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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 202

27 de abril de 2013

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

Se todos têm os textos aí, à mão, ou na tela, podemos começar.

Esse texto que escolhi para a aula de hoje -- "Exercícios espirituais de filosofia antiga" -- tirado de um livro de Pierre Hadot; que é um dos autores que, desde a década de quarenta, vem estudando esse tema da dimensão sapiencial ou prática da filosofia. Tem uma série de livros publicados sobre isso. Eu vou ler aqui e comentar:

Muitas das dificuldades que experimentamos em compreender as obras filosóficas dos antigos provêm, com freqüência, do fato de que cometemos, ao interpretá-las, um duplo anacronismo: acreditamos que, como muitas obras modernas, elas se destinam a comunicar informações concernentes a um conteúdo conceptual dado e que podemos também tirar delas, diretamente, informações claras sobre o pensamento e a psicologia do seu autor. Mas, de fato, elas são com freqüência exercícios espirituais que o autor pratica pessoalmente e faz o seu leitor praticar. Elas destinam-se a formar as almas. Elas têm um valor psicagógico (É o guiamento das almas.). Toda asserção que está contida nelas deve então ser compreendida na perspectiva do efeito que visa a produzir e não como uma proposição que expressa adequadamente o pensamento e os sentimentos de um indivíduo.

O que ele está dizendo se aplica literalmente a algumas obras e relativamente a outras. Por exemplo, alguns de vocês, talvez, conheçam um livro chamado Comentários aos Vinte e Dois Arcanos Maiores do Tarô que é uma obra anônima de um padre alemão que foi publicado, em tradução brasileira, pela Editora Vozes, há muitos anos e teve várias reedições. É um livro notável de alguma maneira e o padre empreende ali uma defesa do Kant, dizendo que não podemos interpretar os livros do Kant diretamente porque eles têm esse espírito. Eles não expressam diretamente o pensamento kantiano, mas são uma série de exercícios que visa despertar no leitor certo efeito. Bom, de fato, considero que algumas obras de Kant podem ser lidas assim, mas se esse é o espírito, então, ele está ali muito bem disfarçado, porque tudo nos livros parece indicar que Kant está expondo, realmente, uma concepção teórica. De qualquer modo não podemos excluir a possibilidade desta interpretação. No caso de constituir exercícios espirituais, então quer dizer que o verdadeiro conteúdo afirmativo, conteúdo positivo destes textos não está neles, mas está nas conclusões interiores que o leitor vai tirar, ou seja, algo mais ou menos esotérico e, de certo modo, incontrolável, uns compreenderão o trajeto percorrido e a lição e outros, não. Neste caso, a filosofia de Kant seria incognoscível porque ela está na cabeça de cada leitor. Eu acho que quando se trata de exercícios espirituais, no sentido mais formal e explícito da coisa, isso deve ser perceptível no próprio texto, como o é, por exemplo, nos diálogos platônicos. E são todos eles exercícios dialogais. Ali está claro que o conteúdo teórico total não está expresso, mesmo porque Platão esclarece que a parte principal do ensinamento ele não pode dar nos diálogos, ele só dá na sua exposição oral para os alunos, de modo que o conteúdo teórico final, que só aparece no ensinamento oral, ficou conhecido por um grupo relativamente reduzido de pessoas até que o Giovanni Reale reunisse esse material no livro Por Uma Nova Interpretação de Platão. Nós podemos dizer que, hoje, nós conhecemos o pensamento teórico de Platão e antes tomávamos como seu pensamento teórico exposições dialogais que, na verdade, eram exercícios espirituais que preparavam o ouvinte ou o aluno para essa parte superior do ensinamento. Aquelas análises de Platão que falavam do dualismo platônico estão erradas porque esse dualismo era apenas um artifício pedagógico do qual ele estava se servindo para conduzir os alunos a uma terceira dimensão, acima do mundo sensível e do mundo das formas. Esse mundo que ele chamava de mundo dos princípios. Mas esses princípios, na verdade, só eram expostos, de maneira explícita, para os alunos mais preparados e era expresso oralmente. Para os outros Platão dava, no máximo, no fim do diálogo, uma exposição de tipo mítico, mas, a própria estrutura dos diálogos, mostra que se tratava de exercícios espirituais.

No caso de Aristóteles a coisa se complica barbaramente porque o que nós temos de Aristóteles são rascunhos do que ele fazia para suas exposições em classe. Se você pegar a obra inteira de Aristóteles supondo que, cada um daqueles textos, fosse uma exposição oral, não daria seis meses de exposição oral, em seis meses ele teria dito tudo aquilo. Como ele ensinou durante duas décadas, não se sabe mais o que ele falou na classe e não se sabe qual a estratégia que ele usava: se ele pegava aquele conteúdo teórico que está nos rascunhos e expunha oralmente ou se ele desdobrava aquilo em exercícios espirituais. Não sabemos o que Aristóteles fazia, de modo que as duas modalidades de leitura são admissíveis. A leitura que entende esses textos como exposições teóricas explícitas e aquela que vê neles ou que pode conceber a partir deles uma estratégia pedagógica. Quando se trata de uma estratégia pedagógica então, evidentemente, a exposição é indireta. Ela não diz exatamente o que o filósofo está pensando ou o que ele sabe, mas, ela usa de artifícios para levar o estudante a ele mesmo perceber aquilo, mesmo que não consiga expressá-lo.

De qualquer modo, esses dois aspectos, o aspecto de exercício espiritual e o aspecto de exposição teórica, eles existem -- ou coexistem -- em todas as obras filosóficas. Mesmo naquelas que são uma exposição teórica explícita, contém ali um elemento de exercício espiritual e nunca podem ser interpretadas só no seu sentido literal. Elas implicam algumas consequências a mais que o leitor, o ouvinte ou o estudante, deve apreender e ali está o seu sentido mais profundo. Nas obras que se apresentam para ele claramente como exercícios espirituais como, por exemplo, os próprios diálogos, eles contêm também um elemento de exposição teórica ali embutido porque, no mínimo, no mínimo, a prática de um exercício espiritual subentende uma certa concepção sobre o ser humano e sobre a alma humana e essa concepção orienta a prática dos exercícios. Os dois lados sempre existem. Quando nós estávamos estudando Descartes, vimos que ali existe, claramente, uma estratégia desse tipo de exercício espiritual. Ele diz: "Isso aqui é uma série de práticas que eu realizei efetivamente", ou seja, ela está sugerindo que nós realizemos a mesma prática. E a conclusão final a que ele chega -- Cogito ergo sum -- pode ter uma significação, uma amplitude diferente para cada um. Então, como prática espiritual aquele começo das Meditações Metafísicas de Descartes é, de certo, exemplar, não sendo uma coincidência que ele imite a meditação vedantina, é igualzinho em todos os seus passos, apenas as perguntas são um pouco diferentes, mas a escalada que vai desde as aparências até o centro da interioridade é, mais ou menos, a mesma. Como exercício espiritual aquilo conserva todo o seu valor. O problema, como eu expliquei naquelas aulas, é que [0:10] a partir de certo momento, Descartes começa a tirar conclusões teóricas do que ele alcançou nos exercícios. Dali em diante ele não está mais falando do seu "eu" real, do "eu" que estava envolvido no exercício, mas sim de um "eu" abstrato e universal. Isso acontece em parte porque é da natureza desses exercícios puxarem o indivíduo desde o seu "eu" empírico momentâneo até um ponto de vista universal, quer dizer, se identificar com um "eu" abstrato e universal, isso seria a encarnação da razão. Este é um dos objetivos desses exercícios: transcender os limites da individualidade e fazer com que o indivíduo pense na escala da razão universal. Mas a transição entre essas duas coisas nas meditações de Descartes não está muito clara. Eu, pelo menos, tive essa impressão, de que ele cometia um lapso, de que estava confundindo a narrativa de uma experiência pessoal, isto é, do exercício espiritual, com uma dedução lógica que ele faz a partir das conclusões destes exercícios.

Vamos continuar:

Esses exercícios (...) Correspondem a uma transformação da visão do mundo e a uma metamorfose da personalidade. Graças a eles o indivíduo se eleva à vida do Espírito objetivo, isto é, se recoloca na perspectiva do Todo (Aqui ele cita do Johann Friedmann: 'Eternizar-se ultrapassando-se.').

Quer dizer, neste exercício, o meditante passaria da visão do mundo centrada no seu "eu" empírico atual para o ponto de vista de Deus ou o ponto de vista da razão universal. Pelo menos era isso claramente que os estóicos queriam, como nós veremos, daqui a pouco.

Os Exercícios Espirituais de Sto. Inácio de Loyola não são senão uma versão cristã de uma tradição greco-romana.

Ele demonstra isso extensivamente no livro, mas não é esse o ponto do nosso interesse aqui.

"Os estóicos declaram explicitamente que a filosofia é um exercício. A seus olhos, a filosofia não consiste no ensinamento de uma teoria abstrata, menos ainda numa exegese de textos, mas numa arte de viver, numa atitude concreta, num estilo de vida determinado, que engaja toda a existência."

Ora, evidentemente, esse estilo de vida, uma vez alcançado e adotado e aceito, ele produzirá no indivíduo inúmeras percepções nas quais ele terá, em princípio, acesso à verdade e essa verdade será, por assim dizer, o conteúdo da filosofia. Temos, então, em todo escrito filosófico, de distinguir essas duas dimensões, a dimensão da doutrina e a dimensão do método. Não do método lógico, mas do método pedagógico, psicagógico. Quer dizer, a condução do estudante a certo estado de espírito no qual ali aprenderá a verdade e essa verdade será o verdadeiro conteúdo doutrinal que o autor estava tentando lhe passar. Esse conteúdo permanece mudo e esotérico até o momento em que o aluno o perceba. De qualquer modo, esse conteúdo doutrinal existe. Há uma apostila antiga minha em que eu discuto a definição pitagórica da filosofia. Pitagórica, não, platônica, mas está atribuída a Pitágoras, e está implícita na própria palavra filosofia -- amor à sabedoria. Se o filósofo se define como amante da sabedoria ele está pressupondo várias coisas. A definição é enormemente rica em seu conteúdo embora, à primeira vista, dê a idéia de que seja só um amador ou diletante. Mas, o amor à sabedoria pressupõe, em primeiro lugar, que a sabedoria existe. Se não há sabedoria nenhuma para amar, não faz sentido ser um amante da sabedoria. Em segundo lugar, ela pressupõe que ela está fora ou acima da mente do filósofo, senão o amor à sabedoria seria apenas um amor a si mesmo. Ou seja, o filósofo está tentando alcançar um tipo de conhecimento que o transcende de alguma maneira. Mas pressupõe, também, que essa sabedoria é acessível, que ela se abre ao buscador e que ela não se recusa, que ela está lá esperando porque, senão, seria um amor sadomasoquista, "Eu estou procurando uma dama que se esquiva e não quer saber de mim". Portanto, o amor à sabedoria supõe também que a sabedoria tem algum amor pelo seu buscador, pelo seu amante. Tudo isso está compreendido nesta definição. Isso significa que a definição mesma já tem um conteúdo teórico, um conteúdo doutrinal explícito a respeito do que seja a sabedoria. A sabedoria é acessível, amável, se abre ao seu buscador e ela confere a ele um benefício. O benefício é, pelo menos por instantes, poder encarar a realidade de um ponto de vista que já não é do eu empírico, mas que é o da própria sabedoria.

O ato filosófico não se situa somente na ordem do conhecimento, mas na ordem do 'si' e do ser (Quer dizer o 'si' é o eu mais interior.). É uma conversão que abala toda a vida, que modifica o ser que a realiza.

Mas, evidentemente, se essa modificação leva o indivíduo até um estado contemplativo, o que ele vai contemplar ali? A verdade. Ali estará o verdadeiro conteúdo teorético, o conteúdo daquilo que foi contemplado. Também isso supõe que, quando o filósofo toma a palavra, e, em nome da sabedoria, ele expõe o conteúdo teórico daquilo que ele sabe, ou pensa ou julga saber, essa exposição será sempre deficiente. Isso é universal na filosofia. Toda a exposição de uma teoria é, necessariamente, deficiente porque essa teoria é o conteúdo a que o filósofo teve acesso no instante em que a sabedoria se abriu para ele por momentos e de maneira necessariamente deficiente. A percepção que ele tem, chegando ao cume desses exercícios espirituais ele percebeu alguma coisa, ele sabe que aquilo que ele disser a respeito será suficiente, porque só será compreendido por quem fez a mesma série de exercícios e chegou ao mesmo estado espiritual dele. Nesse sentido, todas as obras filosóficas são de alguma forma esotéricas. Elas só abrem o seu conteúdo a quem percorreu as etapas. Em alguns casos essa necessidade de percorrer o caminho é afirmada explicitamente -- Hegel diz isso. Ele diz que uma técnica filosófica nada significa sem o conhecimento do percurso que leva até ela. O que é esse percurso? É apenas uma dedução lógica? Não! É uma sequência de percepções, portanto, trata-se também de exercícios espirituais em Hegel. Isto quer dizer que tomar o conteúdo das filosofias somente por aquilo que está escrito é sempre errado. Toda e qualquer obra de filosofia pressupõe esse caminho que levou às conclusões e esse caminho nem sempre está totalmente explicitado. O filósofo, após a sequência de experimentos espirituais, mediante os quais ele se preparou e se educou, quando ele chega à percepção do conteúdo que consistirá na sua "filosofia", sabe que não será qualquer recém-chegado que entenderá aquilo.

A coisa mais evidente do mundo é que as faculdades de filosofia não preparam ninguém para isso. Elas saltam sobre esses exercícios e sobre a formação da mente do filósofo, elas só lhe dão informações. No máximo lhe dão treinamento lógico, mas isso está longe de ser eficiente. Esse é o problema do ensino da filosofia universalmente hoje. Estão pegando conteúdos esotéricos e os estão tratando de uma maneira, grosseiramente, exotérica. Estão ignorando todo o aspecto da formação interior [0:20] requerida para a verdadeira compreensão daquela mensagem. É como se um grupo de bárbaros invadisse o MIT e encontrasse aqueles computadores e tentasse mexer com base nos conhecimentos tribais que eles têm. Isso realmente acontece e, sobretudo, aquelas pessoas que acreditam poderem resolver todos os problemas filosóficos por meio da simples análise lógica, esses são os verdadeiros bárbaros que estão mexendo nos computadores. Eles realmente não entendem nada do que é a filosofia, entendem a filosofia exatamente como aquilo que se transmite nas universidades hoje, sem ter em vista... Isso é o que Pierre Hadot está tentando mostrar, que está subentendido em todos os textos de filosofia antiga. Há uma sequência de exercícios interiores, há uma série de práticas a serem levadas a efeito para criar no indivíduo a correta disposição de espírito para que ele apreenda a parcela da verdade que lhe seja acessível. Se você salta sobre esses exercícios, é evidente que sobra apenas a superfície expositiva ou teórica das filosofias. Bom, essa superfície é bastante grande porque a bibliografia filosófica é enorme e você pode ficar abordando isso nesse nível pelo resto da sua vida, acreditando piamente que você está fazendo filosofia quando não está, está fazendo outra coisa que foi inventada pelo establishment universitário atual. Quando você está lendo Platão dessa maneira, você não está lendo Platão, você está lendo outra entidade que foi criada pelo establishment filosófico para fazer às vezes de Platão. Você pode discutir teoreticamente todas aquelas afirmações esquecendo que algumas delas não têm um sentido teorético, mas têm um sentido disciplinar, elas não estão dizendo a verdade, mas o que você deve fazer para ter acesso à verdade. Seria mais ou menos como pegar um manual do jiu-jitsu e achar que analisando logicamente o conteúdo daquilo estará fazendo jiu-jitsu. Nunca ocorreu a você que aquilo não deveria ser lido e analisado, mas realizado fisicamente.

Para todas as escolas filosóficas, a principal causa de sofrimento, de desordem, de inconsciência, são as paixões: desejos desordenados, temores exagerados. A filosofia aparecerá então, em primeiro lugar, como uma terapêutica das paixões. Tomemos desde logo o exemplo dos estóicos. Para eles, toda a infelicidade dos homens provém de que eles buscam alcançar ou conservar bens que eles arriscam não obter ou que arriscam perder, e de que buscam evitar males que, com frequência, são inevitáveis. A filosofia vai, portanto, educar o homem para que não busque alcançar senão o bem que pode obter e não busque evitar senão o mal que pode evitar. Esse bem que se pode sempre obter e esse mal que se pode sempre evitar devem, para ser tais, depender unicamente da liberdade do homem: são o bem moral e o mal moral. Só eles dependem de nós, o resto não depende. O resto, portanto, corresponde ao encadeamento necessário das causas e dos efeitos, que escapa à nossa liberdade.

Essa distinção entre o domínio da liberdade e o domínio da natureza, de certo modo, está dada, disseminada em toda a filosofia universal. Lembro-me de ter chegado a essa conclusão muito antes de ter estudado qualquer coisa sobre o estoicismo porque ela não é própria dos estóicos, está disseminada e aparece aqui e ali. Aos poucos você nota claramente isto. Caso você fique gastando suas energias lutando contra o inevitável ou querendo alcançar o inalcançável, automaticamente, já tornou a sua mente escrava de fantasias. Você está literalmente fora da realidade. Essa distinção entre aquilo que faz parte da estrutura do real e aquilo que está dependendo da nossa liberdade não é evidentemente somente um princípio estóico, mas é um princípio universal sem o qual o estudo da filosofia é impossível, porque se você não percebe nem isto, você não quer se situar na realidade e na verdade, quer apenas viver no mundo da sua fantasia.

Mas, admitir esse princípio não basta. É preciso que você o transforme numa orientação prática na vida e essa orientação prática dará para você a distinção entre o que vale a pena você pensar e o que não vale. Você vai graduar a atenção que vai conceder aos vários assuntos e, portanto, o emprego do tempo. O tempo é a verdadeira substância da vida humana. Outro dia estava comentando uma sentença de Sêneca que diz que as pessoas esperam gratidão quando dão um presente para você, mas elas não se sentem gratas pelo tempo que elas tomaram de você em troca, quando, na verdade, o tempo é o mais valioso dos bens, porque ele não pode ser devolvido jamais. Isso quer dizer que dar dez minutos a uma pessoa é melhor do que dar qualquer coisa, porque você estará dando o seu próprio sangue, de algum modo. Agora, é evidente que os outros tomam o nosso tempo, todo mundo toma nosso tempo. Mas, quanto tempo de você mesmo você toma tentando alcançar o inalcançável, ou evitar o inevitável sem ter em conta a distinção entre liberdade e natureza? Note, que durante as aulas sobre Louis Lavelle, nós insistimos muito nesse ponto: o homem desfruta de uma parcela da liberdade divina. Deus tem a liberdade total, ele faz o que bem entender e do jeito que bem entender, Ele é criador, não existe um quadro de realidade externo que o limite de alguma maneira; ele mesmo cria esse quadro. E nós nascemos num quadro pré-determinado, mas que não está completo. Há um pedacinho que nós podemos completar e esse pedacinho nós criamos com total liberdade. Nós fazemos como nós quisermos. Porém, é só uma parte. Da nossa própria constituição faz parte um elemento de natureza, um elemento que já está dado e que não podemos mudar. Não mudamos a nossa estatura, não mudamos a nossa ancestralidade, tem uma série de coisas em nós que não mudamos. Às vezes para vencer certos vícios e defeitos você pode levar certo tempo, outras vezes não consegue vencê-los. Há uma parte que é escrava, por assim dizer. Mas há uma parte que é livre e é essa parte que decide o que você vai ser. Esta parte é que vai criar a sua essência biográfica, sua essência individual. A receita não é dada de início, pronta, está pronta aos olhos de Deus, Deus sabe o que você vai ser, mas ele não impõe isso a você. É nesse sentido que diz o Lavelle que a existência precede a essência. Não com relação à espécie que tem uma essência dada, mas com relação à história individual. Sua história tem um sentido, esse sentido é a essência e esse sentido, evidentemente, só pode estar pronto no último momento de sua vida ("Tel qu'en Lui-même enfin l'éternité le change".). Ou seja, os estóicos tomavam essa distinção entre liberdade e natureza como a regra que deveria guiar o indivíduo, não só nos seus atos externos, mas na sua vida interior, naquilo que ele pensa, o controle daquilo que você pensa, quanto de tempo você vai dar para cada tema? Por exemplo, uma coisa que sempre digo aqui em casa e para os meus alunos: quanto tempo você passa pensando nos defeitos dos outros? [0:30] Sobre os quais você não tem nenhum poder? Se você não pode mudar o sujeito, o que adianta você ficar pensando nos defeitos dele? Digo isso para não se ficar prestando atenção nos defeitos dele por nenhum segundo. Isso seria o básico.

No entanto, nós sabemos que na cultura brasileira falar sobre os defeitos dos outros é quase uma obrigação social. Então, desde cara se tem um impedimento cultural ao exercício de uma condição psicológica básica para o treinamento filosófico, que é a gradação do tempo e da quantidade de atenção concedida a cada tema.

Se vocês praticarem isso durante algumas semanas, vão ver a diferença que faz. É uma diferença brutal. Há reservas de inteligência que ficam bloqueadas em troca de ficar falando de coisas nas quais você não tem o mais mínimo poder de interferência.

É claro que a distinção que o estóico colocava entre liberdade e natureza era uma distinção absoluta e taxativa. Mas também existe uma dimensão da realidade onde essa distinção é relativa e nebulosa, que é a dimensão política.

Nós não podemos nos esquecer de que toda essa filosofia estoica se desenvolve numa época na qual tinha acabado a democracia grega e que não havia praticamente participação política. Por exemplo, se você tivesse nascido na União Soviética, então, não há nada na sociedade que se possa mudar. Tudo o que acontece na sociedade vem de cima e lhe é imposto assim como uma pedra que caiu sobre você, não há nada a fazer. Portanto, é inútil pensar nisso e neste caso o estóico recomendaria a total abstinência de interesse por isso, pelo menos de investimento emocional. Em outras palavras, deveria se reconhecer que tudo está uma porcaria mesmo e que não se pode mudar nada mesmo, então vai pensar em alguma outra coisa. Porém, onde há a possibilidade de ação política, então o limite entre o que nós podemos e o que nós não podemos fazer é às vezes difícil de perceber.

Às vezes se pode interferir mais na sociedade do que se imaginava e às vezes os melhores esforços que você faz esbarram contra um muro de impossibilidade, de modo que essa distinção hoje em dia não é tão fácil de você fazer nas sociedades democráticas ou semidemocráticas, ou seja, aquilo que o estóico tomava como uma distinção absoluta é ambíguo na dimensão política.

Convém ainda você levar em conta esta distinção para você não ficar sonhando com ações impossíveis e também para você não se omitir de realizar as ações que são realmente possíveis e que podem ser às vezes de escala pequena. Mais ainda, isso dá para você um critério de distinção entre o investimento e o lucro, o custo-benefício, por assim dizer, e isto vai orientar cada uma das suas ações no sentido de se obter o lucro máximo com o investimento mínimo.

Isso se torna de certo modo uma obrigação moral: eu não vou perder tempo insistindo em lutas que não vão dar nada, mas sempre há algo que eu posso realmente fazer.

Ainda existe outro perigo. A diferença entre o que você pode fazer e o que você não pode, pode ser nublada ou perturbada pela opinião pública ou pelo que o seu grupo de referência acha que é possível e o que é impossível. Essa distinção tem de ser feita apenas e exclusivamente por você mesmo com um exame de suas possibilidades reais. Então, existem causas que a opinião pública pode considerar perdidas, mas que, se não as examinar pessoalmente, não sabe se estão perdidas de fato. Essa distinção tem de ser, por sua vez, estritamente racional e não pode se tornar elemento passional. E o principal elemento passional que pode entrar aí é o deixar-se impressionar pelo que o grupo de referência ou opinião pública diz. É o risco de se criar, por exemplo, um medo do ridículo. Um medo de passar por um Dom Quixote etc. Não se pode deixar levar por isso, o exame precisa ser estritamente objetivo.

Eu posso dar até um exemplo pessoal. Quando anos atrás eu entendi que no Brasil toda a ação formalmente política estava inviável, eu percebi que era necessário investir na formação de uma nova elite intelectual. Isso é possível fazer, isso está ao meu alcance e eu estou fazendo. Não quer dizer que ela seja a única coisa possível.

Pela filosofia passamos de uma visão humana da realidade, em que os valores dependem das paixões, a uma visão natural das coisas, que recoloca cada acontecimento na perspectiva da natureza universal. Essa mudança de visão é difícil. Os exercícios espirituais operam pouco a pouco a transformação interior.

Nestes preceitos aqui, está embutida uma tese de ordem teórica sobre a natureza da realidade. Os estóicos acreditam que a razão impera sobre a totalidade da existência, a razão está embutida na natureza das coisas e nós podemos ter acesso a essa razão não ao ponto de dominá-la teoricamente, mas ao ponto de personificá-la na percepção que nós temos das coisas. Tentar perceber as coisas de uma maneira que não reflita apenas a minha estrutura psíquica-emocional pessoal, mas que reflita a verdadeira natureza universal das coisas. É claro que isso é outro preceito disciplinar. Então, você pode perguntar: mas, e se a razão não imperar? E se o mundo for governado pela total irracionalidade ou pelo acaso? Muito bem, então a ética estoica não vai funcionar. Mas a prática nos diz que ela funciona:

Graças a Fílon de Alexandria possuímos duas listas de exercícios que nos dão o panorama de uma terapêutica filosófica de inspiração estóico-platônica. Uma dessas listas enumera: a busca (por investigação) (zetexis), o exame aprofundado (skepsis), a leitura, a audição (akróasis), a atenção (prosokhé), o domínio de si (enkrateia), a indiferença às coisas indiferentes.

Voltemos aí à indiferença a tudo que é indiferente, que é o inalcançável. Esse ponto aqui é básico. Eu acho que no meio brasileiro isso é extremamente difícil de se praticar, porque a solicitação de atenção para picuinhas é uma coisa horrível de uma intensidade monstruosa no Brasil. E se você concede atenção a essas coisas não é só o fato de você estar gastando o seu tempo à toa que o prejudica, não! Você está deformando a sua visão da realidade. Você está se colocando do ponto de vista de uma subjetividade doente que gasta todas as suas energias em algo que ela não pode mudar.

Portanto, isso aí é uma coisa que se chama parasitagem, aquilo que a Bíblia chama de "o demônio devorador", isto é, tudo o que você cria, tudo o que você tem, está continuamente sendo devorado e destruído quando se poderia simplesmente tomar de volta ao se dizer: eu não vou investir mais nenhum segundo de atenção a isso, e vou gastar realmente naquilo que posso fazer.

A outra lista nomeia sucessivamente: as leituras, as meditações (meletai), a terapia das peixões, as lembranças do que é bom, o domínio de si, o cumprimento dos deveres. A atenção (prozokhé) é a atitude espiritual fundamental do estóico.

Note bem que todas as coisas que ele está atribuindo ao estoicismo, elas estão nos [0:40] diálogos socráticos do mesmo modo.

É uma vigilância e uma presença de espírito contínuas, uma consciência de si sempre desperta, uma tensão constante do espírito. Graças a ela, o filósofo sabe e quer plenamente o que ele faz a cada instante.

Ou seja, pelo simples fato de você recusar a atenção àquilo que é indiferente ou que é inútil e se concentrar em fazer o que realmente pode fazer, então automaticamente as suas ações adquirem uma intensidade e uma profundidade que não tinham antes. É claro que isso aumenta a eficácia de suas ações nessa mesma medida.

Graças a essa vigilância de espírito, a regra de vida fundamental, isto é, a distinção entre o que depende de nós e o que não depende, está sempre 'à mão'.

Então, não basta você saber que existem coisas indiferentes e inúteis, mas é necessário que se faça essa distinção a cada instante até torná-la, por assim dizer, automática. Claro que, quando isso acontecer, as pessoas vão achar apenas que isso é um traço da sua personalidade, pensarão que se trata de um sujeito que recusa a atenção a certas coisas e que, então, é melhor não falar dessas coisas com ele. Elas não vão perceber naturalmente que isso é o resultado de uma prática disciplinar, mas que importa para você o que elas estão percebendo ou não?

É essencial ao estoicismo (como aliás ao epicurismo) fornecer aos seus adeptos um princípio fundamental extremamente simples e claro, formulável em poucas palavras, que possa permanecer facilmente presente ao espírito e ser aplicado com a segurança e a constância de um reflexo.

Então, por exemplo, essa distinção entre o que é relevante e o que é indiferente deve se tornar um reflexo. Na hora que isso se torna um reflexo, automaticamente você começa a ver as coisas de uma outra maneira. E de maneira muito mais eficiente, ou seja, dada uma discussão pública ou qualquer tema assim, você irá muito mais diretamente ao ponto.

Essa atenção ao momento presente é de algum modo o segredo dos exercícios espirituais. Ela liberta da paixão que é sempre provocada pelo passado ou pelo futuro.

Isso aqui é fundamental. Todos os desejos desordenados e temores exagerados só podem vir do passado ou do futuro. Eles nunca vêm do momento presente. Quando você está atento ao que realmente está acontecendo no momento presente, você já está só por isso mais livre das paixões e desejos desordenados e temores exagerados.

Ela facilita a vigilância, concentrando-a num minúsculo momento presente, sempre dominável.

Isto aqui é básico: o momento presente é dominável, porque ele é o único ponto onde existe a sua liberdade. Qualquer exercício da liberdade só pode ser feito no momento presente. Não no passado, que não se pode modificar mais; e não no futuro, sobre o qual não tem poder de preensão.

Então, quando eu sugeri, por exemplo, que, quando rezar, você deveria concentrar-se na consciência de sua liberdade. A consciência de sua liberdade é a mesma coisa que a consciência deste momento. Você deve lembrar que naquele momento você está fazendo algo que você decidiu porque nada o obrigou exteriormente a estar rezando naquele momento. Então, a consciência do momento presente é a consciência do seguinte: neste momento, nada me obriga a fazer nada que eu não queira, eu decido inteiramente o que eu vou fazer agora. Quanto mais se tem essa consciência do momento presente, mais se tem consciência de sua liberdade e, portanto, de seu poder.

(...) enfim, ela abre nossa consciência à consciência cósmica, tornando-nos atentos ao valor infinito de cada instante (...)

Esse valor que coincide com o valor da liberdade evidentemente.

(...) fazendo-nos aceitar cada momento da existência na perspectiva da lei universal do cosmos.

Ou seja, na perspectiva da distinção a mais clara possível entre o que é liberdade e o que é predeterminação ou natureza; e automaticamente se recusando a se preocupar com aquilo que já está predeterminado e se concentrando no exercício da sua liberdade.

Nessa prática, a imaginação e a afetividade devem associar-se ao exercício do pensamento. Todos os meios psicagógicos da retórica, todos os métodos da amplificação devem ser aqui mobilizados. Trata-se de formular para si mesmo a regra de vida da maneira mais viva, mais concreta.

Somente você mesmo poderá fazer isso, reiterando e amplificando cada vez mais essa distinção.

Tal é o exercício da memorização (mneme) e da meditação (melete). O exercício da meditação permitirá estar pronto no momento em que apareça uma circunstância inesperada, e talvez dramática. (Como é esta meditação?) O filósofo imaginará de antemão as dificuldades da vida (praemeditatio malorum, a premeditação dos males), a pobreza, o sofrimento, a morte; ele os olhará face a face, recordando que não são males, pois não dependem de nós.

Tudo aquilo que não depende de nós não tem significação moral. Não é mérito, nem demérito, portanto, não tem realmente nada a ver com você, embora o afete. Mas como não tem significação moral não interferirá no seu destino eterno.

Estar imaginando o futuro não quer dizer que não é para você pensar no futuro, ao contrário, você se preocupa com o futuro precisamente porque você não quer pensar nele. É aquele exercício que falava o Viktor Frankl da hiperreflexão, quando você tem um temor, uma fobia ou qualquer coisa assim, você é levado a se preocupar com aquilo precisamente porque você não quer pensar naquilo seriamente. Você fica num estado intermediário em que você finge estar pensando noutra coisa, mas no fundo você está preocupado com aquilo. Então, esqueça as outras coisas, esqueça os disfarces e, "Bom, já que eu estou com esse medo, eu vou pensar nele seriamente e vou dar o melhor de mim para imaginar esse medo". Na hora que você faz isso o medo desparece.

Então, pode-se exorcizar todos esses temores se você os levar a sério como hipóteses racionais. Por exemplo, você ter medo da morte, o que acontece na morte? Tente imaginá-la o mais realisticamente possível e você vai ver que automaticamente o medo vai passando. Você pode pensar as hipóteses piores, as mais catastróficas, medonhas e monstruosas, mas pense-as seriamente. Então isso é um exercício de meditação extremamente importante. De modo que, a maior parte desses temores não se realizará, mas se eles se realizarem você já sabe como eles são.

Desde a manhã ele examinará de antemão o que deve fazer no curso do dia e fixará de antemão os princípios que dirigirão e inspirarão as ações. De noite, ele se examinará de novo para se dar conta dos erros ou dos progressos realizados. Ele examinará também os seus sonhos.

Quanto aos sonhos, existe uma imensa bibliografia hoje. A tradição mais recente de análise de sonhos começa no século XVIII na Alemanha e depois se torna mais popular a partir de Freud. Existem mil e uma técnicas diferentes de análise dos sonhos, [0:50] mas se vocês querem alguma boa, sigam a de Andrew Hodges, porque ele examina as entrelinhas dos sonhos. Hodges é um psiquiatra forense e examina o que há de implícito ali, examinando o sonho como se fosse um discurso. É bem mais simples do que as técnicas freudianas e não estão baseadas em pressupostos técnicos complicados.

O exercício da meditação esforça-se por dominar o discurso interior, para torná-lo coerente, para ordená-lo a partir desse princípio simples e universal que é a distinção entre o que depende de nós e o que não depende, entre a liberdade e a natureza.

Veja que toda a filosofia do Louis Lavelle está aqui: você concentrar-se na liberdade, sabendo que esta liberdade é uma participação no ser, porque o ser é ato, o ser é criação permanente e existe uma parte sua, um aspecto da nossa vida que consiste na nossa participação efetiva no ser, ou seja, aquilo que nós fazemos, aquilo que nós produzimos se incorpora na realidade das coisas, torna-se parte do ser. Coisas que não existiam passam a existir por causa de você.

É claro que a sua existência não é inócua dentro do corpo do ser, mas também existe toda uma outra dimensão sua que já veio pronta e pela qual você não tem responsabilidade nenhuma, e que reflete apenas o determinismo natural, o determinismo social, histórico etc. Mas onde está a sua verdadeira natureza? Ela está naquilo que é pessoal e exclusivo seu, ou seja, é a sua liberdade.

Pelo diálogo consigo mesmo ou com outrem, pela escrita também, aquele que quer progredir se esforça para 'conduzir seus pensamentos pela ordem' (expressão de Descartes).

Conduzir seus pensamentos pela ordem não significa colocá-los numa sequência dedutiva onde você está tentando provar alguma coisa. A ordem, em primeiro lugar, é a ordem de relevância; em segundo lugar, é a ordem da certeza e da incerteza. Para isso, você tem o critério dos quatro discursos.

Por exemplo, você pode classificar os seus pensamentos, catalogar as suas crenças pela sua ordem de credibilidade desde o absolutamente certo até o meramente possível. O simples fato de fazer isso esclarece o seu mundo interior de uma maneira espantosa. Esta prática feita por uma semana, fará você verificar a total inviabilidade da maior parte das discussões que se processam, sobretudo, no meio universitário, na internet etc. As pessoas não sabem sequer se acreditam ou não no que estão dizendo, muito frequentemente aquilo do qual elas têm menos certeza é aquilo que afirmam mais categoricamente para produzir artificialmente os sentimentos de certeza.

A pessoa vem com uma dessas idéias para você e se você discute somente a idéia não basta. Quanto mais você contesta a idéia, mais a pessoa vai se apegar à idéia para reforçar o seu sentimento de certeza. Não adianta discutir a idéia, o que você tem de discutir é se o sujeito acredita mesmo naquilo, procurando saber quanto ele acredita nisso: que importância isso tem realmente para você? Por esse caminho, você pode conseguir alguma coisa, mas se você discute a própria idéia, quanto mais discutir, ele mais vai reforçá-la evidentemente.

Portanto, existe todo um lado, em toda a discussão, além da confrontação dialética ou retórica, existe uma estratégia psicológica ou psicoterapêutica que você tem de seguir. Veja que nas discussões públicas no Brasil as pessoas revelam, nesse aspecto, uma inabilidade, uma grosseria fora do comum.

Eu vejo, por exemplo, essas pessoas religiosas que ficam tentando convencer os homossexuais de que o homossexualismo é antinatural, pecaminoso. Mas isso não vai mudar as paixões da pessoa. Ora, não se trata de uma convicção, ele está expressando em linguagem de crença doutrinal o que é, na verdade, uma paixão, um desejo. Portanto, o que ele está dizendo não corresponde ao que ele está realmente querendo, então você discutir nesta clave é perfeitamente inútil.

Em segundo lugar, vemos que a ausência dessa estratégia psicológica ou psicoterapêutica nas discussões é resultado de uma profunda falta de respeito pelo interlocutor, onde você não está se interessando pelo que o indivíduo é realmente, pelo que ele sente realmente, pelo que ele crê realmente, mas está voltado apenas pelo conteúdo externo de suas afirmações. Você está prestando a atenção nas frases e não na pessoa que as diz. Assim, você está tratando aquele indivíduo como se ele fosse uma tese ou uma crença e não uma pessoa real. E isso mostra que não houve contato verdadeiro entre os dois "debatedores". É claro que quando a pessoa está defendendo uma posição que é existencialmente falsa, ela vai ter uma série de estratégias para evitar o contato, para ela não mostrar realmente o que ela está sentindo, não mostrar o que ela realmente está querendo.

No entanto, com um pouco de estratégia psicológica vai se podendo furar essa carapaça de racionalizações ou autodefesas e se pode chegar ao ponto, onde se pode saber o que a pessoa realmente está querendo. É isso que temos de discutir -- jamais se deve recorrer ao método de adivinhação, que é o método brasileiro de leitura segundo Cláudio Moura Castro, isto é, não ler o que o autor diz, mas o que se acha que ele quis dizer. Não é isso, trata-se de extrair da própria pessoa, ou descobrir pela estratégia verbal que ela usa, ou pela interrogação a que você a submete. Desse modo, você extrair, por assim dizer, a presença real da pessoa, fazendo com que ela se manifeste.

(...) aquele que quer progredir se esforça para 'conduzir seus pensamentos pela ordem' e chegar assim a uma transformação total da sua representação do mundo.

Conduzir os pensamentos pela ordem é o que eu chamo a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência. Só que esta unidade nós vamos ter de discuti-la de uma maneira mais aprofundada e mais crítica, isto é, a busca de uma unidade nos seus conhecimentos na unidade da sua consciência, e, portanto, da sua unidade da consciência no seu modo de ser é uma das motivações centrais da filosofia e, no fim das contas, é uma das motivações centrais de qualquer ser humano que comece a pensar. Você começa a pensar e naturalmente busca a unidade. Caso você se contentasse com a pura multiplicidade e confusão, você não precisaria pensar, você viveria apatetado como um animal que recebe impressões de tudo quanto é lado e não tenta de modo algum coeri-las ou sintetizá-las numa explicação. Se você pensa é porque você busca uma explicação e se você busca uma explicação é porque você busca uma unidade por debaixo da diversidade. A busca da unidade é um impulso fundamental do indivíduo humano. Mas, nós vamos precisar esclarecer melhor essa questão e é por isso que eu fiz esse outro texto aqui.

Vêm, enfim, os exercícios práticos destinados a criar hábitos. Alguns são ainda muito interiores. Por exemplo, a indiferença às coisas indiferentes (É uma prática puramente interior, psicológica, ninguém vai perceber que você está praticando isso.). Outros supõem comportamentos práticos: [1:00] o domínio de si, o cumprimento dos deveres da vida social, o domínio das paixões. Para o estóico filosofar é portanto exercitar-se em viver conscientemente, ultrapassando os limites da individualidade para se reconhecer como parte de um cosmos animado pela razão.

A idéia de um cosmos que é animado pela razão é um pressuposto de toda a atividade filosófica. Se você achar que tudo é absolutamente caótico não tem motivo para você pensar, examinar e buscar a unidade no fundo de qualquer coisa. O pressuposto da racionalidade do real de algum modo é inerente à filosofia, mesmo que seja para você chegar à conclusão de que a razão não governa coisa nenhuma, que tudo é um caos**.**

(...) filosofar é, portanto, exercitar-se em viver conscientemente e livremente, ultrapassando os limites da individualidade para se reconhecer como parte de um cosmos animado pela razão; e livremente, renunciando a desejar o que não depende de nós e que nos escapa.

No diálogo socrático (Aqui já não está falando dos estóicos, mas de Platão.) a verdadeira questão que está em jogo não é aquilo de que se fala, mas aquele que fala. Sócrates acossa seus interlocutores com perguntas que os colocam em questão, que os obrigam a prestar atenção em si mesmos, a inquietar -se consigo mesmos. A missão de Sócrates consiste em convidar seus contemporâneos a examinar suas consciências, a preocupar-se com seus progressos interiores: 'Farei a cada um o maior bem ao tentar persuadi-lo a preocupar-se menos com aquilo que ele tem do que com aquilo que ele é, para torná-lo tão excelente e razoável quanto possível.' O diálogo socrático aparece portanto como um exercício espiritual praticado em comum, que convida ao exercício interior, isto é, ao exame de consciência.

Você veja que em todos os diálogos socráticos de Platão, você não tem de fato nenhuma exposição teórica ou exposição doutrinal: Sócrates nunca diz o que está pensando ou no que acredita, ele só faz perguntas e coloca os seus interlocutores na posição de ter de responder por si mesmos, ou seja, ter de confessar a si mesmos o que realmente pensam, o que realmente sabem, e levá-los a reconhecer que sabem aquilo que sabem e que não sabem aquilo que não sabem --- ressalvada aí a gradação dos graus de certeza. Por exemplo, se numa conversação você puder simplesmente levar o indivíduo a classificar os seus graus de certezas, o grau de certeza das suas crenças e sentimentos, você já terá feito um grande bem para ele e sobretudo para si mesmo.

Essa prática do diálogo consigo mesmo, que é a meditação, parece ter sido muito prezada pelos discípulos de Sócrates. Perguntaram a Antístenes que proveito ele havia tirado da filosofia. Ele respondeu: 'O de poder conversar consigo mesmo'.

Ora, esse conversar consigo mesmo é um negócio absolutamente fundamental, porque existem inúmeras vozes na nossa cabeça: existe a voz da hereditariedade, a voz da opinião pública, a voz da mídia, a voz do seu pai, da sua mãe, do seu grupo de referência etc. Todas essas nos impõem crenças, fazem certas afirmações. Mas, no meio de todas essas vozes, onde está a sua realmente? A sua realmente é a que aparece no exercício do Viktor Frankl da hiperreflexão, ou seja, você confessar aquilo que realmente pensa a respeito de alguma coisa.

Você veja que todos esses pensamentos que cruzam a nossa cabeça têm inúmeras fontes, eles não são propriamente pensamentos nossos, eles foram simplesmente absorvidos, e nós o repetimos de algum modo. Mas desses, quais vamos incorporar à nossa pessoa de maneira permanente, consciente, voluntária e séria, e quais vamos simplesmente deixar circulando na nossa cabeça e nos atrapalhando e fazendo de conta que acreditamos nelas? Sobretudo quando se forma aquela confrontação onde uma parte diz "sim" e a outra parte diz "não", e uma hora você afirma uma coisa e uma hora você a nega. Por exemplo, as suas qualidades e defeitos: ora você é acossado por um discurso de acusação contra os seus defeitos e depois uma outra parte se levanta em sua defesa. No que você acredita afinal de contas: você acredita na acusação ou na defesa? Porque ambas vêm com a mesma força de eloqüência. Por que acontece isso? Porque você não pensou seriamente no assunto para dizer para você no que você realmente acredita a esse respeito.

Transformar essas inúmeras vozes que têm na sua mente na sua própria voz, e aquilo que não é da sua própria voz você afasta de uma vez por todas. Por exemplo, quando você se sente culpado por alguma coisa: se você não sabe quais são as suas culpas verdadeiras, como você vai se defender das inculpações falsas? Isto é a mesma coisa que um indivíduo que cometeu estelionato, mas em seguida ele é acusado de assassinato, de estupro, de sequestro. Ele se sente culpado por tudo, por via das dúvidas, porque não sabe o que fez. Mas se ele lembrar que cometeu estelionato, que isto ele fez, o resto ele não fez, então não vai se preocupar com o resto. Quer dizer, você tem de passar desses discursos anônimos que circulam para a mente para o seu discurso verdadeiro. É o que eu chamo de encontrar a sua própria voz. Veja, pelo tom dos discursos que cruzam a sua mente, você sabe se eles são a sua própria voz ou não, você reconhece a sua própria voz, você se conhece. Só que você deixa as outras vozes falando e fazendo de conta que são você. E isto pode chegar, evidentemente, desde uma simples neurose até uma obsessão demoníaca.

Isto quer dizer que a recusa de se examinar e a recusa de admitir as suas verdadeiras culpas só servem para criar culpas artificiais, pelas quais você começará a ser punido no mesmo momento. Se você não é capaz de confessar realmente as suas culpas para você, você não terá como se defender das inculpações falsas, e daí o seu cérebro vai ser uma constante confrontação de acusação e defesa que pode tomar uma energia absolutamente formidável. Então você veja, quando você vai dormir, essas coisas todas podem aparecer nos sonhos, e daí não tem como você governar isso aí. Mas, na sua vida de vigília, você não pode deixar que as coisas continuem assim, você tem de encontrar a sua própria voz e só permitir que ela fale, mais ninguém.

Essa íntima ligação entre o diálogo com outrem e o diálogo consigo tem uma significação profunda. Só aquele que é capaz de um verdadeiro encontro com outrem é capaz de um encontro autêntico consigo mesmo, e o inverso é igualmente verdadeiro.

Isto é uma coisa de uma importância existencial desmesurada. Se você não tem uma clara noção do que é a sua própria voz, que vem do centro do seu coração e que lhe diz a verdade sobre você mesmo, você não vai entender ninguém, porque todas as outras pessoas para você serão apenas projeções do seu discurso interior, projeções do seu teatro interior. Você as vai entender não de acordo com aquilo que elas estão dizendo, mas você as vai entender apenas naquilo que elas correspondem a figuras do seu teatro interior. Tem gente que passa a vida inteira assim. Então é a mesma coisa que dizer: este sujeito nunca conversou com ninguém, só conversou com ele mesmo. Quer dizer o encontro verdadeiro com o outro pressupõe o encontro consigo mesmo.

E isto pode ser extremamente dificultoso, porque as vozes que vêm na nossa mente começaram quando éramos pequenininhos, e você não lembra mais de onde elas vieram e elas continuam falando. Sobretudo pessoas que tiveram uma circunstância doméstica muito ruim, hostil, onde as pessoas gritavam com você, reclamavam etc. Tudo isso está na sua mente ainda. Então você vai ter de filtrar cada uma dessas coisas e vai ter de vencer cada um desses antagonistas. Mas você só pode vencer cada um deles se você lhe der, primeiro, a parcela de razão que ele tem. Porque existe um discurso de inculpação, e você assume a parcela de culpa que você tem, então já não é mais aquela voz estranha que está falando, agora é você mesmo.

Aí eu me lembro daquele pessoalzinho da USP, [1:10] aqueles professores da USP que demonstraram a sua imaturidade e grosseria emocional quando começaram a freqüentar umbanda e candomblé, porque diziam: "Isso é uma religião que permite viver sem culpas". Eu digo: se você quer viver sem culpas, você acabar assumindo a culpa de tudo, você vai se sentir acusado e acossado o tempo todo e vai ter de achar algum bode expiatório que pode ser, inclusive, o sistema, o imperialismo americano, o Mossad, qualquer coisa assim. Ou seja, isso demonstra o estado de grosseria da alma dessas pessoas. Estas pessoas são aparentemente cultas, mas na verdade são muito primitivas, como macacos.

Não existe vida humana sem o fator culpa, sem o fator responsabilidade moral que decorre do fato da sua liberdade, de você ser autor das suas ações. Se você não tivesse culpa alguma, então você seria neutro como uma tartaruga ou como uma minhoca. Agora, se você tivesse todas as culpas de que o seu teatro interior lhe acusa, então você também estaria reduzido à total impotência, como uma tartaruga ou uma minhoca. Só passando deste estágio de acusação tosca interior a uma consciência clara de culpa e inocência, é que você pode se livrar disso.

O diálogo não é verdadeiramente diálogo senão na presença a outrem e a nós mesmos. Desse ponto de vista, todo exercício espiritual é dialógico, na medida em que é exercício da presença autêntica.

Eu digo: agora aplique isto aqui à leitura de textos filosóficos. Aquele texto não é nada se você não conseguir refazer interiormente as experiências interiores que desembocaram naquilo. Essas experiências às vezes estão expostas e às vezes estão implícitas. Ora, imagina quanto você precisa avançar nessa conquista da clareza interior para você ser capaz de reproduzir experiências interiores de um Platão, de um Kant, de um Descartes etc. Isto quer dizer que, sem esta formação espiritual anterior, a leitura de qualquer livro de filosofia é deslizar pela superfície verbal. Esta superfície verbal, por sua vez, se presta a exame lógico e discussão indefinidamente, que pode alimentar toda uma cultura pseudofilosófica, mas que não tem substância verdadeira das experiências interiores.

Em alguns casos, as experiências interiores estão perfeitamente relatadas, como acontece, por exemplo, nas obras de Husserl. Mas ele criou uma linguagem técnica para descrever essas experiências, que por si mesma a linguagem é tão dificultosa que constitui um obstáculo por si mesma. Tão logo você dominou essa linguagem, você entende que a descrição das experiências interiores dele é de uma precisão monstruosa e às vezes milimétrica. Mas como a linguagem técnica é difícil, ela vira um problema em si mesma e você fica estudando as dificuldades lógicas inerentes àquilo e nunca sai disso, e nunca vai para as experiências.

Os diálogos platônicos são exercícios-modelos. Modelos, porque não são estenografias de diálogos reais, mas composições literárias que imaginam um diálogo ideal. Exercícios, precisamente porque são diálogos.

Atenção aqui:

Um diálogo é um itinerário de pensamento cujo caminho é traçado pelo acordo, constantemente mantido, entre quem interroga e quem responde.

Ou seja, ambos estão igualmente empenhados na busca da verdade e com igual sinceridade, ou seja, dispostos a declarar aquilo que estão efetivamente percebendo. Se não há essa condição, não há diálogo, há apenas uma polêmica exterior. Então se resolve pelos meios puramente retóricos. Do mesmo modo, na meditação, a coisa só funciona se houver plena sinceridade, ou seja, pleno reconhecimento do que é a sua própria voz e do que é imitação de uma voz externa. A sua voz vem com um sentimento de autoria, um sentimento de responsabilidade, e as outras vozes vêm por automatismo, as outras vozes vêm puramente da memória sem passar pela vontade.

Opondo seu método ao dos erísticos, (...)

Ou seja, fazendo uma distinção do que é um verdadeiro diálogo ou meditação e o que é apenas uma confrontação externa de opiniões,

(...) Platão sublinha: 'Quando dois amigos estão com disposição de conversar, é preciso usar de uma maneira mais doce e mais dialética'.

Ou seja, não são só os instrumentos da retórica ou da erística.

'Mais dialética' significa não somente que damos respostas verdadeiras, mas que não fundamos nossa resposta senão naquilo que o próprio interlocutor reconhece saber.

Isto vale tanto para o diálogo filosófico quanto para a meditação. Uma vez me pediram... Eu falei qualquer coisa de honestidade intelectual, as pessoas disseram: "Mas isso é uma coisa muito complicada. O que é, afinal de contas, honestidade intelectual?", eu falei, é a coisa mais simples do mundo: é você não fingir que sabe aquilo que não sabe, nem que não sabe aquilo que você sabe, portanto, é apenas uma fidelidade a sua memória interior. Se há alguma dúvida quanto a isso, aplique o método de classificação que eu dei na apostila "Inteligência, verdade e certeza", com os quatro graus de credibilidade, ou seja: eu sei disso com certeza absoluta; eu sei disso com probabilidade razoável; eu sei disso com verossimilhança, ou seja, porque parece verdadeiro a mim e a outras pessoas; ou eu sei disso como uma mera possibilidade imaginária? Só de fazer isso, você já saneou o ambiente interior.

A dimensão da interlocução impede o diálogo de ser uma exposição teórica e dogmática e o obriga a ser um exercício concreto e prático, (...)

Parênteses: mesmo a exposição teórica e dogmática tem o elemento dialógico lá implícito. Por quê? Por exemplo, vamos supor que você vá ler uma pura exposição teórica, que é o Discurso de Metafísica de Leibniz: ele está apenas expondo a estrutura da realidade tal como lhe aparece. Porém, ele está pressupondo que o seu interlocutor tenha condição interior de acompanhá-lo e de reconhecer, na sua própria experiência interior, o que ele está dizendo. Portanto, mesmos os textos filosóficos que são aparentemente os mais teóricos pressupõem uma preparação interior que não é o simples aprendizado acadêmico de filosofia, mas é a formação da verdadeira personalidade, da verdadeira mente do filósofo.

Como essa condição em geral não é cumprida, as pessoas acabam entendendo os textos filosóficos como se fossem outras coisas e, sobretudo, se apegam ao conteúdo teórico-dogmático como se ele subsistisse por si, sem a retaguarda da experiência interior que chegou lá. Então, no fundo, você não sabe por que o filósofo está dizendo aquilo, você acha que apenas é uma opinião: ele dá uma opinião e tenta prová-la por meios lógicos, quando não é isso o que ele faz. Você veja que às vezes, quando você pega um texto de Leibniz ou do próprio Descartes, a complexidade, a riqueza da experiência interior que o levou a dizer aquilo é tamanha que, só de tentar imaginá-la, você já está dando a si mesmo todo um curso de filosofia.

É isto que tento fazer nos textos que analiso aqui. Eu não procuro discutir se os textos estão certos ou estão errados, não tento prová-los ou impugná-los, eu tento imaginar a experiência interior que levou a eles e dar a vocês os meios de percorrer as mesmas etapas, e daí você entende o texto. E se você entende, daí você pode passar a discuti-lo do ponto de vista lógico-analítico --- mas somente aí. E isto, se esse exame lógico-analítico for ainda necessário, se você estiver muito interessado em provar alguma coisa. [1:20]

(...) o obriga a ser um exercício concreto e prático, porque não se trata de expor uma doutrina, (...)

Parênteses: mesmo quando é a exposição de doutrina existe esta dimensão da preparação psicológica e moral para a absorção da doutrina.

(...) mas de conduzir um interlocutor a uma determinada atitude mental.

É justamente a atitude mental na qual a exposição teórica possa ser compreendida no seu verdadeiro nível, como condensação de experiências interiores vividas.

É o que se passa em todo exercício espiritual: é preciso fazer-nos mudar de ponto de vista, de atitude, de convicção, portanto dialogar conosco mesmos, lutar conosco mesmos.

Para vencer essa luta, não basta expor a verdade, é preciso persuadir, portanto usar a psicagogia, a arte de seduzir as almas; (...)

A sua própria alma inclusive, para que ela perca o medo de se declarar e para que você tenha a condição de uma confrontação sincera consigo mesmo, num ambiente onde ninguém é o acusador, ninguém é o demônio e ninguém é o advogado, onde são dois amigos que estão conversando. Então é o famoso "ama o teu próximo como a ti mesmo". Se eu não tenho nenhum amor por mim mesmo, como é que eu vou amar o próximo? Este é o exercício do amor a si mesmo, ou seja, você ser justo, paciente, tolerante e honesto consigo mesmo.

(...) e ainda, usar não somente a retórica, que busca, por assim dizer, persuadir de longe por um discurso contínuo (De longe, quer dizer, externamente. Na confrontação retórica, você quer apenas tapar a boca do adversário. Você não está se dirigindo à alma profunda dele, mas apenas à capacidade verbal dele, mas no caso você vai usar a verdadeira dialética. O que é a dialética? É aquela discussão na qual todos os seus "argumentos", todas as suas proposições se baseiam no reconhecimento daquilo que você sabe na profundidade da sua alma ou que o interlocutor sabe no interior da alma dele, portanto, é uma troca de impressões sinceras.) A dialética deve portanto escolher habilmente uma via indireta, melhor ainda, uma série de vias aparentemente divergentes, mas no entanto convergentes.

É exatamente o que eu estou fazendo aqui, quer dizer, eu estou pegando os assuntos desde vários caminhos diferentes, desde várias direções diferentes. Parece que eu estou falando de assuntos diferentes, mas não estou, estou falando do mesmo assunto.

Muito bem, dá tempo ainda de nós pegarmos o segundo texto? Quanto tempo foi de aula? Vamos fazer um intervalo e na segunda parte ao invés de responder perguntas eu vou comentar este segundo texto.

[Intervalo]

Então vamos lá! Essa noção, vamos dizer, de unidade do conhecimento, ela exige algum esclarecimento crítico maior. Então eu tenho tomado aqui algumas notas, algumas eu expus na aula passada e hoje eu vou prosseguir aqui. Então:

Bernhard Bolzano começa sua famosa Teoria da Ciência definindo a totalidade dos conhecimentos humanos como o conjunto completo das proposições verdadeiras e reconhece que esse conjunto é inabarcável em qualquer momento da existência histórica real. Mas na realidade, o conjunto é maior ainda, pois o conhecimento não consiste somente nas verdades estabelecidas e sim, também, no conjunto de hipóteses, interrogações e conjeturas que as enquadra e lhes assegura um lugar na ordem hierárquica das preocupações humanas.

Isso aqui é muito simples, quer dizer, uma proposição ela só tem sentido se enquadrada dentro, vamos dizer, do conjunto de interrogações e de procedimentos que levou até ela. Senão não significa absolutamente nada. Quer dizer, é utópico você pensar que você poderia... Quer dizer, esse conceito de totalidade dos conhecimentos humanos é puramente idealístico e hipertrófico por assim dizer, porque, ou seja, é evidente que o conhecimento não pode se constituir somente de uma lista de proposições. As proposições nada significam fora do discurso. E o discurso, ele está imbricado, vamos dizer, dentro da prática humana, da práxis -- como diriam os marxistas -- e essas frases pouco significariam por si mesmas.

Mais ainda, em qualquer momento da história real, os conjuntos dos conhecimentos facilmente acessíveis e consensuais, mesmo entre os homens mais sábios, é somente um fragmento, um subconjunto da totalidade aludida por Bolzano, sem contar o fato de que mesmo esse subconjunto não é acessível a todos ao mesmo tempo, mas se distribui, em recortes e partículas, entre vários grupos cuja intercomunicação pode ser deficiente ou nula.

Notem. Isso não acontece só, vamos dizer, na totalidade dos conhecimentos acessíveis, mas até dentro de cada especialidade científica você tem subespecialidades que não se intercomunicam entre si. Eu me lembro de que naquele livro O Sonho de Descartes, que examina só o progresso das matemáticas, dizia que a coisa já estava tão complicada que frequentemente o chefe do departamento não conseguia entender os projetos de pesquisa dos seus subordinados. Então os aprovava ou reprovava, assim, às cegas. E isso dentro de uma especialidade muito limitada, hum?

A idéia de 'unidade do conhecimento' pode evocar, à primeira vista, um número compacto de princípios universalmente explicativos a que se reduziria, idealmente, o 'conjunto das proposições verdadeiras'.

Então, vamos supor, que se esse conjunto das proposições verdadeiras existisse e pudesse existir, está certo, se elas são verdadeiras é porque elas são demonstráveis a partir de um núcleo pequeno, vamos dizer, de premissas universalmente explicativas das quais elas são deduzidas.

Se esse conjunto não é abarcável, muito menos poderá jamais ser testada a veracidade de tais princípios magnos que, de fato, nunca foram encontrados.

Mesmo na hipótese remotíssima de que se alcançasse amanhã ou depois a tão sonhada 'teoria unificada' da ciência física, seria no mínimo arriscado ver nela a unidade de todos os conhecimentos humanos, pois o caminho que vai desde esse centro imperial até às suas aplicações dos mais variados e remotos domínios da interrogação humana é de extensão ilimitada e externamente impercorrível.

Você imagina, por exemplo, que se os caras chegassem à "teoria unificada" da ciência física, quer dizer, bom, esse aí seria o fundamento de todos os conhecimentos humanos então você teria que ter toda a cadeia dedutiva que leva desde esses princípios até às suas aplicações mais remotas em econômica, sociologia, psicologia, etc. Isto é absolutamente utópico!

No entanto, seria inviável aceitar a completa ausência de unidade como o destino fatal a que está condenado para sempre todo conhecimento humano. O fragmentário, o inconexo, é, por definição, o irracional, e é inadmissível que um caleidoscópio de irracionalidades mereça, por si só, o nome de 'conhecimento'.

Ou seja, se é utópico você alcançar e dominar a totalidade dos conhecimentos possíveis e reduzi-los, portanto, a um núcleo de premissas ou princípios fundantes também é utópico você desistir completamente de toda unidade do conhecimento porque se você disser: não vai ter unidade nenhuma jamais, então são somente fragmentos inconexos sem nenhum nexo racional, então, portanto, não é conhecimento nenhum. Então quer dizer, que entre os dois extremos, vamos dizer, da unidade perfeita e acabada e da total ausência de unidade, da total fragmentariedade irracional nós estamos, mais ou menos, no meio entre duas impossibilidades utópicas mas que são ao mesmo tempo exigências incontornáveis.

Todo conhecimento é, no fim das contas, um esforço para subir da multiplicidade caótica das impressões imediatas a algum nexo superior que as unifique. O conhecimento consiste na busca da unidade -- de unidades parciais, no início, as quais só adquirem sentido na medida em que depois vão se aproximando da unidade absoluta sem nunca poder atingi-la, como numa assíntota.

Uma assíntota é uma curva que vai se aproximando de uma reta, se aproximando... Mas nunca chega.

Isso implica que, em cada momento dado, os pontos mais altos do conhecimento obtido, mesmo na hipótese utópica de que angariem em seu favor o consenso dos sábios, ainda seriam no máximo uma articulação provisória de fragmentos que, se aponta para uma unidade possível, não pode nunca jurar devotamente que essa unidade estará na direção precisa em que o consenso espera encontrá-la, e não numa direção diversa ou oposta, ou mesmo em direção nenhuma. Resta o fato, [1:30] empiricamente constatado a todo instante, de que esse consenso não existe: mesmo as teorias mais respeitadas universalmente sofrem interpretações diversas e mutuamente incompatíveis, ao mesmo tempo em que a massa dos conhecimentos disponíveis -- a qual, por si mesma, já nem corresponde à totalidade dos conhecimentos humanos, e muito menos à totalidade do conhecimento possível -- se distribui entre comunidades e grupos de estudiosos de maneira fragmentária, desigual e com frequência rebelde a toda tentativa de intercomunicação e diálogo.

Para piorar as coisas, é evidente que, se cada um dos membros individuais desses grupos e comunidades fosse totalmente desprovido de alguma visão unificante do seu campo de trabalho e das relações dele com outros campos próximos e remotos, ele estaria num tal estado de desorientação que todo diálogo entre ele e os seus pares, para não falar dos estudiosos de outras áreas, seria completamente inviável.

Então, não há unidade, mas alguma unidade é imprescindível.

O leitor deve ter reparado que, nos parágrafos anteriores, viemos descendo desde a totalidade universal bolzaniana até o modestíssimo esboço virtual de unidade -- provisório, nebuloso e altamente problemático -- que aparece na escala da consciência individual do cientista, do filósofo, do estudioso em geral. A diferença de escala é aí monstruosa. Os homens mais cultos de todos os tempos foram provavelmente Aristóteles e Leibniz.

Mais cultos e de mentes mais organizadas na verdade.

No entanto, como é modesto o seu horizonte cognitivo se comparado com a imensidão das culturas das quais não lhes chegou notícia, ou chegou parcial, distorcida e, no fim das contas, errada! Não só é imensurável a distância entre a totalidade dos conhecimentos humanos (Para não falar na dos conhecimentos possíveis.) e o microcosmo da síntese individual, mas esta não dá conta sequer dos conhecimentos disponíveis em qualquer momento definido da história, em escala planetária.

E às vezes até em escala nacional. Se você pensar, vamos dizer, em todos os conhecimentos disponíveis, em uma certa área da ciência, nos Estados Unidos. Quem pode dizer que domina tudo isso e que é capaz de reduzir tudo aquilo a uma unidade? Ninguém pode.

No entanto, uma coisa é clara: sem a possibilidade da síntese individual, as idéias mesmas de 'totalidade dos conhecimentos possíveis', 'totalidade dos conhecimentos humanos' e 'totalidade dos conhecimentos disponíveis num momento histórico' seriam totalmente inconcebíveis. Afinal, essas idéias não passam de traços deixados, ao longo do caminho histórico, pelas mentes individuais que as conceberam e formularam. Se somente a espécie humana inteira, existente e por existir, pode ser detentora da 'totalidade dos conhecimentos humanos', essa mesma humanidade, pela sua extensão numérica e distribuição no espaço e no tempo, não poderia jamais reunir-se para conceber a unidade virtual e sintética de conhecimento que existe em cada uma das mentes individuais.

Então eu digo, bom, se totalidade dos conhecimentos humanos é o conjunto das proposições verdadeiras, então evidentemente, só a humanidade inteira conhece esse conjunto. Mas não a conhece como unidade. Um conhece um pedaço, outro conhece outro, outro conhece outro. Então a idéia de unidade dos conhecimentos humanos não é alcançável no nível da humanidade. Seria uma totalidade meramente quantitativa e potencial.

Aí parece que é mais fácil o grande caber no pequeno, ao menos como unidade conceptual virtual, do que o pequeno caber no grande.

Ou seja, o indivíduo pode conceber idealmente essa idéia de totalidade dos conhecimentos humanos e saber que somente a humanidade como um todo pode dispor desses conhecimentos, ainda que de maneira isolada e fragmentária, mas a humanidade como um todo não pode conceber nem isso.

Aqui tem mais um pedacinho que eu tomei nota, mas não tive tempo de colocar online.

A rigor, a totalidade dos conhecimentos humanos não existe para a humanidade toda nem mesmo como conceito ideal. Existe somente para quem pensou nisso, como Bernhard Bolzano, por exemplo. Existe somente para as consciências individuais humanas. É na consciência individual que surge e se elabora a aspiração sempre insatisfeita da totalidade da unidade.

Ou seja, a consciência individual é o que está mais distante possível da totalidade dos conhecimentos humanos e, no entanto, só ela é capaz de conceber como conceito virtual essa totalidade dos conhecimentos humanos. Só quem pode deter a totalidade dos conhecimentos humanos é a humanidade considerada quantitativamente, mas só quem pode concebê-la -- porque conceber é reduzir a uma unidade -- é a consciência individual humana.

É na consciência individual que surge e se elabora a aspiração sempre insatisfeita da totalidade da unidade. A humanidade, ao contrário, vive completamente satisfeita no parcial e no fragmentário. Nações inteiras, culturas inteiras, épocas inteiras não apenas se ignoraram umas às outras sem sentir que nada lhes faltava por isso como até tomaram como um ponto de honra o desprezo ao estrangeiro, ao longínquo, ao diferente.

Veja que coisa incrível!

O indivíduo, que assim se fechasse no culto de si mesmo acreditando que nenhum conhecimento importante pudesse obter de mais ninguém seria imediatamente considerado um louco ou um idiota presunçoso. Mas na escala dos povos, nações e culturas essa presunção foi antes a norma do que a exceção.

Veja a que ponto a humanidade -- considerada quantitativamente -- está longe de poder conceber sequer, a idéia de totalidade dos conhecimentos humanos. Só a mente individual pode concebê-la, embora ela só possa ter quantitativamente uma quantidade muito pequena de conhecimentos.

Mesmo hoje, quando a cultura dominante no ocidente se gaba do seu mundialismo sem preconceitos nem exclusivismos o orgulho do atual e do moderno, o desprezo às épocas passadas, estreita barbaramente o horizonte de compreensão da opinião pública, aprisionando-a num provincianismo cronocêntrico tão letal à inteligência quanto às modalidades mais desprezíveis de provincialismo geográfico.

Eu tratei desse assunto na conferência "Os mais excluídos dos excluídos" que está no livro O Futuro do Pensamento Brasileiro. Quer dizer, o sujeito se fecha na sua época, acreditando que ela é a detentora dos conhecimentos humanos mais importantes e automaticamente se torna incapaz de compreender o que veio de épocas passadas. É curioso porque quanto mais, na escala acadêmica, aumenta o volume de conhecimentos e instrumentos de compreensão das épocas passadas menos essa compreensão é acessível na escala popular, na escala de opinião pública. De modo que ela só é acessível a especialistas. Mesmo dentro do meio universitário em geral, vamos supor quem está realmente habilitado a compreender e, portanto, a integrar na cultura contemporânea elementos tirados de uma cultura de vinte, trinta séculos atrás, uma cultura totalmente estranha? Só aquele especialista! Aquilo não se integra na cultura geral de maneira nenhuma, só se integra na cultura geral, na cabeça dele. Na de mais ninguém.

Não. A totalidade dos conhecimentos não é um conceito que esteja ao alcance da população mundial. Nem das comunidades culturais.

Nem comunidades nacionais, portanto. Vamos dizer, a população americana ou a brasileira pode conceber a idéia de totalidade dos conhecimentos humanos? Não, ela não pode! Só quem pensou nisso pode, ah?

Nem poderia ser de outro modo, já que tanto aquela quanto estas não têm, em si mesmas, nenhuma unidade substancial apenas a unidade exterior e quantitativa de uma entidade coletiva.

Quer dizer, ou seja, se você pensar em "quem é a população americana?". Bom ela, não tem um centro consciente desde o qual ela possa falar, ela está fragmentada como poeira em milhões de consciências esparsas e frequentemente incomunicáveis.

Tanto a noção de totalidade dos conhecimentos humanos quanto a de unidade por baixo desses conhecimentos só são concebíveis na e desde a consciência individual.

Por quê? Esses conceitos são uma projeção -- na escala desses conhecimentos ideais -- da própria unidade substancial do sujeito individual humano. Por que ele tem uma unidade substancial contínua desde que ele nasce até que ele morre e talvez até depois. Está certo? Então, é só quando vista nesta escala da consciência individual que a totalidade dos conhecimentos humanos pode ser vagamente concebida como unidade. Isto é a mesma coisa que dizer que só existe unidade dos conhecimentos humanos na e pela consciência individual porque ela projeta sobre essa a sua unidade substancial (a sua continuidade de existência biológica e histórica ao longo de certo tempo). Ou seja, isto quer dizer que toda e qualquer consciência [1:40] individual que esteja envolvida na busca de conhecimento tem um impulso unificante. Ainda que no exercício da sua profissão especializada ela tenha de fazer abstração disso aí. Mas algum senso de orientação no conjunto ela sempre busca. Está certo? Só que existem duas maneiras de você fazer essa busca da unidade: existe a maneira esporádica e por assim dizer, empírica, espontânea; e existe a maneira, vamos dizer metódica, séria, autoconsciente -- que é a filosofia. Então, esta é realmente, a ocupação específica da filosofia. Não há nenhuma outra ocupação humana que consista nisso, está certo? E você pode demonstrar que essa busca da unidade está subentendida, vamos dizer, em todos os exercícios espirituais. Porque os exercícios espirituais, no fim das contas, se eles tratam de elevar o indivíduo desde o seu isolamento empírico até um ponto de vista universal, então isto aí, já é a busca da unidade. Está subentendida a busca da unidade. Mesmo no caso do filósofo que negue toda a unidade ele a nega porque ele a buscou e não a encontrou.

Então, a definição da filosofia como busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência é empiricamente verificável. Ela é um fato histórico. Quer dizer, não é uma definição que eu inventei e não é uma proposta minha. É possível demonstrar, historicamente, caso por caso, que todos os filósofos fizeram exatamente isto. Buscaram alcançar a unidade do conhecimento na escala acessível ao seu tempo e à sua consciência individual. Ao mesmo tempo se remodelaram a si mesmos, para se tornar capazes disso. O que subentendia o quê? Que eles assumiam a responsabilidade moral pelo que estavam dizendo. Responsabilidade moral e cognitiva pelo que estavam dizendo, portanto, remodelavam a sua personalidade como nesses exercícios socráticos e estóicos. Todos fizeram isso e continuam fazendo -- não há nenhum que não tenha feito. Mesmo o filósofo mais irracionalista que você possa imaginar. Ele é irracionalista porque buscando a unidade não a encontrou de maneira alguma, então ele nega que ela possa ser alcançada. O filósofo céptico que nega o conhecimento, ele nega porque ele tentou encontrá-lo. Não é isso? E assim por diante, então isso quer dizer que nós podemos definir cientificamente a filosofia -- não filosoficamente, ah? Não é uma tomada de posição filosófica --, cientificamente, historicamente, a filosofia de todos os tempos, desde os pré-socráticos até hoje como uma disciplina intelectual e disciplina interior que busca a unidade do conhecimento na unidade da consciência e modela uma pela outra e a outra pela uma. Está certo? Então, isto aqui "mata" o problema do que é a filosofia.

Se todos entenderam, então, paramos por aqui. Ainda tem o prazo para inscrições para assistir online ao curso "Introdução à Filosofia de Louis Lavelle". Ainda está aberto no Brasil por mais uma hora. Até a semana que vem! Muito obrigado!

Transcrição: Paulo Ricardo Costa Pinto, Diogo Rafael Moreira, Jussara Reis de Abreu, Rui Moura Uhlmann

Revisão: Antonia Javiera Cabrera Muñoz