Curso Online de Filosofia
[Olavo de Carvalho]{.smallcaps}
Aula 177
27 de outubro de 2012
[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
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Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
O tema de hoje é uma extensão do problema a respeito da noção do Ser, abordado na semana passada. Todos sabem que há algumas palavras usadas frequentemente, na língua corrente ou nas discussões filosóficas, que, não obstante invoquem noções reconhecidas por todos quando se fala delas ― como, por exemplo, Absoluto, Infinito, Totalidade ―, levam-nos a contradições tão logo tentamos defini-las. Sabemos do que se trata quando falamos de Infinito ou de Onipotência, mas, quando tentamos defini-los, entramos em contradições. A própria noção de Ser, como vimos, é aquela de um objeto de tal modo indeterminado que, em termos do nosso pensamento, corresponde exatamente ao Nada. Entramos, aí, naquele paradoxo do Hegel: o Ser, na sua indeterminação, corresponde ao Nada, mas a determinação do Ser é aquilo que se desdobra, que se desenrola no tempo, de modo que o Ser adquire então uma estrutura temporal e histórica (não é preciso dizer que isso engloba também o aspecto espacial).
No entanto, esse paradoxo de entender a noção mas não conseguir apreendê-la intelectualmente de maneira satisfatória acontece com uma multidão de outros objetos de pensamento. Sugeri a vocês um teste muito simples: lembre-se de alguma pessoa que conheça e produza uma imagem mental dela. Primeiro, você notará que essa imagem é tremendamente esquemática; não é nítida, satisfatória e completa, mas uma imagem esquemática de dois ou três traços apenas. Segundo, você apreende essa pessoa mentalmente somente num instante e numa determinada atitude ― então é como se fosse uma imagem abstrata, uma imagem separada da totalidade da pessoa. No entanto, o que você conhece não é a imagem da pessoa; você conhece a pessoa concreta.
Esse problema acontece em todo processo abstrativo. Abstrair significa separar um aspecto da coisa inteira, ou um aspecto de outros aspectos, ou uma propriedade de outras propriedades, e assim por diante. Isso significa que o conceito que você obtém pela abstração significa o ente, mas não o abrange e não o descreve de maneira alguma. Ele tem, para com o ente, a relação que um signo tem para com um significado, e a função do signo é dupla: por um lado ele indica o seu objeto remotamente; por outro lado, ele o substitui no pensamento. Essa substituição é mais ou menos como quando você, na entrada de um teatro, deixa os casacos na porta e recebe uma fichinha para cada um. A fichinha significa e substitui o casaco durante um certo tempo, mas não com as funções dele, evidentemente.
Todo pensamento humano opera somente com base nesses signos -- nós não pensamos "coisas". No entanto, vimos no começo desse curso aquele experimento dos dois baralhos, em que se ia tentando adivinhar as cartas do baralho vermelho e do azul: vimos que existia como que um pensamento sensorial, como se os dedos sentissem a coisa antes de chegar ao cérebro. Vocês podem se reportar à aula, onde o experimento está descrito com mais detalhes. Isso quer dizer que, às vezes, pensamos com coisas também. Quando você está, por exemplo, manejando um objeto, construindo uma mesa, fazendo um objeto de marcenaria qualquer, você raciocina diretamente com o objeto que está manipulando, em vez de precisar representá-lo. Do mesmo modo, quando você está dirigindo um automóvel, tem de tomar decisões rápidas: você ia virar à direita, mas vem vindo um carro e você terá de parar ou deixá-lo passar, alguma coisa você terá de fazer. Não dá tempo de representar a situação, então você raciocina diretamente com os próprios objetos, e o seu raciocínio aí é tremendamente mais rápido e mais eficaz, na maioria dos casos.
No entanto, ao lidarmos com objetos que não estão presentes, ou que não podem se apresentar no seu todo, teremos de lidar apenas com os seus substitutivos, com os signos, e frequentemente esquecemos que mesmo os conceitos mais bem elaborados não passam de signos. Um conceito abstrai do seu objeto somente aqueles traços que ele tem em comum com outros objetos da mesma espécie. Isso, evidentemente, não compõe o objeto inteiro, mas só determinados aspectos dele, que são abstraídos justamente por estarem presentes não só neste objeto, mas também, supõe-se, em outros objetos da mesma espécie.
Os conceitos são sempre conceitos de espécies, e não de entidades concretas. Chegamos aí àquele paradoxo que é o ponto final da filosofia de Aristóteles: tudo o que existe só existe como individualidade concreta, e todo conhecimento que nós temos é só conhecimento da generalidade. Aristóteles nunca resolveu esse problema, ninguém o resolveu até hoje e, infelizmente, esse problema é constantemente ignorado, porque criamos a noção de que as ciências nos fornecem uma visão adequada do mundo real, e essa simples expectativa já contém, a meu ver, uma pretensão absolutamente impossível de ser cumprida. Se todas as ciências progredirem formidavelmente, chegando ao seu máximo desenvolvimento possível, ainda assim, só o que cada uma delas terá é um conjunto de esquemas abstrativos sobre determinados aspectos da realidade, esperando-se que outros aspectos sejam abrangidos por outras ciências e outros pelo senso comum, pela percepção direta etc. etc. Nunca haverá uma síntese do conhecimento sobre o real. Todo conhecimento é abstrativo e todo conhecimento consiste apenas de signos. Vejam a diferença que existe entre esse conhecimento e aquele que você põe em ação quando toma decisões ao dirigir um carro: nos dois casos trata-se de um raciocínio, mas num caso você está raciocinando diretamente com as coisas dentro de uma situação presente e tomando uma decisão que tem de ser estritamente adequada à situação. Você não conseguirá verbalizar as operações mentais que fez para tomar essa decisão, porque elas são enormemente complexas. No entanto, você consegue exercer esse tipo de raciocínio.
Nenhum conjunto de ciências jamais poderá produzir esse tipo de eficiência imediata que é a perfeita adequação da mente (ou do indivíduo cognoscente) à situação concreta, porque o portador disso é somente o indivíduo humano, concreto, vivente. Esse conhecimento não tem como ser codificado. A quase totalidade das situações que vivemos na vida requer esse tipo de conhecimento, em que não há tempo para recuar, fazer uma representação mental, em seguida planejar alguma coisa e agir. Isso quer dizer que a perfeição desse tipo de conhecimento não pode ser alcançada por nenhuma espécie de conhecimento abstrativo. Por outro lado, também é fato que a simples intuição -- defino intuição como percepção de presença, percepção de algo que está presente -- também não fornece isso. A intuição não fornece pronto o raciocínio, a conclusão sobre o que você tem de fazer para se adequar à situação; ela simplesmente mostra determinados objetos presentes. [0:10] Então, estamos falando aqui de um tipo de conhecimento que não se resume nem à intuição, nem à razão, mas que é, de certo modo, uma mediação entre as duas, executado com tal rapidez que parece uma operação intuitiva, quando, na realidade, há um raciocínio nele embutido. Reportem-se à aula dos baralhos e vocês entenderão claramente o que estou falando.
Nos conceitos fundamentais da própria razão, encontramos o mesmo problema. Assim como a intuição é o conhecimento da presença, podemos definir a razão como o sentido de todo e parte, o sentido classificatório e ordenador que nós temos. Não podemos confundir jamais a razão na sua totalidade com o puro raciocínio. O raciocínio é uma espécie de microcosmo ou achatamento da razão ao nível do simples discurso. A cadeia silogística se desenrola no tempo, embora tenha uma estrutura simultânea. A razão implica operações muito mais complexas do que o puro raciocínio. Mas todos os conceitos com que lidamos na razão têm em si o mesmo problema que encontramos ao falar de Infinito ou de Absoluto. Por exemplo, os próprios conceitos de todo e parte: entendemos o que queremos dizer quando usamos essas palavras e somos capazes de, dado um objeto ― uma mesa, por exemplo ―, entendê-lo como um todo ou compreender as suas partes e compreender o encaixe das partes no todo. Porém os próprios conceitos de todo e parte, tomados em si mesmos, são intraduzíveis em palavras. Não há como você definir um todo, porque uma definição de todo pressupõe um conhecimento do todo, então você entra numa petição de princípio. Do mesmo modo, a parte. Nós temos de dizer o seguinte: "Bom, as noções de todo e parte então são intuitivas". Mas como podem ser intuitivas se elas não se apresentam? O que se apresenta a nós são objetos dos quais cada um tem um todo e cada um tem partes, mas a própria noção de todo jamais se apresenta a nós, e a noção de parte também jamais se apresenta. Então é uma construção racional, mas essa construção racional acaba se revelando impossível, porque cada uma dessas noções apela a si mesma para se construir. Faça você a experiência: tente definir o que é todo sem apelar à idéia de todo e tente definir o que é parte sem apelar à idéia de parte. Essas noções são reconhecíveis, mas não são pensáveis em si mesmas. Elas não são intuitivas porque seus objetos não se apresentam e não são racionais porque não são pensáveis, não podem se transmutar em raciocínio.
Comecei a notar que essa característica presente no conhecimento que temos das pessoas humanas -- podemos conhecê-las e reconhecê-las, mas não podemos transformá-las em objeto de pensamento -- está presente em praticamente todos os conceitos de base que usamos para a descrição de qualquer coisa. Todos os conceitos básicos da filosofia são assim, e esses conceitos são os mesmos que se usam na ciência. Em todo lugar, em toda parte, vemos uma tensão entre esses extremos da intuição e da razão, tensão que não pode ser resolvida nem, por um lado, intuitivamente, nem pelo outro, racionalmente, mas com a qual, no entanto, na prática conseguimos lidar. Esse é um paradoxo semelhante ao de um dito segundo o qual (dizem, não estudei o assunto), pelas leis da anatomia, um besouro não pode voar; no entanto, ele voa.
Essa possibilidade impossível do conhecimento humano nunca foi levada muito a sério, ninguém examinou seriamente essa questão na filosofia nem nas ciências. Isso porque, em todo o departamento do conhecimento humano, o pessoal está interessado no conhecimento abstrativo, no conhecimento da generalidade, e raramente volta ao universo da experiência concreta para ver se isso funciona exatamente assim. Quando não conseguimos definir uma noção, não conseguimos torná-la pensável como definição, o que fazemos? Criamos uma definição convencional, que é uma definição por reconhecimento -- mais ou menos como em Geometria: num segmento de reta marca-se um ponto e, com base nesse ponto, traça-se um semicírculo; gira-se o semicírculo e obtém-se uma esfera. Isso não é definir a esfera, mas dizer como se faz uma. Então, existem as definições por construção, como se faz em Geometria, e a definição por um exemplo ― você diz, por exemplo, que um pé é uma parte do corpo humano, e assim por diante, e a pessoa entende imediatamente pelo exemplo (ela pode fazer outras analogias com outros todos e partes e, de algum modo, por analogia, acaba entendendo a coisa).
Mas o que eu me pergunto é o seguinte: será que todos esses conceitos que estamos usando há milênios, todos os conceitos da razão, não são todos eles analógicos? Até hoje, não encontrei nenhum desses que respondesse satisfatoriamente a essa pergunta. Isso significa que a estrutura do conhecimento humano, ela mesma, é baseada nessa tensão, nessa contradição entre intuição e razão. Essa contradição, eu a estou enunciando como se fosse uma dificuldade, mas, lembrando-nos do exemplo de agora há pouco (da direção de um automóvel), vemos que ela não é uma contradição, não é uma dificuldade, mas sim uma solução. Sabemos fazer isso, sabemos operar numa região indeterminada entre intuição e razão, realizando atos de cognição que não conseguimos reduzir nem a puras percepções intuitivas e nem a puros raciocínios -- e, se dizemos que é uma combinação dos dois, é uma combinação difusa, porque não sabemos graduar o quanto de uma e o quanto da outra entram na composição.
Parece, portanto, que a base de toda a possibilidade do conhecimento humano repousa numa zona indeterminada entre intuição e razão, e é nessa zona indeterminada que realizamos a maior parte das operações que permitem a nossa subsistência na vida prática. Ou seja, a menor decisão prática implica uma complexidade de relações entre intuição e razão que dificilmente conseguiríamos expressar ou descrever. Nesse sentido, o conhecimento humano parece ser um milagre; ele consegue realizar algo que ele mesmo não consegue explicar e não conseguirá nunca. Algumas pessoas podem dizer: "Ah, mas e o avanço do conhecimento da estrutura do cérebro, o avanço da neurofisiologia etc.?" Toda a neurofisiologia do mundo não conseguirá jamais explicar um único objeto de conhecimento, porque ela está apenas analisando um meio de conhecimento, que é o próprio cérebro. Mas se o cérebro é capaz de registrar conhecimento sobre todos os objetos do mundo, a explicação dos objetos certamente não está nele, e o conhecimento só se realiza quando há essa ponte entre sujeito e objeto.
É evidente que a utopia neurofisiológica [0:20] responde a essa mesma tradição, que já vem de quatro séculos, do subjetivismo ocidental: tentar explicar todo o processo cognitivo pelo exame do sujeito, sem ter em conta, não só que existem objetos, mas que o próprio sujeito não poderia conhecer nada se ele não fosse também um objeto, ou seja, se ele não pudesse ser conhecido por outros sujeitos humanos. Imaginem o que seria o puro sujeito portador do cérebro, se ele não fosse objeto. Como eu posso estudar o cérebro do sujeito, se ele não é objeto? Ele tem de ser objeto para mim, que o estou estudando. A condição de sujeito está intrinsecamente ligada à condição de objeto. Aí se coloca também o problema: quando eu estudo o cérebro de uma outra pessoa para tentar identificar nele os mecanismos da sua cognição, qual o mecanismo de cognição que eu estou usando? Por exemplo, eu examino o cérebro do sujeito e o seu aparelho visual e explico como se forma a imagem de um gato no cérebro dele. Há, por um lado, um gato; por outro lado, uma série de operações que se realizaram, sinapses que foram conduzidas desde o nervo ótico até o cérebro; e há, fora disso, um neurofisiologista que está observando a coisa como um todo, ou seja, ele está tentando observar num sujeito a relação entre ele e um objeto, o qual não está sendo estudado. Por mais que essa ciência progrida, haverá sempre o mistério da relação entre sujeito e objeto, ou seja, o mistério do conhecimento permanece inteiro. No entanto, é fato que o neurofisiologista observa alguma coisa e alguma conclusão ele obtém, assim como é fato que no trânsito você consegue tomar decisões instantâneas perfeitamente adequadas à situação, sem que consiga depois reproduzir toda a cadeia de raciocínios que estava implícita naquele momento.
Temos aí esse paradoxo: o conhecimento humano existe, nós conhecemos um monte de coisas, mas, de fato, não sabemos como ele é possível. Sabemos apenas que ele está colocado em alguma região indeterminada entre dois extremos hipotéticos a que chamamos intuição e razão. Podemos colocar a pergunta: existe intuição no sentido estrito, objetivo, real, ou essa é apenas uma noção abstrativa que criamos para dividir o processo cognitivo em aspectos abstrativos que possamos de algum modo reconhecer? Eu acho que essa é a resposta certa. Não existe propriamente intuição e não existe propriamente razão; existe uma fusão de operações a cujos extremos chamamos intuição e razão, sem que possa haver nenhum dado puramente intuitivo, sem interferência da razão, e sem que haja alguma operação da razão que possa ser conhecida sem intuição.
Vamos pensar primeiro esse último caso. Qualquer operação racional que você realize na sua cabeça -- uma sequência de silogismos ou uma distinção entre todo e parte, seja lá o que for ― tem de ser percebida no instante em que está sendo realizada, isto é, independentemente do seu conteúdo. Se estou, por exemplo, tentando demonstrar um teorema de geometria, o meu ato de demonstrar o teorema tem de ser percebido por mim mesmo conscientemente no instante [da demonstração]. Eu não posso fazer a demonstração agora e, dez minutos depois, perceber que a fiz. Não é possível! Você tem de percebê-la na mesma hora, e não só perceber a operação que está realizando: tem de perceber a adequação dela ao objeto, no mesmo instante, e isso é uma operação intuitiva. Ou seja, se eu não tenho intuição do raciocínio que estou realizando, não percebo que raciocinei. A percepção de estar raciocinando é uma percepção intuitiva, e não racional. Se fosse racional, ela seria mais um raciocínio, e o simples fato de ela ser um raciocínio não implica que eu perceba que estou raciocinando. Se eu não percebo, o raciocínio pode correr inconscientemente, e, para mim, foi como se nada acontecesse. Sem o elemento intuitivo, não há raciocínio.
Precisamos do elemento intuitivo não só para perceber que estamos raciocinando, mas para perceber que o raciocínio é certo. Por exemplo, quando de duas premissas tiramos uma conclusão: na hora em que pensamos a primeira premissa, só estamos pensando a primeira premissa; quando pensamos a segunda, pensamos só a segunda. Só na hora em que pegamos a conclusão é que juntamos as duas. O que as juntou? O que nos leva a perceber a identidade de duas premissas? É um ato intuitivo, evidentemente, e não um outro raciocínio.
Podemos conceber o que é um raciocínio puro, um raciocínio sem elementos intuitivos, mas não podemos ter nenhum raciocínio desse tipo. Falamos "raciocínio puro" apenas por abstração. Sabemos o que é um raciocínio, separamos dele os elementos intuitivos que nos permitem saber que o estamos realizando e dizemos: "Isto é um raciocínio puro." Por exemplo, um silogismo como "Todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal" é a percepção de um elo lógico entre duas premissas e uma conclusão, a qual independe de que esse elo tenha sido pensado por quem quer que seja. Dizemos: "Esse silogismo é verdadeiro, independentemente de ser pensado por quem quer que seja". Só que isso mesmo que eu acabei de dizer tem de ser pensado por alguém. Ou seja, não é necessário que esse ou aquele indivíduo tenha jamais pensado esse silogismo. Porém, para que eu saiba que o silogismo é verdadeiro, é preciso pensá-lo; na hora que eu o penso, tenho de perceber que o estou pensando e tenho de perceber que, de fato, a conclusão está embutida nas duas premissas. Isso, por sua vez, é um ato intuitivo.
Vejamos, por outro lado, se pode haver alguma intuição sem nenhum elemento racional misturado. A mera impressão de uma luz, de uma luminosidade: certamente essa luz terá alguma intensidade, que será fraca ou forte. Você diz que ela é fraca ou forte por um jogo de proporções que você faz entre a intensidade da luz e a reação do seu olho. O que é essa proporção? É um elemento intuitivo? Não, é um elemento racional, que tem uma estrutura racional. Razão é a mesma coisa que proporção. Toda percepção de forma, tamanho, posição, relação etc. são elementos racionais que estão embutidos no próprio ato da intuição. Falamos de intuição e razão como conceitos abstrativos com os quais apontamos para dois aspectos do processo cognitivo que jamais se apresentam separados. Razão e intuição existem somente na descrição que eu faço do processo cognitivo, e não no próprio processo cognitivo, onde elas não estão separadas jamais. Podemos distingui-las mentalmente, mas não separá-las de fato.
Mas existe um aspecto da razão [0:30] que é vivenciado de uma maneira bem distinta da intuição. Temos uma experiência da razão, experiência específica que diz respeito ao próprio processo racional e que é diferente de toda percepção intuitiva que possamos ter. Trata-se da dificuldade de raciocinar, a dificuldade da razão, dificuldade que não existe na intuição. Na intuição, ou você percebe, ou você não percebe; ou a coisa está presente e você repara nela, ou não. Não há um meio termo. Mesmo a percepção intuitiva de um objeto vago e indefinido tem de perceber a sua vagueza e indefinição. Mas, no caso da razão, vemos que existem raciocínios vazios, esquemas silogísticos que têm de ser preenchidos para que entendamos alguma coisa, mas que não conseguimos preencher no momento. Qualquer raciocínio demasiado complicado nos dá essa experiência.
Mais ainda: todos temos a experiência de nos defrontar com dificuldades, com enigmas, com interrogações cuja estrutura lógica nós, mais ou menos, compreendemos, mas que não conseguimos preencher de conteúdo verdadeiro e, portanto, não conseguimos entender esse processo. Então existe o elemento da dúvida. A dúvida e a dificuldade são em si mesmas racionais, têm uma estrutura racional, mas não dizem a respeito a nada que esteja presente; dizem respeito à possibilidade do conhecimento que eu não tenho ainda. Essa experiência, por sua vez, é vivenciada intuitivamente. Mas ela se distingue totalmente de qualquer ato intuitivo, por não ser a percepção de uma presença, mas de uma ausência ― de um dado faltante, ou de uma conclusão faltante, ou duma conexão lógica faltante etc.
A intuição está presente em todos esses casos -- no entanto, no que diz respeito à experiência que temos da razão, ela nos mostra uma experiência de ausência. É justamente nessa experiência de ausência que nós pegamos a diferença precisa entre a intuição e a razão. A dúvida tem de estar presente para que eu a perceba, mas ela está presente apenas como dúvida, ou seja, como falta de uma resposta (e não é preciso dizer o quanto isto pode ser angustiante ou enervante em certos momentos).
Foi a isso que eu chamei, muitos anos atrás, de trauma de emergência da razão. Ou seja, todos nós, quando nascemos, entramos num mundo que tem obviamente alguma estrutura, alguma ordem, e entramos também num mundo humano, que, por sua vez, tem também alguma estrutura e alguma ordem, mas nós não as conhecemos. Na medida mesmo em que tentamos nos apropriar desse mundo, tentamos dominar de algum modo a nossa circunstância, deparamo-nos a todo momento com a dúvida, ou seja, com a insuficiência do nosso conhecimento. Mais ainda: quando você está operando na base intuitiva, os objetos se apresentam a você, você os percebe. No caso da razão, você está operando, frequentemente, com objetos ausentes, os quais você só conhece por signos convencionais de cujos conteúdos você não tem experiência direta. Por exemplo, quando você está raciocinando sobre uma possibilidade. O que é uma possibilidade? Você pode ter a intuição de uma possibilidade? Não. A possibilidade é uma mistura de presença e ausência.
Isso quer dizer que você experimenta a razão sobre o aspecto de um conjunto de dúvidas que despertam na sua mente várias conjecturas (conjecturas são raciocínios possíveis dos quais alguns se cumprirão; outros, não). Nossa mente está sempre cheia desses raciocínios e, de fato, sem eles seria muito difícil até nós nos orientarmos na vida. Ou seja, o conhecimento das dúvidas e das dificuldades se apresenta a nós de uma maneira intuitiva: nós temos a intuição de que estamos em dúvida, mas não temos a intuição do conteúdo dos raciocínios correspondentes.
Isso quer dizer que a razão se apresenta a nós, no começo da vida, como uma imensa rede de dúvidas que só aos poucos serão preenchidas, porque os elementos da razão, não podendo ser intuídos diretamente, requerem os signos ― você não pode raciocinar sempre com os objetos (em certas circunstâncias, pode, como já vimos no exemplo do carro), mas, em geral, você não pode; terá que levar em conta elementos que não estão presentes e dos quais você não tem intuição nenhuma. Você vai manipular somente os signos, sem ter a experiência dos devidos objetos.
Reparem, em qualquer discussão sobre o que quer que seja, a imensidão de signos que vocês usam sem ter a intuição dos objetos correspondentes. Fazemos isso o tempo todo. Ora, o domínio dos signos depende do domínio da linguagem, e o domínio da linguagem é progressivo: leva muito tempo para você adquiri-lo e, na maior parte dos casos, permanece deficiente. O domínio absoluto não existe, mas o domínio culto, tal como existe na sua sociedade, quanto tempo leva para adquiri-lo?
Ora, as dúvidas e perplexidades da razão apresentam-se desde que nascemos, mas o aparato linguístico, o conjunto de signos necessários para operar com isso, leva-se vinte ou trinta anos para adquirir. Ou seja, durante uma boa parte da sua vida, a razão vai significar para você apenas uma rede de dúvidas. Isso é uma coisa enormemente opressiva para o ser humano. Ele é obrigado a operar dentro de situações que não compreende, e que levará, às vezes, anos para compreender.
Isso quer dizer que a possibilidade de ter um conhecimento racional implica para o ser humano esse peso enorme, que ele carrega desde pequenininho, de ter de tentar se orientar no meio de redes de dúvidas que ele mal consegue formular verbalmente. Os animais não têm esse problema porque eles não pensam sobre dúvidas. Eles são capazes de raciocinar, mas só têm aquele raciocínio imediato, que é o que você tem quando está dirigindo um automóvel. Um animal, quando vê outro animal perigoso, sabe o que fazer: ele vai ter de fugir ou lutar ― ele sobe numa árvore ou sai correndo, alguma coisa ele terá de fazer. E ele faz imediatamente, ele escapa. Esse tipo de raciocínio, o animal faz. Mas ele não pode raciocinar com variáveis ausentes. Por exemplo: o que vai acontecer no ano que vem? Ou o que vou ser quando crescer? Por exemplo, há uma pessoa na sua família que demora a voltar para casa, já é meia-noite, uma hora, você não sabe onde a pessoa está, você faz um monte de conjecturas, todas elas vazias: pode ter acontecido um desastre, ela pode ter bebido e ficado pela rua, foi à casa de um amigo, fez isso ou aquilo. Você imediatamente constrói uma rede de conjecturas. Um animal não faz isso. Ele vai simplesmente procurar: sumiu o gatinho, a gata vai procurá-la no ambiente imediato. Ela não vai pensar: "Não, ele pode ter ido para o estado de Ohio" -- ou, no Brasil: "Ela foi para o Mato Grosso". Não vai pensar uma coisa dessa.
Então, esse privilégio do ser humano de conseguir raciocinar sobre dados ausentes, de criar estruturas inteiras [0:40] de conhecimentos sobre coisas das quais ele não tem experiência, e talvez não tenha nunca, custa para o ser humano esse desajuste desde que ele nasce. E, sem dúvida, isso aqui é mais fonte de problemas psicológicos do que qualquer outra coisa no mundo. No começo do século XX, o Dr. Freud atribuiu todas as neuroses humanas a problemas sexuais, mas os problemas sexuais são uma brincadeira perto disso -- e, aliás, não existiriam se não fosse isso. Vejam que uma parcela enorme da vida sexual humana é vivida imaginariamente. Não há nenhum animal que tenha esse problema. Ele se torna sexualmente excitado na presença do elemento excitante e pronto, acabou.
Vimos então que essa experiência, essa tensão insolúvel entre razão e intuição está presente em todo conhecimento humano, e talvez ela seja o conhecimento humano. Mas isso não está só presente no conhecimento humano direto, mas também no conhecimento científico, porque o elo entre a teoria científica e a realidade é um negócio que se chama experimento. Mas ele é, por sua vez, também abstrativo: ele separa determinados aspectos de seus objetos só opera com esses aspectos. Então a conexão do experimento com a realidade é também uma conexão hipotética. Todo experimento se baseia numa cadeia de hipóteses teóricas.
Por exemplo, quando você lê uma escala de temperatura, de pressão etc.: qual é a conexão entre o ponteiro que está se movendo e o objeto que você está medindo? A conexão é indireta: ela depende de uma teoria que fundamenta a criação do equipamento e que vai, por sua vez, se enganchar com outra teoria relativa ao comportamento do objeto, de modo que a conexão do próprio experimento com o seu objeto é teórica e hipotética. Isso é a mesma coisa que dizer que toda teoria científica tem uma conexão remotíssima com a realidade concreta à qual ela se refere -- uma conexão remotíssima, altamente complexa e problemática. Mais recentemente, começou uma discussão sobre se é possível reproduzir uma experiência. A reprodução exata simplesmente não existe. Sempre que você refaz uma experiência, ela sai um pouco diferente porque o equipamento é diferente, porque o técnico que lidava com o equipamento era outro, porque foi feito em outro lugar, e assim por diante.
Idealmente, a idéia de toda ciência é fornecer uma representação teórica da realidade que corresponda aos elementos captados intuitivamente na realidade concreta, mas isso jamais chega a acontecer. Isso significa que a responsabilidade do indivíduo cognitivo por decisões de ordem científica será exatamente a mesma que ele tem quando toma decisões no trânsito: ou seja, não há nenhuma maneira de você transferir isto para, digamos, um conjunto de regras abstratas que resolvam tudo sem interferência humana.
Então, se nós pensarmos que o único conhecimento possível é aquele conhecimento que abranja o todo, na sua interconexão perfeita com as partes, e que o faça não apenas em teoria, mas que o faça na percepção imediata da presença do seu objeto, isto é o conhecimento divino. Deus conhece toda a estrutura do Universo, no seu todo e nas suas partes -- incluindo Ele mesmo --, e o conhece não em teoria, não só em pensamento, mas na própria realidade, a qual é o pensamento Dele. Isso quer dizer que o perfeito conhecimento do todo na presença é a definição do conhecimento divino e, certamente, nós não vamos alcançá-lo tão cedo.
O que faz para nós o elo entre a teoria e o mundo concreto? A conexão ente razão e intuição? É um elemento misterioso, que tem algo a ver com a responsabilidade humana e com a capacidade de reagir concretamente perante as situações reais. Isso é absolutamente irredutível: jamais existirá um conhecimento tão perfeito que possa prescindir desse elemento. Dito de outro modo: o único portador do conhecimento humano é o ser humano concreto. O resto são todos conhecimentos possíveis: todo o conhecimento que está registrado em bibliotecas, museus, arquivos etc. são sementes de conhecimentos possíveis que só se atualizarão quando a conexão da teoria com o objeto de intuição se tornar clara na própria intuição.
[Intervalo]
Tenho aqui várias perguntas interessantes, mas não poderei responder a muitas porque estamos sob aviso de furacão -- é estado de emergência aqui no estado da Virgínia e temos de tomar uma série de providências com certa urgência para nos preparar para isso.
Aluno: Kant tinha razão ao afirmar que pensamentos sem conteúdo são vazios e intuições sem conceitos são cegas?
É exatamente o que estou dizendo aqui: podemos dizer que intuição e razão são conceitos- limite. Eles nos mostram aspectos ou ênfase que damos a certos aspectos do processo cognitivo, mas que não existem separadamente, e que até, em certos pontos, não são muitos distintos.
Aqui, um aluno sugere duas definições de todo e parte:
Aluno: O todo seria um modo de tomar o ser que implica a inclusão de qualquer das suas partes (...)
Olavo: Aí o conceito de parte já está dado de antemão como elemento do todo, então é uma petição de princípio. É mesma coisa a definição de parte:
Aluno: (...) Um ente que tomado em conjunto com outros entes é capaz de formar um novo ente.
Você já está dizendo que esse novo ente é um todo. Não sei se você percebe, mas essa definição de parte se aplica literalmente a tudo quanto existe. Então, não é de maneira alguma um conceito claro.
Aluno: Gostaria de uma definição de ontologia.
A ontologia é definida há séculos como o estudo do ser enquanto tal. Ou seja, os atributos mais gerais da existência. Simplesmente: é o estudo do ser. Exatamente no sentido que estamos fazendo aqui. Na outra aula, a ênfase foi ontológica; nesta aula, é mais gnoseológica, mais o aspecto do conhecimento do ser, e não do ser enquanto tal.
Aluno: Gostaria de fazer uma pergunta a respeito do pensamento de São Tomás de Aquino a respeito da amizade. Quando ele diz idem velle, idem nolle -- querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas --, ele nos mostra que, na amizade, o nosso amigo crê na mesma coisa que nós e rejeita a mesma coisa que nós?
Ele não disse crer na mesma coisa, mas querer a mesma coisa. Isso é importantíssimo. Se não, seria impossível a amizade, por exemplo, entre São Tomás de Aquino e São Boa Ventura, que acreditavam [0:50] em coisas exatamente opostas a respeito de Deus. São Boa Ventura dizia que Deus era o primeiro conceito, a primeira coisa que você conhece; São Tomás de Aquino dizia que era o último. Nesse momento, a amizade já teria acabado. Querer as mesmas coisas é ser orientado pelos mesmos valores, ainda que divergindo no campo das idéias. Creio que isto já responde ao seu exemplo da amizade entre Chesterton e Bernard Shaw.
Aluno: Assim como a neurociência está fadada à incompletude, porque se limita a estudar o aspecto cerebral do processo cognitivo, seria certo dizer que não podemos entender a razão e a intuição sem levar em conta os objetos sobre os quais ela opera? (...)
Certamente, e esse é o problema de praticamente todo o ciclo moderno da filosofia: não dar nenhuma autonomia ao objeto, centrar o estudo no sujeito, acreditando que o processo cognitivo, por se dar no sujeito, pode ser explicado pelo funcionamento imanente, interno dele, o que é uma impossibilidade absoluta, porque todo conhecimento é conhecimento de alguma coisa. E, evidentemente, o modo de presença do objeto influi no conhecimento que temos dele. Ademais, há esse outro aspecto: o que seria o sujeito puro e o que seria o objeto puro? Objeto puro é aquele que só emite informações e não as recebe. Sujeito puro, o que só as recebe, sem emiti-las. Não pode existir nada assim. Portanto, aquele que é sujeito é objeto necessariamente. Senão não poderia ser nem sujeito, e vice-versa.
Aluno: (...) Razão e intuição não seriam exclusivamente poderes ou faculdades da subjetividade humana, mas, antes, como a visão, por exemplo, poder ser efetivo no encontro do sujeito e do mundo.
Certamente. A presença do mundo está suposta no exercício da mais mínima das faculdades humanas.
Bom, vou parar por aqui, pois estou com sentimento de urgência para resolver umas coisas: comida e abrigo, segurança, essas coisas todas, e só temos um dia para resolver isso, pois dizem que o negócio vai começar amanhã.
Então, peço desculpas a vocês e na semana que vem continuamos, mesmo porque temos de tomar essas providências para garantir que haverá aula na semana que vem.
Então, até à semana que vem. Muito obrigado.
Transcrição: Igor Lins Vieira, Kênio Barros de Ávila Nascimento.
Revisão: Marcela Andrade.