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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 161

30 de junho de 2012

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

Estou vendo que o Ângelo Monteiro está presente no Instituto Olavo de Carvalho. Embora eu não esteja lá, digo a ele que seja sempre bem-vindo, que é sempre um prazer tê-lo por perto. O Ângelo Monteiro é um dos quatro escritores que existem o Brasil, se chega a tanto. Além de ser um grande artista é também uma raridade, um raro sobrevivente de uma espécie extinta.

Hoje temos um texto --- acho que vocês já pegaram --- chamado, provisoriamente, "Filosofia e autoconsciência", que é parte de outra coisa que estou escrevendo e vai servir de linha mestra da nossa aula de hoje. Dessas mesmas considerações gerais que estão nesse texto vou extrair algumas conclusões quanto a tópicos específicos, inclusive, o mesmo da aula passada e alguns outros referentes ao estado presente da cultura brasileira. Eu vou ler pra vocês e comentar.

"A filosofia, com Sócrates, nasce como análise crítica do saber coletivo à luz da unidade, integridade e autotransparência da consciência individual. Não, portanto, de qualquer consciência individual, mas daquela que lutou por essa unidade, integridade e autotransparência e que a duras penas as foi a um tempo, desencavando e erigindo até erguê-las acima da turva confusão das paixões e autoenganos; confusão que, em parte ao menos, nasce da absorção passiva, desordenada e acrítica das crenças coletivas."

Bom, em primeiro lugar, para ler esse texto como qualquer outro texto filosófico só tem um jeito. Você vai precisar preencher o entendimento de cada sentença com aquilo que transparece como referência histórica, como argumentos compactados e embutidos na explicação que não estão, portanto, explicitados, mas que são condições para que o autor possa ter dito aquilo que disse e, terceiro, com uma espécie de aura de antecedentes e conseqüentes que essa coisa possa ter. Se você não fizer isso para cada frase do texto filosófico, não há como entendê-lo realmente.

O leitor não habituado terá dificuldade de compreender a densidade de concentração que qualquer escrito filosófico, de certa qualidade, tem dentro dele. Se você se limitar a entender aquilo que está literalmente expresso, sem preenchê-lo de todo esse conteúdo, então, de fato, não estaremos fazendo uma leitura filosófica e sim uma leitura jornalística superficial.

As concepções filosóficas, de modo geral, na mente do sujeito que as criou, são como um quadro simultâneo de tudo que ele sabe da realidade --- tudo ou quase tudo. Ao longo de toda sua vida, o filósofo luta por unificar essa concepção [filosófica da realidade], não necessariamente como uma doutrina cabal, mas como um modo pessoal de ver as coisas, ou seja, ele está consciente de toda sua concepção do mundo, em todos os seus detalhes ao mesmo tempo, só que ele não pode escrever todas de uma vez, tem de escrever frase por frase. É a percepção desta tensão dialética, entre a afirmação singular e a totalidade da concepção da qual ela emana, que marca a leitura filosófica correta.

Isso não quer dizer que todo e qualquer filósofo seja capaz de redigir suas explicações de modo a deixar essa tensão aparecer em cada frase, isso já é uma obra artística, difícil de fazer. Isso é o mesmo que dizer que dificilmente você compreenderá uma única frase de um filósofo antes de ter compreendido todas. E, às vezes, se compreende coisas que não estão em frase alguma, coisas que não estão ditas, mas que estão subentendidas e, simplesmente, não são materialmente possíveis de escrever ou não houve tempo para escrever.

Então, é preciso ler cada frase como se ela fosse um símbolo do conjunto da visão do filósofo sobre as coisas, e isso se aplica ao meu texto como a qualquer outro texto filosófico. Contudo, em geral as pessoas não lêem assim, elas não têm a prática, não têm o know-how da leitura de textos filosóficos. Evidentemente, tomam cada frase somente no seu sentido imediato sem conceber as implicações que aquilo tem --- implicações conscientes que aquilo tem para o autor do texto --- não estou me referindo a intenções subconscientes. Sondar intenções subconscientes qualquer bêbado faz, o difícil é compreender o pensamento consciente do sujeito.

Em geral, como as pessoas não possuem essa prática, elas caem em discussões de detalhes que já estão subentendidos na frase, que para um leitor experiente não seria preciso explicar. Como por exemplo, outro dia um rapaz pegou a gravação do meu comentário ao livro do professor Wolfgang Smith, O Enigma Quântico, e lá pelas tantas eu dizia que o conceito de Einstein sobre o espaço curvo, a rigor, era um conceito incompreensível, porque se uma coisa é curva, curvatura significa uma forma e uma forma significa um limite. Então, das duas uma, ou o universo curvo é infinito e, portanto, não faz sentido especular a forma dele; ou ele é finito e tem algo depois dele e esse algo depois é o que define os limites da sua forma. Ora, isto é assim ontologicamente, mas não necessariamente é assim na geometria.

Então, um rapaz colocou na internet, um sujeito, aliás, que falava com uma horrível voz de castrado, eu não conseguia parar de rir quando vi o cara, mas, evidentemente, é uma pessoa que estudou algo de matemática e física e ele disse: "Ah, mas esse Olavo é um ignorante, ele não sabe que existem as geometrias não euclidianas? Riemann demonstrou que é possível você demarcar uma figura sem referência a um espaço externo". Muito bem, em primeiro lugar, pergunto: como este indivíduo supôs que eu fosse capaz de falar sobre esses assuntos sem jamais ter ouvido falar das geometrias não euclidianas, já seria uma coisa absurda?

Portanto, é evidente que o que eu expliquei ali já contém implicitamente uma referência e uma resposta às aplicações das geometrias não euclidianas em física, tudo está embutido ali e um leitor experiente percebe imediatamente, mas o rapaz não percebeu, achou aquilo contraditório com as geometrias não euclidianas, e então me dá essa informação. Assim como outro que há tempos atrás me escreveu: "Não, você é um ignorante, você não entende nada de comunismo na América Latina, você precisa ler As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano"; aquela porcaria que todo mundo lia quando tinha 17 anos e ele me mostra aquilo como se fosse uma grande novidade.

Em parte, isso reflete um fenômeno cultural brasileiro, pois como não existe um ambiente cultural em torno, o único acesso à cultura superior é a universidade; não há debate cultural público como existe nos EUA, restando como única via de acesso, os professores universitários, os quais passam a representar o universo inteiro da cultura. Acontece que esses professores somente lecionam uma ou outra matéria, eles não têm a capacidade nem os meios de transmitir aos seus alunos um debate cultural geral.

Isso quer dizer que os conceitos que o sujeito aprende quando estuda biologia ou física adquirem para ele uma validade universal ontológica que nenhuma teoria científica tem. Toda teoria científica é hipotética e nada pressupõe quanto ao seu alcance ontológico real. Isso é óbvio. Pelo simples fato de existir um método científico que pressupõe a permanente autocorreção das teorias, logo, o alcance ontológico de cada uma está colocado entre "parênteses" e, portanto, não é admissível acreditar piamente que uma teoria científica qualquer corresponda à realidade no seu sentido geral. A teoria científica corresponde a um modelo de realidade tal como está recortada para as finalidades daquela ciência, tendo uma validade limitada e relativa sempre. [0:10]

Porém, isto não é ensinado às pessoas porque não há um debate cultural geral. Os conhecimentos especializados dados por cada ciência no curso do aprendizado universitário passam a representar para esse indivíduo a imagem total da realidade, criando uma espécie de doença cultural, pela qual a autoridade da ciência especializada passa a valer para todos os domínios, inclusive, os que nada têm haver com ela e que ela não estuda de maneira alguma.

E este caso ilustra isto perfeitamente bem, porque o fato de se poder construir geometricamente uma figura, não quer dizer, de maneira alguma, que o objeto correspondente a essa figura exista na realidade, porque para isso o objeto teria de atender a algumas condições que não são geométricas. A geometricidade de uma figura não é garantia da sua substancialidade ontológica, isso é uma coisa simples, elementar. De fato Riemann demonstrou que dá para construir isto, porém, tomando essa possibilidade geométrica como expressão da realidade estará se entrando em choque com o teorema de Gödel, o qual mostra que tudo que tem um limite tem alguma coisa depois.

Tomar simplesmente a geometria de Riemann como se fosse uma descrição do espaço não geométrico, não imaginário, não mental, mas do espaço físico, em primeiro lugar, é uma extrapolação indevida; em segundo lugar, é um absurdo e uma falsidade. De modo que, o caráter, por assim dizer, paradoxal do espaço curvo ele continua aí e é um problema que não foi resolvido até hoje.

Quando Einstein disse que o espaço é curvo, ele quis dizer que uma multidão de fenômenos físicos se comporta como se o espaço fosse curvo, ele não quer dizer que o espaço é curvo na realidade, ontologicamente. Einstein não era nenhum imbecil para confundir nem a descritibilidade geométrica e nem sequer a descritibilidade física de um fenômeno como uma prova da sua realidade no sentido ontológico e pleno da coisa.

Isso quer dizer que, com um pouco de prática de leitura filosófica esse rapaz entenderia que a objeção que ele está levantando já está embutida no meu próprio argumento faz muito tempo e não haveria o que discutir sobre este aspecto.

Eu vejo que objeções desse tipo surgem sempre que explico alguma coisa fora do contexto do seminário e por vezes até dentro. Tem gente do próprio seminário que comete esses mesmos equívocos, já veremos como isso acontece, mas quando eu digo alguma coisa no programa e, evidentemente, no programa temos pouco tempo, dois minutos, no máximo, para expor cada assunto, é necessário falar as coisas de uma maneira compacta, e quanto mais compacta a exposição, maior a possibilidade desses equívocos. Invariavelmente as pessoas me enviam dezenas de objeções que já estão embutidas no próprio argumento, já estão embutidas e respondidas antecipadamente no argumento, porque eu já pensei em tudo isso.

Sempre que se lê um filósofo e sem ter muita prática da coisa, a coisa mais prudente e necessária é supor que as objeções pensadas ele também já pensou e está respondendo a elas, às vezes de maneira implícita. Mas é uma característica das pessoas inteligentes tender a imaginar que as pessoas são tão inteligentes quanto elas, enquanto que as pessoas burras tendem a imaginar que os outros são mais burros do que elas. Do mesmo modo as pessoas de cultura que vivem num universo de referência cultural muito amplo e supõe que aos menos implicitamente o seu ouvinte ou tem aquelas referências ou é capaz de compreendê-las intuitivamente no instante da exposição, expectativa que às vezes não se cumpre. Então, um dos motivos da existência deste curso é tentar criar um público capaz de entender essas coisas, um público capaz de ler textos filosóficos.

Neste parágrafo, o número de referências é enorme, somente neste parágrafo, para mim, todas elas estão presentes e estou consciente delas no instante mesmo em que escrevo. E espera-se que um leitor experiente as apreenda no mesmo momento e entenda todo o fundamento não expresso que está sustentando o que eu estou dizendo. Por exemplo, quando eu digo unidade, integridade e autotransparência da consciência individual. Bom, todo mundo sabe que a consciência individual não é caracterizada pela posse dessas três qualidades. Ao contrário, em geral, a consciência individual é constituída por momentos pontuais do tipo cogito cartesiano, em que se tem uma intuição, uma percepção intuitiva da existência da sua consciência naquele momento. É característico da própria noção, do próprio conceito de consciência que só possa referir-se a ele quando o objeto está presente, o que não acontece com relação a nenhum outro conceito --- o conceito de elefante não pressupõe a presença do elefante, nem o conceito de universo pressupõe a presença do universo. O conceito de universo deveria ser o mesmo, em princípio, se o universo não existisse, mas o conceito de consciência individual não pode ser pensado senão na presença da própria consciência individual, ou seja, não há nenhum meio de se desfazer da própria consciência, de se desidentificar dela para olhá-la desde fora.

O ato de reflexão pelo qual eu tomo consciência da consciência intensifica essa consciência, é a famosa, aqui há uma referência implícita à famosa regra do padre Ladusãns: "Se eu sei, eu sei que sei, e se eu sei que sei, então eu sei que sei que sei" e assim por diante. Nem sempre toda a intensidade deste ato intuitivo aparece de maneira explícita, mas implicitamente está sempre ali, quer dizer, se eu sei que tenho uma consciência, então eu estou consciente disto. Quem é que tem, portanto, consciência da consciência? É a própria consciência e assim por diante.

Em segundo lugar, isto se refere à autotransparência da consciência individual, a consciência individual é sempre autotransparente, mas note bem, ela só é autotransparente no sentido pontual, no sentido instantâneo do cogito ergo sum: "Se eu sei, eu sei que sei". Porém, ela é autotransparente de modo permanente e total, ou seja, de quantas coisas que você tem consciência, você está consciente num momento dado? Isto é autotransparência tomada no seu sentido pleno, substantivo, e não apenas como potencial da consciência --- toda consciência é potencialmente autotransparente porque "se eu sei, eu sei que sei". Porém, quanto deste potencial de autotransparência se efetiva realmente?

Assim, o simples fato de eu usar essas três qualidades --- unidade, integridade, e autotransparência --- significa que estou falando de três propriedades distintas e que essas três propriedades podem ser encaradas de duas maneiras, primeiro, de maneira simplesmente potencial. Alguma unidade, integridade e autotransparência a consciência sempre tem; porém pode ser encarado do ponto de vista substantivo, ou seja, qual o nível de autotransparência, quanto de autotransparência o indivíduo tem, de quantas coisas de que ele tem consciência ele está consciente num momento dado? Qual a sua capacidade e a intensidade da sua força de relacionar uma coisa com outra em cada momento? Dito de outro modo, poderíamos chamar isso de a presença da consciência a si mesma. Então, "se eu sei, eu sei que sei", sim, mas quantas coisas eu sei? E, portanto, quantas coisas eu sei que sei e quantas eu esqueci que sei? Então, esse permanente esforço da consciência filosófica para trazer à tela da consciência não isto ou aquilo, não somente o objeto de concentração naquele momento, mas a totalidade da sua referência, a totalidade do seu conhecimento disponível, este esforço é o que caracteriza a formação do filósofo. Então, nenhuma dose de autotransparência é jamais suficiente para o filósofo, ele sempre está se esforçando para saber se ele esqueceu alguma coisa, se algo não está sendo levado em conta. Isto é o tempo todo. [0:20]

É por isso mesmo que, em geral, quando alguém levanta objeções a um filósofo, só pode fazê-lo se estiver consciente da visão integral do mundo que ele tem. Muito provavelmente, o problema que se levanta já foi pensado pelo filósofo, que está consciente dele no momento mesmo em que fala.

Não me refiro somente a mim mesmo; isso se dá com todo e qualquer texto filosófico, a não ser que seja um texto muito ruim. Também é preciso descontar os momentos de distração e de fraqueza do filósofo, que todos têm, evidentemente. Às vezes o sujeito escreve ou diz algo que implica um desmentido a alguma coisa que ele mesmo sabe que é verdade. Pode se tratar de um erro de expressão, de uma expressão infeliz, ou mesmo de um lapso de consciência. Isso pode acontecer a qualquer um; nunca se pode, porém, tomar isso como uma norma.

Dessa autoconsciência, dessa autotransparência intensificada, faz parte o horizonte cultural do filósofo: todos os livros que leu, as pessoas com quem conversou, as obras de arte que viu, os fatos de que está informado. Tudo isso está presente, de algum modo --- de um modo potencial. Mas não existiria uma consciência propriamente filosófica se não existisse o esforço permanente de trazer tudo isso à tona, e de dizer cada palavra com a plena consciência das suas implicações multilaterais, e de todos os domínios do conhecimento e da vida abragidos pela consciência do filósofo.

Em segundo lugar, eu falei de unidade. A unidade da consciência também pode ser encarada de modo potencial, isto é, toda consciência tem, pelo menos, alguma unidade atomística do "penso, logo existo". Dizer isso é o mesmo que afirmar a unidade existente entre a consciência que pensa e a que sabe que pensa. Afirma-se que são a mesma, e que ela continua, prossegue, tem uma duração contínua no tempo.

É o caso, porém, de nos perguntarmos o quanto ela é contínua. Durante quanto tempo sabemos que sabemos? Durante quanto tempo sabemos que, quando pensamos, logo existimos? Durante quanto tempo somos capazes de continuar a pensar levando essa premissa em consideração? Quanto tempo levaremos para cairmos num tropeço e dizermos algo que contradiga o "penso, logo existo"? Isso pode acontecer a qualquer um.

Existe, então, a unidade da consciência, que é a unidade potencial da consciência, a qual é um dado imediato --- "penso, logo existo" ---, mas existe também a unidade real, substantiva, que é resultado da luta, da tensão permanente de resgatar a unidade do esquecimento, da distração e da própria fragilidade natural do ser humano. Essa luta também caracteriza a consciência filosófica, distinguindo-a da consciência vulgar, cotidiana.

Quando eu falo em integridade, refiro-me à dimensão ética desse esforço. Quando o filósofo luta para que todos os dados essenciais da sua consciência estejam presentes no momento em que está focando um ou outro objeto, ele enxerga nisso uma obrigação moral, um dever moral que define, de algum modo, a sua função no mundo.

Então, unidade, integridade e autotransparência são, por um lado, a mesma coisa, e, por outro, coisas diferentes. Cada um deles pode ser encarado de maneira potencial, teórica ou meramente abstrata, como um atributo geral da consciência ou do próprio conceito de consciência, e também pode ser encarado de maneira substantiva, com referência a um ser humano real, com todo o campo de referências que exista na sua memória e na sua presença a si mesmo.

Não sei se isso ficou claro. Espero que tenha ficado.

Tudo isso está subentendido na primeira frase, ou seja, ela poderia ser desenvolvida e virar um livro. Um pouco desse livro possível está dado na frase seguinte. Não se trata

"(...) de qualquer consciência individual, mas daquela que lutou por essa unidade, integridade e autotransparência (...)"

E que continua a fazer isso no instante em que está explicando alguma coisa...

"(...) e que a duras penas as foi, a um tempo, desencavando e erigindo (...)."

O que é desencavar e erigir? A nossa consciência se revela a nós de maneira sucessiva, através de vários retornos a um momento de concentração extrema e de abrangência extrema, cujo resumo está dado no famoso trecho sobre os momentos de lucidez, de um livro chamado L'Intimité Spirituelle, A Intimidade Espiritual, de Louis Lavelle, que eu utilizei numa aula deste curso. Neste trecho, Lavelle fala sobre certos momentos em que a totalidade da nossa experiência de vida está, de algum modo, presente a nós, e que, naquele instante, tudo faz sentido. Ele diz que a sabedoria consiste em retornar a esses instantes.

Ora, o retorno aos momentos de intensidade e autotransparência máximas é o que um filósofo faz o dia inteiro. Se não estamos conscientes disso, daremos, naturalmente, um sentido diminuído a cada frase do filósofo, interpretando-o como se fosse nós mesmos, apenas. Então, em vez de a nossa consciência crescer até as dimensões da consciência do filósofo, diminuimo-la à dimensão daquilo que já sabemos naquele momento, com toda a nossa fragmentariedade e dispersão. Essa é a maneira clássica de não entender o que se lê. É evidente que, desse desentendimento, surgem objeções e perguntas em quantidade infinita; uma coisinha que não entendemos sugere milhões de perguntas, objeções e discussões sem fim, absolutamente desnecessárias se tivéssemos entendido o que o filósofo dizia.

Quando eu falo em "desencavando e erigindo", falo da ambigüidade constitutiva do fenômeno "consciência". A nossa autoconsciência é, por um lado, um dado, algo que temos e que podemos apreender intuitivamente; no momento em que apreendemos, porém, estamos intensificando, e essa intensificação significa que estamos gerando mais consciência em cima da consciência que tínhamos.

A consciência, então, é algo que se descobre ou algo que se cria? É algo que se descobre criando, e se cria descobrindo. Não há solução para esse enigma, pois isso faz parte da própria natureza da consciência. Ela nunca pode ser um dado, simplesmente descoberto, e também não pode ser uma pura construção; ela tem um modo de existência ambíguo. Por um lado, é um dado da realidade, por outro lado, é uma criação que se dá no momento mesmo em que é descoberta. Tudo isso está subentendido nesse "desencavando e erigindo".

Essas duas palavras contêm, implícita, toda uma fenomenologia da consciência que segue mais ou menos as linhas delimitadas por Louis Lavelle nos livros La Conscience de Soi, La Présence Totale, e inumeráveis outros. Embora não seja uma expressão que o autor use --- a expressão é minha ---, é uma expressão lavelliana, por assim dizer. Se o sujeito que lê o meu texto não percebeu isso, ele não entendeu o que estou dizendo.

"(...) desencavando e erigindo até erguê-las acima da turva confusão das paixões e autoenganos (...)"

E, portanto, também da distração, da falta de concentração etc...

"(...) confusão que, em parte ao menos, nasce da absorção passiva, desordenada e acrítica das crenças coletivas."

Isso quer dizer que, além das nossas deficiências naturais, da fragilidade natural e da pouca intensidade usual da consciência humana, ainda se acrescenta outro elemento, que são os dados e exigências do mundo circundante que se impregnam na construção da nossa consciência sem que tenhamos controle sobre isso. Aqui há, portanto, uma referência àquela experiência --- que eu já mencionei para vocês --- de que, quando eu pergunto a pessoas que defendem alguma idéia ou opinião de onde elas tiraram aquilo [0:30], 100% delas são incapazes de contar a origem.

Diante dessa pergunta, em vez de me responder com uma narrativa, respondem-me com um argumento em favor daquilo. No entanto, eu não lhes perguntei sobre o fundamento lógico, mas sobre a origem histórica. Elas não se lembram da origem histórica; como não se lembram, criam uma justificação lógica naquele mesmo momento. Isso é precisamente o que se chama de racionalização.

Racionalização que visa a compensar ou camuflar a fragilidade e a tenuidade da nossa autoconsciência. A única maneira de chegarmos a desenvolver uma autoconsciência suficientemente unitária, íntegra e autotransparente que nos permita fazer a crítica do saber coletivo, como fazia Sócrates, é justamente através do rastreamento da origem das nossas idéias. Acreditamos porque ouvimos falar? Porque tivemos, na hora em que ouvimos falar, um sentimento de concordância? Mais ainda, quando uma idéia chega a nós, acaso sabemos a sua origem externa, isto é, as referências culturais implícitas que estão nela, a origem histórica dela mesma, e não da nossa experiência dela?

Se não sabemos nada disso, não somos capazes de julgar as nossas próprias idéias. Isso acontece em quase 100% dos casos --- eu diria 99,999999%... Quando procuramos sanar, tampar esse buraco, vemos quanta coisa da nossa biografia interna e da história cultural externa precisaríamos saber para podermos entender uma única opinião circulante.

Por exemplo, no dia em que saiu na Veja a minha entrevista, saiu também outra entrevista, de um historiador, que diziam ser um especialista no assunto. O repórter lhe perguntava por que o conservadorismo no Brasil não tem boa fama, por que não é tão popular quanto o esquerdismo, o progressismo --- chamem como quiser. Ele dizia que isso se dá porque os conservadores sempre estiveram contra todas as medidas progressistas e benéficas à população; que, por exemplo, foram contra o abolicionismo.

Eis aí um professor de história que ignora o dado fundamental da história do abolicionismo no Brasil: o fato de que o líder do movimento abolicionista, Joaquim Nabuco, era o próprio líder do partido conservador. O abolicionismo, portanto, foi eminentemente um movimento dos conservadores. É o mesmo que um americano ignorar que Lincoln era do partido republicano...

Aquele historiador desenvolveu uma convicção; mas não sabe de onde ela saiu nem de onde tirou essa idéia --- certamente a tirou de uma impressão confusa que obteve do próprio falatório da mídia ---, e, muito menos, sabe as origens históricas do equívoco que cometeu. A origem é o fato de que, no Brasil, as grandes figuras históricas são geralmente desconhecidas. Aqui nos Estados Unidos, todos sabem o que pensava Jefferson. Toda hora aparecem citações de Jefferson, de Lincoln, de George Washington; no Brasil isso jamais acontece. O pensamento dos líderes brasileiros do passado não faz parte do debate presente, e é por causa disso mesmo que o sujeito disse aquilo. A sua opinião reflete um fenômeno sociológico de ignorância histórica.

Na hora em que percebi isso, eu entendi a opinião dele: entendi não somente o que ele disse, mas também de onde tirou aquilo e qual o fundo sócio-histórico que possibilitou e criou aquela opinião. Quando nos habituamos a fazer isso com os escritos dos filósofos, fazemos o mesmo com as palavras de todo mundo. Em geral, é mais fácil perceber esse contexto psico-histórico nas opiniões correntes dos zé-manés, do que na opinião de um filósofo, porque, por definição, as referências dos zé-manés são mais limitadas, e, geralmente, refletem apenas o falatório atual da mídia, e não um contexto histórico que recua para o passado.

Esse método de leitura dos textos filosóficos acaba se tornando um método de interpretação de todas as idéias correntes. No instante em que percebemos um erro, por exemplo, não percebemos somente o erro lógico ou o erro de fato, mas toda a constelação de fatores histórico-sociológicos que determinaram a existência daquele erro. Esse tipo de leitura é o que os filósofos exercem quando lêem-se uns aos outros. É uma coisa bastante difícil. A formação de uma atenção, ao mesmo tempo aguçada e ampla, é a obra de uma vida; nunca estaremos prontos para fazê-lo, e sempre perceberemos deficiências e erros que cometemos.

No entanto, essa intensificação da consciência, que assegura a unidade, integridade e autotransparência, é a ocupação básica do filósofo. Quando falo "filósofo", isso se aplica também a algumas outras áreas de estudo das ciências humanas, como História e Ciências Sociais. O sociólogo que não tem esse tipo de intuição não entenderá absolutamente nada. Se me perguntarem em quantas faculdades do Brasil isso é ensinado, a resposta será "em nenhuma".

Se isso fosse ensinado nas faculdades, eu não teria de fazer este curso, que eu inventei justamente porque vejo que não se ensina isso a ninguém. Ao contrário, as pessoas, quando lêem, tomam uma frase, verificam se ela combina com o que aprenderam na faculdade, e, se não combinar, dirão que está errada. Isso é a norma geral no Brasil, seja na faculdade, seja na igreja, seja na vizinhança. É claro que a incompreensão pode gerar discussões infinitas e ilimitadas. A coisa vai passando gradativamente da compreensão intuitiva e imediata para uma febre analítica que não termina nunca. Isso, é claro, é uma doença da inteligência.

"É essa luta que dá ao filósofo, juntos e inseparavelmente, a autoridade e os instrumentos cognitivos para analisar, julgar e, se preciso, condenar as crenças estabelecidas."

O primeiro ponto é o seguinte: como o filósofo sabe que uma crença estabelecida é uma crença estabelecida? Ele precisa primeiro ter uma amostragem suficiente, precisa saber mais ou menos quantas pessoas acreditam naquela idéia e subscrevem aquela crença, qual a posição social dessas pessoas, e se elas realmente exercem sobre a comunidade uma influência decisiva, ao ponto de se poder dizer que a crença delas reflete uma crença geral. Em segundo lugar, precisa saber se essa crença geral tem vigência efetiva na sociedade, ou se é apenas repetida da boca para fora, sem que a isso corresponda uma crença genuína.

Existem crenças estabelecidas que não estão de fato estabelecidas, mas que apenas passam enquanto tal. Isso é a definição mesma do que se chama argumento erístico. Em retórica, todo argumento baseia-se numa crença coletiva; toma-se uma crença coletiva como premissa, raciocina-se a partir dela sem contrariá-la. Isso não é um exame filosófico, é apenas retórica.

No entanto, de vez em quando, alguém solta um argumento baseado numa crença que parece estabelecida, mas que, na verdade, não o é. Ele está tentanto vender como se fosse uma crença geral algo que não é realmente uma crença geral, que é apenas uma frase oca, repetida sem adesão íntima ao seu conteúdo, ou que, às vezes, é apenas uma referência do seu grupo, que ele tenta vender como se fosse uma crença geral.

Em terceiro lugar, existe a possibilidade de que crenças gerais de fato estabelecidas contrariem de tal modo os dados conhecidos, que possam ser tomadas como sintomas de uma demência, de uma burrice coletiva. Isso também acontece. Perante cada idéia, perante cada opinião, portanto, é necessário que tenhamos toda essa constelação de percepções; do contrário, não entenderemos verdadeiramente do que se trata: entenderemos apenas a formulação verbal imediata, com base na qual, sem o elo [0:40] e a tensão entre a linguagem e a realidade, nada se compreenderá.

Então, perante cada idéia, perante cada opinião, é necessário que você tenha toda esta constelação de percepções, senão você não está entendendo de fato do que se trata, está entendendo apenas a formulação verbal imediata, e, com base na formulação verbal imediata, ou seja, sem o elo e a tensão entre a linguagem e a realidade, nada se compreende. E essa luta só se torna possível e necessária por causa da constituição dupla e auto conflitiva da própria consciência individual; note bem que eu já me referi a um elemento conflitivo acima, quando eu falei dos dois modos de você entender o conceito de consciência, o modo potencial e o modo substantivo, por assim dizer. Esta tensão entre a consciência como potência e a consciência como potência atualizada num determinado momento é também constitutiva da própria consciência. Mas agora estou falando numa segunda camada conflitiva.

"De um lado essa consciência vai se formando ao sabor de variadas correntes de influência, genéticas e ambientais, que a puxam para todos os lados, e despertam nela exigências múltiplas, mutuamente contraditórias."

Então, isso aí também é uma experiência comum e corrente da humanidade. Você ter, por exemplo, desejos contraditórios ou impulsos contraditórios, qualquer conflito interior que você tenha reflete exatamente isso. Quer dizer, existem forças que puxam você para dois ou três ou quatro lados simultaneamente, sem que você saiba exatamente quem é você dentro desse conflito. Qualquer conflito moral que você tenha reflete esta duplicidade da consciência. Essa duplicidade não, esta falta de coesão da consciência humana.

"De outro lado, a consciência individual tende à unidade, em razão da continuidade da existência corporal; (...)"

De certo modo você é obrigado a ter uma consciência unitária porque a consciência só está onde está fisicamente. Então, a continuidade da sua existência corporal exige que você sempre se refira a um mesmo eu substantivo por trás da consciência; nem sempre você está consciente de tudo aquilo que o compõe, mas sabe que essa totalidade desses dados que o compõe está sempre presente onde você está, e está sempre presente onde a sua consciência está. Então, de algum modo não conseguimos separar a nossa consciência da continuidade da nossa existência corporal.

"Bem como da necessidade de decisões e escolhas que clamam pela unidade de um sujeito agente."

Ou seja, na hora de tomar uma decisão, você tem de unificar os vários dados e as várias correntes de influência, pesá-las todas, e fazer predominar alguma delas, ou sintetizá-las todas numa decisão que as abranja e transcenda de algum modo. Ou seja, toda decisão pressupõe um esforço de unificação da consciência, e como nós temos de tomar decisões continuamente, até para poder andar na rua, para dirigir um automóvel, para pagar suas contas, para exercer um trabalho, qualquer coisa assim -- o tempo todo você tem de tomar decisões, então existe um apelo constante à unificação da consciência.

"Clamam pela unidade de um sujeito agente dotado de auto recordação, (...)"

É lógico. Se você perde o fio da memória, então não tem como você tomar decisões porque os dados lhe escapam.

"(...) perseverança nas ações (...)"

Ou seja, qualquer ação humana supõe alguma continuidade no tempo, e supõe, portanto, que a decisão tomada permaneça válida ao longo do processo, ou então seja conscientemente mudada.

"(...) e capacidade de responder perante os demais agentes em torno."

Ou seja, tudo o que você faz, os outros vão considerar que o responsável é você e não eles. Isto é a coisa mais lógica do mundo. Nessa expressão "capacidade de responder perante os demais agentes em torno", estão contidas várias aulas do meu curso de ética, onde eu falei do princípio de autoria. Quando as pessoas dizem que não existem princípios morais e universais, eu digo: existem vários, e o primeiro deles é o princípio da autoria; de que o responsável por uma ação é aquele que a praticou, e não outra pessoa. Pode haver discussões sobre quem pode ser sujeito de uma ação e quem não pode, inclusive no sentido jurídico da coisa, mas o princípio da autoria continua válido em todos esses casos. No instante em que eu escrevo isso, eu estou me referindo a coisas que eu mesmo já disse.

Uma segunda camada de exigências conflitantes -- na verdade, terceira -- surge do fato de que o indivíduo não tem apenas de se desenvolver como sujeito agente, mas de encontrar ou aceitar um lugar na sociedade, quase sempre sacrificando parte do seu senso de unidade interna às demandas do papel social e ao sentimento de identidade grupal, que sustenta e protege, mas também limita e deforma a sua individualidade. Ou seja, na aquisição de um papel social existe todo um processo complexo e até contraditório de tensões que em parte, pela aquisição de um papel social, evidentemente reforça o seu senso de unidade. Na hora em que você, por exemplo, adquire uma profissão e você diz "eu sou isso ou eu sou aquilo", isso evidentemente é um reforço do seu senso de unidade, porém, em que medida a absorção desse papel social obrigou você a desistir ou a reprimir outros elementos importantes da construção da sua individualidade? Isto sempre acontece. Ninguém se adapta de maneira totalmente confortável a um papel social. Sempre alguma área de tensão existe.

"Nenhum ser humano conseguiria erguer-se à condição de crítico independente das crenças coletivas se as únicas forças em jogo no processo da autodescoberta -- ou autoconstituição -- da sua consciência individual fossem o seu próprio impulso individuante e as exigências e pressões do ambiente social."

Ou seja, se este conflito estivesse limitado a uma luta, a uma disputa, entre o impulso humano de afirmar a sua individualidade e as exigências do meio social, por que seria impossível? Porque de um lado o impulso individuante não é causa sui, mas ele depende de estímulos, de meios cognitivos (entre os quais a linguagem) que vêm do próprio ambiente social. Por exemplo, você jamais poderia ter a pretensão de ser uma individualidade autoconsciente se não tivesse, sequer, o domínio da linguagem, e o domínio da linguagem não vem de você, ele foi dado pelo ambiente social. Isto significa que quando você se coloca contra o ambiente social e expressa a sua objeção em palavras, você está usando de recursos do próprio meio social para se opor à ele. Você não pode fazer isso sozinho. É a mesma coisa que dizer que nenhum indivíduo pode se opor à sociedade sem a ajuda da própria sociedade. No mínimo o que ela pode ter te dado é a linguagem. Mas além da linguagem deu muitas outras coisas. O próprio sentimento que você tem de identificação com algumas pessoas e desidentificação com outras não foi você quem inventou. E assim por diante.

"De outro lado, esse ambiente funda-se, em parte, em necessidades inerentes à própria constituição biológica do ser individual."

Praticamente todas as instituições sociais que existem -- não digo que elas emanem diretamente da constituição biológica do ser humano, mas têm de responder perante ela. Porque se há instituições que vão contra as exigências da biologia, bom, a sociedade se autocondenou. Não só da biologia, mas de toda a condição da existência física do indivíduo humano no planeta. Isso quer dizer que nem um impulso individual é indiferente àquilo que ele recebe do meio social, mas, ao contrário, deve muito a esse meio social; nem o meio social é indiferente às necessidades da individualidade biológica, mas, ao contrário, tenta atendê-las de algum modo -- certo ou errado, mas sempre tentam.

"Todo conflito evolutivo que possa surgir entre essas duas forças se dá, portanto no quadro de uma unidade simbiótica inseparável."

Há uma simbiose entre indivíduos e o meio social, inseparável, mesmo no instante do conflito. O próprio conflito reafirma essa simbiose. Se há um conflito então é porque de certo modo esse meio social é importante para você, e o reconhece como um componente interno seu, até certo ponto.

"No ato mesmo de afirmar sua soberania, o indivíduo se apóia no contexto social e confessa [0:50] implicitamente sua dependência dele. Isso revela-se da maneira mais clara nos casos de inadaptação congênita ou adquirida, em que o indivíduo, ao voltar-se contra o ambiente humano em torno, é expelido para um nível social mais baixo onde desfruta de uma liberdade de movimentos ainda menor que a concedida a seus semelhantes melhor adaptados."

Por exemplo, num caso de desvio de conduta que se torna socialmente intolerável, as pessoas logo tratarão de isolar este indivíduo, e, portanto, privá-lo de meios de ação. Então quer dizer que a afirmação da sua liberdade individual contra o meio social resulta numa perda dessa liberdade. A cadeia está cheia de gente que está lá justamente porque afirmou os desejos ou impulsos da sua individualidade acima do que o meio social admitia. Claro que pode haver casos de pessoas que fazem isso e até se dão bem durante algum tempo. Porém, se elas fazem isso, então elas estão destruindo o meio social. Pode haver o caso da personalidade psicopática, mas que tenha alguma força de influência muito decisiva, ela, de certo modo, vence o meio social, e o leva à destruição. O exemplo das revoluções, golpe de estado, tirania, genocídio está aí para nos demonstrar isso. É claro que se você estuda, por exemplo, a sociedade alemã durante o período nazista, você verá que a sociedade se impregnou de uma série de traços que originariamente pertenciam à pessoa de Adolf Hitler. Ela de certo modo o copia. A influência dele, apoiada num grupo de colaboradores é tão forte que ela dobra o meio social e faz com que o meio social o siga e o imite, em prejuízo próprio, evidentemente.

"Não é esse, evidentemente, o caso de Sócrates. Sua independência interior é real e, em vez de restringir, amplia a sua liberdade de movimentos, abrindo-lhe o espaço para o exercício de um papel social sui generis."

Ou seja, o meio reconhece que Sócrates tem ali uma função que só ele tem. Então é como dizia Ortega y Gasset: "Gênio é aquele que inventa a sua própria profissão". Qual é a profissão de Sócrates? Como nomeá-la? Não tem jeito. Ele era Sócrates e acabou. Então Sócrates passa a ser de algum modo uma instituição social. Não ao ponto de Hitler, que consegue a mesma coisa -- dobrar e subjugar o meio social --, mas ao ponto de pelo menos ser reconhecido como alguém que está ali, que veio para ficar, e que, dentro do meio social, tem um lugar que é só dele. Esse papel social é, sob muitos aspectos, superior ao dos demais membros da sociedade, dos quais alguns o admiram até a veneração, outros o invejam e o temem, ao ponto de desejar matá-lo. Isto mesmo prova que Sócrates conquistou um espaço, e que este espaço era reconhecido, e que a própria necessidade de suprimi-lo fisicamente comprova isso. Se ele não estivesse ocupando esse espaço, para que precisariam matá-lo?

"A conquista dessa independência interior -- e mesmo até certo ponto exterior --, não seria possível num quadro delimitado exclusivamente pelos fatores biológicos e sociais da concorrência simbiótica entre indivíduo e sociedade, concorrência que se desenrola dentro dos padrões sociais existentes e, em última análise, reafirma o primado da sociedade.

A independência que Sócrates conquista, exerce e demonstra apóia-se, com toda a evidência, na interferência de um terceiro elemento, superior e independente tanto dele próprio quanto do meio social, irredutível, portanto, seja à constituição natural da individualidade, seja ao conjunto dos dados socioculturais disponíveis.

É esse elemento que Sócrates denomina o seu daimon, o espírito que o guia entre as exigências da vida, impondo-lhe escolhas e condutas que transcendem tanto os impulsos da sua mera individualidade quanto as regras e preceitos da sociedade em torno."

Isso quer dizer que Sócrates estava submetido a leis que não eram nem dele, não foram inventadas por ele, leis que muitas vezes contrariavam os seus impulsos, e que também não eram os do meio social.

Por exemplo, há o famoso caso que quando houve uma revolução ou golpe de estado que Sócrates apoiou. Em seguida os novos governantes ordenaram a Sócrates -- que era um militar -- que fosse prender um membro da oposição, e Sócrates achou que aquilo era injusto e se recusou a fazer aquilo. Por que ele se recusou? Evidentemente isso não é um impulso biológico, e também não é uma exigência do meio social; é um terceiro elemento. É um dever interior, um apelo de um dever interior, que vem de uma fonte desconhecida e que, para ele, tem uma autoridade maior que a dos seus desejos pessoais e os do meio social em torno.

"O que fundamenta e define a atividade do filósofo não é, portanto, a mera crítica da sociedade, nem muito menos o uso da faculdade a um tempo natural e social da 'razão' como instrumento dessa crítica, mas sim o apelo a uma instância superior habilitada a orientar e julgar tanto o indivíduo quanto a sociedade."

O próprio Sócrates está em constante julgamento pelo seu daimon. O daimon lhe diz: "Você fez isso certo, você fez aquilo errado, abstenha-se de fazer isso, ou faça aquilo...", assim por diante. Então Sócrates não tem autoridade sobre o seu daimon, mas o contrário; é o daimon que lhe diz o que é o certo e o errado, e ele tem de obedecer.

"Ao submeter-se consciente e voluntariamente aos ditames dessa instância superior, o filósofo se torna um emissário dela (...)"

São as famosas leis não escritas. Ele representa, ele é um emissário, um porta-voz dessas leis não escritas, desse elemento divino.

"(...) mas não é a encarnação perfeita e única da sua autoridade, que ele reconhece estar espalhada também no fundo da própria ordem social vigente, por degradada e confusa que esta se encontre."

Então isso quer dizer que todas as normas e regras sociais têm como fundo as famosas leis não escritas, as leis divinas. Mas as instituições e regras sociais podem ter se degradado e confundido a tal ponto que elas só refletem essa lei divina de uma maneira muito imperfeita e, às vezes, contraditória. Mas Sócrates reconhece que ele não é o único portador da lei divina dentro de si, e que a lei divina ainda tem alguma representação na sociedade, por degradada e confusa que a sociedade esteja. Portanto, Sócrates não tem uma autoridade superior à da sociedade. O daimon tem. As leis não escritas têm. Mas ele não é uma personificação, uma encarnação da lei divina, ele é apenas um porta-voz, ele é alguém que lembra às pessoas a existência daquilo, mas que não pode dirigir a sociedade em nome dela.

"Daí o aparente paradoxo de que o mais independente dos cidadãos atenienses se curve obedientemente à sentença do tribunal que o condena, recusando-se, portanto, a afirmar no campo da realidade social empírica uma independência equivalente àquela que demonstrara no domínio do pensamento e da ética social."

Ou seja, Sócrates tem uma independência espiritual, intelectual em relação à sociedade, mas ele não tem uma autoridade superior a ela.

"Sócrates é um porta-voz das 'leis não escritas' que transcendem a ordem social existente, mas não um profeta-legislador incumbido de modificar essa ordem social segundo o padrão determinado por aquelas leis. Sua função é recordar aos homens a existência da ordem transcendente, não implantá-la no mundo pela força da autoridade. Essa continuará sendo, ao longo dos séculos, a missão dos filósofos e a definição mesma do seu modo de ser."

Todos nós sabemos que, além do filósofo, existem outras instâncias, outros entes que representam de algum modo a ordem divina. Um deles é a Igreja. Mas, note bem: a Igreja não surge de inspirações casuais dadas pelas leis não escritas a este ou àquele indivíduo. Não, ela é um conjunto de tradições que reflete diretamente uma ordem divina. Então ela desfruta de alguma autoridade coletiva, aos menos sobre os seus próprios fiéis, coisa que Sócrates não dispunha. Isso também implica uma série de diferenças entre o discurso teológico, o discurso da Igreja e o discurso do filósofo, porque, em princípio, o discurso teológico deriva imediatamente de mandamentos divinos, [1:00] portanto de juízos normativos universais que têm validade em princípio para todos os seres humanos, ou pelo menos para os fiéis da religião.

Entre o discurso teológico -- o discurso da Igreja -- e o discurso do filósofo. Porque em princípio o discurso teológico deriva imediatamente de mandamentos divinos, portanto de juízos normativos universais que têm validade, em princípio, para todos os seres humanos, ou pelo menos para os fiéis da religião. Ao passo que o discurso do filósofo não é uma tradução direta destes mandamentos divinos, mas ele expressa precisamente a repercussão que a percepção desses mandamentos divinos -- destas leis não escritas -- teve numa alma individual. Com isto ele cria uma espécie de mediação entre a sociedade tal com está, os indivíduos tal com existem atualmente, e as leis divinas. Portanto, ele não está nem inteiramente na ordem social existente e nem totalmente identificado com a lei divina. Claro que essa função é socialmente indispensável.

É justamente a tensão que existe entre a experiência da existência individual e a descoberta das leis divinas que se expressa na vida do filósofo. Cada filósofo digno do nome, ao longo do tempo, sempre, sempre, sempre fez exatamente isso. Portanto, a individualidade da consciência filosófica é claramente um dado, mas não individualidade totalmente autônoma; não é um eu que se levanta acima da sociedade e lhe impõe a sua vontade. É um eu que, mesmo nos instantes em que ele se opõe à ordem social, está obedecendo à outra ordem superior e sabe disto. O simples fato, por exemplo, quando o filósofo corrige uma crença coletiva: "Todo mundo tá acreditando nisto, mais nisto e mais nisto, mas nós sabemos que não é verdade." Isso se aplica, em parte, até mesmo à investigação científica, a qual é uma espécie de continuidade -- um pseudópodo -- lançada pela consciência filosófica. Quando Louis Pasteur demonstrou que não havia geração espontânea, ele contraiu uma coisa que todo mundo sabia. E ele o fez em nome do quê? Do puro e simples método científico? É claro que não. O método científico os outros também conheciam, mas o faz em nome de uma exigência de veracidade, que não depende do método científico, mas ao contrário, que é uma das raízes de sua constituição.

"Essa continuará sendo, ao longo dos séculos, a missão dos filósofos e a definição mesma do seu modo de ser."

O problema todo, sobretudo no panorama atual, é que no curso do exercício dessa função muito peculiar do filósofo, ele tem de adquirir ou gerar os instrumentos cognitivos necessários para isso. E estes instrumentos cognitivos, uma vez gerados, são legados às gerações seguintes, como ferramentas intelectuais que podem ser ensinadas de algum modo. Por exemplo, o método anamnético de Sócrates: lembrar-se do que você já sabia. Ele usa a imagem da existência anterior, mas não precisa ser interpretado necessariamente num sentido re-encarnacionista. "O anterior" pode ser entendido em seu sentido lógico, ou ontológico, e não necessariamente temporal. Este método pode ser ensinado; e eu, em parte, procuro ensinar para vocês isto: começarem a investigação declarando para vocês mesmos o quê vocês já sabem a respeito, ou aquilo que, pelo menos, crêem. Este método inclui o rastreamento da origem das suas idéias -- isso é básico; você conhecer a origem das suas idéias é mais importante do que saber discuti-las. A arte da discussão, a arte da controvérsia, é uma coisa que está acessível a qualquer garoto de 12 anos. Esta habilidade lógico-dialética-retórica é um dom natural do ser-humano e ele independe totalmente da quantidade e validade de seus conhecimentos, assim como independe da qualidade de sua experiência da vida. Geralmente, nós descobrimos esse dom quando estamos na adolescência, que é a idade das discussões. Qualquer informação que você ouve pode imediatamente proliferar numa série de outras frases, que as confirmem, ou as desmintam, ou as coloquem em dúvida; é um processo quase automático. Por isso eu digo que a recordação da origem de suas idéias é mais importante do que a capacidade de discuti-las. Discutir se possível, deve ser deixado para depois, de modo que, quando entre na discussão você entre, como se diz: com a sua bagagem repleta, ou seja, sabendo do que você está falando, de toda substância experiencial da coisa e não apenas o seu conceito verbal.

Mas entre estes instrumentos existe um que se chama: a lógica. O que é a lógica? É a coerência interna do discurso. É a coisa mais evidente do mundo que a coerência interna do discurso só existe como expressão da integridade da consciência individual. Não pode haver um discurso coerente que surja por si mesmo e independente da consciência do indivíduo ser uma espécie de farelo -- um conjunto de fragmentos. Se você tem uma mente fragmentada, então a coerência do seu discurso é apenas um fetiche, evidentemente, é uma camuflagem da incoerência da sua percepção das coisas. Acontece que a lógica pode ser ensinada sem referência à integridade da consciência. E ela pode não apenas ser ensinada e transmitida, mas pode ser codificada em regras permanentes, e estas podem ser até colocadas num computador. A lógica, então, é como a integridade da consciência que se externalizou e se coisificou. Ora, o domínio do instrumental lógico é considerado um elemento importante na formação atual do filósofo, mas ela é considerada assim independentemente da sua raiz na integridade da consciência individual. Então, evidentemente, se torna uma forma extrema de alienação, em que a coerência do discurso passa a encobrir a incoerência da experiência interna, ou a incoerência da visão do mundo, ou a incoerência da própria personalidade. Por isso que eu insisto aqui: a alma dispersa e fragmentada que começa a estudar lógica, ela destrói a sua capacidade cognitiva, às vezes, para sempre. Então, antes de aprender a técnica lógica você tem de aprender a técnica da integridade da consciência, para que sua lógica seja um reflexo -- uma manifestação -- da integridade de sua percepção das coisas e não um fetiche destinado a encobrir justamente a incoerência da percepção.

A lógica emana do senso da unidade do real e este emana do senso da integridade de sua consciência. Este senso de unidade -- de unidade complexa, tensional, dialética -- isto que é fundamental na filosofia. A lógica, ou é uma expressão dela, ou é um fetiche destinado a encobrir a falta dela. Evidentemente, como a arte da discussão -- o impulso de discutir -- é uma coisa que aparece na adolescência e se o indivíduo começa nesta época não apenas a estudar lógica clássica, mas até a lógica matemática, aí está perdido. Ele nunca vai acertar. Ele vai inventar um monte de recursos altamente sofisticados para se enganar, às vezes, até nas coisas mais elementares. Eu vou dar um exemplo para vocês: [1:10]

[queda de transmissão]

Eu disse que ia dar um exemplo; tenho-o aqui de uma mensagem recebida -- não sei se é aluno ou não é; não vou citar o nome aqui. Ele expressa uma dúvida que ele tirou, não do Curso Online, mas do programa TrueOutspeak:

"O senhor disse que de um juízo universal normativo não se pode deduzir nenhum juízo de realidade com relação a nenhum fato concreto. Na lógica clássica de predicados, ou de primeira ordem, existe uma regra de inferência conhecida por regra gama, com a qual se pode inferir de expressões que façam uso de um quantificador universal a abrangência de casos particulares."

Bom, daí ele explica isso aí... Acontece o seguinte, a abrangência de casos particulares depende de se o caso particular se enquadra na classe referida. Por exemplo, eu posso detalhar -- deduzir -- de um juízo normativo universal aplicações cada vez mais, mais e mais particularizadas, até abranger certas classes muito restritas de comportamentos, mas nada disso medirá se um fato concreto se enquadra mesmo nisto ou não.

Por exemplo, quais são as modalidades possíveis do pecado de falso testemunho? Você pode detalhar milhões, ir descendo, descendo e descendo até milhões de possíveis casos particulares, mas esses casos particulares serão sempre apenas possíveis casos particulares. Para você saber se ato concreto -- um fato concreto -- acontecido no dia tal, às tantas horas, se enquadram, ou não, nessa classe, você tem de examinar o próprio fato. Qualquer juízo lógico que você faça depende de que o fato considerado esteja incluído na classe que o juízo abrange e isso é impossível deduzir da própria lógica, isso é materialmente impossível. Ele está confundindo, simplesmente, o detalhamento ou a extensão analítica do juízo a casos cada vez mais particularizados com um juízo sobre um fato concreto em particular. Você pode julgar esse caso em particular, sim, desde que você saiba que ele se enquadra na classe considerada e esse enquadramento depende do exame do próprio fato concreto; que é o que se chama, no direito, a tipificação. Por mais que desça do geral para os particulares, você está falando apenas de tipos, ou classes como se diria em lógica, e é necessário que fato considerado corresponda à tipificação, e esta correspondência tem de ser obtida pelo exame empírico do próprio fato e não simplesmente por uma dedução lógica. O que você está exigindo aqui é uma coisa que contraria de tal modo os princípios do método científico. Essa objeção nem deveria ocorrer a uma pessoa que tivesse aquilo que chamo de instinto lógico.

O estudo da lógica a este nível -- claro que ele estudou bastante lógica --, o estudo de lógica construído em cima de uma deficiência de instinto lógico vai levar a erros monstruosos como este. Simplesmente não é possível você deduzir de nenhuma norma lógica se um fato aconteceu ou não e que tipo de fato ele é. Isto é evidentemente um juízo de experiência -- um juízo de realidade obtido da experiência -- e que pode, ao obter a descrição estrutural do fato, verificar a sua correspondência com um tipo ou uma classe, mas você fazer isso por mera dedução lógica é absolutamente impossível sob todos os aspectos. É o caso onde uma contradição monstruosa é construída com instrumentos lógicos sofisticados; isso é o desastre brasileiro de hoje em dia. O número de pessoas que cometem esses erros é monstruoso.

No YouTube, onde eu coloquei aquela gravação dizendo que o homossexualismo não é nem antinatural, nem é doença, nem é prejudicial à ordem social, e expliquei a mudança do sentido do termo "natureza": que no contexto antigo e medieval representava a natureza integral do ser-humano definida pela sua finalidade última e, portanto, pelo seu destino eterno e no sentido moderno onde a natureza é encarada como um campo -- um domínio -- autônomo que deve ser compreendido fora de toda a referência ao sentido sobrenatural. Explicando tudo isso, daí as pessoas vêm: "Não, o senhor está errado, porque aqui: Paulo na carta tal diz que os homens abandonaram o uso natural das mulheres para se entregar a torpezas etc." O que Paulo quer dizer com natural? O natural no sentido antigo é a lei divina, tal como se apresenta em si mesma, ou tal como se manifesta na natureza. Porém, a natureza não é de maneira alguma a manifestação perfeita da lei divina, ela tem a sua própria constituição e a suas próprias exigências que a tornam distintas e, às vezes, conflitiva com a ordem divina; isso é a coisa mais óbvia do mundo. As pessoas insistiam e insistiam em usar...

Acabei de explicar que o termo "natural" nesse contexto antigo e medieval não tem o mesmo sentido e as pessoas voltavam, voltavam e voltavam a citar textos em que a palavra "natural" os havia impressionado. Eu acho isso sumamente grave, porque nós não estamos falando com pessoas analfabetas, em geral são estudantes, pessoas medianamente letradas, mas que partiram para estudos especializados -- receberam estudos especializados na universidade -- antes de ter sequer a idéia de cultura. Não é cultura geral no sentido que a palavra tem vulgarmente -- que é você ter interesse em várias coisas --, mas é você ter alguma concepção geral da realidade que seja compatível com o estado do debate cultural; mas quando não há debate cultural algum, então sobra apenas a formação profissional e ela, para aquele indivíduo, representa o todo e o suprassumo da cultura.

Aí acontece aquilo que profetizava Karl Kraus: "Quando o sol da cultura baixa no horizonte, os anões começam a projetar sombras muito grandes." É claro que é um estado extremamente anormal, perigoso, que facilita a ascensão de toda a sorte de mentalidades deformadas e doentes e que, no que diz respeito à formação da juventude estudantil, tem efeitos absolutamente devastadores, destruindo pessoas e inteligências que até seriam naturalmente dotadas, mas que vão se enroscar num tal emaranhado de dificuldades lógicas intransponíveis e o próprio culto dessas dificuldades lhes parecerá uma arte sofisticadíssima -- um exemplo de alta cultura; então é uma espécie de burrice letrada, que é ainda pior do que a burrice natural.

Eu acho fantástico que um estudioso de lógica acredite na possibilidade de você, de uma regra geral, deduzir um fato concreto. Em primeiro lugar, se um fato aconteceu ou não, é um dado empírico. Se fosse possível você deduzir fatos particulares de normas lógicas, então nós voltaríamos não ao racionalismo clássico, mas a uma hipertrofia do racionalismo clássico de tipo espinoziano, onde eu não preciso do conhecimento por experiência: nós temos aqui as regras gerais e delas nós deduzimos tudo o que aconteceu; está acontecendo e vai acontecer, ou seja, é uma sabedoria divina. Deus não precisa da experiência do fato concreto, ele já sabe antecipadamente tudo o que aconteceu e o que vai acontecer, todas as variedades, todas as possibilidades dentro do campo integral da experiência. Se isso que você está dizendo fosse possível, seria uma sabedoria divina. Por exemplo, para saber se o sujeito pecou ou não, nem precisa examinar os fatos, você já sabe por dedução lógica: "Por dedução lógica fulaninho vai pecar tal dia, vai transar com a mulher do vizinho, [1:20] vai roubar, vai trapacear, vai beber"; é uma presunção tão demencial que o mínimo de instinto lógico já deveria prevenir você para não cair nisso.

Quer dizer, Deus não precisa ter a experiência do fato concreto, Deus já sabe antecipadamente tudo que aconteceu, vai acontecer, ele sabe todas as variedades, todas as possibilidades dentro do campo integral da experiência; então, se isto que você está dizendo fosse possível, seria uma sabedoria divina. Então, veja, por exemplo, para saber se um sujeito pecou ou não você nem precisa examinar os fatos, você já sabe por dedução lógica, "por dedução lógica fulaninho vai pecar tal dia, vai lá transar com a mulher do vizinho, vai roubar, vai trapacear, vai beber". Então, é uma presunção tão demencial que o mínimo de instinto lógico já deveria prevenir você para não cair nisto. Então, está aí o exemplo.

Tem perguntas aí? Um momento, que nós vamos pegar as perguntas.

Aluno: O senhor já considerou a possibilidade que a humanidade esteja vivendo a desintegração positiva?

Olavo: Bem, é desintegração... Um processo de desintegração ser positivo ou negativo não pode ser decidido no curso do próprio processo, porque ele depende de decisões e escolhas que você vai fazendo no curso do próprio processo, então não tem, vamos dizer, "Essa desintegração é positiva ou é negativa", depende do que nós fizermos. Então, eu acho que o que podemos fazer, é nos esforçar para que esse estado de desintegração se converta em desintegração positiva, mas não podemos profetizar que será positiva ou negativa. Então, o fato é o seguinte: é que existem essas duas possibilidades e historicamente, em geral, os processos de desintegração não têm um resultado positivo, dificilmente você vê uma civilização superar uma crise que abale seus próprios fundamentos e renascer, por assim dizer. Você tem renascimentos parciais, por exemplo, tem uma crise econômica, uma guerra; mas peraí, uma crise que cria um estado, não de dúvida, mas de falta de discernimento geral é uma coisa muito grave.

Eu acho que a crise da humanidade presente não é uma crise de civilização, eu acho que é uma crise antropológica. No momento em que você vê propostas como esse superhumanismo, quer dizer, gerar uma nova espécie a partir da mistura de espécies em laboratório, para criar uma nova espécie para substituir a espécie humana, então a crise chegou a uma profundidade que não é mais uma crise de civilização; o que isso arrisca não é esta civilização ou aquela civilização, é a constituição biológica da espécie humana. Então não é para brincadeira, como é que nós vamos tirar uma coisa positiva daí?

Muitas vezes a tecnologia resolve problemas que ela mesma criou, por exemplo, toda esta crise industrial do Ocidente pode vir a ser resolvida de uma maneira absolutamente espetacular por um negócio que eles chamam a "impressão tridimensional". Quer dizer, onde você, partindo do princípio de que todo objeto corresponde a um programa de computador, nada impede que você, tendo o programa correto, crie aquele objeto. Então, hoje em dia já é possível você, por computador, criar peças de automóvel, que em seguida é montado na sua frente. Tem uma impressora tridimensional que, dados os materiais adequados, produz aquilo. Isso já existe, e muitas empresas já estão usando, não está ainda em escala industrial, está em escala experimental apenas; mas a possibilidade existe. E que significa isso aí? A noção de fábrica que nós temos cessaria de existir, não há mais fábricas. Os objetos são feitos por indivíduos isolados trabalhando nas suas casas de acordo com as especificações que eles mesmos querem; então, não existiria mais linha de fábrica, linha de produção, quer dizer, teria uma revolução econômica extraordinária, tem gente que acredita que isso vai realmente acontecer. Isso quer dizer também que, de repente os Estados Unidos estariam livres dos produtos made in China, porque seria tudo feito em casa, por assim dizer.

Tudo isto é possível, porém nós não podemos esquecer que a tecnologia não é constituída de recursos postos à disposição da "humanidade", é um recurso posto à disposição de quem pode pagar por eles. E muitas das criações tecnológicas são tão, tão, tão, absurdamente dispendiosas que nem mesmo as fortunas particulares podem arcar com elas, somente o Estado pode. Então, o Estado e aqueles cinco ou seis grupos que repartem o poder com ele, porque o sistema econômico no qual nós vivemos é uma espécie de versão mundializada da economia fascista; só se distingue da economia fascista porque esta é eminentemente nacional, circunscrita a um território, mas o esquema é o mesmo, quer dizer, não há uma socialização total dos meios de produção, mas há uma repartição do poder econômico entre o Estado e cinco ou seis parceiros multibilionários. Então, como dizer, é o socialismo dos ricos, aliás, todo socialismo é socialismo dos ricos.

Você já viu pobre subir no socialismo? Isso não acontece. Isso é absolutamente impossível. Quanto mais o Estado detém os meios de produção na sua mão, tanto mais difícil é você subir exceto pelos canais criados pelo próprio Estado, ou seja, sem uma carteirinha do Partido Comunista você não sobe. E a carteirinha não garante de maneira alguma a ascensão social. Então, se você fizer um estudo sociológico dos mecanismos de afluência, por assim dizer, ou de ascensão social na União Soviética, você vai ver que era enormemente difícil escalar a hierarquia social, muito mais difícil... Aqui nos Estados Unidos toda hora você vê um pobretão virando milionário do dia pra noite, lá não, a ascensão social era uma vida de esforços para ir galgando, gradativamente, os graus da hierarquia, então era uma sociedade altissimamente estratificada. Uma vez um conhecido que foi conselheiro de embaixada na União Soviética me perguntou: "Você sabe o que é uma dacha?", e eu disse: "Uma dacha é uma casa de campo de um alto funcionário do governo soviético", aí ele falou: "Não, não é isso. Você conhece o Museu da República, no Rio de Janeiro?". Eu: "Conheço". Ele: "Aquilo é uma dacha". Uma dacha é uma casa daquelas proporções, construída na frente da praia, com um jardim daquele tamanho, então, uma dacha é uma coisa equivalente ao que era a residência do Presidente da República no Brasil. E você fala: "Tem muitas dessas dachas?". Ele: "Ah, tem um montão, toda hierarquia tinha isso". Agora, para você conquistar isso, meu filho, é uma vida de esforços.

Então, quer dizer, tentar tirar um sentido positivo do presente estado de desintegração é um esforço monstruoso, não podemos profetizar isso, e eu acho que os indícios que estão no ar, os indícios negativos, me lembram --- nesses dias mesmo eu estava ouvindo a ária do Macbeth, a ária do banco. Isso aí são coisas que "enchem o pensamento de larvas e de terror", e eu acho que as informações que nos chegam diariamente nos dão conta da criação de um estado de coisas quase apocalíptico. Não vamos disfarçar que não é isso que está acontecendo --- ao ponto que pensar que a única solução para isso é uma interferência divina não é nada irrealista.

Aluno: Caro professor, na linha das coisas da psicopatia, é curioso que Hollywood venha mostrando o psicopata como um sujeito que gosta de belas artes, ópera e música clássica...

Olavo: Ah, o Dr. Lecter não estava lá, ouvindo as Variações Goldberg de Bach, tendo sentimentos sublimes? O puro estetismo desligado de qualquer sentimento moral é característico do psicopata. E não só o estetismo, o gosto pelas belas artes consideradas até independentemente do seu valor estético, isso é um fenômeno característico da modernidade.

Eu não li ainda, só li uns pedacinhos, mas vou mostrar para vocês. Jean Clair é conservador dos museus da França, talvez o mais alto posto na hierarquia museológica francesa, e escreveu esse livro, Hubris: A Fábrica do Monstro na Arte Moderna. Antes do texto, já tem uma coleção de obras de arte com formas monstruosas, horríveis, nojentas, e são obras importantes [1:30]; seja das belas artes, seja da arte da propaganda política, por exemplo. Então, isso nunca aconteceu na história, só que este estudo aqui já está atrasado, porque esse culto do monstruoso começou nas belas artes, mas depois se espalhou pela cultura popular e até para a arte infantil. Você assiste a filmes como Shrek, por exemplo, é evidente que estão adestrando as crianças para dessensibilizá-las para a diferença entre o belo e o horrível. Até o senso do nojento. Até os chamo de filmes de melecas, onde já passou assim do... Filme de violência, sangue, daí eles falam "Não, não, agora os caras não querem mais sangue, precisa de fezes, bile, vômito, se não tiver uma coisa fisicamente nojenta os caras não se contentam". E o pior é que acham que isso é realista, mas veja na vida real quantas vezes você vê essas substâncias? Rarissimamente. Quantas vezes você viu vômito? Você vomita todo dia, as pessoas da sua casa ficam vomitando o tempo todo? Não, isso acontece uma vez a cada dez anos, o sujeito bebeu, vomitou. No entanto, a exibição obsessiva disso lhes parece a realidade, quando não o é, evidentemente, é uma coisa hipnótica, feita para desviar você da estrutura da realidade e fixar o seu olhar obsessivamente em certos detalhes que na estrutura geral não têm peso algum.

Aluno: Lendo o texto da aula de hoje me detive na frase que diz que a função de Sócrates é recordar aos homens a existência da ordem transcendente, não implantá-la no mundo pela força da autoridade. Nunca a coisa se me afigurou de outro modo, mas quando penso em Moisés, vejo ali um homem que em contato estreito com a ordem transcendente, tem como incumbência não só recordar ao homem, mas ainda implantar na realidade.

Olavo: Esta é a diferença entre o filósofo e o profeta legislador. Qual é o profeta legislador mais típico que tem? É exatamente Moisés. Ele personifica, de algum modo, a autoridade divina, então Moisés não vem para interpretar o mundo, para compreender o mundo, mas para transformá-lo. A diferença é que, a partir do século XIX, os filósofos começaram a achar que eles são profetas legisladores, e o resultado das suas ações não podia ser senão deformidade, monstruosidade e quantidade de sofrimentos inimagináveis para toda a humanidade anterior.

Alguém fez uma pergunta aqui que eu acho que já respondi.

Aluno: Qual a diferença entre a fenomenologia do espírito de Hegel para a de Husserl?

Olavo: Eu não respondi isso numa aula anterior? Eu acho que já respondi essa pergunta.

Aluno: O senhor poderia indicar a bibliografia a respeito de cinema, teoria do cinema e história do cinema?

Olavo: Posso, posso, mas não agora, eu vou fazer... Isso aí é muito interessante, inclusive estou pensando que o próximo curso que eu vou dar aqui em outubro será exatamente sobre isto. Eu não decidi ainda, mas estou mais ou menos nessa linha porque o advento do cinema abriu possibilidades estéticas, possibilidades de concepção e possibilidades cognitivas absolutamente fantásticas. E nós, hoje, precisamos do cinema para ilustrar uma série de percepções que nós temos.

Aluno: Seria errado dizer que Sócrates chegou a um estado de quase santidade?

Olavo: Eu diria aquilo que o Romano Guardini disse a respeito de Pascal: ele não era um santo, ele era um grande cristão. Quer dizer, a santidade pressupõe que algo da autoridade divina se incorporou e se manifesta fisicamente naquele indivíduo, não só intelectualmente. São Tomás de Aquino não é santo só por causa das coisas que ele descobriu ou escreveu, mas porque se você orar para São Tomás de Aquino pela intercessão funciona. Quer dizer, para ser santo é preciso de milagres comprovados, não basta você ter uma bela doutrina, não basta você ser um sábio, e não basta você ser o maior dos filósofos. Sócrates foi um cristão avant la lettre e foi um grande cristão avant la lettre.

Aluno: Quanto aos filósofos ateístas e materialistas, o que corresponderia na sua filosofia ao daimon*?*

Olavo: Ah, o daimon pode passar através duma mentalidade ateística, você vê sinais, eu vejo George Santayana, por exemplo. Porém, é preciso ver aquilo que, não lembro quem foi que disse. Um verdadeiro ateísta é muito raro, porque, para ser um ateísta o sujeito tem de reconhecer que o mundo se compõe apenas de objeto e que não há significação, toda significação são apenas construções humanas destinadas a se desfazer, então nós estamos num mundo de objetos sem conexão e sem sentido. Por exemplo, esta visão de mundo aparece nos poemas do Wallace Stevens, que tem, por causa disso, uma espécie de, eu não digo beleza sinistra, mas a tristeza daquilo é indescritivel. Mas eu acho que a possibilidade de conceber o mundo assim nos é dada pelo próprio espírito. Nós não conseguimos baixar ao, vamos dizer, ao nível da pura materialidade. A pura materialidade não poderia conceber-se a si mesma como tal, ela seria totalmente inconsciente. Então o daimon está lá, mesmo nas poesias do Wallace Stevens, que, aliás, eu aprecio enormemente. São as coisas mais esquisitas, são objetos e estados pairando como se fosse num vácuo, é muito difícil descrever aquilo.

Aluno: Considerando o caráter unitário e aberto da consciência, até que ponto se poderia fazer um paralelo entre o gnosticismo ocidental e as noções budistas no sentido da consciência de perder sua individualidade, e, portanto, sua unidade, dissolvendo a autotransparência em absoluta transparência, ou seja, encerrando a luta da consciência em uma luta ativa no esvaziamento de si?

Olavo: Essa idéia da transfiguração do indivíduo numa espécie de espírito universal, eu não acredito nisto. Ninguém realizou isto. É tudo balela. Quando você vai ver o espírito desses grandes iniciados que chegaram ao último estado da redenção, eles conservam todas suas limitações individuais. Se o indivíduo se autotransformasse efetivamente, não apenas potencialmente, não apenas por desejo, no espírito universal, ele teria, naturalmente, o poder desse espírito universal, o poder criador e o poder modificador da realidade; em suma, faria milagres uns atrás dos outros, muito mais do que os faz um santo como Padre Pio. Às vezes, quando você vê o Padre Pio, você tem a impressão de que ele não é mais o Padre Pio, ele é Jesus Cristo. Não, ele é um aspecto, alguns aspectos de Jesus Cristo. Então é a presença de Jesus Cristo, mas não é a presença inteira.

Veja Jesus Cristo não se limitou a fazer o paralítico andar e a fazer o cego enxergar, ele criou o mundo, meu Deus do Céu! Ele criou uma coisa que nós chamamos a realidade, quer dizer, a realidade é a primeira Revelação. Então, isso que as pessoas frequentemente esquecem, "Ah, a Revelação está na Bíblia", eu falo: "Não, meu filho, muito antes de mandar escrever a Bíblia, Deus criou o mundo". Então o mundo é uma escritura sacra, o mundo, a realidade da experiência é uma escritura sacra, e é assim que nós temos de interpretá-la. O que quer dizer aquele verso "o céu e a terra cantam a glória de Deus"? Quer dizer que, se você interpretar a realidade corretamente, verá ali a ação divina. Mesmo nos seus aspectos mais monstruosos e demoníacos a realidade evidenciará isso, por contraste, de maneira paradoxal. Então, muitas pessoas gostam de interpretar a realidade à luz da Bíblia; eu penso que tem de fazer o contrário, interpretar a Bíblia à luz da realidade.

A partir da experiência que você sabe a profecia bíblica adquire para você um sentido, você entende o que ela está querendo dizer. Assim como na interpretação de obras de arte, você usar a obra de arte como um suporte para a interpretação da realidade e vice-versa. Na verdade todo mundo faz isto, só que alguns não sabem. Uns querem pegar o texto da Bíblia e deduzir diretamente, eu falo: "Meu filho, entre o texto da Bíblia e você existe uma mediação, que é o lugar onde o texto da Bíblia apareceu, e este lugar chama-se mundo, ou realidade, o qual foi a primeira revelação divina". Como é que Deus fez o mundo? Passou poder à sua Palavra, o Logos, então o mundo é um ilimitado, imenso [1:40], inabarcável discurso divino, do qual a Bíblia aparece como um esclarecimento, você não está entendendo o mundo então Deus manda a Bíblia para ajudar um pouquinho, mas é só um pouquinho.

A dissolução da individualidade da consciência no espírito universal é uma expressão hiperbólica, uma figura de linguagem. É curioso você observar como todos esses iniciados de vigésimo-terceiro ou tricentésimo-terceiro grau conservam as suas limitações individuais. Eu tive a ocasião de conviver com um deles e ver que algumas de suas limitações individuais raiavam à estupidez moral pura e simples.

Então, por hoje é só. Nossos melhores votos ao Ângelo Monteiro, estou muito contente que você esteja aí com nossos amigos no Instituto Olavo de Carvalho. Volte sempre, e veja se não vai só aí ao Paraná, mas venha para cá, para os Estados Unidos. Até semana que vem e muito obrigado.

Transcrição: Instituto Olavo de Carvalho -- Curitiba: Guilherme Santos Zomkowski, Rafael Augusto Salvi e Bruno Rodrigues da Cunha.

Revisão: Antonia Javiera Cabrera Muñoz