetrado profundamente e determinado mais ou menos os critérios de julgamento, a linguagem, os esquemas de pensamento e até os reflexos condicionados com que as pessoas reagem aos acontecimentos. A única maneira de conseguir se orientar sobre o que está acontecendo é, em primeiro lugar, conseguir encarar esse processo como uma totalidade, enxergando que por trás dessa variedade existe uma convergência; em segundo lugar, olhar esse período da História, dos anos 60 até agora, à luz da história anterior, e não o contrário ---porque é evidente que os anos 60 trouxeram a sua própria visão da história passada, das outras civilizações, e essa visão se impregnou nos livros didáticos, na mídia, no show business, no cinema; é possível dizer que toda a visão histórica de hoje é a que foi criada nesta época ---; e, em terceiro lugar, ter a noção de que esses não são movimentos intelectuais, mas que foram criados e subsidiados por um mesmo grupo de pessoas. Quem está por trás dessas coisas são sempre aquelas duzentas ou trezentas famílias que estão reunidas no Grupo Bilderberg. É daí que sai o dinheiro, o treinamento, as recompensas públicas dadas aos intelectuais que colaboram, muitos dos quais não precisam sequer ter sidos cooptados conscientemente. As pessoas são selecionadas dentro do panorama cultural da época, e aqueles mais convenientes são pinçados e recebem algum prêmio ou incentivo --- uma bolsa, um rent, um cargo, algum prêmio internacional. Em suma, a promoção da atividade intelectual e artística sempre vem das mesmas fontes.
Com todo esse conjunto, o que se visa não é de jeito nenhum convencer ninguém de nada, pregar uma doutrina, fazer as pessoas aceitarem um projeto, mas apenas obter um efeito de conjunto [0:10] que evidentemente exige ações que, sendo simultâneas, são às vezes também contraditórias, devido ao princípio de que na sociedade humana não existe ação linear, quer dizer, toda ação para ter alguma eficácia precisa ter pelo menos duas correntes de ação que produzam um efeito convergente, sem que pareçam na verdade ter alguma ligação entre si. Por exemplo, uma coisa importante é ter o controle do debate público, ou seja, selecionar quais são as posições que serão debatidas, cristalizando e consolidando na medida do possível essas posições até que elas se tornem "lugares comuns", de modo que o que quer que se diga será sempre catalogado dentro duma daquelas [posições], tudo convergindo para que o debate produza os efeitos desejados.
Tudo isso é uma imensa obra de engenharia social e até de engenharia histórica, eu diria. Quando se observa o livro de Arnold Toynbee --- que nunca foi propriamente um historiador, ele era um especialista em inteligência, um homem que trabalhava para o serviço secreto britânico --- Um Estudo de História, [se percebe que] ele escreveu esse estudo não apenas como uma obra histórica, mas como um projeto de ação civilizacional. A questão que se colocava para ele era como as civilizações são destruídas; não como elas se formam, mas como elas acabam. Todo o sistema que ele descreveu ali é o que é utilizado hoje contra o Ocidente: o ataque, ele diz, por um proletariado interno e por um proletariado externo ao mesmo tempo --- ele chama de proletariado, mas vai dando uma acepção enormemente vaga ao termo. Ou seja, há uma massa que ataca por dentro e outra que ataca por fora ao mesmo tempo, e evidentemente tudo depende de que a elite que domina a situação seja capaz de reagir a esse desafio de maneira inteligente, o que raramente ocorre. No caso, a elite européia e a americana não podiam reagir de maneira inteligente, mesmo porque elas próprias estavam envolvidas no projeto de destruição, sendo quase inteiramente instrumentalizadas e postas para trabalhar para este mesmo projeto.
O conteúdo intelectual propriamente dito dessas várias correntes é realmente pobre quando examinado. Por exemplo, toda a argumentação ecumenista que surgiu com o Concílio Vaticano II, exatamente nos anos 60 --- o Concílio ocorreu em 1962 ---, a da esperança do "diálogo inter-religioso como houve em Assis", é uma patacoada infernal. Não houve diálogo nenhum, aquilo foi um saco de gatos. O ecumenismo sempre acaba esbarrando em dificuldades intransponíveis. A única coisa que o assinala é que os envolvidos estão todos no mesmo lugar, mas o que estão falando, embora o façam muito educadamente e com muita simpatia, é absolutamente incompatível entre si. É mais um acontecimento social do que algo cuja substância intelectual mereça ser discutida. Quando leio hoje o conteúdo das discussões do Concílio Vaticano II, aquilo me parece de uma miséria intelectual absolutamente fora do comum, de parte a parte: o pessoal dito progressista entrava com chavões, discursos apelativos etc., e pessoal do outro lado respondia que aquilo era contra a doutrina da Igreja Católica. Parece o caso daquele português que, indagado por um turista se ele sabia onde ficava o convento dos carmelos, respondeu "Ó raios! e quem é que não sabe?", virou as costas e foi embora. Quem não sabia que aquilo era contra a doutrina tradicional da Igreja? Todos sabiam, e [o] escreveram exatamente por causa disso. Não houve efetivamente uma sondagem profunda da situação anterior, do quadro de condições anteriores que havia gerado aquela situação. Não houve uma compreensão profunda do processo em parte alguma, nem a mais mínima tentativa de dialetizar a coisa, houve apenas, por assim dizer, um confronto estático de opiniões. Quem quer se opor efetivamente a uma determinada corrente tem de absorvê-la primeiro. Já dizia Nietzsche que só se vence aquilo que se substitui. Quer dizer, cada um dos lados [ali] deveria ter absorvido profundamente o pensamento do outro, inserindo-o numa nova estrutura. Nenhum dos dois foi capaz de fazer isso, [e tudo] foi apenas um "confronto estático".
Quando se lê, por exemplo, os argumentos em favor das drogas que surgiram nos anos 60 ---argumentos dos quais depois não se precisou mais porque as drogas se propagaram por si mesmas --- escritos por Aldous Huxley e por Timothy Leary, chefe do movimento lisérgico, vê-se que aquilo tudo é de uma vacuidade e às vezes de uma imbecilidade acachapante. O próprio Aldous Huxley, normalmente um homem inteligente, dizia que o Ocidente está acostumado com a idéia de que a religião é uma questão de fé e de obediência, mas as antigas civilizações forneciam às pessoas experiências místicas diretas, e que eles podiam fazer isso através das drogas. Isso é algo absolutamente infantil, boboca, que não merece atenção. Não é preciso nem falar dos argumentos feministas, gayzistas, dos direitos dos animais etc. Todas essas coisas são de uma vacuidade enorme, mas elas têm um efeito por assim dizer fosfórico, atraindo a atenção e mantendo ocupadas as pessoas, que depois de algum tempo se acostumam com o fato de que todas as discussões devem ser travadas mais ou menos nesses termos.
Isso, de certo modo, impossibilita que se tenha uma visão da retaguarda histórica e que se encare o presente à luz do passado. Hoje, só se pode encarar o passado à luz do presente, e isso causa o fenômeno que numa conferência que fiz na Unesco há muito tempo chamei de cronocentrismo: o sujeito acha que o tempo, o dia em que ele está é o centro e o topo da História, e que todo o resto se encaminhou para chegar ali e de certo modo contém o resumo de todo o [tempo] anterior, o que é uma idéia absolutamente estúpida. O presente só pode conter o passado se houver nele um número suficiente de pessoas que se lembrem do passado. Se o passado foi escondido ou esquecido, então evidentemente ele não está contido no presente, ele simplesmente desapareceu. Na nossa própria vida individual verificamos que nossa experiência anterior só se integra na nossa consciência presente se for recordada, analisada, repensada etc. Se foi simplesmente esquecida, não significa mais nada. Hoje se sabe que é possível --- e não é difícil --- mudar toda a estrutura da personalidade de uma pessoa em dois dias, e [então] todo o passado dela desaparece, e ela começa a ter uma nova referência, criando para si um novo passado. Em resumo, a idéia de que o presente contém o passado é falsa. O presente pode conter o passado se se fizer um esforço para isso. Do mesmo modo, só existe progresso do conhecimento se àquilo que se sabe hoje soma-se a recordação do que se sabia antes. Agora, se alguém, a cada coisa nova que aprende, esquece uma do passado, não fez progresso algum, está girando em círculo, e é exatamente o que vem acontecendo no mundo ocidental inteiro desde os anos 60, graças a essa tempestade de movimentos que vivem oferecendo novas chaves para a História.
A lista que eu fiz é muito pequena, mas o florescimento mesmo dessas amostras de confusão mental mostra um estado de coisas que exige de certo modo que a gente se pergunte como pudemos descer tanto, como [0:20] pudemos chegar a este ponto. Há dois elementos que se devem levar em conta. O primeiro são os meios materiais de ação; tudo isso seria absolutamente impossível sem a rede mundial de telecomunicações, sem os computadores, sem a televisão etc. Imagine, por exemplo, quanto tempo um decreto assinado por um papa no século XII levava para entrar em vigor. Levava anos, porque os mensageiros a cavalo tinham de atravessar distâncias enormes, às vezes eram assaltados ou morriam no caminho, de forma que um decreto do papa até chegar ao último padreco de província decorria-se um tempão. Ordens militares também. Vocês sabem por que Napoleão perdeu a batalha de Waterloo? Ele mandou um general perseguir o exército austríaco que estava em retirada, e o sujeito continuou perseguindo o exército sem perceber que este estava dando a volta para se juntar com o exército prussiano e fazer um ataque conjunto. Hoje, com o telefone celular, isso não aconteceria de maneira alguma; o general telefonaria para Napoleão informando que os austríacos estavam dando a volta, perguntaria o que fazer e Napoleão lhe diria para voltar e reforçar a tropa. Mas naquela época, se havia um exército se deslocando, o correio pelo qual se transmitia uma ordem não era mais veloz que o exército que ele estava tentando alcançar, e era possível perder momentos preciosos, como Napoleão perdeu ali. A possibilidade de ordens simultâneas transmitidas praticamente no globo terrestre inteiro inaugura uma possibilidade de ação que não existia antes e que é, por definição, altamente centralizada, porque depende de meia dúzia de empresas ou de governos que têm o controle desses meios de ação.
Quando houve aquele atentado na Espanha uns anos atrás --- não lembro em que ano ocorreu2 ---, em vinte e quatro horas havia uma imensa manifestação popular na rua, não contra os terroristas, e sim contra o governo espanhol. Como é que se consegue organizar toda uma massa e colocá-la na rua em vinte e quatro horas com um objetivo aparentemente tão contraditório? Isso só se explica pelo fenômeno das redes, que têm uma comunicação quase que instantânea. É verdade que elas podem às vezes ser aproveitadas por indivíduos ou grupos mais ou menos independentes, que tentam então organizar mobilizações por sua própria conta, mas, no fim das contas, aqueles que detêm o controle do sistema têm uma imensa vantagem. Imaginem o aparato técnico necessário para fazer a espionagem praticamente universal desse fenômeno do grampo geral que vimos aqui nos Estados Unidos, e imaginem se isso poderia estar ao alcance de um cidadão comum ou de um grupo privado. Nunca! Isso custa uma fortuna incalculável. O que começou a marcar a diferença específica do século XX foi o advento do rádio, sem o qual não existiriam as grandes ditaduras fascista, comunista, nazista etc., porque era através dele que um líder carismático podia falar a todo o povo instantaneamente. Se recuarmos alguns séculos, no tempo de Luís XIV, se este quisesse falar para todo o povo, só havia um jeito: ele tinha de ir de cidade em cidade, pessoalmente, falando aqui para dez mil, ali para vinte mil, e somente depois de uns dois anos teria falado à nação inteira. Mas Mussolini ou Stálin pegavam o microfone e falavam para toda a nação ao mesmo tempo. Então, sem o rádio, esses grandes movimentos de massa não teriam sido possíveis. A coisa depois ainda acelerou muito, e hoje há meios de ação em escala universal com uma velocidade absolutamente fulminante.
Todo o falatório que vem desses movimentos ocupa de tal maneira o espaço [das discussões públicas] que a oportunidade de alguém recuar um pouco e tentar vê-los num contexto histórico maior é quase nula. Foi para isto mesmo que eu selecionei esse texto de Jean Brun, o qual, sobretudo nesse primeiro capítulo --- do qual eu traduzi somente a quarta parte, os outros serão usados nas próximas aulas ---, nos dá um recuo de dois milênios para ver como é que chegamos a isso. Então, vou começar a ler e comentar.
"Capítulo I: Do desvelamento à desintegração da verdade3
Uma história sinóptica da noção de verdade poderia reter quatro etapas muito significativas do seu destino, etapas que permitem trazer à plena luz tudo o que está em jogo no problema. Essas quatro etapas, com efeito, não correspondem somente a períodos da história: elas traduzem a essência mesma das diferentes relações fundamentais do homem com a verdade."
Ou seja, ou autor vai mostrá-las em seqüencia cronológica, mas a abordagem não é necessariamente cronológica. Essas diferentes visões da verdade podem coexistir num certo tempo, porque elas não são somente etapas, são perspectivas estruturais, possibilidades permanentes que estão no ser humano. Se elas se manifestam cronologicamente, isso não quer dizer que estejam presas a uma determinada época histórica; elas podem coincidir, coexistir, como hoje, de fato, coexistem.
"O mundo grego até Plotino falou essencialmente do acesso do homem à verdade. Os tempos modernos começaram com Descartes e Kant, que estudaram os fundamentos necessários à instauração da verdade."
Ou seja, passa-se aí de uma visão em que a verdade é algo que existe fora ou acima do homem, que de algum modo tem de abrir um caminho para chegar a ela, [para a visão], a partir de Descartes e Kant, [de que] a verdade é de certo modo uma criação --- uma instauração, nos termos deste --- feita por iniciativa humana.
"A partir de Hegel aparece uma dinamização da verdade pelo exercício da dialética; já não é mais o homem que progride em direção à verdade que ele desvela e apropria, é a verdade mesma que se desvela ao progredir na história, onde ela se faz para desfazer-se e refazer-se."
Para Hegel não existia outra verdade senão a progressiva auto-manifestação da verdade no decorrer da História, quer dizer, o conteúdo da História é de fato o conteúdo da verdade.
"Tal visão do mundo desemboca por fim, com Nietzsche, numa desintegração da verdade (...)"
Percebe-se que esses quatro períodos têm duração cada vez menor. Então, é de supor que esse período da desintegração no qual estamos vivendo vai ter uma duração muito curta. Na realidade, esse processo de desintegração da verdade já acabou, quer dizer, ele alcança o seu auge com o tal do desconstrucionismo, o qual intelectualmente está morto; mas é claro que [o fato de] uma corrente estar intelectualmente morta não quer dizer que [ela] sociologicamente tenha desaparecido.
"(...) e do sujeito mesmo."
Quatro etapas e quatro procedimentos ao longo dos quais o homem não cessou de se experimentar como um ente 'sem pátria'. Heidegger insistiu com freqüência no alcance etimológico da palavra grega aletheia, traduzida por verdade. Ela vem do verbo lanthanein, que significa ocultar, e do prefixo negativo a. Para os gregos, a verdade é, com efeito, aquilo que foi desocultado, mostrado, desvelado, arrancado ao rio do Letes, (...)"
Letes é o rio do esquecimento, que os mortos atravessam quando vão para o outro mundo e apagam esta vida.
"(...) e reencontraríamos aqui a alegoria bem conhecida que representa a verdade como uma mulher nua saindo de um poço. Conhecer resulta em retirar um a um os véus que nos ocultavam a verdade." [0:30]
Ou seja, é comum, de fato, a todo o mundo grego, essa visão de que vivemos num mundo de aparências, e que por trás desse mundo existe um outro mais permanente, mais estável, que corresponde à verdade. Essa visão aparece em todo mundo: em Parmênides, em Heráclito, em Platão, até nos sofistas, de algum modo.
"Para Platão, esses véus reduzem-se a dois principais: a sensação e a opinião. É portanto essencial operar um despojamento intelectual que nos permita libertar-nos das aparências falaciosas; para isso, as matemáticas são de uma ajuda insubstituível, pois elas fazem chegar às idéias abstratas de figura e de número, as quais nascem, não de uma aproximação no espaço, mas de uma aproximação pelo espírito."
Quer dizer, o desenvolvimento das matemáticas no mundo grego forneceu àquela gente um primeiro sinal do que poderia ser um conhecimento apodíctico, indestrutível, absolutamente provado e independente das preferências e das ilusões humanas. As figuras geométricas tinham uma estabilidade [e] suas propriedades eram estáveis; quem quer que acompanhasse as demonstrações geométricas chegaria sempre às mesmas conclusões, e isso portanto libertava as pessoas de quaisquer ilusões subjetivistas. As matemáticas então foram usadas como modelos que remetiam a entidades que não tinham uma existência física, mas que tinham uma estabilidade e uma consistência próprias. Embora não se conseguisse tocá-las ou vê-las, e só fosse possível imaginá-las de longe ou antes imaginar simulacros delas, ainda assim elas tinham uma espécie de resistência objetiva, que mostrava que elas de fato existiam independentemente do ser humano. Daí [vem] as idéias ou formas de que fala Platão, que representariam o mundo mais estável por trás do mundo das aparências em constante fluxo.
"Graças às matemáticas, podemos chegar às essências eternas que nos subtraem ao domínio do devir."
O devir, a constante transformação. Na medida em que se treina a mente nas matemáticas, apreende-se as noções de forma e de número, e com isso pode-se chegar a ter a visão de realidades invisíveis, porém eternas.
"Todavia, o saber que nos dão as matemáticas não constitui senão uma 'propedêutica'4 e 'o prelúdio da ária que é preciso aprender'5. O saber (episteme) pelo raciocínio discursivo (dianóia) não é senão o prefácio ao conhecimento (noesis) pelo espírito (núus)6. Tal conhecimento faz a alma ter acesso ao 'princípio absoluto'7, ele anula a perda das asas e a queda que se seguiu, ele permite subir deste baixo mundo até o alto o mais rapidamente8, para nele refugiar-nos9.
É precisamente por anular a queda, em decorrência da qual a alma, que outrora acompanhava os deuses no seu curso, caiu na prisão do corpo, que o conhecimento é reminiscência10; graças e ele encontramos a via ascendente que reconduz à verdade perdida. Tal conhecimento tem algo da contemplação iniciática honrada nos [ritos de] Mistérios, onde o mista, (...)"
O mista é o aprendiz, o indivíduo que está no caminho da iniciação. Daí vem a palavra "mística".
"(...) após haver transposto as diferentes etapas da iniciação, era admitido à contemplação da verdade que lhe era por fim desvelada.
Nessa marcha ascensional, Eros vem desempenhar, em Platão, um papel fundamental, na medida em que serve de intermediário entre os mortais e o Imortal. Eros permite-nos, com efeito, ter acesso à idéia de Beleza, pois ele nos faz perceber que a beleza que se encontra num corpo é irmã daquela que vemos em todos os outros.11"
Ou seja, o Eros como desejo nos impele a uma experiência cada vez mais plena da beleza e, então, segundo Platão, partimos da beleza da contemplação deste ou daquele corpo até a contemplação de uma espécie de padrão, de arquétipo da beleza, que está presente em todos eles, embora este arquétipo seja, por assim dizer, indizível.
"Ele cura-nos, assim, de todas as separações, e nos liga àquilo que vem do alto, 'ele é portanto o liame que une o Todo a si mesmo'12; (...)"
"A si mesmo" porque o [percurso no qual] o indivíduo humano se transporta desde o mundo das aparências até o mundo do ser ocorre no próprio mundo do ser. Portanto, quando a alma do indivíduo humano se liga ao Todo, é o Todo que está se ligando a si mesmo. Esse tema vai ser muito importante daqui a pouco, quando chegarmos a Plotino.
"(...) o amor é encarregado de 'traduzir e transmitir aos deuses o que vem dos homens e aos homens o que vem dos deuses'13. O Desejo que o homem tem de chegar até o Inteligível e ao Sol que o ilumina se encontra portanto transportado por Eros, graças ao qual o homem está próximo de se tornar um deus, já que nos é dito que a evasão para o alto consiste 'em assimilar-se (homoiosis) a Deus na medida do possível'14."
Ou seja, não era somente um processo de percepção, um processo cognitivo, havia, efetivamente, um processo de autotransformação. Na medida em que o indivíduo toma consciência do ser, do qual ele é apenas uma amostra local, ele se integra, por assim dizer, no ser e não é mais simplesmente aquele indivíduo separado de antes. Esse tema também existe no vedanta. Toda a mística hindu é baseada na mesma coisa: a progressiva reassimilação da consciência individual pelo ser supremo, eterno, absoluto --- o Brahma ---, do qual ela não era senão uma amostra local. No curso desse processo, ela perde aquilo que tinha de local e separativo e se reintegra ao Brahma. A conclusão da escalada mística no hinduísmo é o indivíduo dizer: "Eu não sou outra coisa senão o Brahma", através de uma seqüência de exercícios espirituais em que o indivíduo pergunta, sonda, investiga o que ele [mesmo] é, descascando, por assim dizer, uma a uma as camadas de percepções e crenças ilusórias. Por exemplo, ele percebe que não é composto por suas sensações, porque as sensações passam e ele permanece, como no famoso verso de Guillaume Apollinaire: "Les jours s'en vont je demeure" (Os dias passam e eu fico). Se o indivíduo fica, ele não pode ser aquilo que passou, não pode ser suas sensações e também não pode ser as suas memórias, porque elas se desvanecem, elas se apagam e estão continuamente mudando. Aplica-se aqui o mesmo raciocínio: o indivíduo vai tirando essas várias camadas de identidade e vê que só pode ser aquilo que existe de absolutamente permanente, eterno e imutável --- o próprio Brahma ---, e que a existência individual separativa só existia como ilusão.
"Encontramo-nos aqui em presença de uma visão do mundo tipicamente grega, que não tem nada a ver com aquilo que será o Cristianismo, mas que se perpetua sob formas diversas todo ao longo dos séculos, notadamente no romantismo alemão e entre outros, nos Discípulos de
Saís de Novalis, ou nas modernas sociedades iniciáticas."
Essa visão do mundo, exatamente como a do hinduísmo, é aquela que vemos ainda hoje na obra de Rene Guénon e de Fritjof Schuon, por exemplo. Toda a escola tradicionalista segue esse conceito ao pé da letra, embora o adaptando, às vezes, à linguagem das três únicas tradições propriamente religiosas que existem: judaísmo, cristianismo e Islam. Eles adaptam a linguagem dessas três tradições, portanto, a uma visão do mundo que é anterior e idêntica à do hinduísmo e à das escolas gnósticas.
"Mas essa mesma visão do mundo [0:40] reaparece sub-repticiamente no racionalismo e no cientificismo mais estritos."
Uma das coisas mais fabulosas desse livro é que o autor vai percebendo que toda uma visão do mundo [que] nos parece estritamente moderna, científica, ateística etc., ainda tem no fundo essa mesma visão da realidade como desvelamento.
"Ela é comandada pela idéia de que o homem pode se liberar das alienações intelectuais que o encadeiam e chegar a um desvelamento da verdade que lhe assegure uma Salvação pelo conhecimento, (...)"
Podemos citar como uma amostra disso o livro de Raymond Ruyer, A Gnose de Princeton, [em que ele conta que] um grupo de cientistas estritamente gnósticos dominaram a Universidade de Princeton por um certo tempo. Toda a visão deles era esta --- a do hinduísmo, da gnose, do velho platonismo etc.
"(...) prelúdio a uma quase-autodivinização. Essa visão do mundo passou de Platão a Aristóteles; entretanto, neste último, está eliminado tudo aquilo que, em Platão, podia se parecer com um processo iniciático que fizesse pensar nos Mistérios, e do qual os mitos constituíam outras tantas alusões. Com Aristóteles, estamos em presença de um empirismo e de uma filosofia da causalidade que não duplicam o real com um mundo de Idéias 'separadas', mas se preocupam em organizar classificações de formas, julgamentos de atribuição e raciocínios dedutivos de uma maneira logicamente coerente."
De fato, não se vê em Aristóteles essa função essencial dos ritos iniciáticos, essa idéia da filosofia como uma iniciação. Porém, há uma breve passagem em que ele diz que os ritos de mistérios não trazem conhecimento, mas deixam uma profunda impressão. No meu livrinho sobre os quatros discursos15, mostro que essa profunda impressão constitui todo o subsolo imaginário do conhecimento e já recorta e molda toda a possibilidade de conhecimento posterior. Isso quer dizer que esse mundo dos mistérios não está incluído no universo de Aristóteles, mas está pressuposto, ou seja, o rito de mistério é, por assim dizer, anterior --- no sentido lógico --- à filosofia de Aristóteles.
"Todavia, a perspectiva de uma marcha ascensional reencontra-se nessa regressão de séries causais ao termo da qual 'é preciso parar' naquele Primeiro Motor não movido que se chama Deus16."
Ou seja, também na filosofia de Aristóteles, embora não haja ali nenhuma menção a um processo iniciático, como há claramente em Platão, existe a mesma estrutura do regresso da alma individual até a sua fonte, que é o Primeiro Motor Imóvel.
"O conhecimento conduz o homem à contemplação (theoria) graças à qual ele se aparenta (homoioma) a Deus."
Ainda em Aristóteles é a mesma coisa: a conversão do indivíduo humano em Deus. Ele é reintegrado em Deus assim como o místico hindu é reintegrado no Brahma.
"O conhecimento contemplativo permite identificar-nos a Deus, ainda que seja por um curto instante; (...)"
Essa é uma diferença fundamental; voltaremos a esse tema do "curto instante" ou nesta aula ou na próxima.
"(...) não devemos portanto limitar nosso pensamento às coisas humanas, mas devemos fazer tudo para viver segundo o intelecto (núus) e tornar-nos imortais na medida do possível.17"
Essas duas expressões, "por um curto instante" e "na medida do possível", marcarão diferenças essenciais quanto ao que vem depois.
"Convém acrescentar que a física, a cosmologia e a metafísica de Aristóteles dão igualmente uma importância considerável ao Desejo e ao Eros. Toda a filosofia de Aristóteles é, com efeito, uma filosofia do Desejo, desejo que fica nas duas extremidades da cadeia das coisas e dos seres. Na parte de baixo dessa cadeia, encontramos a matéria que deseja a forma como a fêmea deseja o macho; (...)"
Há uma alusão a isso até no famoso poeta platônico Camões: "(...) [e] o vivo e puro amor de que sou feito, como a matéria simples busca a forma"18. Essa matéria é pura potencialidade, [que] implica o desejo de atualizar, de efetivar o possível, se esforçando para tornar-se realidade, embora para fazê-lo [a matéria] precise da forma.
"(...) no alto da cadeia reina o Primeiro Motor, no qual o inteligível (noeton) e o desejável (orekton)19 movem todas as coisas 'como um objeto de amor'20."
Também há uma alusão a isso em Dante: "L'amor che move il sole e l'altre stelle"21 (O amor que move o sol e as outras estrelas). É sempre o mesmo tema do Primeiro Motor, e toda a Divina Comédia de Dante não deixa de ser uma paráfrase dessa ascensão mística, porém já descrita em termos cristãos [e] portanto com modificações nas quais entraremos depois. Notem bem que nenhuma dessas quatro etapas que Brun descreve tem a ver com o cristianismo. Essa é a coisa mais importante desse texto.
"Quaisquer que sejam as diferenças que separam Platão de Aristóteles, ambos têm em comum uma mesma idéia: um conhecimento superior que permita ao homem ter acesso à verdade, desvelá-la e contemplá-la, identificando-se assim a Deus, ainda que seja por um breve momento.
Esse acesso, esse desvelamento e essa identificação atingiram seu ponto culminante em Plotino."
Plotino tira as conseqüências práticas de tudo aquilo que estava lá em Platão e Aristóteles, e dá, por assim dizer, uma fórmula do caminho a ser seguido, da autotransformação do indivíduo humano em Deus.
"A anulação da queda por meio do conhecimento, tal como professada pela filosofia de Platão, assume no plotinismo, com efeito, um aspecto particular.
Já que tudo procede da superabundância do Um, não por movimento, mas por emanação, à maneira dos raios que provêm de um mesmo ponto luminoso, (...)"
Ou seja, o Um, quando se manifesta nos entes múltiplos, não está se movendo, saindo de si ou se transformando em outra coisa, assim como os raios de uma fonte de luz não são outra coisa senão a própria luz.
"(...) tratar-se-á, para nós, de tomar consciência da salvação que já está aí e que não necessita de nenhum Salvador. Colocar um termo ao exílio no múltiplo e na matéria, para retornar ao Um fundamental, depende unicamente de nós, que podemos passar da queda pelo êxtase catastrófico ao êxtase místico pela contemplação da verdade."
O "êxtase catastrófico" é o que [ocorre] quando há a emanação, ou seja, quando o Um se propaga em entes múltiplos e estes se esquecem de sua origem e começam a acreditar que existem por si mesmo como entes independentes. É o que na mística hindu e no budismo se chama "ilusão da separatividade". Isso quer dizer que o quando o Um quando se nos entes múltiplos ele não se modifica, não se transforma, não se perde, mas os entes múltiplos, na visão subjetiva que têm de si mesmos, acreditam ser entidades separadas. É este esquecimento que ele chama de "êxtase catastrófico". O êxtase é uma saída --- ék quer dizer "para fora", e stásis dá a idéia de movimento22. Há um movimento para fora no qual o Um não sai de si mesmo, mas os entes individuais imaginam-se saídos ou separados. [0:50] Então, existe o "êxtase catastrófico", que cria a "ilusão da separatividade", e existe o "êxtase místico", que reintegra os entes separados no Todo do qual, na realidade, eles jamais tinham saído --- só haviam saído, por assim dizer, imaginariamente.
Quando leio essas coisas, me lembro que nos anos 70, uma livraria de São Paulo da qual eu era sócio promoveu a vinda ao Brasil do swami23 Satyananda Saraswati, que era o diretor da Academia Védica de Bombaim, a mais tradicional da Índia, a academia do governo hindu. Embora esses gurus indianos jamais saíssem da Índia, ele abriu uma exceção porque um aluno seu, brasileiro, implorou tanto [para ele vir] que ele acabou vindo e fazendo várias conferências. Foi o maior orador que eu vi na minha vida, um negócio impressionante; botavam duas mil pessoas na frente do homem, ele sentava de pernas cruzadas, começava a falar, e ninguém tirava os olhos dele [nem] durante dois minutos. Ele explicou [ali] toda a doutrina tradicional vedantina, e eu fiquei incumbido de ser o guia turístico dele. Lembro-me de uma cena impagável: fui buscá-lo no Hotel Hilton, [e lá] ele estava deitado com aquele manto cor de abóbora vendo televisão, quando nela apareceu Ney Matogrosso (isso é que é choque de culturas!), e ele fez este pequeno comentário: "This fellow is a little strange". Foi o máximo que ele disse. Foram dias maravilhosos, ouvindo aquelas conferências incríveis. Ele veio duas vezes ao Brasil. Quando eu lhe perguntei se seria conveniente eu ir para a Índia estudar essas coisas, ele disse que não sabia por que as pessoas do Ocidente vão para Índia estudar essas coisas se isso tudo está na filosofia grega*.* "Sente e estude Platão e Aristóteles", [ele me disse]. Decorridos quase quarenta anos, vi que a filosofia que está em Platão, Aristóteles e sobretudo em Plotino é exatamente a mesma coisa que a metafísica hindu.
"Deus não é exterior a nenhum ser, ele está em cada um deles; mas, com demasiada freqüência, estes o ignoram e 'fogem para longe dele, ou antes, para longe de si mesmos'24."
[Há] uma coisa importante que eu ia dizer depois, mas é melhorar anunciar já: tudo isso que está na filosofia grega e no vedanta é metafisicamente verdade, e não tem como ser contestado do ponto de vista doutrinal metafísico. Metafísica é a descrição da estrutura da possibilidade universal, que pode também ser chamada de estrutura da realidade, na medida em que a realidade tem de ser balizada pelo possível. Mas de uma doutrina metafísica até uma técnica da salvação e da transformação do ser humano o caminho é muito longo. É justamente neste ponto que entra a diferença específica do cristianismo. É preciso entender --- e vou anunciar desde já --- que essa visão que você teve de Deus, essa visão do Brahma, não integra você no Brahma, [é] só uma visão, na verdade, e você continua sendo o mesmo idiota que era antes. Não há uma transformação verdadeira, há apenas uma transformação cognitiva.
Os adeptos da escola tradicionalista, os gnósticos etc., afirmam que essa simples experiência cognitiva transforma você ontologicamente, o que é uma impossibilidade pura e simples. "A alma é tudo que ela conhece", [dizem], mas ela é tudo o que conhece permanentemente. A integração daquela experiência momentânea, daquele vislumbre da verdade na alma do indivíduo, de modo a transparecer em cada um dos seus atos e na vida de todos os dias é, realmente, impossível, pois isso seria o mesmo que dizer que os atos de um só indivíduo têm alcance infinito. Isso seria o infinito quantitativo em ato, como diria Aristóteles, o que é impossível. Isto é para anunciar um pouco qual é a diferença básica dessa visão do mundo e a do cristianismo. Quando os tradicionalistas guénonianos ou schuonianos falam, por exemplo, de uma "unidade transcendente das religiões", a demonstração que eles dão disso é de fato irrefutável, mas eles mostram que todas as religiões são baseadas num mesmo conjunto de princípios metafísicos. No fundo, a metafísica hindu e a metafísica grega estão por trás de todas as religiões. Acontece que uma religião não é uma doutrina metafísica, é algo além: ela é, como veremos adiante, uma via de transformação e de salvação, e as diferenças entre elas estão nesse nível, e não no nível da metafísica. Tanto que o mais eloqüente expositor da "unidade transcende das religiões", Frithjof Schuon, que é aliás o inventor do termo, chega no impasse de que todas as religiões estão baseadas num mesmo conjunto de princípios metafísicos, mas elas não são intercambiáveis nem misturáveis. É como se ele dissesse que no topo do edifício doutrinal todas elas são a mesma [religião], que se diferenciam [apenas] por terem se dirigido a populações, épocas e condições diferentes na Terra. Isso significaria dizer que as diferenças seriam mais ou menos acidentais. Mas se elas fossem acidentais, deveriam ser intercambiáveis. Schuon morreu deixando esse problema, e nada mais disse nem lhe foi perguntado. Ele evidentemente não sabia a solução do problema, como [aliás] eu também não sei.
Por aí já se percebe que a diferença entre as religiões não é de doutrina metafísica, é outra coisa completamente diferente. Dizer que todas as religiões se baseiam nos mesmos princípios metafísicos é o mesmo que dizer que todos os edifícios são iguais porque se nos baseiam mesmos princípios matemáticos. Toda a arquitetura do mundo usa a mesma matemática. Igualmente, toda religião usa os mesmos princípios metafísicos, até porque não há outros.
"Para ter acesso à contemplação da verdade, o homem precisa chegar ao 'fim da viagem'25, abandonar-se26, não ser mais ele mesmo27. No entanto, essa saída de si não o é senão quando consideramos o si como uma individualidade residual que jaz no fundo do êxtase catastrófico, que volta as costas ao Um e que constitui o termo derradeiro da via descendente."
Isso quer dizer que o processo universal aí é visto como uma simultaneidade de duas vias: uma descendente e outra ascendente. [A] descendente é a origem dos seres, portanto a sua diversificação e multiplicação em seres individuais, e existe em seguida o retorno ao Um, descrito na mística hindu como os "dias e noites de Brahma". Brahma se manifesta, exterioriza-se e se recolhe, e, ao se recolher, chama os seres todos de volta a si, as individualidades desaparecem e são todos reintegrados nele.
"Mas, se voltamos atrás nessa via de perdição, então o si conhece a plenitude extática, pois 'o desejo de ver engendra a visão'28 e termina-se por 'contemplar aquilo que está no santuário'29.
O acesso à verdade foi assim realizado e chegamos a desvelá-la: 'é porque o divino não pode se revelar [senão nos Mistérios] que recusamos mostrá-lo a quem não teve a felicidade de vê-lo por si mesmo'30." [1:00]
Ou seja, esse processo não pode ser ensinado, só pode ser praticado, só pode ser vivido por cada um.
"Todavia, e está nisso o que há de novo em Plotino em relação a Platão ou a Aristóteles, esse desvelamento coincide com o si hipostasiado."
Hipostasiado quer dizer transformado em pessoa, numa individualidade distinta.
"Pois não somente 'o objeto que se vê é a luz mesma', mas aquele que 'vê' se tornou semelhante ao objeto visto. 'Tornaste-te uma visão'31, diz-nos Plotino, (...)"
Esse é outro tema que [sempre] reaparece: na "mística da luz" do filósofo iraniano Shahab al-Din Suhrawardi; em Goethe --- toda a sua Teoria das Cores do Goethe baseada na idéia de que o olho é da mesma natureza da visão, [de que] é a luz que se vê a si mesma.
"(...) o qual esclarece ainda que o homem se torna assim 'contemplador de si mesmo [...] e objeto da sua própria contemplação'32. A fusão é portanto completa entre o contemplador e o contemplado, entre o homem iniciado pelo conhecimento e a verdade mesma. Não somente o homem pode erguer ele próprio o véu que lhe ocultava a verdade, mas essa verdade não é outra coisa senão ele mesmo.33"
Então, é o Brahma que se reconhece a si mesmo.
"A autodivinização do homem é assim perfeita, porque esse deus, 'o homem pode vê-lo aqui mesmo e ver-se a si próprio, na medida em que é permitido ter essas visões; ele se vê resplandecente de luz e repleto de luz inteligível; ou antes, ele se torna ele mesmo uma pura luz, um ser leve e sem peso; ele se torna, ou antes, ele é um deus abrasado de amor'34. Plotino prolonga portanto a homoiosis da qual falava Platão, o homoioma invocado por Aristóteles; entre o homem e Deus estabelece-se uma conaturalidade35, não há mais de um lado o sujeito que vê e do outro o objeto que é visto, há fusão e identificação."
Isso quer dizer que a separação, a distinção entre sujeito e objeto só existe no mundo das aparências. Na escala da eternidade não existe mais.
"Sobre esse exílio transformado em retorno pelas puras forças do homem que chega finalmente à contemplação da verdade com a qual ele se confunde, nada é mais claro do que esta passagem de Plotino: 'Já não dizeis de vós mesmos: 'Eis quem eu sou'; abandonais todo limite para tornar-vos o ser universal. E no entanto já o éreis desde o início; mas como éreis também alguma coisa a mais, este excesso vos diminuía; (...)"
A famosa "ilusão da separatividade" preenche o nosso espaço cognitivo de formas imaginárias, ilusórias, que são algo a mais que o ser. Mas como além do ser não há nada, tudo isso é o não-ser. Então a nossa mente está cheia de imagens do não-ser.
"(...) pois esse excesso não vinha do ser, já que nada se acrescenta ao ser, e sim do não-ser. Por esse não-ser vos tornastes alguém, e não sois o ser universal se não abandonais esse não-ser. Vós vos engrandeceis portanto a vós mesmos ao abandonar o resto e, graças a esse abandono, o ser universal está presente."
Há aí um processo negativo, assim como no trajeto hindu da pergunta "Quem eu sou?"; descasca-se e elimina-se aparências, e quando a última aparência é retirada, está-se transfigurado no ser universal mesmo.
"Enquanto estais com o resto, ele não se manifesta. Não é necessário que ele venha para que esteja presente, fostes vós que partistes; partir não é deixá-lo para ir alhures; pois ele está aí. [...] Tem confiança em ti; mesmo permanecendo aqui, tu subiste e não tens mais necessidade de um guia.'36
Tudo não é, portanto, senão uma questão de autopurificação; (...)"
É uma questão de autopurificação na filosofia helênica, na gnose, no hinduísmo, no budismo e na escola tradicionalista.
"(...) Plotino esclarece: 'Se tu ainda não vês a beleza em ti, faze como o escultor de uma estátua que deve se tornar bela; ele tira uma parte, ele lixa, ele dá polimento, ele enxuga até pôr à mostra belas linhas no mármore; (...)"
Portanto, é um processo de eliminação do coeficiente do não-ser que residia apenas na mente e sustentava a "ilusão de separatividade".
"(...) como ele, retira o supérfluo, endireita o que é oblíquo, limpa o que é sombrio para torná-lo brilhante, e não cesses de esculpir tua própria estátua, até que o esplendor divino da virtude se manifeste'37.
Plotino utiliza com freqüência termos diferentes para falar de uma mesma coisa: o Um, o Belo, o Bem, a Verdade, todas essas noções são sinônimas e Deus é 'o rei da verdade'38; mas, de qualquer modo, entre Deus ou a verdade e o ser que chega ao conhecimento contemplativo, não há nenhum intermediário (metaxu), nenhum Mediador, 'os dois não são senão um'39. O acesso à verdade é portanto perfeito."
Isto é o que vai marcar a diferença entre toda essa visão e a visão cristã. Não deixa de ser extraordinário o esforço que a escola tradicionalista fez para reintegrar tudo isso dentro de uma linguagem compatível com o cristianismo, com o Islam, com o judaísmo etc.
"O Eros que está no princípio da cosmologia e da metafísica platônica e aristotélica reencontra-se naturalmente em Plotino; este emprega mais ou menos indiferentemente Eros, ephesis, pothos, hormê, para designar o Desejo que permite à introversão conduzir-se no caminho do êxtase, passando do dentro ao fora sem no entanto sair do primeiro nem entrar no segundo, já que em última análise um e o outro coincidem. O Desejo testemunha da busca do complemento (plerosis) faltante e de uma sede de acabamento40; (...)"
[Ou seja], de perfeição.
"(...) mas deve-se dizer também que o Desejo implica ao mesmo tempo, naquele que deseja, a imanência daquilo que é desejado."
Ou seja, aquilo que você deseja já está em você, só falta descobri-lo, desvelá-lo, por assim dizer.
"Eis por que a alma que segue a via ascendente 'entra nela mesma e não está então em nenhuma outra coisa senão nela mesma; mas desde que ela está nela só e não mais no ser, por isso mesmo ela está nele; pois ele é uma realidade e não uma essência, mas algo que está para além da essência, (...)"
A essência é aquilo que um ente é e que o diferencia dos demais entes. Então eu não posso dizer que eu sou uma coisa e que o ser supremo é outra, porque então ele seria uma outra essência diferente da minha. É por isso que Plotino dizia que [o ser] está para além de todas as essências, e como essência quer dizer diferença específica, está para além de todas as diferenças específicas.
"(...) para a alma com que ele se une. Se nos vemos a nós mesmos tornar-nos nele, temo-nos por uma imagem dele; ao falar dele progredimos como uma imagem até o seu modelo, (...)"
Uma imagem que retorna ao seu modelo e que descobre que no fundo esse tempo todo ela não era senão o próprio modelo.
"(...) e chegamos ao fim da viagem'41. Assim o desejo opera uma verdadeira inversão da emanação, (...)"
A emanação é o "êxtase catastrófico", que, gerando a multiplicidade dos entes, acaba por resultar numa separação ilusória, na qual cada um se vê como ente distinto, separado, esquecendo a sua [1:10] origem no Um.
"(...) graças à qual aquele que desce para dentro de si mesmo chega a ver a verdade e 'faz coincidir seu próprio centro com o centro universal'42. O 'conhece-te a ti mesmo' socrático terminou por desembocar numa filosofia da imanência auto-iniciadora.
*
Tal é a essência do helenismo; mas ela manifesta coisa bem diversa do que seria o espírito de uma época; ela constitui a expressão mesma do procedimento do homem que se esforça para encontrar nele aquilo que lhe permitiria sair de si, e que se toma ao mesmo tempo como ponto de apoio e como alavanca (...)"
É uma bela imagem: o homem é, ao mesmo tempo, o ponto de apoio e a alavanca que se apóia nesse ponto de apoio para se mover.
(...) para elevar-se acima de si mesmo. Tal esforço está no coração do Eros, da orexis, da ephesis, em suma, do Desejo do homem de chegar à verdade, de a desvelar e de não ser mais senão uma e mesma coisa que ela, a fim de se identificar a Deus no termo de um conhecimento contemplativo.
Estamos portanto aqui em presença de teorias da salvação pelo conhecimento, idéia que se reencontra no coração da gnose."
Por isso mesmo, não se pode dizer que esse tipo de visão caracteriza somente o helenismo. Não há aqui referências ao hinduísmo ou ao budismo, mas é essencialmente a mesma coisa. Ou seja, essa mesma idéia, esse mesmo corpo de crenças e de atitudes pode aparecer em distintos lugares da Terra, sem nenhuma conexão ou influência entre si, e pode também reaparecer em outras épocas mais tarde praticamente intacto. Essa visão, em parte helenística, em parte gnóstica e em parte hinduísta, permanece existindo ainda como uma possibilidade no mundo de hoje, mesmo por que ela encerra uma parcela de verdade que uma vez conquistada não se pode jogar fora. É a famosa teoria dos patamares: a filosofia não progride no sentido de empilhar conhecimento, mas ela alcança certos patamares abaixo dos quais não se pode voltar mais, o que não quer dizer que se tenha de parar neles. Essa doutrina metafísica alcançada pelos hinduístas, pelos budistas, por Platão e por Aristóteles é um patamar, é um terreno conquistado. Portanto, o que há de verdade nela não pode ser jogado fora nem negado.
Não há mais como negar, por exemplo, a relativa inexistência dos seres individuais em comparação com o ser universal. A existência do desejo, dessa aspiração de retorno também não pode mais ser negada, porque essa é uma experiência que todo ser humano, a não ser que seja totalmente tapado, algum dia teve. É possível ir além disso, e esse além aparece justamente com o cristianismo, mas o que vem em seguida não é uma superação; é, de certo modo, uma descida de nível. Nessa descida de nível que Brun descreverá nas três próximas etapas --- a verdade já não como aletheia, desvelamento, descoberta, mas a verdade como instauração, construção, depois como dinamização, como algo que se revela progressivamente na História (com Hegel), e por fim a verdade como autodissolução, quando some a verdade, o sujeito e tudo o mais (com Nietzsche, o desconstrucionismo etc.) --- se observa realmente uma queda. Essa queda, no entanto, é paralela à história do cristianismo, que está indo numa certa direção enquanto esse movimento da filosofia está indo na direção oposta, por assim dizer.
Eu não acredito em nenhuma teoria cíclica da História; os ciclos históricos não são realidades, eles são aparências que se mostram mais ou menos reais dependendo da distância com que são olhados e da medida, da régua com que são medidos. Quando se fala de um "ciclo de decadência", [deve-se lembrar que sempre] alguma coisa está decaindo ao mesmo tempo em que outra está aparecendo. Não há um movimento linear; existe um movimento permanente de vai-e-vem. Não se pode imaginar o ciclo inteiro da História humana, pelo simples fato de que ela não acabou, e ninguém sabe exatamente quando vai acabar. Se não há sequer a medida do conjunto, como se pode determinar o seu sentido? É por isso que eu sou absolutamente contra falar de um "sentido da História"; a noção de sentido, de significado, não se aplica à História como um todo. Ela nem tem e nem não tem um sentido. Um processo qualquer só pode ter um sentido quando é unitário, quando tem uma unidade, e a unidade da História só existe desde do ponto de vista de Deus, pois só Ele conhece o conjunto. Portanto, esse sentido é inapreensível, a não ser que nós nos transfiguremos em Deus, e isso quer dizer que aqueles que falam de um "sentido da História" estão de certo modo realizando --- em suas cabeças pelo menos --- esse trajeto gnóstico que os transfigurou no Brahma, em que olham então o processo inteiro da História mundial e dizem: "Começou assim, vai terminar de tal maneira e o sentido é este". É claro que isso é ilusório. Quando alguém pensa num "fim da História", e esta, depois de seu "fim", tem o desplante de continuar, é porque aquela forma que ele vislumbrou nela já foi dissolvida, já se integrou numa outra forma que é desconhecida.
Por isso mesmo, a narrativa dessas quatro etapas que nos dá Jean Brun só adquirirá seu pleno sentido nas partes finais do livro, onde esse trajeto será contrastado com o elemento estático e permanente de tudo isso, que é a presença do Cristo. Daí se começa a entender que não se pode descrever esse trajeto nem como um progresso nem como uma decadência. Essas noções são puramente subjetivas: as pessoas acham que é progresso aquilo que vai na direção que elas querem, e que é decadência aquilo que se afasta disso. O progresso e a decadência existem, mas só existem parcialmente, isto é, eles coexistem: alguma coisa está progredindo enquanto outra está decaindo. Por exemplo, eu estou ficando mais velho enquanto há um monte de bebês sendo gerados. Eu não estou sendo gerado; estou indo embora deste mundo, enquanto eles estão chegando --- e eu não sei se a vantagem é minha ou deles. Mas isso que se observa no processo natural, em que umas coisas morrem enquanto outras aparecem, também se observa na História, e por isto mesmo nunca podemos falar de progresso ou decadência em sentido absoluto. Progresso e decadência não são realidades: são unidades de medida com que se descreve as coisas. Juntando vários processos que parecem progredir e outros que parecem decair, às vezes obtém-se uma visão suficiente do todo.
O que tem atrapalhado as coisas formidavelmente são todas essas filosofias da História, que tem aparecido desde Giambattista Vico e Hegel e que pretendem delinear o conjunto. Em reação a elas houve, a partir do começo do século XIX, com Leopold von Ranke, o desenvolvimento enorme da ciência histórica. Porém no século XX aconteceu um fenômeno estranhíssimo dentro da ciência histórica. Surgiu uma escola na França, chefiada sobretudo por Charles Seignobos e por Marc Bloch --- cujo livro Introdução à História tem uma tradução portuguesa que foi muito lida no Brasil nos anos 60 ou 70 --- que, [1:20] no esforço de dar à História uma estrutura e um teor puramente científicos, tentava abolir todas as interpretações e voltar sempre às fontes primárias, aos documentos. No entanto, o que eles entendiam como documentos, portanto como fontes de informação histórica, eram somente os documentos em estado bruto, sobre os quais não tivesse havido nenhum esforço de interpretação --- por exemplo, registros de nascimento, contratos de compra e venda ou de casamento, decretos etc. Em suma, essa escola criou a idolatria dos arquivos; somente os documentos de arquivo valiam. Não se podia usar como documento, por exemplo, um livro de memórias. Como é que se escreveria a história do grande século da França, no tempo de Luís XIV, sem as Memórias do Duque de Saint-Simon, um dos livros mais maravilhosos da humanidade, um negócio de oito volumes de mil páginas cada um? Está tudo ali, mas visto pelos olhos do Duque de Saint-Simon. Como ele havia feito um esforço de interpretação pessoal, então para essa escola [seus escritos] já não valiam como documento.
Ora, se só vale como documento o documento bruto, que só atesta fatos atomísticos --- o dia em que o sujeito nasceu, o dia em que ele comprou uma vaca etc. ---, tem-se aí uma História que se desenrola só pelos aspectos mais externos e burocráticos da vida, sem personagens que pensam, que interpretam, que decidem. Só sobra a armadura administrativa, por assim dizer, da vida. É claro que se forem excluídos dos fatos a história humana, as decisões humanas, os valores humanos, os motivos humanos, as idéias humanas, só restará a história administrativa. Conte, se puder, a sua própria história baseada só em documentos de arquivo: na sua certidão de nascimento (a real; se for a de Barack Obama, não serve), na sua matrícula escolar (o seu boletim escolar não vale, porque a nota que o professor lhe deu já é um julgamento), no seu alistamento militar (também não serve o do Barack Obama, que é falso) na sua declaração de imposto de renda. Não haverá ali uma única decisão que você tenha tomado, um único sentimento que você tenha vivenciado, um único julgamento que você tenha feito sobre nada. Sobrou [apenas] um esquema administrativo-burocrático, e depois de anos contando sua história reduzindo tudo dessa maneira, aqueles fatos administrativo-burocráticos começam a se juntar uns aos outros e você começa a ver semelhanças --- por exemplo, em tal época nasceu mais gente, em tal época comeram mais carne, em tal época as pessoas se divorciaram mais, em tal época houve mais desemprego etc. Você pode construir uma história inteira só com essas coisas, e você observará então certas constantes.
O livro de Fernand Braudel, O Mediterrâneo --- que fez muito sucesso no Brasil e em outras partes também ---, é exatamente assim. É a História baseada só nos dados administrativos, e, portanto, uma história em que ninguém age, as coisas simplesmente acontecem, e essas constantes que foram observadas dão a impressão de que se movem por si mesmas, sem decisões humanas. Então, conta-se uma História sem personagens humanos, sem ação humana e onde as estruturas falam por si. Depois de se praticar a História assim, depois de estar tudo selecionado e montado assim, surge uma teoria das estruturas: o estruturalismo de Lévi-Strauss; e do estruturalismo vem o desconstrucionismo, Michel Foucault, Jacques Derrida etc. Ou seja, há uma série de escolas de pensamento baseadas numa seleção brutal dos fatos que foi feita no começo do século XX. Logo, que essas idéias não surgem por si, como puras idéias, elas são a conseqüência de uma ciência histórica altamente seletiva, que as precedeu e de certo modo já as formou. Aquela escola já havia entregado tudo pronto para que Lévi-Strauss, Foucault e Derrida tirassem essas conclusões. Isso quer dizer que para impugnar as conclusões dessas escolas de pensamento basta introduzir os documentos faltantes, contando a mesma história acrescentando a ela o que as pessoas pensaram, o que decidiram, [o motivo] por que fizeram isto ou aquilo, em vez de cair na ilusão de que as estruturas se movem por si mesmas.
Essa escola de Marc Bloch e Charles Seignobos incorreu no erro número um que já tinha sido assinalado por Georg Jellinek naquele texto43 que eu já citei tantas vezes: o principal nos estudos histórico-sociais é distinguir entre os processos espontâneos, que se formam sem uma decisão humana, e aqueles processos que se desenrolam segundo um plano, uma vontade deliberada. Por exemplo, quem quer que estude a movimentação das populações na União Soviética e veja que em certa época havia uma população em determinado lugar e [que depois] ela se moveu para outro lugar não pode esquecer de que ela [se] mudou porque Stálin mandou mudar e pôs a polícia atrás dela [com a seguinte ordem]: "Ou vocês [se] mudam daí, ou morrem". Agora, o simples deslocamento da população amputado da decisão que a determinou não quer dizer absolutamente nada. Depois de ver vários deslocamentos de população, é possível até traçar uma linha estatística e dizer que existem tantos deslocamentos de população em tal lugar, por século, mas é claro que essa história é totalmente fantasmagórica. Esse pessoal que foi tido --- e acho que no Brasil é tido ainda --- como o supra-sumo da história científica inventou uma História puramente imaginária.
Recentemente eu estava lendo as memórias de um historiador chamado Jean de Viguerie, em que ele conta que foi formado nessa escola e obedecia às regras [dela], mas [que] um dia caiu em suas mãos uns documentos que eram transcrições de aulas dadas por padres durante o século XVIII, os cadernos de anotações dos alunos, e mais os livros e apostilas escritos pelos próprios padres. Ele viu que dava para escrever com base nisso uma história da educação religiosa da França do século XVIII, mas todos esses documentos de acordo com a escola não valiam nada, porque não eram "documentos oficiais", eram documentos pessoais. No Brasil, o nosso Gilberto Freyre seguiu a linha exatamente contrária. É claro que ele levava em conta todos esses dados administrativos, mas ele escavava [também] todos os documentos pessoais, não só livros de memórias publicados, mas diários, cartas, cartões postais, fotografias, anúncios de jornal --- anúncios [que diziam], por exemplo, "Procura-se um escravo fugido, de um metro e sessenta, magrinho...", e assim por diante ---, recolocando então no tecido da História o elemento vivo e humano da ação, da decisão e da interpretação do sentido que cada um via nos acontecimentos de que participava. Aquela escola surgirá ao fim deste processo que está sendo descrito por Jean Brun, em que a verdade primeiro é vista como uma descoberta, depois [1:30] como uma instauração, depois como um processo e por fim se desintegra, e os sujeitos cognoscentes se desintegram juntos com ela.
Haverá tempo para perguntas e respostas? Eu acho que não, porque confesso que estou cansado, eu passei a semana montando estantes, batendo pregos, então estou realmente esbagaçado. Vocês realmente me perdoem. Na semana que vem haverá um congresso de educação em Washington do qual irei participar. [Como] eu não sei exatamente o dia nem a hora da conferência que eu tenho que pronunciar, talvez não haja aula no sábado que vem, mas eu lhes avisarei através do site do Seminário e do meu Facebook, e se possível também por outras fontes.
Transcrição: Aline Ribeiro Borges, Paulo Ricardo Costa Pinto e Gyordano Montenegro Brasilino.
Revisão: Fernando José da Silva
Revisão Final: Pedro Arthur Carlos de Lima, 11/12/2018 [pedroaclima@gmail.com]
Footnotes
-
Trecho traduzido por Olavo de Carvalho do original Philosophie et Christianisme (L'Age d'Homme, Québec, 1988). (N.R.) ↩
-
O professor refere-se provavelmente aos atentados terroristas ocorridos em 11 de março de 2004 em várias estações de trem de Madri. ↩
-
Esse capítulo abre a primeira parte do livro, intitulada "O destino da verdade". (N.R.) ↩
-
Platão, A República, 536d. ↩
-
Platão, op. cit., 531d. ↩
-
Platão, op. cit., fim do livro VI. ↩
-
Platão, op. cit., 510d. ↩
-
Platão, Teêteto, 176b. ↩
-
Platão, Fédon, 99d. ↩
-
Anamneses, cf. Platão, Menon, e Fédon, 81-d. ↩
-
Platão, O Banquete, 210d. ↩
-
Platão, op. cit., 202e. ↩
-
Ibid. ↩
-
Platão, Fédon, 176b. ↩
-
Olavo de Carvalho, Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Topbooks, Rio de Janeiro, 1996). (N.R.) ↩
-
Aristóteles, Ética a Nicômaco, X, 8, 1178b20. ↩
-
Aristóteles, op. cit., 1177b30. ↩
-
Famoso soneto de Luís de Camões que inicia com o verso "Transforma-se o amador na cousa amada". (N.R.) ↩
-
Aristóteles, Metafísica, XII, 1072a26; cf. Da Alma, III, 10. ↩
-
Aristóteles, Metafísica, XII, 1072b3. ↩
-
Dante Alighieri, A Divina Comédia, Paraíso, XXXIII 145. (N.R.) ↩
-
Ékstasis é uma palavra grega que significa literalmente "deslocamento" --- ék quer dizer "para fora", e stásis é "colocação". Dela derivou tardiamente o vocábulo latino ecstase ou extase. (N.R.) ↩
-
Título honorífico hindu. (N.R.) ↩
-
Plotino, Enéadas, VI 9 7 (tradução de E. Bréhier). ↩
-
En. VI 9 11. ↩
-
Ibid. ↩
-
En. VI 9 10. ↩
-
En. VI 6 5. ↩
-
En. VI 9 11. ↩
-
Ibid. ↩
-
En. I 6 9. ↩
-
En. VI 7 36. ↩
-
Cf. o fragmento de Novalis de maio de 1798, no qual nos é dito que aquele que, em Saïs, levanta o véu que lhe ocultava a deusa, vê, "maravilha das maravilhas: ele mesmo" (Novalis, Oeuvres completes, Paris, Gallimard, 1975, t. I, p.6, traduction d'Armel Guerne). ↩
-
En. VI 9 9. ↩
-
Ele alude aliás a isso em I 6 6. ↩
-
En. VI 5 12, sublinhado nosso. ↩
-
En. I 6 9. ↩
-
En. VI 5 3 18. ↩
-
En. VI 7 34 13. ↩
-
Teleiosis; na língua dos Mistérios este termo designava igualmente a iniciação. ↩
-
En. VI 9 11. ↩
-
En. VI 9 10. ↩
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O professor se refere ao que Jellinek diz logo no início do seu livro Teoria Geral do Estado (do título original: Allgemeine Staatslehre. Verlag von O. Häring, Berlim, 1905). ↩