Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 201
20 de abril de 2013
Hoje temos aqui esse texto esplêndido do Philippe Perrot, do prefácio que ele escreveu ao livro Introduction à l'Ontologie (Introdução à Ontologia): um dos livros fundamentais do Louis Lavelle; que não é um livro fácil, e não é de maneira alguma uma introdução, mas é uma apresentação da própria filosofia ontológica do Louis Lavelle. Esse livro é particularmente importante por apresentar os três conceitos fundamentais da ontologia de Louis Lavelle: Ser, Existência e Realidade.
Esses conceitos podem ser resumidos mais ou menos assim: o Ser não pode ser confundido com o conjunto do que existe, e nem mesmo com o conjunto dos processos reais, porque isso seria reduzi-lo aos seus efeitos, reduzi-lo às suas criações; o Ser só pode ser compreendido como tudo isto inserido dentro da sua causa ou princípio fundante. Esse princípio, por sua vez, diz o Lavelle, não pode ser concebido senão como uma subjetividade criadora, autônoma, independente e totalmente auto-suficiente.
Ele entende, em seguida, por Existência a forma especificamente humana de ser, que é compartilhar um fragmento da força criadora do Ser na medida em que somos dotados da liberdade --- podemos escolher quem nós vamos ser e, na verdade, o escolhemos a cada momento, a cada decisão que tomamos, a cada escolha que fazemos, ainda que não o percebamos, ainda que acreditemos que estamos agindo apenas por hábito, nós estamos ainda exercendo a nossa liberdade. Isso tem implicações de ordem moral que considero a parte mais difícil do ensinamento: levar as pessoas a perceberem a sua liberdade, e a perceberem as implicações das suas decisões. Particularmente, isso é difícil no Brasil por motivos que eu vou explicar daqui a pouco.
E, por fim, o conceito de Realidade**,** que é o campo onde o ser humano exerce a sua liberdade --- ou a exerce ou abdica dela. Este campo é o que nós, normalmente, chamamos o mundo: a Realidade e o mundo, para Lavelle, são a mesma coisa, e nenhum deles é o Ser.
O ser humano é, portanto, uma espécie de intermediário entre o Ser e o mundo, entre o Ser e a Realidade; ele participa de um e participa de outro. Ou seja, em parte, ele é uma coisa, um animal, um ente condicionado por mil e uma circunstâncias e determinações; mas, em parte, também, ele participa do Ser por meio da sua liberdade.
Mas, visto de uma outra maneira, diz ele, o mundo é a prova da fraqueza humana, o mundo é o intervalo. Se o homem é o mediador entre o Ser e o mundo; o mundo, por sua vez, é o intervalo ou o espaço que separa o homem do Ser --- separa não só exteriormente, mas separa também interiormente, na medida em que, dentro de nós, temos um elemento do Ser, que é a nossa liberdade, e temos um elemento mundano (ou de Realidade), que é tudo aquilo que nos constitui biologicamente, socialmente etc.
Então, diz ele, existem duas maneiras de você perder a conexão com a liberdade (isso vai ser explicado no texto, mais tarde). A primeira é, evidentemente, você identificar o Ser com a Realidade --- isso, hoje em dia, é quase obrigatório, porque as pessoas tomam a realidade existente como se fosse o último limite do Ser, isto é, não há um Ser além das coisas (do mundo das coisas, incluindo aí o mundo social). E a outra maneira é você se identificar com o próprio Ser; isto é, você tentar aquilo que o René Guénon chamaria a última realização metafísica: você ser absorvido no Ser. Neste caso, a liberdade humana não faria o menor sentido, e, no primeiro caso, ela é perdida.
Então vamos ler esse texto aqui e examiná-lo pouco a pouco. É uma longa introdução, de cinqüenta páginas, muito eficiente, que o Philippe Perrot fez para a Introdução à Ontologia. A numeração, a seguir, é minha; eu a usei só para facilitar as coisas.
1. Na origem da obra filosófica há, necessariamente, um ponto de contato com o real suficientemente forte para suscitar o despertar do pensamento e dar-lhe, com ou sem razão, o sentimento de que tem aí uma abertura para o segredo do mundo.
Existem vários filósofos que insistiram nesse tipo de experiência. Henri Bergson dizia que toda a Filosofia era apenas a explicitação (ou exteriorização) de uma única intuição que o sujeito tivera um dia, e que ele tentava expressar e precisar, por todos os meios, pelo resto da sua vida. Lembro de ter lido uma coisa similar, também, em Ortega y Gasset, e que ele até datava mais ou menos a época da vida em que a pessoa tinha isso: "acontece entre os vinte e seis e os vinte e oito anos". O sujeito percebe alguma coisa, e essa coisa, ele nota, está para além da experiência imediata da realidade; e que, de algum modo, ele conseguiu penetrar numa camada mais profunda e ter, por assim dizer, um vislumbre do Ser (entendido, no caso, como subjetividade criadora auto-suficiente).
2. "É bom que cada um tente trazer de volta ao seu pensamento aquelas experiências primeiras nas quais, ultrapassando o mundo da aparência e do hábito, ele acreditou perceber, como num relâmpago, a essência mesma desta vida... E aquele que tem mais filosofia... é também aquele para o qual [essas experiências] ainda persistem quando os outros as esqueceram".
Isso aqui é absolutamente fundamental. Eu até acredito que Ortega y Gasset não está muito certo quando diz que "isso acontece entre os vinte e seis e os vinte e oito anos", porque me lembro de ter tido essa experiência quando era muito pequeno --- e, se eu tive, outras pessoas podem ter tido também. Até coloquei aquilo num blog que eu estava fazendo --- depois parei o blog, mas os textos continuam publicados, um deles se chama "O filósofo-mirim"1 e o outro "Confissões de um brontossauro"2.
Entre outras experiências, uma que me lembro claramente de ter tido foi a das direções do espaço, que notei que era um esquema exterior que me enquadrava completamente, dentro do qual eu me movia. Bastou eu ter essa experiência para ficar eternamente vacinado contra o negócio do Kant --- que diz que tempo e espaço são apenas categorias do nosso pensamento ou formas de nossa percepção, e não dados do mundo exterior ---, porque eu notava que estava totalmente enquadrado --- fisicamente e até mentalmente --- por essas direções; eu não conseguia pensar fora delas.
E me lembro de uma experiência que fiz quando eu tinha uma coleção de oito tartarugas (eu sofria de um problema pulmonar, e naquela época havia um mito de que as tartarugas faziam bem para crianças com bronquite). Meu pai, no Natal, passava cola nelas, enchia de purpurina, botava um lacinho e vinha aquele negócio andando... Era um presente de Natal. Eu estava dando um banho nas tartarugas no tanque e, como eu sempre tive um problema visual (um olho enxerga completamente diferente do outro: um é míope e o outro é hipermetrope; então, um acha que está tudo perto e o outro acha que está tudo longe), eu olhava as tartarugas com um olho, olhava com outro, olhava com um, olhava com outro... E falava: ó, raios, mas é desse jeito ou é desse outro jeito?
Daí percebi que havia uma coisa que transcendia esta diferença, que era a direção para onde as tartarugas iam. Se eu olhasse com o olho direito ou [0:10] com o esquerdo --- parecendo mais perto ou parecendo mais longe ---, quando elas iam para a direita, era direita; quando iam para frente, era frente; quando iam para trás, era trás --- e isso era totalmente fixo. E, neste instante, percebi que toda a minha percepção estava enquadrada por este condicionante. Mas não era só eu que estava condicionado por ele; eram as tartarugas também --- e as tartarugas, certamente, não eram formas da minha percepção.
Então, neste momento (eu devia ter uns seis anos quando isso aconteceu), aderi definitivamente --- creio eu --- ao realismo filosófico. Ainda que, mentalmente, eu tenha aderido a outras filosofias no caminho. Quando li o Kant, achei que ele tinha razão. Quando li o David Hume... Sempre acho que os caras têm razão, na hora em que os estou lendo. Quando li George Berkeley, que diz que é tudo subjetivo, que tudo está se passando, na verdade, na mente de Deus... Todas essas teorias me convenceram na hora. Mas convenceram só intelectualmente porque, no fundo, eu acho que continuava um realista sem querer, e sem ter consciência filosófica disso, por causa dessas experiências fundamentais.
Você veja: também a dificuldade que eu tinha de me mover me mostrava que o espaço não era uma coisa que estivesse à minha disposição, não era uma "forma da minha percepção". Eu não posso me mover a mim mesmo dentro de uma forma da minha percepção --- isso aqui é importante. Sendo assim, de tudo aquilo que percebo fora, eu poderia dizer: bom, são formas da minha percepção. Mas e as minhas próprias ações? Como é que faço este milagre de eu mesmo criar essa estrutura de espaço-tempo e eu mesmo me colocar dentro dela como sujeito agente? Isso é uma coisa que não é possível.
Então, muito mais tarde, quando fui ler o Kant, tive esta impressão de que ele olhava o mundo como se fosse um cinema --- um cinema no qual ele, portanto, não estava: ele estava vendo um filme, e ele descrevia as coisas mais ou menos tal como apareciam, só que fazendo abstração da presença dele mesmo nesse quadro. Curioso: no instante mesmo em que ele diz que todo o mundo exterior é apenas uma projeção das formas da nossa percepção e, portanto, coloca o sujeito no centro agente do processo; nesse mesmo instante, ele subtraía o sujeito e olhava tudo como se fosse um espetáculo que está se desenrolando diante do sujeito. Portanto, ele identificava o sujeito humano com o sujeito absoluto, ou seja, com o observador universal.
Isso realmente não é possível ou, antes, isso só é possível se eu fizer abstração de mim mesmo como objeto existente, ou seja, eu não existo, estou fora do quadro, eu observo tudo e, portanto, tudo está se passando dentro da minha mente. Mas no instante em que me coloco já como sujeito agente, eu passo a ser objeto para outros sujeitos, e aí a idéia de reduzir tudo à estrutura da minha percepção ia para o buraco imediatamente.
Só percebi isso depois de vários meses de luta com a Crítica da Razão Pura. O Ortega y Gasset diz que ele levou dez anos para se livrar da "jaula kantiana". Eu não levei tanto tempo, por quê? Graças às minhas tartarugas. Eu já tinha tido uma experiência fundante que já me orientava nesse ponto.
Eu tive várias outras experiências desse tipo já quando criança; depois, evidentemente, as esqueci, e só voltei a lembrá-las no instante em que estava estudando filosofia e vi que: "opa, estou procurando uma resposta para um negócio cuja resposta eu já tenho lá para trás". Só que, quando eu obtive a resposta, eu não tinha os conceitos nem a linguagem filosófica para articular aquilo, tinha somente a experiência no sentido mais grosso da coisa --- mas que a resposta já estava dada, já estava.
Em seguida, o Philippe Perrot faz uma analogia entre a poesia e a filosofia. Ele diz que as duas, de algum modo, emergem da experiência da vida. Só que, ele diz: "O poeta expressa a vida tal como ela se apresenta, ao passo que o filósofo medita (essa vida) em termos de existência, ou seja, medindo a diferença que o articula e o separa do Ser". É isso o que todo filósofo está buscando, no fim das contas: ele está buscando o Ser e, portanto, a explicação da Existência e da Realidade dentro do Ser. Então, ele já não pode se contentar com a experiência direta da vida. Ele já não fala mais em termos de vida, e, sim, de Existência. Então inseri este outro conceito: o que é a vida? A vida é a experiência da Realidade. E o que é a Existência? Existência é a forma de ser especificamente humana, marcada por esta tensão entre o elemento de liberdade --- ou seja, a marca do Ser --- e o elemento de condicionamento ou determinação, que é marcado, então, pela Realidade.
Então, diz ele:
3. (...) O poeta aposta na aparência, instala-se nela, distribui imagens (...)
Ou seja, ele expressa a aparência diretamente. Vocês devem se lembrar que, aulas atrás, mencionei o famoso texto de Benedetto Croce, da Estetica come scienza dell'espressione e linguistica generale3, em que ele falava que a poesia é "expressão de impressões". Isto é, a impressão tomada no seu sentido mais imediato e verbalizada imediatamente.
Eu acredito --- e expus isso na Teoria dos Quatro Discursos --- que sem essa primeira expressão lingüística nada mais é possível. Porque se você não consegue nem mesmo expressar as suas impressões, como é que você vai, depois, raciocinar a respeito delas, para buscar, nelas, essas diferenças: Ser, Vida, Realidade, Existência etc.? Simplesmente não seria possível.
Então isso quer dizer que a poesia --- a arte literária de modo geral --- fornece o fundo lingüístico sem o qual nenhuma meditação filosófica é possível. E por isso mesmo, insisti que as pessoas, no começo [do curso], adquirissem uma verdadeira cultura literária. O que significa não apenas ler as grandes obras literárias, decorar algumas (se possível), impregnar-se delas até o fundo; mas, também, ler as grandes análises críticas que foram feitas. Até hoje, o número de pessoas que prestou atenção nesse meu conselho é muito pequeno, as pessoas acham que podem pular por cima disso --- e não pode pular! O sujeito chega aqui e fala: "ah, mas eu tenho um diploma de lógica matemática pelo MIT". Eu digo: dane-se, meu filho! Você vai ter que voltar lá atrás e começar a aprender a falar, porque você está como o sujeito que aprendeu a andar de bicicleta antes de saber andar; então, quando tiram a bicicleta, o sujeito não consegue se mover.
Então, essa coisa da literatura é absolutamente básica, fundamental, e não tem como pular. Mas você tem que ler, também, as grandes análises críticas --- a começar pela própria Poética de Aristóteles, que é o primeiro grande livro de crítica literária do Ocidente ---, e depois seguir estudando.
Aqui, no mundo de fala anglo-saxônica, ainda aconteceu o fato de que como a filosofia acadêmica logo se fechou no circuito de filosofia analítica, isto é, passou a fazer apenas análise da linguagem científica --- que é uma coisa necessária, mas que um computador bem pode fazer no nosso lugar; portanto, é uma atividade absolutamente desprezível ---, então, uma boa parte das cogitações filosóficas mais importantes passou para as mãos dos críticos literários. Então, os grandes críticos literários do mundo anglo-saxônico são grandes filósofos, às vezes, muito maiores do que os filósofos universitários. Podemos citar: Kenneth Burke, Northrop Frye, Frank Raymond Leavis (cujos textos, alguns, nós já lemos aqui). Você vê que esses caras são grandes filósofos; muito maiores, às vezes, do que um Wittgenstein ou um Bertrand Russell.
Muito bem. Então ele diz:
3. (...) O poeta aposta na aparência, instala-se nela, distribui imagens, mas o filósofo resiste e reivindica, por seu lado, um arraigamento no Ser. (...)
Ou seja, não lhe basta expressar a experiência imediata, mas ele quer saber qual é a raiz disso no Ser: em que medida essa experiência é apenas uma aparência, em que medida ela expressa algo do Ser, em que medida ela camufla (ou encobre) o Ser, e assim por diante. Este é o nosso problema; [devemos] perguntar: qual é o fundo da Realidade, no fim das contas?
Então diz:
3. (...) Assim nasce a ontologia (a investigação do Ser).
4. A ontologia surge a partir do momento em que cessamos, ainda que por um instante, de utilizar ou de consumir as coisas e nos tornamos sensíveis ao espetáculo da sua presença puramente gratuita em torno de nós. (...)
Ora, uma certa dose dessa atividade contemplativa existe também no poeta, mas a sua contemplação é feita na experiência da realidade imediata. Portanto, é feita em função do uso e consumo que ele está fazendo das coisas, ou seja, da sua experiência real de ser vivente no meio das coisas.
Então, isso quer dizer que o elemento da subjetividade imediata predomina no poeta. Mas a subjetividade imediata é tudo que nós temos para começar; a pergunta sobre o Ser é muito posterior a isso.
4. (...) Assim, a ontologia se abre e se confunde com o mistério do ser.
Isto aqui é fundamental. Parece uma frase que não diz grande coisa, mas é fundamental no Louis Lavelle, porque o exercício da nossa liberdade e, portanto, a liberdade que nós temos, também, de investigar o mistério do Ser, fazem parte não da Realidade, mas da Existência. E, portanto, eles refletem a parte do Ser que existe em nós.
Então, isso quer dizer que, através desta interrogação, você já está se aproximando do mistério do Ser, pelo simples fato de você estar praticando a ontologia. Isto é parte da Existência e, portanto, isto é a marca do Ser em você, e isto vai distinguir você do que é simplesmente a Realidade; porque distinguir entre Existência e Realidade é uma das tarefas fundamentais da ontologia --- distinguir entre a nossa modalidade de ser e a modalidade de ser das coisas que nos cercam: coisas, seres, objetos, animais, sociedade, instituições, passado histórico etc. Tudo isso é a Realidade; mas isto, evidentemente, é o campo onde nós nos realizamos e, isto, não é "nós" (em parte isto é, também, nós, porque uma parte dessa Realidade nos constitui biologicamente, sociologicamente etc., e é uma parte na qual nós não podemos exercer a liberdade, mas que marca o limite da nossa liberdade). Isto é muito [00:20] importante.
Estou lendo agora as Memórias do escritor romeno Virgil Gheorghiu --- que é um dos grandes livros da humanidade, recomendo a vocês, é um livro comovente a cada página ---, e ele começa por dizer isso aí: bom, eu vou contar a minha história, mas do quê eu estou falando? O que é identidade? Por exemplo: eu tenho uma certidão de nascimento, tenho uma família, tenho um corpo que é de um determinado tamanho e não de outro, que é de uma cor e não de outra etc. De tudo isto, aqui, não escolhi nada, não fui consultado a esse respeito, não me perguntaram onde eu queria nascer, que altura queria ter, que cor de pele queria ter, que cor de olhos queria ter, que pai e mãe eu queria ter, que família eu queria ter, que país eu queria ter, em que sociedade queria estar. Em nada, nada disso fui consultado e, no entanto, é isto o que, aos olhos das outras pessoas, me define.
Então, o que tem tudo isto a ver com a liberdade humana? Absolutamente nada. E, no entanto, é a liberdade humana que vai construir a nossa biografia e aquilo que nós seremos no final. E é nesse sentido que o Louis Lavelle diz que, no ser humano individual --- ao contrário da espécie humana ---, a existência precede a essência.
Em termos de espécie, é claro que temos uma essência genérica a qual pertencemos, quer dizer, nós temos toda a constituição normal de um ser humano, e esta é a nossa essência enquanto espécie. Mas se admitirmos a hipótese de uma essência individual, de uma haecceitas (como dizia Jean Duns Scot); então, essa haecceitas não é dada pronta. Ela é apenas uma possibilidade que você percebe ou não, que realiza ou não.
Então, o que pode ser objeto das suas memórias? É evidente que só esta identidade, nesse sentido. Uma autobiografia é a história da sua haecceitas na sua luta para se realizar ao longo da vida.
5. Ao afirmar o ser, revelamos nele um descolamento e um desdobramento: há, por um lado, o ser do qual afirmamos que ele é; de outro, existe o ser mesmo do discurso (...)
Ou seja, aquilo que estou pensando.
Eu pensar sobre isto (sobre o Ser) é uma coisa que manifesta o Ser. O meu pensamento não está fora da Realidade, eu não sou um sujeito absoluto colocado fora do quadro inteiro da Existência e da Realidade para observá-lo. Não, eu sou um sujeito agente que está no meio do processo. Portanto, se o Ser não se revelar em mim, onde mais --- ó, raios! --- ele vai poder se revelar? Do mesmo modo que a Realidade: se a Realidade não aparece em mim e para mim, então eu não fico sabendo dela, e ela não existe absolutamente.
5. (...) Com efeito, não experienciamos jamais o ser como se ele constituísse um bloco homogêneo e contínuo. Não é propriamente o ser que encontramos, mas somente entes.
Isto é, a Realidade se constitui de entes, que é isso que nós encontramos em primeiro lugar. A própria noção mesma de Existência só chega a nós mais tarde. Num primeiro momento, ou, digamos, num estágio de consciência pré-filosófica; nós nos tomamos como um ente entre outros, ou seja, como parte da Realidade.
Não deixa de ser uma coisa muito impressionante que, hoje em dia, haja uma corrente de pensamento que é toda baseada nessa consciência ingênua que toma as pessoas como entes: você achar, por exemplo, que pode chegar a uma explicação total do ser humano tratando-o como objeto da biologia, da neurofisiologia etc. Isso é de uma ingenuidade filosófica monstruosa, que mostra que o indivíduo só percebeu que existe Realidade, mas ele não percebeu que tem Existência. Ou seja, não percebeu que ele toma decisões, que ele exerce a sua liberdade e que ele, de certo modo, cria, ao longo de sua vida, a essência que ele será, ou seja, a sua biografia.
Se sujeito não chegou nem nesse ponto, então, filosoficamente, ele está no MOBRAL, está no prézinho. E ele estar no prézinho filosófico não o impede de fazer uma bela carreira no mundo das ciências, porque não faz parte da exigência curricular de nenhuma ciência ter uma compreensão profunda dela própria. Ela tem uma compreensão, extensa e exata, do seu objeto; mas não tem, nem mesmo, dela própria.
Qual é o estatuto epistemológico da biologia? Pergunte para um biólogo. Um biólogo só poderia meditar nisso comparando a biologia com outras ciências e com outras modalidades de conhecimento, as quais não fazem parte do currículo de biologia. Então, isso quer dizer que compreender o que é a biologia não faz parte do estudo da biologia. É impossível compreender a biologia somente com conceitos biológicos. Me dê uma explicação biológica da biologia (se for possível). É claro que isto é impossível. Você vai ter que apelar para elementos externos --- ainda da Realidade, mas externos --- como a história cultural etc.
A própria evolução histórica de uma ciência não faz parte dela. Não é possível explicar biologicamente por que certas teorias biológicas apareceram em certos lugares e vieram a predominar sobre outras. Qual é o critério para você preferir uma teoria e preterir outra? Esse critério não faz parte da ciência, é um critério de ordem lógica. A lógica está fora da biologia --- não há uma explicação biológica da lógica.
Por isso que eu digo: a idéia de uma visão científica do universo é uma idéia idiota, ela tem que ser abandonada. A ciência não pode criar uma visão do universo, de maneira alguma. A não ser que seja a "visão" no sentido kantiano --- um cineminha que você está vendo e você está olhando tudo aquilo como se fosse um sujeito absoluto ---, é claro que isso é uma ilusão.
Se perguntarmos: mas por que as pessoas gostam tanto disso? Por que elas se deixam fascinar tanto por isso? É muito simples: porque a atividade científica produz utensílios e processos úteis que se integram, então, na estrutura de poder da sociedade. Então, elas criam meios de ação do ser humano, uns sobre os outros; então, são formas de poder, evidentemente.
Por outro lado, não é uma coincidência que todas as ciências, para poder ser exercidas, necessitem de um apoio externo (social e financeiro) monstruoso: elas não são concebíveis --- nem intelectualmente --- fora desse aparato no qual elas estão integradas. Então, as ciências são formas do poder e não do conhecimento, de maneira alguma; embora produzam conhecimentos.
Quando o Jean Piaget diz que só as ciências produzem conhecimentos e a filosofia é apenas um senso de orientação no todo; pergunto eu: bom, mas como é que eu posso dizer que conheço uma coisa perante a qual estou totalmente desorientado? Se eu não tenho senso de orientação, não tenho conhecimento nenhum; tenho apenas dados para um conhecimento possível. O conhecimento implica, necessariamente, a compreensão do significado, da importância e das conseqüências de tal ou qual conhecimento. E toda essa consideração --- do significado, das conseqüências etc. --- nunca faz parte da ciência que descobriu aquele dado.
E é por isso que vocês vêem pessoas com uma formação científica esplêndida, como Richard Dawkins, passar uma vergonha desgraçada, se expor a um vexame, dizendo coisas pueris. Por exemplo, se você lhe pergunta qual a origem da vida, ele diz: "foram os extraterrestres que trouxeram". E daí você diz: bom, mas os extraterrestres, para trazerem a vida, não tinham que estar vivos? É uma pergunta que uma criança pode fazer! Se eles estavam vivos e trouxeram a vida, então eles não são a origem da vida --- ó, raios! É uma coisa tão simples...
Mas quando você vê cientistas eminentes caindo nesse tipo de erro pueril, que é absolutamente inaceitável, então você entende que as ciências lidam somente com a Realidade, ou seja, com o mundo dado. Elas não têm nada a ver com a Existência humana e, portanto, com o sentido dessas coisas todas. Então, você possuir um dado, mas não compreender o sentido dele, no meu entender, isso não é conhecimento de maneira alguma: isso é apenas matéria para um conhecimento possível. Isso quer dizer que as ciências criam problemas filosóficos --- o tempo todo ---, e jamais resolvem.
6. Na linha dos maiores pensadores, [Lavelle] postula que há um certo parentesco entre o discurso e o ser; dito de outro modo, este último não é nem longínquo, nem impenetrável, nem irracional.
O discurso (o pensamento filosófico) é uma das modalidades da Existência humana e, portanto, reflete imediatamente a nossa liberdade e o elemento de Ser que existe dentro de nós. Existe, por um lado, esse elemento de Ser --- que é a nossa liberdade, a nossa consciência de nós mesmos etc. (e eu me refiro à consciência profunda, até no sentido moral da coisa) ---, e, por outro lado, existem os elementos de Realidade (os nossos condicionantes externos), os quais constituem, paradoxalmente, a nossa identidade no sentido social.
Quando você vê uma pessoa pela primeira vez, o que você vê? Você vê o corpo dela, você vê o tamanho que ela tem, qual é a cor dos olhos, qual é o tom da voz etc. Tudo isso ela já recebeu pronto, ela não fez nada disso. Então, isso constitui uma identidade no quadro da Realidade; mas não constitui uma identidade no sentido existencial ou, se quiserem, histórico da coisa. A identidade, nesse sentido, não é todo este conjunto de elementos que a pessoa recebeu pronta de determinantes externos, mas o que ela fez com isso --- o que ela fez por sua própria e exclusiva decisão, e que ninguém poderia ter feito no lugar dela (e se outro o fizesse, faria parte da história do outro, e não da dela).
Só conhecemos, então, uma pessoa em profundidade quando sabemos o que ela fez, ou seja, quando nós a conhecemos, por assim dizer, "biograficamente". E o que é "biografia"? É a luta de uma essência potencial (de uma essência virtual) para se realizar e se tornar uma realidade histórica.
7. Pressentimos que a questão do sentido do ser não poderia se impor a nós pelo simples fato do seu interesse teórico. Seu objeto especulativo está ligado à presença mesma daquele que interroga.
Isto é, a minha interrogação pelo sentido do Ser faz parte do meu processo de auto-criação e de auto-elaboração, ou seja, do processo pelo qual a minha essência se encontra, se realiza e se manifesta. Portanto, há um interesse de ordem prático-moral, que está envolvido na própria raiz da pergunta sobre o sentido do Ser.
Portanto, essa pergunta não pode ser, nunca, apenas teórica porque o sentido do Ser é aquilo que eu, pessoalmente, estou tentando realizar ao longo da minha vida. Então, é algo que tem a ver com as minhas decisões, com as minha escolhas, com os meus valores etc., e é somente através de toda essa grade de valores, de escolhas etc., que eu chego [00:30] a apreender algo do sentido do Ser.
Portanto, toda escolha e toda decisão na vida são muito importantes para decidir se você vai apreender algo do sentido do Ser ou se você vai apagá-lo completamente --- e esquecer e viver apenas como uma realidade entre outras.
Isso é a coisa mais fundamental. E prestem atenção: quando eu digo toda decisão, é toda decisão, por mais mínima que lhe pareça. Toda decisão expressa valores, portanto, uma hierarquia de escolhas: o que vou fazer agora? O que devo fazer? Não sei se caso ou se compro uma bicicleta... Então, a decisão vai expressar uma tábua hierárquica de valores pelos quais você se orienta.
É muito comum, na sociedade brasileira --- não em outras sociedades, pelo que vi ---, o indivíduo acreditar que existe um domínio prático, pragmático, que é independente de tudo o mais, no qual não entram os valores supremos, não entra o sentido da vida, não entra nada; existe apenas a consideração pragmática. Nunca conheci uma pessoa no Brasil (a não ser eu mesmo) que não acreditasse nisso.
Desde pequeno, por várias circunstâncias da vida, entendi que tudo punha em jogo o sentido da vida, ou seja, que a cada decisão minha eu me auto-definia: eu estava criando uma história que eu não podia apagar mais.
Isso quer dizer que se eu decidisse pelo rumo do pragmatismo brasileiro, eu estaria me transformando em coisa, eu seria apenas uma realidade dentro das outras, eu teria abdicado da minha liberdade --- na medida em que não coloco a questão das implicações intrínsecas, dos efeitos essa decisão terá sobre o meu futuro, ou das conseqüências ela terá no Juízo Final (embora eu não equacionasse isso em termos religiosos).
Cada decisão minha, portanto, determina o que eu sou. E, isto que sou naquele momento, eu não posso revogar, não posso voltar atrás; aquilo já está decidido. Posso, depois, tentar anular as conseqüências práticas da decisão; mas a decisão já me marcou de alguma maneira.
Então entendi que esse domínio pragmático, no qual os brasileiros --- e até os estudantes brasileiros de filosofia --- acreditam viver, não existe. Ele é apenas uma invenção, uma espécie de grade mental que você construiu para se isolar do sentido da vida, para acreditar que suas decisões não afetam o sentido da vida, que afetam, apenas, o lado pragmático das coisas. Por exemplo: que emprego eu devo ter? Se eu devo comprar uma coisa ou não, etc. Esse pessoal acredita que tudo isso pode ser decidido por critérios exclusivamente pragmáticos, quando este mundo pragmático só existe mentalmente. Ele não existe na realidade. Na realidade, nós não podemos nos isolar do Ser, da nossa liberdade e do sentido da vida. Isso é impossível. Isso é utópico.
Isso quer dizer que querer virar uma coisinha entre outras coisinhas não é acessível ao ser humano, só o que é acessível é o esquecimento: você se esquecer da sua liberdade, esquecer dos valores implícitos nas suas decisões, esquecer do sentido da vida etc., e acreditar que você pode viver num mundo exclusivamente pragmático.
E prestem atenção, na educação brasileira --- sobretudo, da classe média ---, a imposição disto é obrigatória e intolerante. Se você sai disso um único minuto, as pessoas dizem que você não está bem da cabeça. Não é como em outros países (bom, não conheço todos os países do mundo, mas vivi aqui [nos Estados Unidos], conheço bem a França, conheço bem a Romênia, conheço bem a Colômbia, além de pessoas de outras naturalidades que conheci e conversei bastante, e além de tudo o que li, que estudei sobre as sociedades dos outros países etc. Então, eu tenho uma pequena amostragem, tenho alguma base de comparação). Posso afirmar para vocês que é só no Brasil que as pessoas acreditam nesse mundo pragmático, isso é um mito brasileiro.
Acho que esse mito nasceu do fato de as pessoas observarem que existem outros países que tiveram mais sucesso, que ficaram mais ricos. E, como o brasileiro tem um complexo de inferioridade danado por causa disso, então ele tenta reagir, e acha que ele se endurecer nesse pragmatismo vai lhe dar alguma sorte, algum sucesso na vida. Não espanta que seja um país de fracassados. Um país onde o fracasso é normal e o sucesso é tão anormal que suscita inveja e ódio.
Então, quando o sujeito tem sucesso, todo mundo quer matá-lo. Se o sujeito tem alguma qualidade, é um homem inteligente, é um sujeito rico, é um cara bonitão, ou é uma mulher bonita, gostosa etc., todo mundo quer matar.
Então, o "normal" é todos os fracassados se juntarem num bar e ficarem falando mal da existência e falando mal de todo mundo --- esse é o destino brasileiro. E este é o efeito necessário deste pragmatismo, porque quando você adota este isolamento pragmático você está rompendo com o Ser, com o sentido da vida, e sobra somente a Realidade --- não se pode dizer que você não está sendo "realista", no sentido imediato, mas...
Uma vez li um livro do Étienne Souriau4, em que ele diz o seguinte: "nós temos duas atividades simultâneas; é como se estivéssemos num barco e você tem um piloto, que está lá no leme e que trata de desviar o barco da próxima onda, mas, no fundo do barco, tem um navegador, que está lá pegando um mapa e vendo o lugar do barquinho no conjunto do oceano". Bom, o que faz o pragmatismo? Ele joga o navegador fora e fica só com o piloto.
Então, ele acha que ele se virar na circunstância imediata é tudo. Eu digo: bom, só que você não sabe onde você vai parar; você se desvia da próxima onda, só que você estava viajando para a Europa e você foi parar no Pólo Sul.
É isso que acontece e, também por isso, noto que, na sociedade brasileira, é normal as pessoas perderem o fio da meada das suas vidas: elas não lembram mais para onde estavam indo. Então, é claro que isto é uma tragédia --- em primeiro lugar, uma tragédia no sentido cognitivo, mas...
Então, como este pragmatismo é imposto para as crianças, desde a mais tenra idade, é difícil você se livrar dele porque você acredita que, quando você sai dele, você está saindo da Realidade --- quando, na realidade, fechar-se dentro dele é, precisamente, fugir da Realidade.
Portanto, não está no poder do ser humano criar uma área que o isole do sentido total da existência, que o isole do Ser --- isso simplesmente não é possível, isso é completamente utópico. Isso é, realmente, como criança: ela inventa um mundinho e brinca dentro desse mundinho; só que ela não pode ficar brincando o tempo todo ali, porque se ela ficar confinada dentro do mundo de brincadeira, ela vai morrer de fome.
É como a história do Gugu, quando era pequeno. Ele vestia uma capa de Batman e chegou para o priminho e disse: vira Robin! E o cara falou: não. --- Vira Robin! --- Não. --- Vira Robin! --- Não. Então ele chegou e disse: "mãe, me dá minha chupeta, que eu já virei Gugu de novo". Então, isso quer dizer que aquele mundinho isolado se esboroou a um simples "não" de um colaborador que não quis colaborar.
Então, todo esse mundo do pragmatismo... Se vocês olham a economia brasileira, vocês vão ver o que é esse pragmatismo brasileiro. É um país que tem recursos imensos, indescritíveis, e que não consegue se livrar da pobreza, da inflação (a inflação já voltou de novo) Eu digo: meu Deus do céu! Como é possível, você, com tanta coisa na mão, ter a ousadia de ainda ser pobre?! O Brasil não tem o direito de ser pobre.
A maior vergonha do brasileiro é ele ser pobre. Do ponto de vista nacional (na escala nacional), é uma vergonha o Brasil ser pobre. Mas, do ponto de vista da moral pessoal, não há vergonha nenhuma em ser pobre. Quando Jesus Cristo foi rico?
Então, reparo que ser pobre é a maior vergonha do brasileiro. Ele ser um vigarista, ele cornear a mulher, ele tomar pico, ele contrabandear cocaína, nada disso é vergonha --- é uma honra para ele! Mas, se ele é pobre... Ah, esse tem uma vergonha tremenda!
Dessas coisas, gente, vocês têm que se livrar de uma vez por todas. Isso é o obstáculo à vida intelectual, é aí que está o problema. Também não adianta você ler livros o dia inteiro. Quando eu era jovem, morava com um sujeito, que chamava Macedo, e que lia o dia inteiro (acho que eu já contei essa história para vocês). Ele lia, lia, lia... Um dia ele virou para mim com uma cara perplexa e disse: "escuta, você entende o que você lê?"
Você não pode entender nada do que você lê, se o que você lê não está integrado dentro do Ser e, portanto, dentro da sua liberdade e dentro da autocriação desta essência que, um dia, você pretende ter e à qual eu me referi no famoso Exercício do Necrológio --- comecei este Curso com o Exercício do Necrológio, e as pessoas não estão levando isto totalmente a sério, quando aquilo é o principal das questões que você vai resolver aqui.
O "quem você vai ser" não pode ser resolvido com um nome de profissão, com um lugar na sociedade, ou mesmo com o que os outros dizem de você. É um problema da autocriação da sua biografia, é o que você pode apresentar no Juízo Final: eu fiz isso e mais aquilo, e mais aquilo, e mais aquilo, e mais aquilo... E não adianta você, ali, querer contar somente aquelas partes as quais você se lembra; porque, em vida, nós temos este privilégio de poder apagar partes inteiras da memória, mas, perante a Morte, nós já não temos mais isso.
Então, sempre pensei isso: que partes, da minha porca biografia, eu esqueci em benefício do meu próprio bem-estar psicológico e que ali me serão lembradas repentinamente --- porque, lá, haverá um diabo pra te acusar, e ele sabe de tudo... Ele vai dizer: "ah, ó, você fez isso, e mais aquilo, e mais aquilo..." E daí você vai ficar que nem um besta lá: "pô, é verdade, eu fiz isto..." Então é melhor lembrar em vida, e integrar, de alguma maneira, todos esses aspectos, e lidar com a problemática inteira das suas contradições morais. Ainda que isto, no começo, [00:40] possa ser até paralisante: você perceber, por exemplo, que você tem tantas tendências contraditórias dentro de você, que não dá pra você fazer absolutamente nada --- "o que eu vou fazer em seguida?" Eu falo: "não sei".
Você pode ficar num estado de perplexidade. Mas, aos poucos, este conjunto de tensões, que existe dentro de você, acaba mostrando que ele é a matéria-prima da qual você tira o sentido da sua vida --- é dali que você faz as suas escolhas.
Sobretudo, que conseqüências as suas escolhas têm para os outros? Porque você não está agindo somente dentro de uma realidade física; está agindo dentro de uma realidade humana, social etc., onde tudo que você faz tem conseqüências, e acaba se integrando na vida alheia como parte da Realidade deles.
Ou seja, se eu tomo uma decisão, fui eu que tomei e não outra pessoa. Portanto, aquilo, para ela, não faz parte da Existência dela, mas faz parte da Realidade --- é um dado externo, com o qual ela vai ter que contar, agora.
Por exemplo: eu estou, aqui, morando com a dona Roxane e, de repente, chego pra ela e digo: "ah, dona Roxane, descobri aí uma loira espetacular, estou mudando para a casa dela e você que fique chupando o dedo..." Eu tomei a decisão dentro da minha liberdade, mas, para ela, isso não é uma decisão, isso é um dado externo --- e vai modificar o quadro da vida dela, de uma maneira definitiva.
Penso, por exemplo, às vezes, nas pessoas que dizem: "ah, eu vou lá, nos Estados Unidos, para eu estudar com o Olavo". Eu digo: "vocês têm certeza que vocês vêm aqui para estudar com o Olavo ou para você ter um padrão de vida americano?" Porque o sujeito chega aqui, ele vê que os americanos têm a sua vida toda arrumadinha, sua casinha, seu carro do ano etc., e ele começa a se sentir terrivelmente inferiorizado por não ter nada disso. Estou aqui há oito anos, e não tenho nada disso, não acabei de pagar esse raio dessa casa, estou aqui endividado até o pescoço. E meu carro mais novo é de 2001... (Todos eles já devidamente amassados, porque existem várias pessoas solícitas que vêm para os Estados Unidos para amassar os meus carros --- tenho quatro, tudo aí de 1993... Todos eles, de antes de vir o governo, já amassadinhos). Então isso é uma coisa pra você pensar.
Tem várias pessoas que vieram pra cá e disseram: "ah, agora a gente vai estudar com o Olavo". E no dia seguinte: "não... Eu queria uma coisa melhor... Vou pra Nova Iorque... Tem em umas garotas gostosas... Vou arrumar um emprego... Vou ganhar um dinheirão..." Em suma: vai ser mais um idiota americano no meio de tantos. Estas, por exemplo, são decisões que as pessoas tomam baseadas no pragmatismo brasileiro, porque eles acreditam que esta decisão não tem significado moral, que elas são apenas práticas. Meu Deus! No dia em que existir alguma decisão prática sem significado moral, existirão gatos que voam, galinhas que botam ovos cúbicos e assim por diante. O mundo será outro.
No mundo real, esse isolamento nunca existe. Ele só existe no sentido da brincadeira de criança, onde você se isola das circunstâncias reais e você cria um mundo fictício no qual você é o Batman, ou é o rei Arthur etc., durante aquele tempo --- é uma concepção teatral da realidade. Quanto mais você vive dentro desse mundo teatral, mais você vira um cara histérico, que só acredita no que você imagina, e não no que você está realmente percebendo.
Então, vamos lá:
8. O privilégio da noção de existência explica-se pela sua posição mediana; ela faz o liame entre o Ser e a realidade (...)
O que é a Realidade? A Realidade é o que já está aí e que não pode mais voltar atrás.
Pára um minuto pra pensar nisso: tudo o que aconteceu desde que o mundo foi criado, absolutamente tudo, nada mais vai desacontecer. Está fixado de uma vez para sempre. Não há nada que você possa modificar. E, por outro lado, existe o Ser, que é a subjetividade criadora e a Liberdade integral, a Liberdade divina. E o ser humano está colocado entre uma coisa e a outra: ele participa de uma e participa da outra (e essa é outra noção fundamental da filosofia de Lavelle, que é a de participação: nós somos constituídos de uma participação no Ser e de uma participação na Realidade).
8. (...) Com efeito, é porque há seres cujo surgimento no mundo se apóia sobre um ato de liberdade reinvestido a cada instante, que aparece uma disjunção entre o Ser e os seres. (...)
Se fosse o reino da liberdade total, nenhum ser seria nada, de uma vez por todas; ele seria aquilo que Deus determinasse a cada instante. Deus, por assim dizer, o recriaria a cada instante, dando-lhe novas possibilidades que ele não tem (na verdade, Deus faz isso com os seres humanos, e só com os seres humanos. Pelo exercício da liberdade, você descobre novas e novas possibilidades que você não sabia que tinha. Mas isso só acontece com os seres humanos; nunca se viu uma tartaruga fazer isso, uma lagartixa, um leão, um elefante ou uma montanha: eles são o que são, está determinado e o circuito das suas possibilidades está delimitado para sempre).
8. (...) Esta última distinção [entre o Ser e os seres (ou os entes)], antes de ser lançada na conta do Ser mesmo, releva, em primeiro lugar, da experiência vivida... Torna-se claro que só o ser humano existe (...)
Ou seja, os outros têm apenas a Realidade. Deus tem o Ser --- Ele é o Ser ---, e os outros têm a Realidade --- e são a Realidade ---, mas nós temos a Existência. Portanto, o existir significa participar do Ser e da Realidade e, mediante os arranjos que você faz na Realidade, marcar ali a presença do Ser através da sua liberdade e da sua autocriação.
Existe a possibilidade de que alguma pesquisa científica demonstre que nós não temos liberdade alguma, e que todas as nossas decisões estão predeterminadas? Só existiria se o indivíduo que apresentasse essa prova provasse também que a decisão de buscar essa prova também já estava predeterminada. Senão, o que ele está fazendo? Ele está demarcando uma área de fenômenos, separando-a do conjunto da Realidade e, com base na observação dela, tirando conclusões que ele extrapola para o restante da Realidade. Mas, conclusões das quais ele mesmo, nas suas decisões, está excluído a priori, porque ele não é um ente da Realidade: ele é o observador universal, o sujeito absoluto.
Então, só falo como Pirandello: "ma non è una cosa seria". Investigações desse tipo não são intelectualmente sérias. São brincadeiras de pessoas que querem provar que os outros são apenas coisinhas, mas que acreditam que eles mesmos não são isso --- eles nunca podem ser coisinhas. Isto é o exemplo de total irresponsabilidade cognitiva.
E já expliquei para vocês na última aula: (o que é a Filosofia?) Filosofia é a responsabilidade cognitiva elevada ao seu grau máximo, ao grau máximo do que é possível a cada etapa da vida e do conhecimento humano.
9. Diferentemente da noção de realidade, a de existência não se presta à definição, mas tão-somente à intuição e à reflexão. (...)
Mas isto é óbvio, porque a Existência é a nossa forma de ser. Nós só podemos defini-la por algumas das suas propriedades (não é propriamente uma definição; é um indicador, um índice de reconhecimento, algo que permite você reconhecer que está falando da Existência e não da Realidade).
9. (...) Para falar com propriedade, não existe conhecimento possível dessa dupla de noções (ser; existência), elas exigem ser experienciadas (...)
Quer dizer, isto surge da experiência, e esta pode ser meditada e esclarecida, mas ela nunca pode ser inteiramente dominada intelectualmente; porque, se você dominasse intelectualmente esse conjunto, você se transformaria automaticamente no sujeito absoluto, que tudo observa e não é condicionado por nada --- e isso é algo contraditório. Portanto, como a Existência está se desenrolando nesse mesmo momento, você não tem como defini-la e enquadrá-la. Você pode meditar a experiência --- como você medita as suas próprias decisões --- de maneira a tornar aquilo intelectualmente mais claro. Mas você nunca chega a ter um domínio intelectual completo da situação.
(...) e não se iluminam senão para aquele que lhes dá um sentido ao assumir sua liberdade. (...)
Ou seja, se você não assume a sua liberdade, então você quer se ver como coisa, e portanto você quer obter uma explicação causal externa --- ou científica --- de você mesmo, que lhe permita dominar-se integralmente. Mas como você não pode dominar-se integralmente, porque você ainda está vivo e a sua existência ainda não terminou --- e você não sabe como ela vai terminar ---, então o que você está tomando como se fosse "domínio da realidade" é apenas o isolamento de sua mente dentro de um universo de brinquedo --- é uma política de avestruz.
(...) Neste sentido, a existência implica sempre uma consciência desperta e é sempre a de um eu em busca de si mesmo.
Ou seja, se não há "uma consciência desperta", e não há "um eu em busca de si mesmo", não há conhecimento da Realidade, não há conhecimento do Ser, não há nada. Só existe a construção de universinhos de brinquedo, teatrinhos mentais. Claro que esses teatrinhos mentais podem ter um prestígio intelectual muito grande, mas, no fundo, não passam de brincadeira. E algumas dessas brincadeiras, às vezes, determinam o destino de milhões de seres humanos. Como, por exemplo, o sujeito que inventa um mundo melhor e quer construí-lo a ferro e fogo. E, daí, sai de baixo! Quem está embaixo é que vai agüentar o que vem por cima. Essas brincadeiras sempre terminam muito mal.
Vocês imaginem o que aconteceria se, por exemplo, o doutor Daniel Dennett tivesse algum poder sobre a sociedade humana. Ele está convencido de que toda a nossa experiência da realidade é falsa, que somente as ciências --- especialmente aquela que ele pratica --- podem nos dizer o que é a realidade. Nós todos estamos na fantasia, e só ele está na realidade. Imagina só se este sujeito tivesse poder: tudo aquilo que você sabe de você mesmo não vale, só vale o que ele diz de você.
Nunca houve, na história humana, uma presunção de poder mais megalômana, mais psicótica, e que deveria ser respondida com a imediata internação hospitalar. Mas, como ele não expressa isso em termos de poder, mas expressa em termos de um discurso científico, que parece inocente, deixam o homem continuar falando... Na hora que ele tiver meios de realizar isso, daí você vai ver o que vem em seguida. Isso é muito pior do que Karl Marx ou tudo o mais que já aconteceu.
Então, agora vem uma citação do Lavelle:
10. "O ser não se revela a nós senão na experiência da existência, [00:50] como aquilo que a funda e ao mesmo tempo a ultrapassa."(...)
Ou seja, você ter a consciência de que a sua liberdade está sendo, por assim dizer, insuflada em você, o tempo todo, por uma instância que tem a Liberdade ilimitada e absoluta; e que, portanto, transcende você --- esta aqui é a substância da existência humana.
A sua liberdade não tem causa externa, mas ela tem uma causa que a transcende --- mais adiante ele vai dizer que nós temos que nos livrar das analogias espaciais: quando nós falamos "fora", "dentro", "acima" etc.; nós estamos usando analogias espaciais, mas são só analogias.
Nós sabemos que determinantes biológicas ou sociais, realmente, vêm de fora, mas a sua liberdade não vem de fora; ela não é uma causa externa que se impõe a você. É uma liberdade que você tem quando você quer; mas que, ao mesmo tempo, nada externo a explica. Então, ela vem de uma instância que não é propriamente externa, mas que transcende você. E é justamente dessa esfera transcendente que você puxa mais liberdade, na medida em que você aceita e quer a liberdade e a exerce.
Recomendei, umas aulas atrás, que vocês se lembrassem disso na hora de rezar: "Quem reza em você?" É a pessoa livre (não é o ente real, externo).
10. "O ser não se revela a nós senão na experiência da existência, como aquilo que a funda e ao mesmo tempo a ultrapassa. Mas a experiência da existência é a experiência mesma da participação. É a experiência do ser na medida, precisamente, em que ele pode se tornar um eu que é o meu."
Ou seja, o ser se expressa na criação de um "eu", que vai ser a minha essência no fim das contas. Então, você imagina como pode ser desastroso --- para a auto-criação deste "eu" --- você acreditar no pragmatismo brasileiro, e acreditar que existe uma zona, por assim dizer, "moralmente neutra" e existencialmente neutra, onde você pode tomar decisões por considerações meramente pragmáticas.
11. [A experiência da existência] vai muito além da simples apropriação de um ser por ele mesmo. Através desse movimento de apropriação, opera-se o mistério metafísico da manifestação do Ser por meio daquilo que Lavelle chama a participação. (...)
Quer dizer, é o Ser mesmo que está se manifestando em você e através de você. Portanto, é justamente através dessa participação, e através desta auto-criação do "eu" (ou auto-criação da sua essência), que você vai ter alguma idéia do que é o Ser em si mesmo. É só por esse [meio], não há outro meio de acesso.
(...) O Ser não se mostra jamais enquanto tal, "ele é secreto e não manifestado"; mas, na medida em que ele se dá em partilha, ele se manifesta indiretamente: (...)
Ou seja, é somente através do exercício da nossa liberdade que nós podemos ter algum acesso ao que é o Ser.
(...). "O próprio da existência é precisamente obrigar o ser a se manifestar como um efeito do ato mesmo pelo qual ele se constitui." Dito de outro modo, o Ser é aquilo sobre cujo fundo e aquilo graças ao qual o eu de cada um de nós surge e toma consciência de si mesmo. (...)
Então, ainda é aquele famoso verso do Paul Claudel: "Deus é aquele que, em mim, é mais eu do que eu mesmo"5, porque ter um "eu" não é uma coisa que se possa explicar externamente, não faz parte da Realidade; nenhum bicho tem um "eu", nenhuma pedra tem um "eu". Dito de outro modo: nenhum bicho ou pedra tem uma biografia pessoal, nenhum deles vai se construindo ao longo da vida com uma essência na qual ele se tornará, e que será a sua identidade definitiva --- não a sua identidade inicial, que é determinada por fatores externos; mas a identidade final, ou seja, quem você se tornou.
(...) Por isso ele [o Ser] consiste na potência infinita de um Ato no qual bebemos para fundar o ato limitado que é o nosso (...)
Note bem: o que orienta cada uma das suas decisões? Se não é sempre --- sempre! --- o espírito, ou seja, aquilo de mais alto que você pode alcançar; então, você já está fora do Ser: você já se reduziu à Realidade.
Então, isso quer dizer que qualquer decisão, por pequena que seja, tem que ser tomada com plena consciência do exercício da liberdade e da auto-criação; que está, naquele momento, determinando o que você vai ser.
Portanto, são precisamente aquelas decisões de ordem "puramente práticas" as que mais vão importar, nesse sentido, porque elas vão montar o quadro real, externo, da sua vida. Este quadro real, externo, naturalmente enquadrará outras pessoas também. Ou seja, essas são as decisões que mais tem significado moral; são justamente as questões de ordem prática como, por exemplo: "como é que eu vou ganhar dinheiro? Aonde eu vou gastar o meu dinheiro? Etc." E basta você tomar uma delas na base do pragmatismo brasileiro, que você já disse adeus ao sentido da vida, na mesma hora. Claro que você pode recuperá-lo, depois, por outros meios, mas isto vai obscurecendo, cada vez mais, o sentido da vida.
Se você não está tomando cada uma dessas decisões em função do espírito, do mais alto que você possa conceber; você já concedeu ao dinheiro uma independência ontológica --- que ele, evidentemente, não tem; mas que você está concedendo a ele. O que você está fazendo? Você cria uma figura, e insufla nela um poder que era seu originariamente; mas que, agora, passa a ser dela. Então você criou uma nova autoridade sobre você. Uma autoridade que não existia, e que nunca ia existir; mas que, a partir da hora em que você insuflou essa autoridade nela, ela passa a ter --- e, daí, pra voltar atrás é muito difícil.
É evidente que todos nós temos alguma necessidade de lidar com a realidade em torno, para assegurar a nossa própria sobrevivência. Porém, se eu perguntar assim: qual de vocês --- de todos os meus alunos --- existe ao nível da mera sobrevivência? Qual de vocês está tão necessitado, tão ferrado, que a sobrevivência deve ser o seu único objetivo? Nenhum (existem pessoas que vivem neste nível, evidentemente. Na África, está cheio. Nos paraísos socialistas, está cheio de gente assim; mas aqui não tem, ninguém está tão mal assim).
Portanto, isto quer dizer que qualquer decisão que você tome em função apenas da sua sobrevivência, você está tomando com um critério fictício. Na verdade, você não quer sobrevivência; você quer conforto, você quer bem-estar, você quer prazer, quer isso e mais isso... É isto que você está "falando", mas está chamando isto de "sobrevivência", como se fosse uma necessidade urgente, sem a qual você vai morrer nos próximos cinco minutos. Então, já falseou todo o quadro.
Então, nunca diga que você está "lutando pela sua sobrevivência". Ninguém aqui está lutando pela sobrevivência: para nós morrermos de fome, falta muito ainda. Todos nós temos uma reserva de gordura que podemos queimar, durante quarenta dias, sem morrer.
Quando a pessoa diz que está "lutando pela sobrevivência", ela está "lutando" para aliviar o medo de ficar sem dinheiro --- que é uma coisa completamente diferente da sobrevivência. Este medo, até certo ponto, é justificado. Mas, aí entra o seguinte problema: se a sua luta para você fazer o seu dinheiro é empreendida dentro deste quadro do pragmatismo, então em função do pragmatismo, você tem que escolher quais as pessoas que a sua decisão vai beneficiar, e quais ela não beneficiará em nada ou [que] serão até prejudicadas. E, na hora H, você vai ver que você pensa apenas na sua mulher e nos seus filhos (e na sua amante, se você tiver alguma). E em mais ninguém, não é?
Portanto, o que você está fazendo? Você está pegando a sua família e transformando-a num inimigo da humanidade. A sua família está trabalhando por si e contra todos os outros. Veja que isto vai dar um azar desgraçado, porque quem vai querer o seu sucesso diante disto? Ninguém! Então, a sociedade vira isto que é o Brasil: uma conspiração de todos contra todos.
O egoísmo brasileiro faz com que ninguém ajude ninguém, portanto todos vão pro buraco igual; a não ser, ocasionalmente, quando tem algum sortudo: é impossível que todos dêem errado. Então, tem um ou dois sortudos que você inveja e quer matar ao mesmo tempo: você gostaria de ser o Eike Batista, ou ser o Zé Dirceu, ser o Lula, ser a Dilma... São meia dúzia de sortudos que, dentro do azar geral, representam a exceção que confirma a regra. E todo mundo está agindo na esperança de tornar-se um deles. Só que, por sorteio, é menos de um por cento da população que vai ter essa sorte.
Portanto, a idéia de você trabalhar para todos --- sempre para todos: pra aqueles que são da sua família e pra quem não são, pra aqueles que você gosta e pra aqueles que você não gosta --- é a única coisa que pode fazer a sorte trabalhar em seu favor. Isso deveria ser óbvio pra todo mundo. E é curioso quando você vê como isto, aqui, na sociedade americana, está arraigado.
É curioso como é natural, nos americanos, eles quererem a prosperidade dos outros. Eles entendem: "bom, se todo mundo vai para o buraco, porque só eu terei sorte?" Eles entendem isso, mas os brasileiros não. Cada um acha que ele pode cuidar dele e da família dele e "só nós vamos ter sorte, os outros que se danem"--- mas isto é impossível! E isso é uma ruptura com o sentido da vida. Você acha assim e quer estudar filosofia?! Quer estudar com o Olavo?! Você está louco?!
Quer dizer, você constrói uma vida, todinha, montada para não entender uma palavra do que o Olavo está falando. E você não pára de ouvir o Olavo. [1:00] Isso não faz o menor sentido, pô! Ou você abre a sua forma de existência para atender isto que o Olavo está te ensinando, ou então é melhor ir embora, pô! Vai tomar aula com o Rodrigo Constantino, vai aprender com o Janer Cristaldo, vai aprender com o Emir Sader...
Normalmente, num país, deveria ter, a cada geração, dez, vinte, trinta ou algumas centenas de pessoas capazes de ensinar o que estou ensinando. Até uma época atrás, todos os países tinham. Quando você vê, por exemplo, a França que tinha, ao mesmo tempo, o Louis Lavelle, o Gabriel Marcel..., uma plêiade inteira de pessoas que compreendiam essas coisas. Só que, no Brasil, meus filhos, sobrou... eu!
Quando a minha avó me deu este nome --- foi minha avó, Elisa, quem escolheu este nome, "Olavo", não sei por que; ela era de descendência alemã e escolheu um nome norueguês que quer dizer "sobrevivente"---, o negócio foi profético: morreu todo mundo, só sobrou eu, porra! Eu estou sozinho na jogada para fazer o serviço inteiro! E é evidente que eu não consigo, é evidente que está acima de mim. Mas nem por isso eu vou deixar de continuar tentando, porque esta é a minha vida, isto é o que eu escolhi ser --- e estou sendo. Eu nunca quis ser outra coisa além do que sou agora --- eu só queria ser mais; mas, sozinho, não dá pra ser mais.
Dito de outro modo, o Ser é aquilo sobre cujo fundo e aquilo graças ao qual o eu de cada um de nós surge e toma consciência de si mesmo. (...)
Vejam: nas doutrinas hindus, os caras dizem que o maior problema é a ilusão da independência do eu --- e eles têm toda a razão! Nós temos um "eu" porque o Ser insufla o eu e a liberdade em nós. É a Liberdade infinita que nos abre essa possibilidade de ter um "eu" e de ter uma história.
Portanto, aquilo que é mais íntimo em nós não vem de fora, mas vem de cima; vem de algo que nos transcende infinitamente. E é pra isto que nós temos de estar abertos, o tempo todo; e cada decisão tem que ser tomada em vista disto. Isto é o que a Bíblia chama "caminhar diante de Deus". [Isso] Não [significa] que você vai fazer tudo certinho.
Todos nós fazemos pecados, não é? Todos nós. Então, na hora em que você faz um pecado, você está sabendo que Deus está olhando? Você está sabendo que, naquele mesmo momento, você está pedindo pra Ele: "não olhe esta porcaria que estou fazendo, por favor. Eu sei que não devia fazer, mas eu não agüento, vou fazer de qualquer jeito, então, não olhe. Faça de conta que Você não sabe"? Deus faz de conta que não sabe. Então, aí, mesmo na hora em que você está cometendo um pecado, você não está se desligando d'A Fonte. Agora, se você se isola, no sentido de que: "bom, eu mesmo não vou perceber o que estou fazendo e, portanto, o que eu estou fazendo não existe", então, aí, você cortou com A Fonte --- e daí você perde a liberdade, automaticamente.
Portanto, a consciência da implicação moral de cada decisão --- da implicação moral última --- é absolutamente necessária. Sem isto, você nunca vai poder ser um filósofo, porque ser filósofo é [você] buscar a unidade do conhecimento na unidade da consciência, ou seja: você não exclui nada, você não tampa pedaços de realidade, você não constrói um "euzinho", como um castelo de cartas, dentro do qual você vai viver. Não! Você está sempre aberto às conseqüências últimas.
Isso pode, é claro, dificultar um pouco o processo decisório, porque você vai ter precisar meditar mais. Porém, as suas ações terão, a partir daí, uma densidade e um peso que não tinham antes. E, daí, chega um dia em que você, finalmente, tem uma consciência autônoma, e que não existe mais nenhum ser humano que possa passar um pito em você --- só Deus poderá. E isso é bom, isso é até gostoso. Chega um dia que você diz: "Não preciso mais respeitar mais ninguém, porque ninguém é respeitável".
Então, é curioso como as pessoas, toda hora, dizem: "ah, eu quero pensar com minha própria cabeça, ter minha própria opinião..." --- e eu falo: isto não está ao seu alcance, seu idiota; isto custa alguma coisa. E você só consegue isso quando está, permanentemente, aberto para as conseqüências últimas do que diz, faz e pensa. Ou seja, quando a sua existência interior se desenrola no quadro inteiro do Ser, no quadro inteiro da infinitude e, portanto, diante de Deus; a partir daí você sabe alguma coisa.
Não pense, meu filho, que você ir à missa (ou que você pensar: "ah, eu vou praticar as virtudes") vai te livrar disso. Isso é tudo frescura, gente. Isso são fetiches. A realidade da vida do espírito é esta: não tem ritual, não tem conduta ritual, não tem regra moral que vai te livrar disto aqui. Isto é o básico, isto é a única coisa necessária.
(...) Por isso ele [o Ser] consiste na potência infinita de um Ato no qual bebemos para fundar o ato limitado que é o nosso... E, assim como Deus se encarnou na pessoa do Cristo, do mesmo modo é existindo que manifestamos o Ser e recebemos a sua luz.
Então, se você não entende isto --- esta parte do discurso ontológico ---, o discurso moral não vai fazer sentido para você, porque a moral depende da ontologia. Nenhum mandamento moral significa nada se ele está fora da estrutura da realidade, da estrutura do Ser. Então, é para se arraigar no Ser, para se arraigar na consciência da sua liberdade e das implicações infinitas da sua liberdade, que estou ensinando essas coisas todas, aqui. Senão, eu seria o bispo Macedo: estaria pregando moral; estaria falando mal dos gays, dos adúlteros, dos vigaristas etc.; e fingindo, diante de vocês, que sou infinitamente melhor do que eles.
Eu realmente não sou melhor. Acho que sou, apenas, um pouco mais sortudo de ter percebido algumas coisas durante a vida. E isto --- se me qualifica para, às vezes, criticar ou condenar certas condutas públicas --- não me permite, nem por um minuto, sentir que sou melhor do que essas pessoas. Acho horrível essa idéia de sentir que sou melhor do que elas, porque, um dia, vamos todos comparecer diante do trono de Deus --- e é melhor irmos de mãos dadas, ajudando uns aos outros; implorando o perdão para os outros, mais do que para nós mesmos.
Portanto, esse sentido de uma certa responsabilidade moral que você tem sobre as outras pessoas --- e sobre os seus inimigos, e sobre as pessoas que você despreza ---, isto é básico! Então, se você --- no mínimo, no mínimo --- não rezou por uma pessoa, você não tem o direito de xingá-la; você não fez a sua parte.
Ah, a pessoa é ruim? E que você fez para ela melhorar? Nada. Então, você está xingando, só pra se sentir superior; e isso não adianta nada, é fazer um buraco n'água.
12. Existir é destacar-se do ser total para pretender à independência (e, em decorrência, à liberdade)... E é o mesmo ato que faz da nossa vida uma vida visível e manifestada e que nos estabelece na intimidade do ser; (...)
Isso é uma coisa aparentemente paradoxal porque, como nós não temos propriamente o ser (nós temos somente a Existência), a Existência se destaca do Ser. Tanto ela se destaca, que nós podemos pensar sobre o Ser. Isso significa que nós não somos Ele --- há uma diferença entre nós e Ele; se não existisse, Ele não seria pensável como tal.
Mas, ao mesmo tempo, é este ato que nos destaca d'Ele, que permite que nós encontremos n'Ele a nossa raiz --- e sentirmos radicados n'Ele cada vez mais profundamente , na medida em que vamos fortalecendo a nossa consciência de que a nossa liberdade tem uma fonte transcendente e de que ela é um milagre.
E é um milagre de todos os dias porque, pensa bem: como é que eu consigo ter um "eu"? Como é que eu consigo me sentir autor dos meus atos? Nenhum bicho se sente autor de seus atos (e, por isso, o bicho não é moralmente imputável). Ser moralmente imputável é uma honra do ser humano --- e esta honra não tem explicação natural. Então, é um milagre que está sendo realizado o tempo todo.
12. É o mesmo ato que faz da nossa vida uma vida visível e manifestada e que nos estabelece na intimidade do ser; de tal modo que poderíamos aplicar-lhe ao mesmo tempo a palavra existir, que indica a ação de sair [έξω, éxõ = para fora], e a palavra insistir... [existir e insistir, você existe, portanto, você sai do ser, mas você "insiste", você se arraiga nele; justamente, no ato em que você sai, que se constitui como personalidade auto-criadora] que designa... a ação de permanecermos na mesma coisa da qual recebemos o ser e da qual não nos destacamos mais.
[Intervalo]
Bom, vamos às perguntas de hoje.
Aluno: No texto da aula de hoje,6 Lavelle diz: 'O Ser não se mostra jamais enquanto tal, ele é secreto e não manifestado'. Não estaria nesse pensamento a questão do ser-em-si kantiano?
Olavo: Está. Só que este problema está resolvido no capítulo 1 do próximo livro --- que é "Conhecimento e Presença". O capítulo 1 chama-se: "Immanuel Kant e os fundamentos da objetualidade". Este problema está inteiramente resolvido lá. Então, vou até ler um parágrafo, aqui... (Este livro vai ser editado, brevemente, pela Vide Editorial --- "Conhecimento e Presença"---, mas talvez o título mude)
O que explico, ali7, é o seguinte: que a intuição de qualquer objeto que seja não é apenas a percepção de uma forma sensível, estática; é imediatamente a percepção de um conjunto de possibilidades e impossibilidades.
Se você percebesse somente a forma estática, isso não seria propriamente uma intuição, nem mesmo uma percepção; seria, apenas, uma impressão sensível. E a impressão sensível não seria suficiente nem mesmo para você dizer do que é esta impressão, dizer o que é este objeto, dizer a que essência se refere.
É impossível você perceber qualquer essência sem perceber, instantaneamente, alguma das suas propriedades. Senão, se você não percebe propriedade alguma (nem no sentido positivo, nem no negativo: aquilo que esse objeto pode fazer e o que ele não pode), então, você não percebeu absolutamente nada. Por exemplo, se você vê um gato e você não sabe instantaneamente que o gato não pode voar; você não percebeu um gato; você percebeu alguma outra coisa, que é uma forma vazia daquilo que será um gato, quando você perceber algo do que ele pode e do que ele não pode fazer. Outro exemplo, se você vê uma fruta, [1:10] você pode perguntar: "isso é de comer?". Mas, se você vê um computador, você não pergunta "isso é de comer?", porque você sabe que não é pra comer. E se você não soubesse que um computador não é para comer, você não saberia que é um computador.
Portanto, a percepção de qualquer objeto é a percepção de um agregado de propriedades que ele tem e que ele não tem. E, também, um agregado de acidentes possíveis e impossíveis. Por exemplo, ao ver um gato, você sabe que ele não pode aprender a língua alemã, nem o grego, nem, aliás, o português. E você sabe, também, que ele não pode voar. Mas você sabe que alguma coisa ele pode fazer (você sabe, por exemplo, que ele pode respirar, porque ele está respirando).
Isto quer dizer, imediatamente, a seguinte coisa: quando o Kant diz que tudo o que nós percebemos são elementos soltos, elementos caóticos, aos quais a nossa forma de percepção confere uma unidade, uma identidade; isto é impossível. (Por quê?) Porque as formas de nossa percepção são as mesmas em todas as pessoas; os nossos esquemas a priori são os mesmos, são universais (como o próprio Kant diz). Se eles são universais, como é que eles poderiam se amoldar instantaneamente ao objeto percebido, se este próprio objeto não lhes impusesse algo de sua forma e, portanto, do seu sistema de possibilidades?
No fundo, o que Kant está dizendo é que toda diferenciação entre objetos é fruto de uma projeção da nossa mente. E isto não apenas é errado como é materialmente impossível: quem diz que o gato não pode voar não é a forma a priori da minha percepção, porque essa forma a priori é igual em todas as pessoas.
Então, só o que pode diferenciar individualizadamente cada objeto como portador de um sistema de propriedades --- e como sujeito possível de um sistema de acidentes --- é o próprio objeto. Ele tem que me impor isso. Senão, eu não posso montá-lo desta maneira; porque, se as nossas formas de percepção são iguais para todos os seres humanos, elas não estão individualizadas para cada objeto --- você só perceberia objetos genéricos.
Isto quer dizer que, quando Kant diz: "a metafísica é impossível porque lhe falta um objeto na intuição", isso poderia estar até certo quando se refere aos objetos últimos, como, por exemplo, Deus, a imortalidade etc. Nós, de fato, não temos intuição disto. Porém, temos a intuição da presença disto através do exercício da nossa liberdade. Você não ter a percepção de um objeto inteiro não é a mesma coisa que você não saber nada a respeito.
Bom, Kant tem razão quando diz que nós não podemos conhecer Deus, como um objeto, no sentido em que conhecemos um gato. Mas, também, não podemos dizer que ignoramos a presença d'Ele, porque esta presença se manifesta, em nós, através da nossa própria liberdade; então, algo sabemos.
Se não podemos conhecê-Lo inteiramente como objeto --- se não podemos dominá-Lo intelectualmente --- é porque Ele está nos constituindo neste mesmo momento; e se tivéssemos o total domínio intelectual d'Ele, então estaríamos totalmente fora d'Ele.
Então, este conhecimento não é uma limitação da nossa percepção. Não. Ele é um elemento estrutural da nossa forma de existência. Então, isso é a mesma coisa que dizer: você não pode apreender a sua vida como um conjunto, porque a sua vida não acabou ainda. Isso não é porque: "ah, nossa inteligência é tão limitada que não podemos apreender a nossa vida como totalidade". Para apreender a vida como totalidade, a vida precisaria já ter uma forma total, acabada; portanto, a vida precisaria já ter acabado. Então, isso é contraditório com a natureza do objeto e com a própria situação de percepção. Isso não advém, portanto, de uma "limitação" da sua percepção.
Você, quando percebe Deus apenas pela Sua presença indireta na sua liberdade, está percebendo Deus como Ele realmente é. Porque Ele é isto. Ele não é um objeto que possa ser circunscrito e delimitado pela sua inteligência. Se você não O apreende como tal, é porque Ele não é isto.
Quer dizer, nós temos um conhecimento perfeitamente realista e objetivo do que Deus é, porque nós O conhecemos através da liberdade que Ele insufla em nós --- e esta é uma maneira de presença d'Ele.
Ele tem outra maneira, também, que é a presença através do mundo criado; no qual nós podemos, por um processo analógico, extremamente dificultoso e complexo, perceber algo da Sua presença. Este algo, no entanto, nunca estará totalmente manifesto e provado --- isso aqui é importante.
É por isso que acho que são inúteis as discussões em torno do design inteligente. Porque, se absolutamente tudo no mundo externo --- na Realidade --- manifestasse um design inteligente, tudo no mundo faria sentido. E isto é impossível porque, para que tudo no mundo fizesse sentido, precisaria que o mundo fosse o próprio Deus. Ou seja, seria preciso que ele tivesse a racionalidade integral, e que não houvesse, nele, elementos de irracionalidade, deficiências, absurdidades etc.
Isso quer dizer que, para cada elemento de design inteligente que você observar no mundo, você vai observar outro elemento de casualidade, de irracionalidade e de absurdidade que tem de estar presente no mundo para que o mundo seja o mundo, e não Deus. Portanto, essa discussão, sabe quando ela vai terminar? Nunca.
Você tem elementos suficientes para suspeitar de que existe um design inteligente --- mas não um design inteligente por trás de tudo. Isso seria o absurdo dos absurdos; quer dizer, o mundo seria não aquilo que o Leibniz chamava de "o mais perfeito dos mundos possíveis", ele seria absolutamente um mundo perfeito. O Leibniz dizia "o mais perfeito dos mundos possíveis" dentro das condições dadas; portanto, um mundo cheio de imperfeições.
O mundo não é uma criação perfeita de Deus --- ele não poderia ser. Pelo simples fato de ser "criação", que se destaca de Deus, então, ele não tem a perfeição divina na sua integralidade. Portanto, o mundo tem que ter uma margem de irracionalidade, de absurdidade, de mal etc.
E, por isso mesmo, você pode ter elementos suficientes para suspeitar de um design inteligente, mas não para prová-lo em sua integralidade, nem, muito menos, para provar que tudo, no mundo, obedece a um design inteligente. Se tudo obedecesse a um design inteligente, então, isso significaria o seguinte: as suas ações também obedeceriam a um design inteligente --- porque nós também estamos no mundo ---, e você agiria de uma maneira tão perfeita quanto Deus!
Então, a nossa própria condição nos prova que só parcialmente existe um design inteligente, mas que existe uma margem que escapa disso, e cai no absurdo, na irracionalidade, no diabólico etc.
Platão tem a seguinte imagem, ele dizia: "Deus imprime um giro no mundo, e depois deixa que o mundo dê um giro por si mesmo". Então, é essa a margem de erro que não permite chegar a uma conclusão sobre a existência --- ou não --- de um design inteligente.
Se não é possível provar um design inteligente, muito menos é possível provar que tudo obedeceu a uma seqüência de acasos sem finalidade nenhuma. Essa discussão é inútil! Porque é só na esfera da liberdade humana que a finalidade se manifesta de maneira clara --- e, mesmo assim, só se manifesta de maneira clara, quando você assume a liberdade; fora disso, você está na ambigüidade.
Então, isso quer dizer que só no ser humano --- só na esfera da Existência, e não na da Realidade --- é que o sentido se mostra. Se ele se mostrasse inteiramente na Realidade, não seria preciso o ser humano, meu Deus do céu! Porque tudo faria sentido por si mesmo, o mundo seria absolutamente perfeito, e nós estaríamos todos já no Paraíso. Quer dizer, as pessoas fazem exigências absurdas; como, em seguida, a exigência não é atendida, elas ficam frustradinhas.
Então, é claro, nós precisamos da teoria do design inteligente como quadro de referência; assim como precisamos da teoria do acaso, como referência; porque existem os dois elementos. Quando o doutor Richard Dawkins diz que "olha, tudo surgiu do acaso", eu digo: "bom; em parte, sim". Mas, no meio desse acaso, se filtram elementos que dão a suspeitar um design inteligente. E, dentro da grade da inteligência, se filtram elementos de acaso e de absurdidade. Quem tem razão aí? Os dois lados têm razão, só que cada um deles só quer ver a sua metade e não admite a do outro.
A ordem, a finalidade e o sentido só podem se manifestar no ser humano. Foi por isso que Deus se encarnou como uma pessoa: Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso Ele não se encarnou como uma tartaruga, ou um elefante, ou uma pedra.
Claro, você pode tentar ver Deus nas pedras, nos elefantes etc.; e Ele estará lá, também, de algum modo (muito remoto, muito disfarçado, muito camuflado e muito parcial). Você pode ver Deus onde você quiser, mas a única manifestação plena de Deus só pode ser no ser humano. E todo ser humano pode? Não, só um.
Entendeu a explicação, aqui?
Aluno: Eu me lembro que no livro The boy who met Jesus8, Cristo diz a Emmanuel Segatashya que as últimas guerras do mundo serão entre religiões. Segatashya fica perplexo, e pergunta a Deus por que as religiões guerreariam, se elas O servem? Posso interpretar isso como uma profecia de que, mais cedo ou mais tarde --- não sabemos quando será o fim do mundo ---, toda essa esperança de uma ditadura cientificista vai para o ralo, junto com o socialismo mais materialista --- senão a mentalidade revolucionária em si ---, e que, no fim de tudo, sobrarão apenas projetos globalistas que envolvem religiões?
Olavo: Essa pergunta é maravilhosa. Porque só pode dar nisso. A ditadura cientificista já está indo para o ralo.
Note bem que esse pessoal globalista já pretendia que o governo mundial estivesse implantado em 1980. Já está com 33 (trinta e três) anos de atraso. E, mais ainda, surgem outros projetos globalistas concorrentes, perante os quais este tem que fazer concessões.
Então, o projeto da ditadura cientificista não será realizado. Ele destruirá muita coisa pelo caminho, ele vai rebaixar o ser humano a um ponto que [ele] nunca foi rebaixado, mas ele não vai conseguir se implantar. Isso é como o socialismo, gente: o socialismo não existe, e nunca existirá; ele só se manifestará pela destruição que faz pelo caminho. O socialismo não existe, mas ele transforma o capitalismo num inferno. É o que o Augusto Del Noce chamava "o suicídio da revolução"9.
Ou seja, você sabe que aquele sistema socialista, que você inventou, não pode ser alcançado, mas você não desiste de ir atrás dele. No caminho, o que você vai fazendo? Você vai destruindo todas as bases espirituais, religiosas e morais do capitalismo. Então, daí, o capitalismo vira um inferno e você diz: "tá vendo como é um inferno?" Eu digo: é um inferno, sim; só que não existe o socialismo para substituí-lo. Então vai ficar cada vez mais infernal; é só isso que você vai conseguir.
E essa ditadura cientificista é a mesma coisa. Quer dizer: esse mundo perfeitamente administrado com que vocês sonham, ele não vai existir. Só que, para implantá-lo, você destrói a religião, destrói as tradições, destrói mais isso e mais aquilo, e todo mundo vira bandido --- que é mais ou menos o que já está acontecendo. (...)
Qual é a alternativa disso? Bom, é o Islam.
O Islam é uma forma de ordem tradicional. Então, quando esse mundo capitalista --- corroído até o fim pela idéia da ditadura cientificista --- [1:20] perder todos os seus valores, ele se tornará inerme perante o Islam. Lembro-me que vi, uma vez, um discurso do [René] Guénon, em que ele dizia que "o Islam entra com uma autoridade avassaladora". Mas é claro que entra! Não há mais autoridade nenhuma, só tem você, não tem concorrente!
Então, ele diz --- e eu já tinha dito isso aí --- que, no fim, a briga vai ser entre o projeto russo-chinês e o islâmico. É o que vai sobrar; porque o outro [ocidental]10 vai cair, embora ele tenha mais dinheiro.
Aluno: A respeito do conceito de Existência, nós lemos em Filosofia Concreta, de Mário Ferreira: 'Quando Suarez diz que ser é a aptidão para existir, não o define, não o delimita, mas apenas dá uma potência ao seu conteúdo, porque o que é, de certo modo, pode existir; isto é, pode ser fora de suas causas, poderia dar-se no pleno exercício do seu ser (...)'11. Poderemos dizer que o 'ser fora de suas causas' é o ser ainda não-causado, portanto apto a existir no ser em potência? (...)
Olavo: É exatamente isto o que o Lavelle está chamando de Existência. O que é Existência? É a possibilidade de criar, manifestar e tornar-se uma essência. Porque a única essência que nós temos quando nascemos é a essência da espécie humana --- não é a essência individual, não é a haecceitas.
A essência é a definição da espécie. E desta definição da espécie faz parte a propriedade de ter uma essência pessoal, de ter uma haecceitas. Só que essa haecceitas tem que ser criada mediante o exercício da liberdade. Portanto, nós podemos dizer: bom, é um ser em potência.
Então, acho que é mais ou menos a mesma coisa; dita, assim, com um vocabulário escolástico exato; a mesma coisa.
Aluno: (...) Seria essa a sua idéia em 'Existência e possibilidade', no livro A Filosofia e seu Inverso12?
Olavo: Certamente.
Aluno: A idéia de que não se pode tratar o Ser como um problema teórico, independente da presença de quem o interroga, não explica muito do que há de insuficiente nas discussões contemporâneas sobre a existência de Deus?
Olavo: Batata. Certamente.
Quer dizer: Sempre que o sujeito quer tratar dos problemas como se fosse uma coisa inteiramente objetiva e externa --- como se fosse um cineminha que ele está observando como se fosse o sujeito absoluto, fora do processo --- ele já falseou a coisa inteira!
Você tem que começar por mapear a sua própria posição. Por exemplo, vamos supor que você está perdido no deserto. Bom, você está perdido no deserto, mas quer mapeá-lo inteiro como se fosse Deus observando-o desde cima? Não dá, porque a única referência que você tem é a sua própria posição, imediata, dentro dele.
Essa aqui, pra mim, é uma exigência metodológica incontornável: começar, sempre, a análise de qualquer coisa mediante o exame e a confissão da minha própria posição existencial diante daquilo. Ou seja, antes de eu saber o que uma coisa é, preciso saber como ela chegou a mim, e onde ela entrou dentro do meu quadro de referências.
Então, isso quer dizer que a autoconsciência é condição para você ter consciência de qualquer outra coisa (não consciência imediata, consciência empírica; mas para você ter uma consciência intelectualizada de alguma coisa, tem que passar pela sua autoconsciência primeiro; quer dizer: "o que esta coisa é para mim? Onde estou eu?").
É a mesma coisa de um desenhista, quando vai observar uma coisa para ele copiar, em que pega o lápis para medir; ele está medindo em relação a o que? A um ponto-de-vista absoluto? Não, à posição dele no espaço. Ele é o ponto de referência. Então, onde está o ponto de fuga? Bom, o ponto de fuga está perfeitamente dentro do desenhista, e não em outro lugar. E outros pontos de fuga, possíveis e imagináveis, só são concebíveis em função deste.
Então, é por isso que digo que a Filosofia é a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência, e vice-versa. Ou seja, é na medida em que eu busco abranger o horizonte de conhecimento disponível na minha época e na minha cultura --- que nunca vou abranger totalmente, e sei que nunca vou ---, nessa mesma medida, unifico a minha consciência, de modo que ela tome uma posição responsável perante esse conjunto.
Ou seja, eu estou me criando como consciência, no mesmo instante em que estou tentando abranger e reduzir a uma unidade, racionalmente expressável, o conjunto dos conhecimentos disponíveis. É uma atividade que nunca se cumpre totalmente, por quê? Porque os conhecimentos disponíveis nunca param de aumentar, meu Deus do céu! Você não pode chegar a uma conclusão final; porque, mal você chegou a uma conclusão, já vem outro dado, e outro dado, e outro dado... E isso está mudando o tempo todo. Mudam não somente os conhecimentos, mas as modalidades da experiência humana --- que são infinitamente variáveis.
Então, é por isso que a Filosofia não pode chegar a "conclusões finais" --- não tem como chegar... A própria idéia de "conclusão final" não faz sentido! Você tem que chegar a conclusões que sejam razoáveis para a época e as situações em que você está. E, ali, você cria e dá um exemplo de máxima responsabilidade cognitiva, que vem junto com a idéia de máxima responsabilidade moral.
E note bem: máxima responsabilidade moral não quer dizer que você vai ser "santinho". Não é uma coisa que está na sua conduta, tal como ela possa ser medida por um padrão moral externo; mas está na coerência íntima, na busca da sua coerência, perante a consciência que você tem da sua liberdade e da presença do Ser ali.
Isso não tem nada que ver com a perfeição medida segundo um critério externo. Mas, sem esta, o critério externo não significa nada. É esta atitude, é esta busca, que dá a todo e qualquer critério externo o seu significado. Até mesmo os Dez Mandamentos só adquirem significado quando observados desde esse ângulo; fora disso, eles não querem dizer absolutamente nada.
Você tem lá: "não matar". Bom, não é pra matar nunca, ninguém? O sujeito está lá estrangulando o meu filho e eu não posso dar um tiro no desgraçado? Será que é isto? Ah, não!
Então, preciso analisar a coisa; analisar, desde o ponto de vista do quê? Da unidade do conhecimento na unidade da minha consciência, e vice-versa; senão, até os Dez Mandamentos não significam coisa nenhuma. E, daí, você diz: "ah! Eu vou cumprir tudo". Eu digo: você vai cumprir num sentido fetichista, totalmente alienado, louco; e vai achar que você é o padrão de moralidade.
Então, acho que estas coisas que, na primeira metade do século vinte, tantos filósofos entendiam --- isso, aqui, que o Lavelle estava falando não era nenhum bicho-de-sete-cabeças para ninguém ---, estas [coisas], na segunda metade do século vinte, desapareceram, em primeiro lugar, graças à ascensão da autoridade científica, que acredita --- sempre --- saber mais do que você. Hoje, por exemplo, quando você vai ao médico, ele não quer saber o que você está sentindo. Ele faz uma série de exames e diz: "ah, você está anormal, sob tal ou qual aspecto" --- aí eu digo --- "mas eu não estou sentindo nada, estou me sentido bem" --- e ele diz --- "Não, você está doente; nós temos que operá-lo".
Então, isso significa que o senso da existência concreta se perdeu, e foi substituído por modelos científicos, que são muito úteis para quem pratica aquela ciência; mas pra quem está embaixo é um problema.
Em segundo lugar, graças à ascensão da mídia. Esta se tornou, na segunda metade do século vinte, o juiz soberano da ciência, da filosofia, da religião, de todo conhecimento!
O que é um filósofo famoso, hoje? É um filósofo que os outros filósofos acham grande? Não, é um filósofo que a mídia acha grande. E o que entende a mídia de Filosofia? Absolutamente nada! O que os jornalistas entendem de Filosofia? Nada!
Num artigo que escrevi, na década de setenta, chamado "Imprensa e cultura"13, eu via que isso estava acontecendo e que isso ia se tornar norma universal. Então, lá, eu havia dito: bom, você tem uma alta cultura que é produzida, ou por indivíduos isolados, ou por universidades, institutos, na Igreja etc., e existe uma mídia popular que reflete a produção intelectual.
Acontece que a mídia vai se tornando, cada vez mais, o único canal pelo qual isso chega às pessoas e, portanto, ela se torna o juiz soberano de tudo.
Então, isso quer dizer que a alta cultura passa a ser julgada pela cabeça de jornalistas que não têm alta cultura nenhuma. E isso vai destruir tudo --- como, de fato, destruiu.
Então, as pessoas perguntam, por exemplo: ah, como é que um sujeito pode ser um grande filósofo ou um grande escritor se ele não aparece na Folha de S. Paulo, na mídia etc.? Esse é o critério hoje!
Aqui [nos Estados Unidos], se você não aparecer no The New York Times, você está ferrado. Agora, quando você vai perguntar para os especialistas, para os caras da área, a hierarquia de prestígio, deles, é completamente diferente. Até hoje, por exemplo, um cara como Eric Voegelin, ou Xavier Zubiri, ou Bernard Lonergan, não são figuras conhecidas popularmente. Então, eles são os maiores filósofos, no entender de quem é filósofo. Mas, no entender da população em geral, não; eles nem existem --- o que existe é Michel Foucault, é esse [Michel] Onfray (que, outro dia, alguém chamou de "erotômano analfabeto", que é o que ele é!), porque esses caras aparecem na mídia.
Então, a ascensão da ditadura científica e o progresso extraordinário da mídia, na segunda metade do século, acabaram com a alta cultura, e tornaram a filosofia da primeira metade do século --- que era brilhante --- uma coisa absolutamente incompreensível.
Então, eu é que vou buscar lá, e digo: olha, o que vocês estão perguntando, agora, já está respondido na filosofia da primeira metade, que foi absolutamente brilhante; é só buscar lá.
Muito bem. Então, por hoje é só. Muito obrigado, e até semana que vem, se Deus quiser.
Transcrição e Revisão: Athos Barbosa Lima
Revisão Final: Flávio Henrique Caetano
Footnotes
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Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/blog/archives/000009.html ↩
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Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/blog/archives/000007.html ↩
-
Disponível em: http://archive.org/details/esteticacomescie01crocuoft ↩
-
Disponível (Les différents modes d'existence) em: http://bookos.org/book/1244213/3e0476 ↩
-
"Quelqu'un qui soit, en moi, plus moi-même que moi" (Vers d'exil, 1912). Cf. Anthologie de la poésie catholique de Villon jusq'à nos jours, disponível em: http://archive.org/details/anthologiedelap00vall ↩
-
"Sobre a ontologia de Louis Lavelle: Notas extraídas do Prefácio de Philippe Perrot à Introduction à l'Ontologie", seleção e tradução de Olavo de Carvalho, disponível em: http://www.seminariodefilosofia.org/system/files/Sobre_a_ontologia_de_Louis_Lavelle.doc ↩
-
Cf. "A metafísica e os fundamentos da objetualidade", apostila do Seminário de Filosofia, disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/kant3.htm ↩
-
Ilibagiza, Immaculée. O menino que conheceu Jesus: Segatashya de Kibeho. Tradução de Rafael Guedes. Campinas, SP: Ecclesiae, 2013. ↩
-
Il suicidio della rivoluzione, Rusconi, Milano 1978 (reed. fr.: Gramsci ou "le suicide de la révolution," édition du Cerf, 2010). Textos seleccionados de Augusto Del Noce: http://www.humanitas.cl/web/index.php?option=com_content&view=article&id=1090&catid=145 ↩
-
Cf. CARVALHO, Olavo de; DUGIN, Alexandre. Os EUA e a Nova Ordem Mundial. Tradução de Giuliano Moraes. Campinas, SP: Vide Editorial, 2012, "Três projetos de poder em disputa", p. 45. Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/textos/110307debate.html ("... as forças históricas que hoje disputam o poder no mundo articulam-se em três projetos de dominação global, que vou denominar provisoriamente 'russo-chinês', 'ocidental' [às vezes chamado erroneamente 'anglo-americano'] e 'islâmico'.") ↩
-
Cf. Filosofia concreta, t. 1, "Argumentos correlatos a favor da tese", p. 40. (Tese 10 -- "'Alguma coisa há' não é apenas um ente de razão, mas um ente real-real") Disponível em: http://www.4shared.com/office/_h1gdqv-/Mrio_Ferreira_dos_Santos_-_Fil.html ↩
-
CARVALHO, Olavo de. A filosofia e seu inverso: e outros estudos. Campinas, SP: Vide Editorial, 2012, "Existência e possibilidade", pp. 109-112. Texto lido pelo professor Olavo de Carvalho na aula 54 do Curso Online de Filosofia, transmitida aos alunos no dia 17 de abril de 2010, disponível em: http://www.seminariodefilosofia.org/system/files/olavodecarvalho_Existenciaepossibilidade.pdf ↩
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Cf. "Imprensa e cultura, ou: Emprensando a cultura", in: CARVALHO, Olavo de. O imbecil coletivo I: atualidades inculturais brasileiras. 6ª ed. rev. São Paulo: É Realizações, 2006, pp. 383 ss. "(...) num pequeno trabalho publicado na década de 70, sob o título 'Imprensa e cultura', anunciei para breve o dia em que as páginas culturais dos jornais, em vez de refletir a atividade cultural, acabariam por moldá-la, rebaixando-a a um subproduto do jornalismo: a disputa entre o interesse jornalístico e o interesse cultural acabaria pela redução deste último ao primeiro. O trabalho suscitou algum debate epidérmico em faculdades de jornalismo, mas logo o assunto morreu. Tentei voltar a ele numa série de artigos encomendados pela revista Isto É*, que despertaram tanto interesse na redação que jamais chegaram a ser publicados. Outras matérias sobre o mesmo tema só foram aceitas por publicações especializadas --- como a excelente revista* Imprensa*, por exemplo --- e continuaram assim longe dos olhos do público geral."* (cf. "O cisco e a trave", id. ibid., pp. 370-371) ↩