Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula Nº 194
2 de março de 2013
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Temos aí dois textos --- espero que todos já os tenham em mãos ---, um é um texto que tirei de O Erro de Narciso, "O segredo da intimidade", e o outro é um breve parágrafo do livro De l'acte, que vamos comentar aqui. Vamos começar por este texto "O segredo da intimidade" que parece pelo menos ser o mais fácil dos dois.
Antes queria dar dois avisos: o primeiro, lembrar a vocês que, de 6 a 11 de maio, vou preferir o curso "Introdução à Filosofia de Louis Lavelle". Informações e inscrições no site www.olavodecarvalho.org. E também informar que o Rodrigo Gurgel vai proferir o curso "Leitura e Formação de Estilo", que vai começar em 11 de março. É um curso em 12 aulas. Vocês podem se informar pelo site www.cedetonline.com.br.
Vamos aqui dar uma comentada neste texto "O segredo da intimidade". Diz ele:
Narciso busca nele próprio o segredo do mundo, e é por isso que fracassa em enxergar-se. Esse segredo divino lhe é mais íntimo do que ele mesmo: é a intimidade do Ser puro. (...)
Por que é a intimidade do Ser puro? Porque o Ser puro é ato, ele não é uma coisa, não é um Ser no sentido estático, substantivo da coisa, mas é ato, quer dizer, é criatividade permanente. E, portanto, só podemos ter algum acesso a ele mediante o conhecimento de nós mesmos como força criadora, portanto não é um conhecimento de contemplação, um conhecimento de imagem; não é um conhecimento de tipo descritivo ou conceptual que você diga: "Eu sou assim, eu sou assado" etc. Daqui a pouco vamos aprofundar isso no outro texto.
(...) Dele não há imagem. Ele não habita essa fonte que se reflete no olhar de Narciso e que retorna ao seu mistério uma vez abolido esse olhar. Ele não se mostra senão a um olhar puramente espiritual, para além de todas as imagens e de todos os espelhos.
Essas experiências então têm duas fases, ou duas etapas, pelo menos. A primeira é apreender-se a si mesmo como força agente criadora. A segunda é perceber que essa força agente criadora, embora seja você mesmo, a possibilidade dela não é criada por você mesmo. Ou seja, você é uma força criadora, mas essa força criadora só existe em função do ato que está subentendido em todo o universo. Então, quer dizer, o único contato que temos com este ato é através do nosso próprio ato criador. Então, primeiro, perceber o seu eu, depois, perceber o que está por baixo dele. Se bem que esta percepção de algum modo é instantânea para algumas pessoas. Embora seja instantânea, isto não quer dizer que você tome consciência dela imediatamente.
Quando ele diz "para além de todas as imagens e de todos os espelhos": como é que posso tomar consciência de uma coisa em mim que não posso visualizar, que não posso nem descrever nem conceptualizar de maneira alguma? Isto quer dizer que você só pode tomar consciência dela no próprio ato. É assim: quando você está correndo, como sabe que está correndo? Você olhou você correndo? Não, é o próprio ato que o informa sobre ele. Portanto, este ato criador, este exercício da liberdade humana, não pode ser representado, ele só pode ser vivenciado. E você toma consciência dele na hora em que você o está vivenciando. É a própria força criadora que toma consciência de si própria no instante em que age.
Tudo aquilo que no mundo posso imaginar de mais nobre e de mais belo, tudo o que mostra para mim a marca do valor, e que posso amar, é isso que é a minha intimidade mais profunda; e, fugindo dela sob o pretexto de que sou incapaz ou indigno dela, é de mim mesmo que fujo. As coisas mais superficiais e as mais baixas, que me atraem ou que me retêm, não são senão uma distração que me afasta de mim, não propriamente porque não posso suportar o espetáculo daquilo que sou, mas porque não tenho a coragem de exercer as forças de que disponho, nem de responder às exigências que encontro em mim.
Você veja que, na vida moderna --- e particularmente no Brasil, onde isso é mais agudo ainda --- existe uma tendência muito forte de tentar descobrir a intimidade da pessoa, escavando as suas misérias, as suas fraquezas, os seus complexos, os seus medos, os seus preconceitos etc., e achando que aí está o segredo do cara. Acontece que esses elementos negativos, esses elementos de peso, estão presentes de algum modo em todas as pessoas, eles são mais ou menos iguais em todo mundo, quer dizer, ainda não se inventou um complexo novo, também um mau instinto novo. Tudo isso está presente igualmente em todas as pessoas, e quanto mais você escava mais vai ver que as pessoas são iguais. Portanto, esses elementos não definem a individualidade do sujeito, eles definem exatamente o contrário: tudo aquilo que nele resiste à individualidade.
É claro que, em algumas pessoas, esses elementos de passividade e de peso podem predominar a ponto de esmagar completamente a individualidade, pode acontecer isto. Mas, nem aí isto quer dizer que essa individualidade será caracterizada por esses elementos, ela será caracterizada pela força criadora que foi esmagada e derrotada. Então essa pessoa se define mais ou menos como uma possibilidade que não foi, é a famosa "Vida inteira que poderia ter sido e que não foi". Quando o sujeito fracassa, o que o define não é o fracasso, mas aquilo que nele fracassou. Se não há um projeto, não há uma possibilidade superior, não tem como falar de fracasso. Quer dizer que mesmo no fracasso, mesmo no caso de total esmagamento da personalidade real pelos elementos opositivos ou pelos elementos de peso e de resistência, de passividade, mesmo nesses casos, não são esses elementos que definem e distinguem aquele indivíduo. Para compreendê-lo, então será preciso procurar qual é o elemento de liberdade criadora que ficou para trás, que foi deixado para trás e que foi esmagado --- aí, sim, você vai compreender do que se trata.
Isto quer dizer que o eu, segundo Lavelle, não é uma coisa pronta, não é um objeto, ele nunca se apresenta a você como um objeto. Ele só pode ser compreendido como um ato, e, portanto, como uma coisa que está se fazendo, e que está se fazendo o tempo todo e que está indo em direção a alguma coisa. E esta coisa em direção a qual o eu está indo, isto é que é o eu. Portanto, aquilo que foi escolhido pelo indivíduo como o que tem a marca do valor, aquilo que ele pode amar, aquilo que pode imaginar de mais nobre e de mais belo --- é isto que realmente vai defini-lo. Evidentemente, a situação dele não é definida só por isso, é definida por isso, pelos fatores opositivos e, por assim dizer, pela resultante que se forma entre essas duas linhas de fatores num dado momento. Em suma: conhecer uma pessoa é conhecer o que ela quer, e o que ela quer, no entender dela, de mais alto e de mais nobre. É somente isto que a diferencia, e é somente aí que você tem uma régua para medir o estado atual da pessoa: pela sua maior ou menor intensidade de realização desse ideal, por assim dizer --- a palavra não é muito adequada, mas fica assim por enquanto.
Não podemos descobrir que nosso ser reside nessa intimidade secreta onde ninguém penetra senão nós mesmos, sem apelar à introspecção para conhecê-la. (...)
Então o método para conhecer é a introspecção.
(...) Mas o eu não é senão uma possibilidade que se realiza; ele não está jamais feito; ele não cessa de fazer-se. É por isso que há duas introspecções: uma, que é a pior das coisas, e que me mostra em mim todos aqueles estados momentâneos em que não cesso de me comprazer; a outra, que é a melhor, e que me torna atento a uma atividade que me pertence, a potências que eu [0:10] desperto e que depende de mim colocar em ação, a valores que busco reconhecer a fim de lhes dar um corpo.
Quando ele fala do tipo de introspecção que mostra em mim esses estados momentâneos nos quais me comprazo, não quer dizer que são somente aqueles estados que me dão prazer, ao contrário: a contemplação dos meus erros, dos meus pecados, dos meus supostos defeitos, daquelas partes vergonhosas que não quero mostrar a ninguém --- tudo isso está incluído aqui. É este tipo de introspeção que ele diz que não serve para coisa nenhuma. Ele diz que a introspecção só vale quando mostra, em você, as potências que você desperta, as forças que você desperta por sua própria atividade criadora e pelo exercício da sua liberdade. Então é isso que você tem de buscar em você. O conhecimento dos seus defeitos, dos seus pecados, etc. e etc., tudo isto é de uma ociosidade monumental.
Se você disser: "Então por que dizem para nós que o Espírito Santo revela os nossos pecados? Por que devemos conhecer os nossos pecados e nos arrepender deles?". Eu digo: Meu filho, quem tem de despertar isso é o Espírito Santo. E o que é o Espírito Santo senão o próprio ato do Ser puro que está subentendido em tudo o que existe? Não se trata de você ficar rebuscando os seus pecados, e muito menos de você dar a isso o nome de exame de consciência. Trata-se de você buscar a única coisa necessária, que é exatamente esse segundo tipo de introspecção que ele fala, que é aquele que mostra para você a sua liberdade em ato. No instante em que você se instala aí, então aí você está ligado realmente com o ato do Ser puro, e neste instante você pode começar a ter o discernimento de saber onde foi realmente que você errou. Mas, só em função do exercício da sua liberdade.
Preste bem atenção: o que é o pecado, o que é o erro? A rigor é aquilo que se opõe a esta liberdade e aquilo que se opõe ao ato do Ser puro que está criando a sua liberdade naquele mesmo momento --- é isto que é o pecado. Mas, socialmente falando, e na cultura em geral, o pecado é aquilo que se opõe a um conjunto de regrinhas que você aprendeu ou que se opõe àquilo que você acha que é o julgamento do seu grupo de referência, ou o julgamento do padre, ou o julgamento do Olavo, ou o julgamento de quem quer que seja. Então você está colocando o pecado e a graça no mesmo plano: aqui está o pecado, que é o errado, e aqui está a graça, que é o certo. Mas acontece que eles não estão no mesmo plano, você não tem como compará-los, não tem aqui a tabelinha do certo e do errado. Existe, por um lado, a sua liberdade criadora que é a própria presença de Deus dentro de você; e existe aquilo que se opõe a ela, seja pela atração de prazeres, tentações etc., seja pelo efeito do remorso, que é o ódio que você tem a si mesmo, o desprezo que você tem a si mesmo etc. E, evidentemente, os desejos entram em luta contra essas emoções negativas, mas estão ambos no mesmo plano, eles mesmos fazem parte apenas do que poderíamos chamar o eu descritivo, ou seja, é o eu como coisa. E se você entra nesse jogo, você está liquidado, você está acabado.
Esses dias eu assisti àquele vídeo sobre Garabandal, a visão que as meninas tiveram em Garabandal. Elas dizem que num dia qualquer, num dia desses, vai acontecer um imenso acontecimento de ordem cósmica, e neste instante será, para cada pessoa, como se o mundo tivesse parado, e ela estivesse absolutamente sozinha diante de Deus e dos seus pecados. Quer dizer, elas vão saber os seus pecados naquele momento. Eu digo: Mas será que não sei os meus pecados? Não, não sei, não os conheço verdadeiramente por quê? Não tenho a menor idéia do efeito que eles desencadearam em volta, não sei realmente o que eu fiz. Então, se precisa um acontecimento desta magnitude para me ver sozinho diante de Deus, quer dizer que isso não é fácil. Portanto, ficar escarafunchando os seus pecados não vai resolver coisa nenhuma. Você tem de se aproximar desse núcleo criador que é você, e ali observar e sentir, primeiro, a sua liberdade criadora; segundo, a ação divina que instaura essa liberdade para você. Porque você a exerce, mas não é você que a cria, você se aproxima dela. De certo modo é você que a cria, mas não cria a possibilidade dela.
Você veja que a liberdade criadora do ser humano não tem como ser explicada por nenhuma causa externa, porque ela é causa sui, ela é a única causa de si mesma. Mas daí você pode perguntar: Mas como isso é possível? Se a liberdade que estou exercendo neste momento fosse inteiramente a causa de si mesma, ela teria de ser a origem de si mesma, então eu teria de ter existido eternamente --- o que evidentemente sei que não aconteceu, sei que nasci no dia tal, a tantas horas, etc. e etc. Isto quer dizer que a minha liberdade expressa uma liberdade que preexiste a ela, que preexiste eternamente, que é a liberdade do próprio Ser criador, é a liberdade divina. Então, o exercício da nossa liberdade nos coloca imediatamente em contato com a sua raiz ontológica, que é a liberdade divina. E aí você tem, pela primeira vez, não a revelação total dos seus pecados, como prometido em Garabandal, mas pelo menos você tem uma consciência mais clara do que são os seus pecados e do que não é, do que foi seu pecado e do que não foi. Você tem uma visão mais clara porque está olhando isso com os olhos de Deus e não com os seus, você está se colocando diante do julgamento divino, da opinião divina e não da sua opinião.
Agora, o que as pessoas fazem normalmente, quando elas procuram os seus pecados e fazem o que elas chamam de exame de consciência: elas estão apenas se julgando a si próprias diante do seu próprio tribunal, nivelando, portanto, o pecado e a graça como se fossem partes da personalidade delas. E é fácil entender que isso é uma tremenda blasfêmia. O que está escrito na Bíblia? "Buscai primeiro o reino de Deus", não falou "Buscai primeiro os seus pecados". Se você não está buscando primeiro o reino de Deus, se não participa dele de alguma maneira, o que você vai fazer com os seus pecados? Então o esforço tem de ir na direção do conhecimento da força criadora, e não dos seus defeitos, e não dos seus pecados. E é assim também que você tem de olhar os outros. Os outros seres humanos que você conhece só são humanos porque eles têm essa liberdade, não é porque eles pertencem a uma mesma espécie biológica.
Aliás, não precisamos ser evolucionistas para entender que os limites entre as espécies biológicas não são muito nítidos. Então não é a identidade de espécie biológica que nos demarca, o que nos demarca é o exercício dessa liberdade criadora que temos e nenhum animal tem por mais "evoluído" que ele seja. É isto que você tem de olhar nas pessoas. E essa liberdade criadora aparece nelas pelo que chamaríamos os seus ideais, por aquilo que elas querem ser, por aquilo que elas concebem de mais alto e de mais nobre e que estão tentando ser. É só aí que você vai conhecer a pessoa e saber onde ela está: ela vai estar numa determinada fase, num determinado capítulo da sua luta para incorporar esses valores e para realizá-los aonde? No mundo. E realizá-los no mundo é o quê? É realizá-los para as outras pessoas. Ou seja, é o que elas estão tentando dar aos seus semelhantes que as caracteriza e que as diferenciam. E é só por isto que elas podem ser medidas.
Então se podemos falar de defeitos ou falhas do indivíduo, são só aquelas fraquezas, aqueles elementos passivos que se opõem à sua realização. As fraquezas e pecados não são elementos substantivos presentes, que estão como está presente fisicamente a cor ou a estatura do camarada. Isto quer dizer que conhecer os complexos de infância do sujeito não ajuda a conhecê-lo de maneira alguma, porque isso seria [0:20] a mesma coisa que querer avaliar a qualidade de um sapato pela pedra onde ele tropeçou --- não faz o menor sentido; ou julgar o automóvel pelo prego que lhe furou o pneu. No Brasil é endêmico procurar intenções inconscientes, fraquezas inconscientes etc. Isto é um vício de brasileiro, isso é uma espécie de masturbação ao contrário. Na masturbação pelo menos o sujeito tem um objetivo um pouco mais nobre, que é o seu contentamento; agora, isso aí não é uma masturbação para contentar você, é só para descontentar o outro. E tem gente que acho isso uma delícia. Aqui nos EUA existe também, mas não é tão maníaco quanto no Brasil. Então o seguinte: vamos parar é já.
Sobretudo quando você discute com alguma pessoa que lhe parece desprezível, você tem de lembrar que ela só pode ser desprezível porque ela apostou na parte pior dela, em vez de exercer a sua liberdade criadora. Ela é desprezível não em comparação com a sua digníssima pessoa, mas em comparação com o que ela poderia ser e deveria ser, portanto em comparação com as qualidades que estão lá embutidas. Se você prestar atenção nisso, isso dará para você uma orientação de qual é o tom com que você deve falar com essas pessoas. Porque, no Brasil, é a coisa mais comum as pessoas falarem dos outros num tom de desprezo, num tom de superioridade, tentando, por assim dizer, criar um hierarquia por força das meras palavras: eu falo de você com mais desprezo, então você está abaixo de mim. E isto é evidentemente uma prestidigitação idiota, é mágica besta, e não funciona absolutamente.
Você deve falar com essas pessoas num tom que as machuque, mas que lembra a elas tudo aquilo que elas poderiam estar sendo e que elas não são; que as machuque não perante você, mas machuque perante o seu juiz interior, que é a sua liberdade abandonada e desprezada em troca de besteira. Claro que não é fácil você aprender a falar nesse tom, mas vai exercitando que um dia você vai conseguir. Você vai ver que tudo o que eu falo dos fulanos é para machucá-los, mas não para fazê-los se sentir inferiores a mim. Por que o que adianta medi-los por mim? Eles não podem ser eu. Mas eu vou lá passar um pito no Mino Carta: o Mino Carta nunca vai poder ser o Olavo de Carvalho, ele só vai poder ser o Mino Carta melhor, portanto mostrar para ele que sou superior, que vantagem Maria leva? Nenhuma. Você tem de mostrar ao cara: "Olha aqui tudo o que você poderia ser, e você não está sendo".
Isto dói, dói muito mais do que essa afetação de superioridade, porque esta afetação de superioridade é respondida com outra igual e contrária. O sujeito: "Ah, você acha que é superior a mim, mas eu acho que sou superior a você", pronto, acabou. Agora, eu não posso dizer: "Eu sou superior à minha parte superior", isto ninguém pode dizer. Então você tem de fazer o sujeito, naquele instante, lembrar o que ele poderia estar sendo e que ele de alguma maneira traiu ou abandonou. Então você só vai poder criticar o cara se você percebe o que existe de elevado e nobre nele, e daí você pode cobrar do sujeito isto. Claro que você não vai falar essas coisas literalmente como eu estou falando, mas você tem de articular a sua crítica ou até a sua piada de maneira a evocar dentro do sujeito isso. Note bem que, no primeiro caso, se você fizer afetação de superioridade, o neguinho vai desprezá-lo em troca. Agora, se você fizer isso com ele, acontecerá o seguinte: num primeiro momento, ele vai odiá-lo, mas odiar muito porque você o humilhou até o fundo, e depois, com o tempo, ele vai começar a pensar. E um dia, se Deus quiser, ele virá lhe agradecer.
Eu me lembro, quando estava no ginásio, tinha um cidadão que estava fazendo lá umas loucuras, e eu falei: "Falar com esse cara não vai adiantar, eu vou tomar outra providência". Fui lá e dei uns tapas na cara dele. Ele não sabe por que levou os tapas. Você se lembra quando foi lá em casa esse rapaz que era um médico? Na década de 80, eu estava com 40 e tantos anos, este rapaz, que era meu colega no ginásio, foi lá em casa dizer: "Você não sabe o bem que me fez, porque eu percebi a loucura onde eu estava entrando". Eu falei: "Ah, entendeu finalmente! Ainda bem". Porque na hora ele podia ter me devolvidos os tapas, só não devolveu porque ficou meio perturbado. Eu falei: "Ainda bem que na hora você não entendeu nada". Essas coisas têm um efeito curativo nas pessoas. Nem sempre, é claro: tem alguns que são empedernidos, mais teimosos.
Isto quer dizer que você deve falar a esses indivíduos em nome do que existe de belo, de grande, de nobre neles, mas fazendo de conta que você está fazendo ao contrário, que é só uma gozação para humilhá-los em público. Não é para humilhá-los em público, é perante eles mesmos. Claro que isso aqui não dá uma receita estilística para você sempre poder acertar, isso não é fácil, mas vão pensando e vão treinando, e vocês vão ver que, a partir de um certo momento, as suas palavras doerão muito mais do que qualquer afetação de superioridade que você faça. Mesmo porque a afetação de superioridade é perigosa, porque, tão logo você se fez de superior, você se acha inferior. Isso é batata! Pelo menos comigo acontece: eu vou lá, arroto importância, e depois digo: "Quem sou eu?". Tem de sair dessa confrontação teatral, porque esse negócio do pecado e da graça nivelados fazem parte de um teatro interior, evidentemente: só existe no seu teatro mental, não existe objetivamente. A afetação de superioridade só existe também no seu teatro mental. Mas acontece que a sua palavra, que se dirige ao indivíduo que está degradado, mas que fala a ele em nome do que existe de nobre e de bom nele, isto existe porque isto é ele, isto é a estrutura dele como é a sua.
Há quase trinta anos, eu escrevi uma apostila chamada "O abandono dos ideais". Eu não conhecia bem a filosofia do Louis Lavelle naquele tempo, tinha lido alguma coisa, mas eu usei a terminologia de um psicólogo, que é o Paul Diel, eram os termos de que eu dispunha naquele momento. Mas se vocês lerem aquilo, descontando o tempo transcorrido e descontando a minha então inabilidade de dizer o que eu queria dizer, vocês vão ver que é exatamente disto que se trata: o ideal do sujeito é que é ele, a situação atual ou o seu passado são elementos que lhe foram entregues, ou pela hereditariedade, ou pelo meio social etc.
Esta necessidade que os brasileiros têm de se fazer superior é epidemia nacional, todo mundo fala do outro num tom de quem está falando com um mosquito, é Júpiter do alto do Olimpo falando com um mosquito --- todo mundo fala assim. E isto é uma coisa que vocês têm de largar mesmo, tem de cortar isso de uma vez para sempre, falar: Nunca, nunca, nunca vou me fazer de superior a ninguém. Posso bater numa pessoa, posso humilhar uma pessoa, posso ralhar com a pessoa, posso fazer tudo isso, mas não vou me fazer de superior, porque daí, em primeiro lugar, eu é que estou me colocando em julgamento, eu estou pedindo para ele a opinião que ele tem sobre mim. E com isso não o estou ajudando em nada e não o estou atingindo, não o estou sequer ferindo. Não estou falando para vocês serem bonzinhos, não. Essas coisas às vezes são realmente ferinas, elas são feitas para doer. Só que é para doer como se fosse uma punção feita por [0:30] um médico num abcesso, e não simplesmente uma troca de tapas entre dois bebês no berçário ou dois velhinhos no asilo.
Vamos lá. "As potências que eu desperto", minhas próprias potências, minhas próprias forças que eu não sabia que tinha e que eu desperto para lhes dar um corpo no mundo. E este corpo é o quê? É constituído das ações que eu faço para os outros.
Pois a consciência não é uma luz que aclara, sem mudá-la, uma realidade preexistente, (...)
Isto aqui é básico. E este foi o grande erro de toda a escola fenomenológica, que compara a consciência a uma luz que você lança sobre um objeto. Agora, como já dizia Kierkegaard, muito antes do Lavelle: "Antes da verdade, existe o desejo da verdade". E a consciência, antes de ser a luz que aclara o objeto, é o desejo de claridade e é o desejo da verdade. Isto quer dizer que não se trata de uma simples projeção de uma luz que capta um objeto que já está lá esperando que você o conheça, não: é uma luz que desperta naquele objeto potências que estão nele e que ele mesmo talvez ignorasse.
Aqueles que são alunos mais velhos, que estão no meu curso há mais tempo, talvez se lembrem das aulas que dei sobre o círculo de latência, onde eu disse que conhecer um ser não é conhecer só a forma que ele apresenta no momento, por mais exatidão descritiva que exista nisso aí, é conhecer o que ele pode ser no instante seguinte, é conhecer aquilo que está latente nele, que ainda não está patente --- latente é o contrário de patente. Então o exemplo que eu dei do cachorro: ele está ali deitado, isto está patente, estou vendo que ele está deitado; mas se não sei que ele pode latir, que ele pode rosnar, que ele pode abanar o rabo, que ele pode vir até mim ou sair correndo, se não sei este potencial que está nele, eu não sei que é um cachorro, pode ser um cachorro empalhado. Não há diferença entre um cachorro e um cachorro empalhado.
Aristóteles já dizia que uma mão que foi cortada não tem mais a forma, quer dizer, a lei interna de mão: ela tem apenas o formato externo de mão, mas não a verdadeira forma. Quando olhamos o objeto, captamos o quê? A sua forma inteligível, e esta forma inteligível não é uma forma estática, é um feixe de potências. E é evidente que, quando vejo essas potências, de algum modo eu as desperto. O exemplo do cachorro é muito característico, porque o cachorro reage às pessoas de acordo com o que ele pensa que elas estão pensando dele. A primeira idéia que você tem quando vê um cachorro é fundamental para determinar a reação que ele teve. Se, no primeiro momento, você o vê como uma coisa ameaçadora, ele vai responder imediatamente nesta base; agora, se você tem um instinto louco de amor por cachorro, como eu mesmo tenho, você só vai ser atacado por um cachorro se ele for muito doido.
Uma vez eu fui atacado por um cachorro, mas ele atacava todo mundo, atacou a própria dona, mordeu a cara dela e teve de ser abatido. Este foi o único cachorro que me atacou, o resto jamais. Pode ser pitbull, pode ser qualquer coisa, o cachorro, de alguma maneira, percebe que o que eu percebo nele é um objeto de amor, é uma coisa para ser afagada, protegida, etc., ele sente isto. E mesmo que seja um cachorro grande, feroz, ele busca proteção, então ele fala: "Chegou aí o meu padrinho". Então com cachorro eu não tenho problema, com seres humanos às vezes tenho.
Repetindo:
Pois a consciência não é uma luz que aclara, sem mudá-la, uma realidade preexistente, mas uma atividade que se interroga sobre sua decisão e que tem entre suas mãos o meu próprio destino. (...)
E a minha consciência se interroga sobre a sua própria decisão --- é o desejo da verdade de que falava Kierkegaard --- e que tem entre suas mãos o meu próprio destino: eu estou decidindo o que eu vou ser. No instante em que a minha consciência está operando, está em ação, eu estou decidindo o que eu vou ser. Quer dizer, é um processo muito mais complexo do que a mera contemplação de uma forma ou de um objeto. Claro, a contemplação da forma do objeto está ali, está dada também, é um dos elementos, mas é um elemento de nada dentro de um conjunto que é imensamente complexo, que implica a percepção do círculo de latência do objeto, implica a auto-percepção do meu círculo de latência --- o que eu vou fazer no instante seguinte ---, implica toda uma dialética, uma complexidade. Isso tudo está dado em qualquer percepção de qualquer coisa.
É um verdadeiro milagre que a consciência humana seja capaz de perceber tudo isso, e, no entanto, qualquer idiota percebe. Agora, ele não percebe que percebeu, ou seja, ele não é capaz de refletir sobre o ato. O ato todo está dado, passa, e ele esqueceu, já pensa em outra coisa. Mas a complexidade desse ato de percepção é a mesma num gênio ou num idiota; agora, a capacidade de reflexão não é a mesma. A reflexão implica então a rememoração: deixa ver o que aconteceu, deixa eu fazer uma introspecção para ver o que eu fiz. Este exame de coisas imateriais que se passaram na sua mente não é igualmente fácil para todo mundo, precisa de um certo treino. E é justamente porque não é fácil que a introspecção tende a tomar aquele rumo destrutivo de que falou o Lavelle agora mesmo, porque esse é automático. As coisas que me atormentam, que me humilham ou, ao contrário, que me excitam, que se tornam objeto de desejo, elas vêm à minha memória automaticamente, eu não preciso fazer nada. Agora, a verdadeira introspeção requer uma decisão, um ato de vontade, e requer um rastreamento dos seus estados interiores que é um pouco trabalhoso, e é por isso que a maioria não faz. E os filósofos, quando fazem, muitas vezes erram também. Não é fácil fazer isso.
(...) "Conhece-te a ti mesmo", disse Sócrates, como se já estivesse aconselhando Narciso. Mas Sócrates bem sabia que aquele que se conhece não cessa de se aprofundar e de se ultrapassar. (...)
Esta mesma ultrapassagem é que sou eu naquele momento. E a ultrapassagem do meu estado não pode ser percebida como estado, mas apenas como ato executivo no qual estou envolvido nesse mesmo momento.
(...) Se os antigos diziam "conhece-te" e os cristãos "esquece-te", é que eles não falam do mesmo eu: e não se pode conhecer um deles senão com a condição de esquecer o outro.
Esquece para conhecer o quê? Este eu que você está buscando ser, para você poder exteriorizá-lo. E o que é o eu que é para esquecer? O eu constituído da parte passiva, dos complexos, dos pecados, etc.
A intimidade é o interior que escapa a todos os olhares, mas é também o fundo último do real, para além do qual não se pode ir, e que não se atinge, sem dúvida, senão após ter atravessado todas as camadas superficiais de que, em turnos, o recobriram a vaidade, a facilidade ou o hábito. (...)
Não pense que, quando fala vaidade, facilidade ou hábito, está se referindo somente a coisas prazerosas que você busca, não. O hábito pode ser um hábito extremamente negativo, depressivo, de olhar os seus defeitos, as suas deficiências etc.
(...) É o ponto mesmo onde as coisas tomam raiz, o lugar de todas as origens (...)
Esta expressão é muito importante, "o lugar de todas as origens". [0:40] Quer dizer, é ali que se origina aquilo que eu sou, que estou me criando naquele mesmo momento, e é ali que tomo contato com a origem de todas as coisas que é o ato divino que sustenta este mundo.
(...) é o lugar de todas as origens e de todos os nascimentos, a fonte e o foco, a intenção e o sentido.
A descoberta da intimidade é coisa difícil e, uma vez que a encontramos, ainda é preciso estabelecer-nos nela. (...)
Quer dizer, você tem essa experiência uma vez, depois esquece e volta aos seus automatismos de sempre. Então é preciso voltar e voltar e voltar, como ele diz naquele famoso texto do livro A Intimidade Espiritual, sobre o qual eu dei um curso inteiro, que ele diz que há momentos em que parece que você percebe toda a estrutura e a ordem da sua vida, e percebe o sentido daquilo. E ele diz que a sabedoria consiste em voltar a esses momentos de novo, e de novo, e de novo, e saber que é lá mesmo que você está.
(...) Mas é nela, no entanto, que encontramos o princípio da nossa força e a cura de todos os nossos males. (...)
Ou seja, se você não é capaz de se vivenciar a si mesmo como causa, como força criadora, como liberdade em pleno exercício, nada tem conserto em você, porque você está apenas dentro do teatro mental, confrontando coisas que estão todas no mesmo nível, das quais umas você acha que são ruins, outras você acha que são boas, depois você muda e assim por diante. Quer dizer, você está dentro de uma prisão mental. Lembre-se que eu escrevi até num artigo, uns dias atrás, que o espírito é aquilo que chega até nós pelo pensamento, mas que não está contido no pensamento, é uma coisa que está para além do pensamento. Você vê que esse exercício da liberdade é uma coisa que estamos pensando, estamos falando disso e, através do que estou falando, vocês podem mais ou menos ter uma idéia do que se trata. Mas você entende que a realidade dessa liberdade não é pensamento, é algo que está para além do pensamento, é algo que está por baixo de todos os pensamentos e que está gerando os pensamentos, é a fonte dos pensamentos, não é por sua vez um pensamento. Se ela fosse por sua vez um pensamento, então só existiria pensamento no mundo, e cairíamos inteiramente no idealismo subjetivo.
(...) É porque a ignoram que tantos homens buscam a distração (...)
No sentido pascaliano do divertimento, divertissement.
(...) ou crêem poder reformar o mundo por fora. (...)
Então é evidente que existem dois tipos de ação: uma que se decide inteiramente na esfera do mental, quer dizer, no confronto entre forças do mesmo nível e do mesmo plano; e outra que vem da raiz. E é evidente que, a longo prazo, somente esta deixa marcas, a outra passa, porque é da sua própria natureza passar. Mesmo que faça um agito dos diabos, nada sobra no fim. Pode sobrar o quê? Desengano, tristeza, prejuízo, dano, sofrimento, má recordações, é só isso que vai sobrar. Isto quer dizer que se não houver essa verdadeira força interior que vem da consciência da liberdade, da consciência da sua força criadora, tudo o que você faz é como agitar a superfície de água: não está acontecendo nada. A própria ânsia de agir que temos advém da incompreensão do que é a verdadeira fonte da ação. A fonte da ação humana é um ato que está mais profundo nela e que corresponde em nós à ação divina e que é, como diz ele, "o lugar de todas as origens": tudo se origina ali.
(...) Mas aquele que soube penetrar na intimidade não aceita mais ser expulso dela: e, para ele, todos os prestígios da distração e da ação exterior se encontram abolidos.
A intimidade é realmente, como com freqüência se crê, o último reduto da solidão. (...)
Isto quer dizer que você só vai perceber isso dentro da sua própria solidão, ninguém vai poder mostrar isso para você.
(...) Mas basta que ela se nos revele, para que a solidão cesse. Ela revela-nos um mundo que está em nós, mas no qual todos os seres podem ser recebidos. (...)
Por quê? Porque todos os seres têm esta mesma liberdade interior, todos eles têm raiz no mesmo ato divino e todos eles estão se criando a cada momento. Então na hora que você percebeu isso em você, você começa a perceber nos outros também.
(...) Pode no entanto nascer a suspeita de que estamos ainda sozinhos e de que este mundo não passa de uma ilha de sonho. Mas, que um outro ser entre aí de repente conosco, e esse sonho se realiza, e essa ilha é o continente: (...)
Ou seja, a primeira vez que você compartilhou essa experiência com alguém, acaba a solidão na mesma hora.
(...) Ela revela-nos que o nosso mundo mais secreto, que pensávamos ser tão frágil, é um mundo comum a todos, (...)
Na hora que você penetrou no mais fundo da sua intimidade, que é o foco dessa força criadora, você descobriu o mundo onde todo mundo está, porque isto é esta a natureza do ser humano, e todos têm isso.
(...) o único que não é uma aparência, (...)
Note bem: tudo quanto é coisa, ente, estado, situação, é aparência. A verdade o que é? É o ato. É claro que existem seres que duram um certo tempo e, então, parece que a forma estática deles é o seu verdadeiro ser. Por exemplo, eu olho aqui, tem uma estante na parede, ela está aí faz anos, então eu acho que essa aparência é o ato. Eu digo: Mas de onde saiu essa madeira? Ela veio parar aí sozinha? Não, houve uma árvore que nasceu de uma semente, que nasceu de outra árvore etc., tudo isso um processo de milênios; e daí houve uma ação humana que cortou essa árvore, fez tábua etc.; e outra ação humana que construiu a estante. Esses atos estão por baixo dessa aparência. Você pode fazer isso como exercício: toda e qualquer aparência estática, toda a forma que esteja presente para você, existe um ato por baixo dela, e o ato é que é a verdadeira realidade. As coisas e seres são apenas a aparência que elas têm neste momento, assim como cada um de nós também. Estou olhando as pessoas, elas parecem ser isso que estou vendo, mas elas tiveram sempre essa idade, estiveram sempre aí? Não, tem todo um processo atrás.
(...) é um mundo comum a todos, o único que não é uma aparência, mas um absoluto presente em nós, aberto diante de nós, e no qual somos chamados a viver.
A intimidade é, portanto, individual e universal ao mesmo tempo. A intimidade que creio ter comigo mesmo não se revela senão na intimidade da minha própria comunicação com um outro. (...)
Para quantas pessoas estou falando agora? Um montão de gente. Todo mundo está reconhecendo que com elas é exatamente assim. Então este mundo interior meu não é interior meu, é de todo mundo. Qualquer pessoa que você diga essas coisas vai acabar entendendo, mais dia menos dia, que é assim. E vai perceber isso aonde? Nela mesma, porque não tem como observar isso em mim.
(...) E toda intimidade é recíproca. O uso mesmo da palavra confirma-o. Permanecerei separado de mim mesmo enquanto não puder entregar o que sou e, entregando-o, descobri-lo.
É na hora que entrego isso a um outro que isso se torna real para mim, como efeito da minha ação.
Aquele que entrega sua intimidade não fala mais de si, mas de um universo espiritual que ele traz em si e que é o mesmo para todos. Ele não penetra aí senão com uma espécie de tremor. As almas mais comuns não atravessam o portal desse universo. As mais baixas fogem dele e buscam aviltá-lo: é que o ser verdadeiro está lá, e não em outra parte; mas elas não sentem por ele senão desprezo e ódio.
Por que sente ódio do ser verdadeiro? Porque [0:50] estão vivendo apenas na aparência, estão vivendo apenas na superfície, e sentem a sua própria fragilidade, sentem a sua própria evanescência. E o contato com o ser verdadeiro lhes traz o quê? A imagem da morte, a morte delas.
Eu vou fazer um intervalinho. Na segunda parte, em vez de responder as perguntas, eu vou comentar o segundo texto que está aqui. Depois, se der tempo, respondemos às perguntas.
Aqui temos um segundo texto, que é bem mais complexo do que o primeiro e que pode servir para vocês avaliarem a diferença de estilo entre as obras de metafísica, da série Dialética do Eterno Presente e A Presença Total, e os livros que ele chamava de obras morais, como o próprio Erro de Narciso, que são obras aparentemente mais fáceis, mas, quando você presta um pouco de atenção, vê que toda essa metafísica está subentendida lá e que de fato esses livros não serão bem compreendidos se tomados isoladamente.
O parágrafo diz o seguinte:
A experiência de nós mesmos (1) mostra-nos que o ato que nos é próprio (2) se vê ultrapassado (3) por efeitos que dependem dele, porque ele os quis (4), e que não dependem dele, porque resultam da ordem do universo (5); é igualmente ultrapassado pela fonte da qual bebe, e que pode se definir, em si mesma, como uma atualidade eterna (6) e, em relação a ele, como a potência mesma que ele atualiza (7) e que, oferecendo-se para que ele dela participe, faz aparecerem todas as potências do eu (8) e todas as potências que vemos em ação no mundo (9). (De l'Acte, p. 13, ed. 2003.)
Tem vários pontos a ser comentados aí.
Quando ele fala "experiência de nós mesmos", evidentemente se refere à introspecção, mas, ressalvada essa distinção que ele acabou de fazer no trecho correspondente d'O Erro de Narciso, que não se trata da introspecção vulgar. De certo modo, ninguém escapa completamente da introspecção vulgar, mas há aí uma espécie de luta entre esta introspecção que constata estados de fato --- coisas que você observa reiteradamente em você mesmo: certos hábitos, certos temores, medos, preconceitos, desejos etc. --- e o esforço para buscar o seu verdadeiro eu, isto é, o núcleo da sua atividade livre e criadora. Essas duas coisas vão existir ao mesmo tempo.
Uma coisa muito interessante é vocês lerem o diário de um escritor suíço chamado Amiel. Aliás, houve uma edição brasileira resumida, traduzida pelo Mário Ferreira dos Santos. Não sei se isso ainda se encontra. Amiel se dedicou anos a fio à introspecção no pior dos sentidos e sempre achou que era um inútil, não servia para coisa nenhuma, e ele ia anotando tudo num diário. Quando se viu, qual é a grande obra de Amiel? O seu diário. Quer dizer que o seu fracasso foi o seu sucesso. De certo modo, nas obras de Proust, você vê este tipo de introspecção negativa.
(1) (Portanto) não se trata da introspecção que se deleita em apreender estados, "traços de personalidade", hábitos, etc., mas daquela na qual o sujeito se apreende a si mesmo como força criadora, (...)
Note bem: numa dessas introspecções, você tem representações, você tem imagens de algum modo, ou imagens visuais, ou acústicas etc., e, na outra, você não tem imagem nenhuma, é simplesmente a tomada de consciência de algo que você está fazendo e sendo naquele mesmo momento. Então é claro que uma dessas é mais fácil porque ela é automática, essas recordações vêm sozinhas.
Depois, quando ele fala "o ato que nos é próprio", ele está se referindo evidentemente ao pensamento. Ele diz que "o pensamento se vê ultrapassado por efeitos que dependem dele, porque ele os quis". Se você examinar ali no ato de introspecção do René Descartes, você vai ver que, é claro que ele está pensando, mas ele está apenas pensando? É só isto que ele quer: deixar as idéias escorrerem pela mente dele? Não, ele está buscando alguma coisa, portanto ele pretende que esse pensamento desencadeie pelo menos sobre ele um efeito mais duradouro que é o da descoberta da verdade, a descoberta do fundamento de todos os conhecimentos. Então antes de ter este fundamento de todos os conhecimentos, ele já o deseja. Voltamos aqui ao Kierkegaard: "antes da verdade, existe o desejo da verdade". Se ele busca isso, então está querendo desde já que esta verdade ainda não descoberta o reforme e lhe dê um fundamento mais profundo para a sua própria vida. Sem isto, simplesmente não haveria a busca pelo cogito cartesiano.
Então, podemos pensar: Como é possível que aquele instante do cogito, do "penso, logo existo", seja uma coisa fechada em si mesma? E que ele mesmo seja o único fundamento da verdade? "A única coisa que eu sei naquele instante é que eu penso e, portanto, existo", ele diz que esta é a única certeza. Eu digo: mas a seqüência de atos que o levou a isso era uma busca da certeza, e sem isto você não chegaria lá. E além disso, você buscou essa certeza para quê? Para ter o fundamento de todos os conhecimentos. Isto quer dizer que no instante que você capta esse "penso, logo existo", já está desencadeando efeitos que vão muito além do conteúdo dessa simples frase.
Mais ainda: quando ele busca o fundamento de todos esses conhecimentos, ele já tem a intenção não somente de pensá-lo, mas de retê-lo na sua memória. Isto é importantíssimo: eu não quero descobrir uma coisa e esquecer em seguida, eu quero descobrir algo que permaneça. Ora, a permanência de um pensamento não é dada no conteúdo deste próprio pensamento, é um ato de vontade meu, sem o qual este pensamento não existiria. Portanto, a simples descoberta disso já mostra que, para além deste pensamento, existem muito mais forças em jogo, e portanto este pensamento não pode por si ser tido como fundamento de todos os conhecimentos, porque ele é fundamentado em outras coisas também.
Além do mais, você veja que, quando ele pensa essas coisas, está pensando na sua própria língua, ou em francês, ou em latim, e estas línguas não foi ele que inventou. Ele tem de captar isso como instrumentos, que já são instrumentos de exteriorização. Isto é a mesma coisa que você dizer que o pensamento já está exteriorizado na hora mesmo em que foi pensado. Então ele já tem uma ação sobre o mundo exterior, inclusive sobre o próprio René Descartes, no mesmo instante em que foi pensado. E Lavelle diz que, desses efeitos do pensamento, alguns dependem dele porque foi ele que os quis, por exemplo: reter, reformar-se a si mesmo, reformar o conhecimento etc., como tudo o que Descartes quis naquele momento; e outros que não dependem dele porque dependem da ordem do universo.
Então você veja que o simples fato de pensar em palavras requer que você tenha o dom da audição e da fala, que são capacidades físicas que vêm do seu corpo. O pensamento não gera nem a audição nem o aparelho fonador, ele as capta como elas estão aí, como elas foram dadas dentro das condições reais que elas manifestam. Então o pensamento incorpora esses elementos que ao mesmo tempo são obstáculos, mas são instrumentos para ele. Por exemplo, todos sabemos que nem tudo o que pensamos é fácil de expor em palavras, mas você precisa das palavras ao mesmo tempo para poder reter, para poder tomar posse do seu pensamento. O simples fato de pensar em palavras já mostra a presença de elementos corporais que você não criou, que você encontrou e que são ao mesmo tempo obstáculos e instrumentos para o pensamento. Isto [1:00] torna claro que não existe esse pensamento totalmente isolado. Esta ilusão solipsística do cartesianismo, essa solidão cognitiva, é apenas uma impressão momentânea baseada numa falsa observação.
Ainda, porém, tem um outro nível, um outro andar esta coisa, um outro plano que é mais profundo que é o seguinte: o próprio eu criador, que está pensando aquilo naquele momento, não criou a sua possibilidade de existência, ela lhe foi dada, nós nos encontramos com isso. Diz o Lavelle que a nossa primeira experiência é a experiência de uma presença que é anterior à distinção entre sujeito e objeto. Mas essa presença é o quê? A nossa presença a nós mesmos, a nossa presença ao mundo e a presença do mundo a nós, tudo isso fundido. Nós não criamos isso, nós encontramos isso de repente, e essa é a primeira experiência que temos. Então não temos a menor idéia de onde ela emerge. Isto significa que o simples fato de pensar já prova que existem não somente as conseqüências que o seu pensamento está gerando, mas tudo aquilo que é pré-condição para que ele exista, e que você não sabe de onde veio. Quer dizer, não são só as condições do mundo físico que são incorporadas pelo pensamento e usadas como instrumento para ele se expressar e agir no mundo, é também a sua própria constituição, por assim dizer, sobrenatural que está presente nele. Longe de o pensamento ser o ato solitário, ele é o ato que me arraiga imediatamente no mundo físico e no mundo sobrenatural que me antecede e me sustenta. Ou seja, o universo inteiro está presente e Deus está presente. Por isso que ele diz que é "igualmente ultrapassado pela fonte da qual bebe".
E agora aqui tem uma coisa interessante. Essa fonte, que é o Ser puro, é o ato do Ser puro, ele diz:
(...) pode ser definida em si mesma como atualidade eterna e, em relação ao indivíduo, ao sujeito pensante, definida como uma potência mesma que ele atualiza.
Eu digo: Mas não era ato? Se é ato, como é que é potência? Eu digo: esse ato, que é permanente e que sustenta o eu, se manifesta ao eu como uma potência que ele tem de atualizar. Embora o ato o anteceda, ele não aparece imediatamente ao sujeito como um ato, só aparece como ato no instante em que ele atualiza a sua própria potência. É a diferença, como Aristóteles dizia, entre a ordem do ser e a ordem do conhecer: na ordem do ser objetivamente este é um ato permanente, é um ato eterno, por assim dizer; mas do ponto de vista do conhecer ele é uma potência que tenho de atualizar. Se eu não atualizo a minha própria potência de ação livre e criadora, eu não percebo o ato eterno que está por baixo dela ou por trás dela.
(...) [é um potência] que, oferecendo-se para que ele dela participe, faz aparecerem todas as potências do eu (...)
Ou seja, as potências do eu são geradas, são instauradas pelo ato eterno do Ser puro, mas ao mesmo tempo tenho de assumir isto para que isto apareça diante de mim. Quer dizer, as minhas potências foram colocadas lá, não foram por mim, elas me antecedem de algum modo, mas tenho de aceitá-las para que se revelem e, na medida em que elas se revelam, revelam também a sua própria fonte. E é somente a partir daí que posso compreender então as potências que estão no mundo. O que é a potência? Aquilo que pode ser.
Voltamos à questão do círculo de latência. Somos capazes de perceber o círculo de latência por causa disso, e não por causa da atuação dos nossos sentidos. A percepção do círculo de latência, acredito eu, transcende a própria atividade cerebral. Eu acho que não há equivalente cerebral da percepção do círculo de latência, sem o qual simplesmente não existiria mundo objetivo para nós, existiria somente, como diz o Xavier Zubiri, o mundo da estimulidade, quer dizer, os estímulos que me afetam. E se não existisse o círculo de latência, seria impossível o quê? A ação deliberada, o exercício da liberdade, o planejamento, a promessa, que é uma coisa tão característica do ser humano --- eu vou fazer tal coisa, eu vou amar você para sempre ou vou encher você de porrada e assim por diante. Não existe nenhum animal que seja capaz de prometer. Se não tivesse a percepção do círculo de latência, a promessa seria impossível; e se não tivesse essa percepção de si mesmo como liberdade criadora, não haveria nenhuma percepção de círculo de latência.
Preste atenção que os animais têm uma capacidade que S. Tomás chamava "estimativa", que é a de reagir a um perigo eminente ou a um estímulo eminente, mas isso não é uma percepção do círculo de latência. O exemplo que S. Tomás dava era o da ovelha que nunca viu um lobo: a primeira vez que ela vê um, ela sabe que é coisa que não presta, ela sai correndo. Ou seja, ela não tem uma percepção do círculo de latência, ela tem uma reação imediata, não é uma percepção de várias possibilidades, tanto que ela reagirá ao lobo sempre da mesma maneira --- a não ser que ela seja submetida a algum tratamento pavloviano e confunda a cabeça dela. Mas o ser humano, diante da percepção do círculo de latência, não tem uma reação predeterminada, justamente ao contrário: ele tem uma constelação de alternativas. E esta constelação de alternativas é percebida imediatamente, não é por dedução. Se tenho de, primeiro, ver um cachorro para depois pensar o que ele pode fazer, então significa que o primeiro cachorro que vi não percebi como cachorro, percebi apenas como forma externa de cachorro e só depois me dei conta de que nessa forma externa residia um cachorro --- ninguém percebe as coisas assim. Isto quer dizer que a percepção do círculo de latência é imediata. E eu acho que cerebralmente não há maneira de distinguir entre a percepção do círculo de latência e a simples percepção sensível da presença do objeto.
Por hoje paramos por aqui. Até a semana que vem. Muito obrigado.
Transcrição: Jussara Reis de Abreu.
Revisão: Antonia Javiera Cabrera Muñoz.