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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 181

24 de novembro de 2012

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

Hoje eu quero voltar a um tema já tratado no começo do curso, e que em parte foi assunto do livro A Filosofia e seu Inverso. Mas desta vez pretendo que fique mais claro e perfile para vocês a diferença exata entre abordagem filosófica de um assunto e qualquer outra coisa.

Vamos partir da seguinte observação: quando você percebe um objeto qualquer do mundo exterior -- ou mesmo um estado interior seu --, é um ato imediato que decididamente não é de criação sua, ou seja, você não modifica o objeto. Também é característico que, embora apreenda algo do objeto (por exemplo, aparência, cor, forma etc.), você não o integre em você. Aristóteles dizia que apenas a forma inteligível do objeto é apreendida, e não o próprio objeto. Mas, independentemente de como se descreva esse fenômeno, o fato é que você não produz o objeto. Tanto não o produz que não pode modificá-lo na percepção. O que está diante de você está, e não há nada que possa ser feito a esse respeito. O máximo que se pode fazer é fechar os olhos ou desviar a atenção daquilo. Quer dizer, você, de certo modo, tem algum poder sobre a presença ou ausência do objeto, mas não sobre a sua forma ou conjunto de dados que você apreende nele.

Ao contrário, fazer uma proposição, um juízo ou afirmar alguma coisa é algo que foi inteiramente produzido por você. Ninguém recebe um juízo pronto do mundo, o juízo não é de maneira alguma um ato de percepção. Aristóteles dizia que só existe veracidade do juízo em diante, ou seja, a partir do momento que você afirma ou nega aquilo que percebeu. Porém, esse afirmar ou negar --- e este é o ponto fundamental --- nada acrescenta ao que foi percebido. Ao perceber um objeto qualquer, por exemplo, olhar um cachorro e admitir que aquilo é um cachorro, o fato de admitir não acrescenta absolutamente nada ao objeto percebido. São duas operações estritamente diferentes, cuja diferença pode ser tornada ainda mais nítida a partir daquele exercício do Narciso Irala sobre os atos receptivos e emissivos.

Para quem não assistiu a esta aula, o exercício consiste em fechar os olhos e tomar nota de todos os ruídos que ouve ao redor. Depois de um tempo você percebe que há ruídos e sons no ambiente aos quais não estava prestando atenção antes. Esses sons todos vêm do ambiente, e o máximo que você faz é registrá-los. Em seguida, o exercício é contrastado com outro. Desta vez, é preciso fechar os olhos e imaginar um fundo preto, inserir nele um ponto branco e desse ponto puxar uma reta. Depois, com um ângulo de noventa graus, outra reta; com outro ângulo de noventa graus, outra reta, e outra reta, até formar um quadrado branco sobre o fundo preto. Você percebe claramente que essa é uma atividade construtiva, que é você que está criando a figura. Exatamente o contrário do que acontecia no primeiro exercício, em que todos os dados vinham do mundo exterior e eram apenas registrados.

Eu sugiro que façam esses exercícios várias vezes, porque a confusão entre percepção e pensamento é uma doença crônica da cultura do pensamento ocidental e da cultura contemporânea. Quem fizer esses exercícios percebe o erro filosófico monstruoso que existe na idéia de que nós projetamos sobre o mundo exterior as formas a priori da nossa cognição. Se projetássemos, quer dizer, se fosse algo que viesse de nós, deveríamos poder modificar isso de alguma maneira; deveríamos poder manipular as formas percebidas como manipulamos as formas imaginadas e pensadas, mas o fato é que não conseguimos.

Além dessa, existe uma segunda diferença: a percepção é inteiramente subjetiva, intransferível e intransmissível. Quando você dá uma martelada no dedo, só dói no seu dedo, e não no do vizinho. O que quer que você perceba está limitado à fronteira do seu corpo e, como tal, não é transmissível. É possível transmitir através de um símbolo uma informação a respeito. Mas você transmite a informação a respeito da percepção, e não a percepção, ou seja, fala a respeito ou alude a esta percepção de alguma maneira, mas não há como transferir para o próximo a experiência viva da percepção que você teve.

Por outro lado, afirmações e juízos podem ser elaborados sobre a forma do pensamento lógico, para formar provas socialmente cogentes ou obrigatórias. Quer dizer, você desenvolve um raciocínio e oferece uma prova lógica, e quem acompanhou seu raciocínio, em princípio, está moralmente obrigado a aceitar a veracidade de sua prova, dentro dos limites daquilo a que ela se propôs. Porém, todo esse conjunto de provas transmite apenas signos a respeito do que foi percebido, e não a própria percepção. De maneira que existe sempre esse abismo intransponível entre a percepção da realidade efetiva, da realidade vivente, e o discurso desenvolvido sobre ela. É importante entender que o discurso nada acrescenta ao que foi percebido. Por exemplo, o ato de assentimento, de concordância, de reconhecer a veracidade do que foi percebido não acrescenta nenhum dado ao conteúdo da percepção, apenas modifica, retroativamente, a sua atitude perante aquilo que foi percebido -- ao qual se pode dar mais ou menos valor ou significado; conferir a qualidade de ser uma realidade ou mera aparência etc. Mas com tudo isso você nada acrescentou.

É a mesma coisa que dizer que aquilo a respeito do que você toma conhecimento no objeto é absolutamente intransmissível. E tudo o que nós podemos fazer é transmitir signos. O reconhecimento desses signos depende inteiramente de uma operação analógica que o seu interlocutor fará. Ou seja, ele vai se reportar a experiências análogas que teve e, com essas experiências, conferir, injetar um significado existencial naquilo que ouviu. Os seus juízos e preposições serão preenchidos de um conteúdo perceptivo que já não é o seu, e sim de seu interlocutor, e que é apenas análogo ao seu.

Nós todos sabemos que essa operação não tem sucesso garantido. As recordações que o ouvinte pode evocar podem ser mais ou menos adequadas à compreensão daquilo que você disse. E, às vezes, se a pessoa radicalmente não tem aquela experiência, o que você disse como expressão de uma realidade, como expressão de uma percepção, é ouvido pelo outro apenas como uma hipótese lógica. Aquilo que você diz que é, o indivíduo ouvirá na clave do pode ser. Se não for uma preposição autocontraditória, quer dizer, uma proposição que faz sentido, o indivíduo entenderá o sentido lógico da proposição, mas não vai apreender o conteúdo fático daquilo que você está transmitindo.

Por exemplo, se você conta uma história a respeito dos sofrimentos que teve: quando estava doente, foi atropelado, qualquer coisa assim, a eficácia da [0:10] sua narrativa depende inteiramente de que o interlocutor consinta em buscar na sua memória afetiva elementos análogos que lhe permitam identificar-se imaginariamente com o que você sofreu. Mas você não está transmitindo a ele nada do sofrimento efetivo, não está fazendo o indivíduo sofrer. Mesmo que ele sofra algo durante a narrativa, terá apenas um sofrimento moral que reflete algo da analogia entre o que ele imagina e o que você sofreu.

Isso nos coloca uma contradição permanente, absolutamente intransponível, que existe entre os nossos modos de conhecer, porque aquilo que você percebeu do objeto -- e que é o verdadeiro conteúdo de seu conhecimento --, sendo intransmissível (exceto indiretamente e por signos), não é participável, aquilo é eternamente uma propriedade exclusivamente sua, somente você sabe aquilo. Você é a testemunha única daquilo que percebeu. E isso é sempre assim. Nas percepções mais simples, é sempre assim, e não tem como deixar de ser. Por outro lado, tudo aquilo de que você possa persuadir os outros mediante provas constitui-se apenas de signos de objetos. E por mais que você os elabore, esses signos nada acrescentam ao conteúdo do conhecimento. É a mesma coisa que dizer que o conhecimento real do mundo é intransmissível, só o que é transmissível são signos que aludem a ele e que terão de ser preenchidos com um novo conteúdo pelo próprio interlocutor.

A possibilidade de transmitir diretamente experiência... Apenas Deus pode isso. Deus pode fazer você sentir ou perceber algo sem falar com você. Aliás, Ele faz isso o tempo todo. A presença de um mundo, de um universo, é, por assim dizer, a primeira revelação, e isso nos é revelado o tempo todo. Mas o abismo entre o testemunho pessoal direto, entre a certeza pessoal direta, e a prova socialmente cogente, não é transponível. Ou seja, na participação dos outros no conhecimento que nós temos, tudo se baseia em duas coisas: na analogia e na confiança. Quer dizer, o seu interlocutor consente em tentar imaginar as coisas do jeito que você as descreveu; se ele não consentir, não há absolutamente nada que se possa fazer.

No entanto, a estrutura da prova em si mesma conserva toda a sua autoridade, toda a sua obrigatoriedade e toda a sua cogência. Quer dizer, uma prova lógica perfeita não tem como ser impugnada. O máximo que o sujeito pode fazer é não querer prestar atenção nela. Então, todos os conhecimentos que têm autoridade pública, que têm poder de cogência sobre a coletividade humana, não refletem diretamente nenhum conhecimento, são apenas signos que aludem ao conhecimento. Por outro lado, tudo que é conhecimento efetivo, direto, do qual você pode ter aquela certeza pessoal imediata, é intransmissível.

Se os filósofos se lembrassem disso, provavelmente a extensão das suas doutrinas seria bastante diminuída, porque o conjunto daquilo que nós podemos falar a respeito é realmente muito limitado, e o nosso poder de provar o que quer que seja está limitado por duas balizas: ou eu tenho uma certeza pessoal direta, ou tenho uma prova publicamente cogente, que não diz respeito ao conhecimento diretamente e tem de ser preenchida pela boa vontade do interlocutor. Dessas duas modalidades de atividade cognitiva -- apesar de uma delas não ser cognitiva de maneira alguma, apenas a primeira modalidade (a percepção direta) tem poder cognitivo -- derivam duas atitudes diferentes que se pode ter perante o conhecimento e duas formas completamente diferentes de responsabilidade que se pode assumir pelo seu conhecimento -- vamos chamar de responsabilidade cognitiva, ou responsabilidade intelectual.

Por um lado, a responsabilidade da testemunha direta, daquele que teve o objeto na sua percepção e sabe perfeitamente do que se trata -- tem a recordação direta do que se passou --, sabendo que não vai poder provar isso. Por outro, há um tipo de responsabilidade baseado na integridade lógica, ou na integridade do discurso, que é a honestidade na condução de uma demonstração lógica. Porém, esse conjunto de demonstrações lógicas não traz em si nenhum conteúdo de conhecimento. O conteúdo de conhecimento foi inteiramente dado pela experiência direta, e a experiência direta não está presente na prova lógica, jamais.

Ora, a primeira forma de evidência ou de certeza que você tem é estritamente pessoal, e a segunda modalidade de certeza é a confiabilidade coletiva da demonstração lógica. Você pode subir da primeira dessas formas à segunda na medida que consegue apreender da sua experiência direta conceitos descritivos adequados, e a partir deles elaborar algum tipo de prova. Mas da segunda modalidade você não pode voltar à primeira. Ou seja, nenhuma demonstração lógica do mundo, por mais perfeita que seja, pode por si lhe devolver o objeto de experiência à qual ela se refere, a experiência terá de ser buscada de maneira diferente da prova lógica, você vai ter de apelar para a memória, para a analogia, para algo assim, e são justamente essas operações que preencherão de conteúdo real a prova lógica. Porém todo esse conteúdo é puramente analógico, a validade de toda e qualquer demonstração lógica, que não seja puramente formal e que pretenda se referir a fatos do mundo, é sempre puramente analógica e nada mais.

Dessas duas atitudes, ou dessas duas formas diferentes de responsabilidade que se pode assumir sobre o conhecimento, aparecem diferentes formas de atividade de criação cultural, por assim dizer. Por um lado, o esforço de conceptualizar (ou pelo menos simbolizar) a própria experiência da maneira mais direta e exata possível, apelando para a identidade da estrutura humana e para a possibilidade de que o seu interlocutor consiga imaginar uma coisa semelhante àquilo. Ou seja, você é a testemunha direta e apela à memória e à sinceridade de outras testemunhas, na base do "digam se as coisas não se passam realmente assim".

É claro que existem limites para isso. E também é claro [0:20] que, a partir do momento que se forma uma concordância entre esses dois testemunhos -- o testemunho direto e o testemunho analógico do interlocutor --, pode haver uma imensa diferença de interpretações a respeito, ou seja, os juízos que você pode extrair dessa experiência são muito diversos. Isso se observa, sobretudo, na literatura de ficção e na poesia, em que um conjunto de impressões, representado simbolicamente da maneira mais fidedigna possível, pode ser compreendido por um interlocutor que tirará conseqüências diferentes daquilo. Ou seja, de um mesmo conjunto de percepções e dos símbolos que as representam, podem sair muitos juízos diferentes. É o mesmo que dizer que só há comunicação efetiva da experiência num nível pré-judicativo ou pré-preposicional, num nível puramente narrativo ou simbólico; e que, a partir do momento que você deseja uma prova lógica, está necessariamente se afastando dessa experiência originária, ou pelo menos desenvolvendo apenas uma das inúmeras possibilidades de juízos que podem sair dali, excluindo todas as outras.

Isso nos mostra a origem de dois estilos completamente diferentes que a filosofia toma ao longo dos tempos: a filosofia que apela ao testemunho íntimo do interlocutor e aquela que apela à coerência do discurso. A primeira se aproxima muito da experiência direta, e tem evidentemente um conteúdo fático inegável, um conteúdo fático bastante convincente ou persuasivo de alguma maneira, mas ela não prova absolutamente nada porque depende inteiramente da boa vontade do interlocutor, que está livre para acreditar ou não em você. No segundo caso, a prova lógica tem um valor e autoridade por si, não pode ser contestada, mas seu conteúdo fático é puramente analógico, e às vezes é nenhum. E quanto mais perfeita for a prova lógica, mais você está se afastando do conteúdo experiencial direto.

Essa dificuldade é realmente intransponível, e o fato de podermos transitar entre uma dessas formas de abordagem e a outra é quase um milagre. Mas esse milagre só se realiza por causa de um fator presente na primeira dessas formas de conhecimento, que é a compreensão humana e a evocação que o interlocutor faz de suas experiências analógicas. Em última análise, absolutamente tudo vai depender disso, até a própria prova lógica.

Não é necessário dizer que, dessas duas abordagens, uma se atém o mais possível ao mundo da experiência pessoal direta, quer dizer, o indivíduo expressa a sua experiência e apela aos outros para que refaçam imaginariamente ou através da memória a mesma experiência. Ou seja, é uma comunicação que depende inteiramente da honestidade pessoal direta. Não há como forçar alguém a entender ou admitir o que você está dizendo. No outro caso, há a autoridade de uma prova lógica que vale por si pelo poder da sua perfeição formal, mas cujo coeficiente de realidade, em última análise, vai continuar dependendo do primeiro tipo de comunicação -- a analogia, a compreensão do interlocutor etc. Você nunca poderá escapar disso.

Porém, é justamente para tentar se esquivar que, de uns tempos para cá, muitos filósofos e cientistas têm se esforçado para encontrar sistemas de provas lógicas cada vez mais perfeitos e que apelam cada vez menos à experiência direta subjetiva. Neste sentido, o ideal seria um discurso totalmente impessoal, tão aperfeiçoado que não dependesse de nenhum testemunho humano. Mas, por um lado, isso é impossível e, por outro, o sistema de provas lógicas assim desenvolvido tem cada vez mais autoridade sobre a sociedade. O ideal seria um sistema de provas totalmente impessoal, que pudesse ser totalmente processado por um computador e impor suas conclusões universalmente. É claro que o coeficiente de realidade daquilo que está sendo dito vai sempre remeter à experiência pessoal direta ou analógica. Porém, a cogência, a autoridade depende única e exclusivamente da perfeição da prova lógica. E essas duas coisas vão em sentido exatamente oposto.

A idéia mesma de uma ciência universalmente válida e que se imponha a todos os seres humanos por igual é absolutamente utópica porque, se o coeficiente de realidade é sempre a experiência pessoal, caso a experiência pessoal seja abolida podemos provar mil e uma coisas, mas que não serão reais para nós, apenas formas lógicas ou hipotéticas. Isso quer dizer que, em princípio, não há e não pode haver ciência ou conhecimento efetivo que prescinda do testemunho pessoal. Em última análise, todo o conhecimento, toda a ciência e todo o universo da cultura dependerão desse fator absolutamente incontrolável, que é o ouvinte sincero e honesto que consinta em evocar as suas experiências. Se o sujeito não quiser fazer isso, não há nada que possa obrigá-lo.

Só é possível o desenvolvimento do conhecimento e da ciência onde haja uma atmosfera de confiança razoável, que não pode ser imposta por meio de nenhuma prova lógica, porque é a prova que dependerá dela, e não o contrário. Esse elemento irredutível de experiência pessoal é o que leva ao desespero as pessoas que desejam criar uma ciência universalmente válida e universalmente cogente, que é, nós sabemos, um sonho da modernidade desde os primeiros filósofos do racionalismo clássico. Essa era a idéia de Descartes e de Spinoza, e, em parte, também a de Leibniz. Ou seja, nós vamos criar uma ciência universal tão perfeita e completa que ninguém poderá dizer "não". E uma ciência que, em princípio, possa ser codificada de maneira impessoal e quase sobre-humana.

Não é preciso dizer os progressos imensos que houve nas matemáticas e na lógica e a perfeição quase alucinante dos meios de prova lógica que existem hoje. No entanto, quanto mais progridem, fica mais evidente que esse conjunto de provas lógicas não tem nenhum conteúdo de realidade. [0:30] O conteúdo de realidade só será dado pelo ouvinte humano real a quem aquilo se dirige, e que sempre tem a liberdade de recusar o seu testemunho -- não necessariamente por desonestidade, pois um indivíduo sempre pode dizer que a sua experiência não foi assim, que não foi dessa forma que ele percebeu ou sentiu.

Isso pode acontecer primeiramente pelo fator desonestidade: o indivíduo não quer concordar, mas pode acontecer também por uma deficiência da linguagem humana, ou seja, ninguém conseguiu expressar aquela experiência de uma maneira que tocasse o coração de todo mundo uniformemente, sempre haverá uma diferença qualquer. Os padrões de percepção dos indivíduos se formam muito cedo na vida e limitam seu foco de atenção a determinados tipos de experiência, tornando-os cegos ou insensíveis a outros. Às vezes, isso pode ser intransponível: o indivíduo que não aprendeu a sentir determinadas coisas quando era pequeno dificilmente conseguirá senti-las mais tarde.

Existem diferenciações culturais. Certa cultura pode ter desenvolvido em seus membros uma sensibilidade muito grande para determinadas cores, e os indivíduos vão fazer uma diferenciação de nuances de cores às quais um membro de outra cultura ficará totalmente indiferente. A experiência pessoal direta daquele indivíduo terá certos dados que para outro serão incompreensíveis e inimagináveis, imagináveis apenas hipoteticamente -- não como experiência, e sim como um conceito apenas. Esses indivíduos da outra cultura terão uma compreensão puramente lógica e hipotética daquilo que para o outro é um conteúdo direto de experiência. Isso acontece na vida diária não só de cultura para cultura, mas de indivíduo para indivíduo. Às vezes, é difícil fazer alguém entender o que se passou conosco, por mais que expliquemos, a pessoa não entende. Nisso interferem também os padrões de simpatia ou de antipatia em vigor em certa cultura e certo meio.

A verdade da experiência, a verdade do conhecimento e o conteúdo do conhecimento são coisas difíceis de transmitir e que dependem de condições culturais, sociais e psicológicas difíceis de obter. Quer dizer, criar uma atmosfera de confiança e, por assim dizer, de comunicação intersubjetiva eficiente é algo que pode falhar completamente. Quando há alguma discordância na sociedade, não quer dizer apenas que as pessoas pensem diferente, pode ser que elas estejam percebendo as coisas de formas distintas; e às vezes não há como fazer as duas participarem da mesma experiência, ou seja, percebem, sentem e recordam diferentemente. E o poder que a linguagem humana tem de interferir sobre isso é bastante limitado.

Esse coeficiente de subjetividade individual intransponível, que está no fundo de todo conhecimento humano, leva ao desespero aqueles pensadores e teóricos que desejariam criar uma ciência universalmente cogente, isto é, obrigatória a todos.

Estamos na época em que o grande sonho é o da chamada teoria final, que consiga unificar perfeitamente mecânica quântica e a relatividade de Einstein, e dar uma explicação geral e final sobre o conjunto da natureza. Isso já falhou mil vezes e continuará falhando, evidentemente. Mesmo que consigam criar a teoria geral, sua aplicabilidade a todos os domínios da existência e do conhecimento é altamente problemática. Mas o que me chama atenção não são essas dificuldades, e sim a persistência do sonho da ciência universalmente explicativa, e, portanto, da ciência investida de total autoridade, e da autoridade universal.

No último programa True Outspeak, eu li rapidamente um artigo ["Sonhando com a teoria final"] de minha autoria. Mas tê-lo lido no programa não foi muito adequado porque aquele material serve mais para esta aula. Então eu vou lê-lo aqui novamente, comentando cada trecho:

A prova lógica perfeita independe das paixões e veleidades humanas. Independe de testemunhas e independe até da existência de seres humanos. (...)

Ou seja, na hora em que você encontrou, por exemplo, fórmulas matemáticas que exprimam leis universais da natureza, elas continuariam válidas mesmo que não existisse nenhum ser humano para confirmá-las ou conhecê-las. Quer dizer, supõe-se que essas leis são eternas e imutáveis, não dependem do testemunho humano nem da simples presença do ser humano.

Impõe-se com a impessoalidade dos terremotos e dos ciclos planetários. (...)

Ou seja, são coisas que não dependem absolutamente do ser humano. Eu usei essa imagem, mas em seguida a corrigi.

(...) Terremotos e ciclos planetários são, na escala do universo, acontecimentos limitados.

Ao passo que a validade da prova lógica perfeita não está limitada por absolutamente nada, é universal, eterna e absoluta, como uma equação matemática. Um mais um ser igual a dois já era assim antes de existir qualquer ser humano e qualquer coisa. Antes de existir qualquer objeto, um mais um já era dois.

(...) Infinitamente acima deles [dos acontecimentos limitados], a prova lógica perfeita impõe-se com a autoridade absoluta da vontade divina.

"Vontade divina" nesse caso é aquela vontade que preexiste à própria existência do mundo. Ou seja, quando Cristo diz: "Os céus e a terra passarão, mas minhas palavras não", é isso que Ele está dizendo. Cristo é o Logos, é a Inteligência Divina, e o conjunto de leis que compõem o Logos é absolutamente imutável.

Aquele que dispõe de uma prova lógica perfeita pode aceitar a discordância como um fato, e não como um direito. (...)

Por exemplo, se você está crente de que um mais um é igual a dois, pode até aceitar que alguém não compreenda isso, mas não pode aceitar que tenha o direito de dizer que é 3, 5 ou 6,5.

(...) Em última instância, ele explicará toda divergência como fruto da ignorância ou da perversão, e, mais dia menos dia, desejará suprimi-la pela doutrinação ou pela força.

Ou seja, onde você tem a prova lógica perfeita, qual é o seu coeficiente de tolerância com as pessoas que não concordam com aquilo? Num primeiro instante, você pode tolerar porque está em minoria, então sabe aquela verdade universal, você é o portador da verdade universal, mas há pessoas que não compreendem aquilo, e que, por não compreenderem, não aceitam. Enquanto não tem meios de impor a sua verdade universal, você pode concordar, pode aceitar que haja divergências, mas nunca vai concordar que isso é um direito ou que é certo, nem concordar que o falso é verdadeiro ou que o errado é certo.

Felizmente, provas lógicas perfeitas só existem no domínio puramente ideal, não dizem respeito às realidades do mundo (...)

Pelos motivos que acabamos de ver. Não sei nem se essa frase solta no artigo vai funcionar, mas vocês que estão ouvindo esta aula entendem perfeitamente o que eu quis dizer: para conhecer as realidades do mundo, é absolutamente necessário estar no mundo, então você é testemunha direta dos fatos do mundo --- não de todos, mas de alguns; e desses uns, você pode dar testemunho direto, e esse testemunho direto é o conteúdo efetivo do seu conhecimento. A forma verbal que assume o seu testemunho nada acrescenta ao conhecimento, [0:40] aliás até exclui alguma coisa dele: a sua expressão verbal dos fatos nunca será perfeita ao ponto de dar conta completamente desses fatos.

(...) Mesmo a ciência mais exata admite que o seu reino não é o das verdades definitivas, mas o das probabilidades e incertezas. (...)

Este é o ponto em que estamos hoje com a mecânica quântica.

(...) Isso não impede, no entanto, que muitos cientistas continuem sonhando com a "teoria final": a explicação unificada e cabal da natureza e de tudo quanto existe dentro dela --- o que inclui necessariamente o ser humano com todos os seus pensamentos, desejos, emoções, crenças e valores.

Ou seja, no estado em que estamos até agora, não temos essa teoria universalmente explicativa. Mesmo quando você se julga detentor de uma ciência divina, quando recebeu uma revelação; por exemplo, as pessoas que acreditam na Bíblia, creem que há ali leis universais, mas essas leis universais são juízos universais normativos que nada dizem sobre as situações particulares e concretas nas quais você terá que "aplicar esses preceitos".

Os devotos desse ideal, quando falam dele, apressam-se em reconhecer que "ainda estamos longe" de alcançá-lo. (...)

Isso é universal: todos os buscadores da teoria final unificada dizem que ainda falta muito, que será muito difícil.

(...) A aparente modéstia dessa confissão esconde a fé inabalável de que ele será alcançado. (...)

Se o sujeito diz "ainda estamos longe", quer dizer que existe um impedimento prático, uma dificuldade que, ao longo do tempo, deverá ser superada. Se o sujeito acreditasse que essa teoria geral é impossível, não diria "ainda estamos longe", e sim "é inalcançável".

(...) Inclui também o esquecimento de que, no passado, houve quem acreditasse piamente já tê-lo alcançado, já possuir ao menos em linhas gerais os princípios fundantes da natureza inteira, e estar capacitado, portanto, a aplicá-los a todos os domínios do conhecimento e da ação, modelando por eles a sociedade, as leis, a cultura, a educação e a mente humana.

Quem dispõe de um princípio geral, que no seu entender está suficientemente provado e confirmado, tem nas mãos uma autoridade: a autoridade científica. Uma vez de posse dessa autoridade, pode reconhecer que existem discordâncias, mas não que sejam legítimas, essas discordâncias acontecem por ignorância, perversão, má vontade etc.

Em nenhum desses casos a fundamentação chegava ao nível de uma prova lógica perfeita. Incluía sempre alguns pressupostos não provados, às vezes incongruentes ou incompreensíveis. Mas, em todo caso, comparada com o restante das opiniões em circulação, a "teoria geral" parecia ser o que mais se aproximava de uma prova lógica perfeita, tornando difícil, aos seus porta-vozes, resistir à tentação de arrogar-se a autoridade ilimitada de um mandamento divino, sufocando toda oposição como irracional e anticientífica.

Isso aconteceu pelo menos três vezes na História. A primeira foi quando Sir Isaac Newton, tendo obtido sucesso em deduzir de princípios mecânicos alguns fenômenos da natureza, fez votos de que em breve se pudesse explicar pelos mesmos princípios todos os demais fenômenos. (...)

Ele diz isso no prefácio de seu livro Princípios Matemáticos da Filosofia Natural: "Eu consegui, por esses princípios mecânicos, explicar isso, mais isso e mais isso. Mas eu espero que, em breve, seja possível explicar por esses mesmos princípios todos os fenômenos da natureza".

(...) O desenvolvimento posterior das ciências mostrou que o sonho era impossível.

Isaac Newton acreditava que tudo no mundo era composto por certas partículas, as quais eram coeridas umas às outras por certas forças. A continuação das investigações mostrou que o processo era infinitamente mais complicado do que isso e que aqueles princípios mecânicos de Newton se aplicavam a um pequeno trecho da realidade, mas que precisava de muitos outros princípios para explicar o restante.

Mas, no século XVIII, à medida que o prestígio de Sir Isaac se espalhava pela Europa, esse sonho foi tomado como realidade consumada (...)

Ou seja, aquilo que Newton disse que em breve poderia acontecer ou deveria acontecer foi tomado como se já tivesse acontecido: "Nós já temos a explicação mecânica de tudo".

(...) e se consagrou em doutrina obrigatória sob o nome de "mecanicismo". Logo o mecanicismo transfigurou-se em projeto de reforma social e começou a cortar cabeças --- inclusive as de alguns mecanicistas insatisfeitos com as conseqüências políticas da doutrina.

Todo mundo sabe que alguns cientistas que seguiram a doutrina de Newton foram sacrificados pela Revolução Francesa em nome dos mesmos princípios mecanicistas.

A segunda vez foi quando a doutrina evolucionista de Charles Darwin mal acabava de ser publicada; embora não fosse nem mesmo uma teoria de tudo, mas uma explicação abrangente da variedade dos seres vivos, já foi aplaudida como chave-geral da história humana e fundamento científico tanto da guerra de raças quanto da luta de classes. (...)

Isso foi feito eminentemente por Herbert Spencer, o filósofo que transformou a teoria biológica da evolução numa teoria geral da existência e do processo histórico social, e também a base de toda filosofia moral. Se bem que não se pode dizer que Herbert Spencer tenha apenas elaborado aquilo que leu na teoria de Darwin, porque ele já havia antecipado Darwin sob certos aspectos, enunciando certos elementos da teoria da evolução antes de Darwin.

(...) Adotada com ligeiras modificações pelos dois regimes totalitários que disputavam o poder no mundo no início do século XX, serviu de fundamento ideológico à matança organizada de uns 200 milhões de seres humanos. (...)

Na verdade, mais. Se forem computadas as duas guerras mais a matança de civis pelos próprios governos, é algo ilimitado. São entre 100 e 120 milhões as vítimas do comunismo, 20 milhões do nazismo e alguns milhões de outros regimes totalitários menores e das duas guerras. Isso significa mais de 200 milhões.

(...) A terceira, que se entremescla à segunda, foi a proclamação do marxismo como suprema explicação científica da evolução histórica e, no dizer de Jean-Paul Sartre, "a filosofia insuperável do nosso tempo". Deu no que deu.

Nesses três casos, você tem a impessoalidade de um conjunto de provas lógicas, com a pretensão de impor-se uniformemente a todos os seres humanos. E não se pode dizer que essas teorias façam isso sem nenhuma autoridade; alguma autoridade elas têm, mas é um tipo que só vigora coletivamente, porque, individualmente, o conteúdo de realidade com que cada indivíduo vai preencher aquilo depende de sua experiência pessoal, imaginação, memória. Em suma, alguns podem dar testemunho em favor dessas teorias e outros vão dar testemunho em favor da sua contestação. Ou seja, na esfera da concordância individual, a variedade é muito grande; mas, na esfera pública, a uniformidade da prova se impõe por igual a todo mundo.

Nesses três casos, é inócua a tentativa piedosa de cavar um fosso intransponível entre o núcleo "puramente científico" dessas teorias e os seus efeitos histórico-sociais maléficos, atribuindo estes últimos exclusivamente à distorção ideológica superveniente e à contaminação da "pseudociência". Teorias científicas não descem prontas do céu das idéias puras. Todas trazem no fundo algum elemento ideológico, por discreto e indesejado que seja, o qual cedo ou tarde acaba por subir à superfície da História, como as paixões rejeitadas sobem do inconsciente e acabam por engolfar a personalidade.

Ou seja, é claro que, por trás de toda teoria geral do universo, existe um projeto de poder universal: isso é a coisa mais óbvia do mundo. Hoje em dia, se você disser isso a um professor de física do ginásio ou para os lógicos da lista "Lógicos do Brasil", eles, indignados, dirão: "Não, isso não tem nada a ver com o aspecto científico [0:50] da teoria de Newton ou da teoria de Darwin. Ideologia é uma coisa e ciência é outra". Idealmente, sim, ou seja, nós compreendemos o conceito de ciência independentemente do conceito de ideologia --- você não precisa do conceito de ideologia para entender o que é ciência, e vice-versa ---, porém, na prática, esses dois elementos sempre aparecem mesclados. No caso de Newton, o projeto de poder é evidentíssimo.

Newton não concebeu sua teoria gravitacional só para explicar determinados fatos da natureza --- embora ela ainda seja ensinada assim à população ginasiana ---, mas como parte de um projeto abrangente de destruir o cristianismo trinitário e substituí-lo por uma religião da "unidade absoluta" de inspiração esotérica [vagamente parecida com a unidade absoluta islâmica]. É preciso ser muito sonso para não notar aí o alcance da ambição totalitária subjacente.

Quando o economista John Maynard Keynes comprou um lote de escritos de Newton, que tinha ficado escondido durante séculos, descobriu que a maior parte da ocupação de Newton não era com interpretações físicas nem matemática, e sim interpretações bíblicas e estudos de alquimia. A simples revelação disso já mostrou que a imagem de Newton tinha sido falsificada ao longo dos séculos. Hoje já está mais correta, existe uma série de biografias que corrigem isso --- a mais famosa delas intitula-se The Last Sorcerer (O Último Feiticeiro). Ou seja, Newton não era um cientista profissional puro no sentido que foi definido posteriormente, mas eminentemente um reformador teológico, alguém que queria modificar a religião universal. Um sonho de poder maior do que esse --- de modificar toda a religião trinitária do Ocidente e instaurar uma nova religião baseada na unidade absoluta --- é impossível.

Em que medida esse objetivo se infiltrou na própria estrutura lógica da teoria de Newton? Eu acredito que essa filtragem possa ser comprovada por meio de certas noções hiperbólicas e metafisicamente incongruentes que Newton é obrigado a colocar entre as premissas da sua teoria, para depois desenvolver o restante. Há entre esses conceitos o do tempo absoluto: o transcurso de tempo sem fatos dentro, o tempo puro, e o espaço absoluto, o espaço sem coisas dentro --- são coisas que não existem, são noções até autocontraditórias. Ou seja, precisa haver um coeficiente de irracionalidade na base de uma construção racional enorme, bonita e que funciona, que corresponde a um conjunto de fenômenos, quer dizer, corresponde àquele conjunto de fenômenos. Mas em que medida o conjunto de fenômenos, que corresponde à descrição que deles foi dada na teoria, fundamenta esses conceitos de base que estão lá? São premissas falsas usadas para que uma descrição verdadeira fosse construída em cima --- isso é sempre possível. Porém, não significa que de premissas falsas sempre decorram consequências falsas. De premissas falsas misturadas com outras premissas pode sair uma descrição perfeitamente funcional da realidade, como de fato aconteceu.

O importante é ser percebido que, quando a orientação da inteligência vai unilateralmente no sentido da prova lógica, e não da expressão direta da experiência, o que você está buscando é uma autoridade coletiva, ou seja, um discurso com o qual todos tenham que se conformar uniformemente, e é evidente que, nesse caso, a autoridade do indivíduo se fundará no prestígio e no poder de uma coletividade de estudiosos que o aprovam: você tem um discurso uniforme, toda aquela coletividade aprova aquilo. O outro tipo de conhecimento não tem autoridade alguma, mas tem uma persuasividade direta muito maior à medida que apela para o testemunho de seres humanos reais. Nos Diálogos de Platão, Sócrates está sempre apelando para a autoridade do testemunho pessoal direto contra a autoridade de um discurso coletivo.

No século XX, uma imensa escola de pensamento concentrou seus esforços exclusivamente no lado da prova lógica e adquiriu expressiva autoridade nas universidades anglo-americanas, a ponto de constituir quase que uma ortodoxia. No meio anglo-americano, é exatamente essa atividade que leva o nome de filosofia, qualquer coisa divergente disso torna-se difícil de ser classificada ou então será colocada no domínio literário ou algo assim. As posições se inverteram. O que hoje é denominado filosofia em grande parte do mundo, é exatamente o contrário do que Sócrates fazia. A filosofia, em sua origem, não visava criar nenhum discurso universalmente válido que pudesse se impor a todos os seres humanos, visava, ao contrário, despertar a consciência de cada um para dar o seu testemunho pessoal direto, tanto que o confronto de Sócrates com a autoridade reflete exatamente isso.

Muita água precisou correr para que as posições se invertessem e o nome "filosofia" fosse dado precisamente à antifilosofia; e para que essa antifilosofia adquirisse uma autoridade totalmente indevida, porque é baseada no esquecimento ou na omissão proposital do fato de que esse imenso conjunto de provas lógicas só adquire algum conteúdo de realidade mediante o testemunho individual. Ou seja, o ser humano vive na incerteza e pode adquirir apenas alguma certeza razoável, nunca uma certeza final, porque, em última análise, tudo dependerá de um fator totalmente subjetivo, que é a confiabilidade do testemunho.

Isso se verifica dentro da própria dialética da investigação científica, por exemplo no livro de Theodore Porter, Trust in Numbers (A Confiança em Números), e nos livros de Harry Collins, nos quais ele contesta a possibilidade da reprodução exata de qualquer experimento que seja e mostra que, em última instância, a confiabilidade do experimento depende da confiabilidade do técnico que operou os instrumentos. Há quem acredite que seria ótimo poder se garantir contra todos os outros seres humanos, ou seja, poder se tornar independente do testemunho e da concordância e da confiança deles. Nesse caso, as relações não seriam mais baseadas na confiança, e sim na autoridade universal, impessoal e divina de um discurso que se impõe a todos. Mas é evidente que esse sonho do discurso universalmente coerente que se impõe a todos e que nos torna superiores à necessidade de cativar a confiança dos outros é um sonho absolutamente psicótico. E é essa a situação em que estamos hoje.

[1:00]

Aluno: Antes de mais nada, agradeço ao senhor e à equipe do Seminário de Filosofia pelo belo serviço que nos têm prestado. Devo muito ao senhor e ao seu trabalho, que, em vários momentos, me auxiliou imensamente a encontrar uma via integrativa em situações de disruptividade extrema. (...) Envio este e-mail pensando na menção aos trechos do livro Linguistique et Culture Nouvelle*, em que os autores Philippe Rivière e Laurent Danchin tratam do surgimento de uma nova cultura oposta à anterior. Pois é, se já na década de 70 a coisa seguia perigosa, hoje essa nova cultura acabou por suprimir quase que totalmente a tradicional no que diz respeito à rotina do brasileiro médio.*

Olavo: Rivière e Danchin falavam de uma cultura antiga constituída da educação clássica, filosofia (eu não me lembro do tripé que ele colocava) e uma nova cultura baseada em informática e música pop.

Aluno: (...) Um dos elementos mais profundos diretamente afetados por isso foi a música. O senhor mesmo já mencionou várias vezes o impacto que a música causa no intelecto humano e no aprimoramento deste, de modo que a decadência da cultura musical causa efeitos tremendamente nefastos.

Olavo: Um médico vietnamita que mora em Paris escreveu vários livros importantes sobre isso. Eu não consigo lembrar o nome dele porque é complicadíssimo.1 Em uma das obras, La musique, l'intelligence et la personnalité, ele mostra que esse tipo de música que o pessoal está tocando hoje tem efeitos neurológicos completamente devastadores. Falar de estupidificação não é usar uma figura de linguagem; isso é uma coisa séria.

Aluno: (...) Como é o caso de outros elementos desta nova cultura, seu elemento musical foi e continua a ser imposto, não se pode fugir. Tem a moça no ônibus ouvindo um funk no celular, o carro parado na frente da sua casa, o vizinho ouvindo música e vendo TV. (...) Quem ainda não conseguiu desenvolver certa austeridade para ficar alheio a tais estímulos acaba sofrendo com o incômodo, que, em virtude da repetição, torna-se aos poucos uma verdadeira castração interna.

Olavo: Você tem toda a razão, Lucas. É algo gravíssimo, e para se livrar disso levaria uma vida, e mesmo assim não completamente. Todos nós estamos contaminados por essa porcaria, e se livrar desse mal não muda o seu passado; ele continua lá de alguma maneira. Não adianta ter pressa porque não existe nenhuma fórmula disciplinar que possa mudar isso. Esse processo vai levar vinte ou trinta anos até você sentir uma relativa independência disso tudo. Afinal de contas, não se trata apenas de se livrar de uma atmosfera sonora, mas de um conjunto imenso de cacoetes mentais, lingüísticos, de reações pessoais. É o exercício da liberdade da consciência, quer dizer, é algo a que as pessoas não estão muito acostumadas, pois todo o ambiente está ensinando o indivíduo a ser de uma forma ou de outra, mas ele não é obrigado a ser assim, pode fazer outras escolhas e, até certo ponto, criar ele mesmo de outra maneira. Dar outra educação a si mesmo; ser diferente daquilo a que foi programado para ser. Nada pode impedir isso, mas também nada vai facilitar esse serviço. É claro que se tivéssemos uma rede inteira de pessoas conscientes disso e disposta a ajudar seria bem mais fácil. Aqui nos EUA nós temos, mas no Brasil, não, infelizmente. Há um ou outro pequeno grupo. De modo que eu não vejo uma solução em curto prazo para isso. Quando eu coloquei aquelas canções no site do Seminário, foi de certa forma para sugerir que os alunos criem uma nova atmosfera musical e vão preenchendo a memória com outros elementos e se apegando a eles em vez de se deixar levar pela atmosfera sonora do ambiente, mas eu reconheço que é pouca coisa.

Deve haver no meio de vocês um musicólogo ou um especialista na área que possa ler o livro desse médico vietnamita, e assim talvez nos dê alguma idéia. Um dos trabalhos que eu gostaria de sugerir para a segunda fase é determinar o que é o ambiente sonoro brasileiro e o tipo de devastação mental que ele causa. É preciso haver um estudo sobre isso. Sem estudar seriamente o ponto a que a coisa chegou não vai ser possível inventar nenhuma técnica defensiva, e ela tem de ser inventada de algum modo.

Aluno: Como e por que as idéias mecanicistas se opunham aos ideais da Revolução Francesa?

Olavo: Não, ao contrário. A Revolução Francesa foi feita inteiramente na base da ilusão mecanicista de que a sociedade era composta de átomos humanos juntados por certas forças: uma concepção puramente newtoniana, retirada do livro de Voltaire, Elementos da Filosofia de Newton. Essa concepção da sociedade como uma máquina que poderia ser planejada e reformada foi uma das inspirações da Revolução Francesa.

Aluno: [Presencial. Inaudível]

Olavo: Discípulos de Newton, exatamente! Como Voltaire, por exemplo.

Aluno: Alguns discípulos de Newton foram castigados...

Olavo: Nem todos os discípulos de Newton concordaram com as conseqüências políticas extraídas da filosofia mecanicista. Como todo movimento, esse tem seus dissidentes internos. Lavoisier, por exemplo, foi um dos inumeráveis cientistas presos e castigados. Eles foram presos não porque discordassem da teoria geral, e sim por não aceitar as conseqüências políticas. É como no regime soviético, em que a maior parte das vítimas era comunista.

Aluno: Se o conhecimento da realidade repousa, entre outras coisas, na possibilidade do testemunho fidedigno humano, e se a fidedignidade do testemunho é em si problemática, a filosofia não deve principalmente buscar criar ou melhorar o testemunho humano?

Olavo: Você acertou na mosca. É exatamente isso que estamos fazendo aqui. Aquilo que eu chamo de método confessional significa puxar da experiência --- a mais direta, íntima e verdadeira possível --- os conceitos descritivos que vão ser usados sobre a realidade. Eles não terão força probante porque não se trata de teses a serem demonstradas. A prova aqui tem pouca importância; aliás, é impossível fora da atmosfera de confiança e co-participação compreensiva na experiência. De maneira que nós não estamos tentando provar nada. É exatamente como Sócrates, que não prova nada, apenas apela ao testemunho das próprias pessoas que o estão ouvindo. Testemunho que não aceitariam jamais os desonestos ou coriáceos, impenetráveis. Mas se estivéssemos tentando provar alguma coisa, teríamos já entrado na linha de criar uma doutrina universalmente válida a ser imposta a todo mundo, que é exatamente o inverso da filosofia: criar um discurso coletivo e uniforme, a que todos tenham de se curvar, é o objetivo da classe científica como um todo. Não de pessoa por pessoa, a maior parte dos cientistas acha que isso é uma estupidez, na verdade, e nunca vai se chegar a isso, mas sempre há os utópicos que acreditam na explicação final da natureza e em tudo quanto está dentro dela. Mesmo aqueles que não alcançaram essa explicação final --- apenas explicações parciais bastante abrangentes, como Newton, Charles Darwin --- estão trabalhando na linha dessa uniformização do pensamento mundial. É curioso que isso aconteça justamente na época em que os próprios cientistas "tomaram consciência" do caráter provisório de toda a ciência, quer dizer, o mesmo sujeito que proclama a teoria de Karl Popper --- de que não existem verdades científicas definitivas, apenas verdades adequadas para um determinado momento --- num outro momento está lá buscando a teoria final. Mas isso faz parte da incoerência e da loucura inerentes ao projeto mesmo do discurso universalmente abrangente.

Aluno: Considerando o exposto nesta aula sobre os limites da transmissão do conhecimento e as possibilidades da analogia e do instrumental lógico, gostaria de ouvir o professor falar da separação entre langue e parole (língua e fala) feita por Saussure.

Olavo: Cá para nós, eu acho que [1:10] a obra inteira do Saussure não vale nada. A simples idéia de que a língua é um sistema e de que, nesse sistema, o significado de uma palavra é a diferença entre ela e todas as outras é uma coisa absolutamente utópica. A língua não pode jamais ser um sistema. Toda e qualquer língua tem duas forças simultâneas: uma unificante, que vai no sentido da sistematização, e uma diversificante, que vai adaptando a língua à variedade da experiência e abrindo esse sistema aparentemente fechado ao impacto da realidade.

Aluno: Lembro-me de comentários do professor sobre Saussure em várias aulas, primeiramente na aula 19, dizendo aquilo que é óbvio, mas bem esquecido pela ciência lingüística, que está na moda hoje. A relação entre linguagem e realidade, e que a linguagem mesma faz parte da realidade.

Olavo: A relação entre língua e realidade se dá na realidade, e não na língua. Se a referência à realidade for suprimida, toda língua se torna automaticamente impossível, então a língua pode ser examinada como um sistema, mas é preciso saber que ela não é um sistema -- aproxima-se de um sistema sob certo aspecto, e se afasta dele sob outro. Toda língua tem simultaneamente uma tendência unificante e uma tendência caótica, e é justamente essa dialética, essa tensão, que a torna um instrumento efetivamente operante. Se isso se fechasse completamente num sistema, só seria possível dizer aquilo que já foi dito de alguma maneira, e qualquer experiência nova não teria como entrar no circuito da linguagem.

Alguém está pedindo que eu coloque em circulação os diagramas que antigamente eu distribuía aos alunos. Eu vou fazer isso.

Aluno: Nós percebemos o objeto e o objeto nos percebe?

Olavo: Perceber o ser humano é uma característica que faz parte de alguns objetos em particular, especialmente os seres vivos. Se eles não fossem capazes de perceber você, então a reação que você teria a eles seria completamente diferente. Nem todo objeto pode nos perceber.

Aluno: Qual a sua opinião sobre Robert Alexy e o direito discursivo?

Olavo: Eu recebi os livros de Robert Alexy que um aluno me mandou há algum tempo, mas não os li até hoje. Nada posso dizer a respeito. Assim que eu ler, talvez tenha alguma idéia.

Por enquanto é isso aí. Até semana que vem e muito obrigado.

Transcrição: Paulo Uzai Junior, André Fernando Matos Marques e Eduardo A. Aguiar

Revisão: Antonia Javiera Cabrera Muñoz

Revisão final: Elisabete Franczak Branco

Footnotes

  1. Nota do transcritor: Dr. Minh Dung NGHIEM.