Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 152
28 de abril de 2012
Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
Nós temos aí um texto que são umas anotações que foram tomadas por um aluno do Seminário que está aqui, o Maurício, durante uma gravação feita para o seminário -- a gravação será posta online nos próximos dias, mas essas notas me pareceram úteis porque são pertinentes ao assunto que nós estávamos discutindo nas aulas anteriores. Mas, antes de entrar nisso, eu queria comentar com vocês que, durante a semana, apareceu um vídeo na internet do senhor Rodrigo Constantino advertindo que o Curso Online de Filosofia é uma seita, que vocês estão sofrendo lavagem cerebral, então, portanto, fiquem alertados para o perigo que correm. Eu queria aproveitar a ocasião para lançar aqui uma imposição de mãos -- Zzzzzzzz! --, e avisar a todos vocês que, qualquer problema, "Ligue já!". A gravação do sujeito é de um pitoresco atroz e foi motivada pelo fato de que ele disse que eu lhe atribuí umas palavras que ele não disse, e que eu coloquei palavras na boca dele. Eu até escrevi um negócio para o Diário do Comércio que ficou muito interessante e eu vou ler para vocês. O artigo chama-se "Inocente como um feto".
"O traço mais pitoresco do analfabeto funcional é que ele não compreende o que diz. A maneira mais rápida e fácil de diagnosticar isso é verificar se as afirmações dele conduzem, de maneira imediata e incontornável -- não remota e forçada -- a conseqüências que ele mesmo não subscreve de maneira alguma.
Num de meus últimos programas de rádio, critiquei en passant o senhor Rodrigo Constantino por conceder ao Estado, cujo poder ele abomina e diz querer limitar por todos os meios, o mais alto e presunçoso dos poderes, que é o de conceder ou negar a condição de ser humano a uma criatura nascida de pai e mãe humanos.
Vermelho de raiva -- literalmente --, ele colocou na internet um vídeo em que me acusava de mentiroso, jurando que falsifiquei o sentido de suas palavras; que nunca lhe passara pela cabeça atribuir ao Estado tamanha prerrogativa. Nem precisava. Sei perfeitamente que essa idéia jamais lhe passou pela cabeça. Passou a quilômetros de distância dela, sem nem mesmo roçar-lhe a carapaça, quanto mais o conteúdo, se algum existe. Nem eu afirmei o contrário.
Afirmei, sim, que aquela conseqüência, por menos que o senhor Constantino o percebesse, decorria logicamente, necessariamente, imediatamente, da sua opinião quanto ao começo da vida humana. E afirmo agora que, ao bradar contra a conseqüência sem abdicar da premissa que a impõe, ele dá prova cabal de que não entende o que diz.
Qualquer pessoa na posse normal das suas faculdades mentais percebe que, se a condição humana não é inerente ao feto desde o instante da concepção, alguém terá de decidir em que instante do processo gestativo essa condição se anexa a ele. É isso, precisamente, o que advoga o senhor Constantino: ninguém é humano por natureza, desde o instante da geração. Torna-se humano depois. Quem decide o 'quando'? Como dessa decisão depende o direito -- ou não -- de interromper a gestação mediante um aborto, é lógico que terá de ser uma decisão legal, imposta uniformemente a todos os membros da sociedade pela força do Estado. Logo, torna-se prerrogativa do Estado determinar o momento em que o feto em gestação, até então inumano, se torna humano e passa a ter direitos humanos. Não há uma terceira hipótese concebível.
A conseqüência, por ir flagrantemente contra as convicções liberais e anti-estatistas que ele alardeia com tanta paixão, parece abominável ao senhor Constantino. Mas ela decorre inapelavelmente da sua própria opinião segundo a qual a condição humana não é um dado imediato, inerente ao puro fato de o nascituro ter sido concebido por dois seres humanos, e sim o resultado de uma decisão posterior tomada por terceiros. O único terceiro que pode impor essa decisão é, com toda a evidência, a autoridade legal, o Estado.
Defender uma opinião sem arcar com o ônus das suas conseqüências é, no mínimo, uma irresponsabilidade. Mas toda responsabilidade cessa quando o emissor da opinião dá provas de não ter percebido conseqüência nenhuma. O senhor Constantino não só provou isso, mas provou também que, mesmo depois de alertado, continua incapaz de percebê-la -- e isto ao ponto de atribuir enfezadamente a mim, que só apliquei à sua opinião uma regra elementar de lógica dedutiva, o desejo perverso de falsificar o sentido das suas palavras. A prova de inépcia suspende, automaticamente, a responsabilidade moral, civil e penal.
Ninguém nega que o senhor Constantino seja, na sua dupla e contraditória atitude, perfeitamente sincero: ele quer porque quer que o feto não seja humano desde a gestação, mas também rejeita enfaticamente, apaixonadamente, a hipótese de que ele se torne humano mais tarde por decisão legal. Ele usa a primeira afirmativa como argumento para justificar a legalização do aborto, mas ao mesmo tempo não aceita que uma coisa tenha algo a ver com a outra. Se ele percebesse nisso alguma incongruência, e continuasse, por malícia, a defender a opinião incongruente, seria um farsante, mas não um genuíno analfabeto funcional. Mas ele não percebe nada. Está inocente: inocente como um feto.
Há indivíduos que desejam casar, mas permanecer solteiros. Outros querem falar grosso como homens adultos, mas continuar desfrutando do colinho da mamãe e da proteção do papai. Outros, ainda, querem que dois mais dois sejam quatro sem deixar de ser cinco. Todos são sinceros. Todos são inocentes.
A diferença que os separa do senhor Constantino é que, em geral, eles não se pavoneiam de ser porta-vozes da 'razão', nem proclamam que quem discorde deles é um fanático religioso, um obscurantista, o apóstolo de uma ditadura teocrática ou coisa pior. Contentam-se com desfrutar da sua inépcia em privado, sem desejar impô-la como norma ao restante da humanidade.
Serei um malicioso, um conjeturador de hipóteses rebuscadas, um 'teórico da conspiração', ao supor que o estado terminal em que se encontram os partidos 'de direita' no Brasil deve algo ao fato de aceitarem como doutrinários pessoas da estatura intelectual do senhor Constantino?"
Isso aqui é um fenômeno que não é só um fato jornalístico banal, mas é algo que interessa a nós por ser exatamente um sintoma do estado de coisas na sociedade brasileira. No caso do Constantino isso se torna mais interessante porque não é que esse cidadão não tenha uma lógica aprimorada, que ele cometa erros de vez em quando, não é. O Constantino não tem aquele instinto lógico natural do ser humano. Para cometer uma coisa dessas, ele diz uma coisa e rejeita imediatamente, apaixonadamente a conseqüência óbvio daquilo, é evidente que se trata de um mentecapto -- eu não estou dizendo isso como um xingamento, eu estou usando o termo de maneira descritiva, cientificamente --, o sujeito é um deficiente mental. Mas ele tem uma capacidade mimética, de imitar; ele pega um slogan daqui, uma frase dali, e pega, sobretudo, as minhas frases. Ele começa o vídeo dele dizendo que eu estou tentando atrair a atenção dele, que estou mendigando a sua atenção.
É um sujeito que cinco anos atrás começou a carreira invadindo comunidades do Orkut com mensagens não solicitadas, sobretudo as minhas comunidades, e eu dizia: "Pare com isso, você está atraindo atenção e nós não queremos nada com a sua conversa". Ou seja, ele começou caracteristicamente com esse negócio de mendigar atenção. Passam cinco anos, ele usa a mesma acusação que fez na época -- claro que é uma imitação muito mal feita que não chega a ser sequer uma caricatura. Como é que um indivíduo não percebe que está imitando uma casca, apenas? Ele podia dizer tudo menos que eu estivesse mendigando a atenção dele -- como se eu estivesse invejando os seus duzentos leitores! É uma pessoa que não percebe a situação. Não precisa nem discutir o conteúdo das coisas que ele disse ali. "Esse Olavo quer uma ditadura teocrática. É um Chefe de seita, tanto que os seus alunos o defendem quando falam mal dele." Pelo fato deles me defenderem isso aqui virou uma seita? É um completo non sequitur, é o tempo todo assim.
E note bem que o Constantino atraiu alguma atenção na chamada grande mídia precisamente depois de um debate que ele teve com o ex-ministro Ciro Gomes, em que Ciro Gomes deu-lhe um cacete monumental. Então a esquerda viu que, se esse sujeito não é capaz nem de enfrentar o Ciro Gomes, então ele tem de ser, para nós, o representante da direita. [0:10] Ele é um sparring, um armazém de pancadas. Até o Ciro Gomes o faz de palhaço. O debate foi uma coisa vergonhosa, porque ele chegava lá deitando regras: "Tem de cortar o orçamento do seu ministério". E o Ciro Gomes dizia: "Me diga onde? Em qual departamento?" E o Constantino não sabia, então é claro que é um palhaço. Além de ser um camarada que apóia todo o programa cultural da esquerda, o que é benéfico para eles, nos pontos positivos que deseja impor ele não tem capacidade, então é por isso que ele tem de ser o eleito da comunidade esquerdista para isso. E o indivíduo nem sequer percebe a sua situação.
De modo geral, toda a desgraça da direita brasileira nos últimos anos se deve ao predomínio de pessoas mais ou menos com essa mentalidade -- claro que há pessoas muito melhores do que o Rodrigo Constantino. Mas se você tiver a lista das pessoas que compõem o Instituto Millenium, que são uns quarenta ou cinquenta intelectuais, todos é gente importante, muitos com cargos públicos, outros na presidência de empresas etc. O Instituto foi fundado uns sete anos atrás para reforçar a direita nacional. Passados sete anos a direita acabou, está em estado terminal. Será que uma coisa não tem nada a ver com a outra? O curioso é que o Rodrigo Constantino diz que a direita brasileira está ruim por causa de pessoas como Olavo de Carvalho. Mas que influência exerço eu nos partidos de direita? É zero! Agora, o Instituto Millenium exerce, o senhor Rodrigo Constantino exerce. Como se eu fosse o mentor dessa direita nacional que não quer me ver nem pintado de ouro. Isso demonstra uma situação de fragilidade mental que chega a ser alarmante. Daria para o Rodrigo Constantino participar de um debate de ginásio, no máximo, mas de repente aparece o cara dando palpite, virando um cara importante. Então está tudo acabado mesmo.
Eu também queria advertir que vocês estão correndo um risco, porque eu sou uma espécie de Rajneesh ou de Reverendo Moon, que isola vocês de seus ambientes sociais, tranco vocês num ashram, deixo vocês sem comida, faço lavagem cerebral, imponho rituais, preces e jejuns e fica lá um alto-falante repetindo as minhas doutrinas vinte e quatro por dia sem que vocês possam dormir.
Muito bem, vamos aqui a estas duas perguntas, cujas respostas o Maurício anotou. A pergunta que ele tinha me colocado é a seguinte:
Aluno: Para que uma filosofia hoje? Qual seria a utilidade de uma filosofia para o indivíduo?
Olavo: A resposta começou assim: "Um aspecto é a utilidade da filosofia para a sociedade e para a cultura em geral". Claro que nós poderíamos examinar este problema: qual é a função da filosofia na cultura em geral? Não é uma questão que nos seja indiferente, mas eu não creio que na presente situação brasileira nós possamos falar disso, quer dizer, que papel pode a filosofia desempenhar na cultura brasileira hoje. Filosofia se tornou apenas o nome de uma profissão universitária e ela tem como função, eminentemente, servir de caixa de ressonância para a propaganda petista e comunista nas escolas; é claro que tem uma função social evidente. Se isso tem algo a ver com a filosofia no sentido tradicional e histórico da coisa é outro problema, mas não era esse o foco da pergunta dele.
Aluno: (...) sendo uma questão extremamente complicada e que talvez não seja nem da minha competência. Mas, quanto à utilidade para o indivíduo, em primeiro lugar é necessário perceber que a filosofia não se aplica a todas as pessoas, (...)
Olavo: Quando eu falo em filosofia aqui, estou falando num sentido aristotélico-platônico, a filosofia tal como ela apareceu, no sentido definido naquilo que eu chamei o projeto socrático. Projeto porque não aparece como uma disciplina pronta nem como um conjunto organizado de saberes, mas como uma busca destinada a prosseguir por tempo indefinido. Sócrates jamais teve a ilusão de estar passando para os seus discípulos uma doutrina completa e, duas gerações depois, quando Aristóteles morre, entre outras coisas, ele nos lega um livro chamado Perguntas que tem ali alguns milhares de perguntas que ninguém jamais respondeu. Então está claro que se trata de uma investigação em aberto destinada a prosseguir ao longo de quantas gerações venham a passar sobre a Terra.
Usando a filosofia nesse sentido, nós podemos perguntar: quando um indivíduo humano chega a precisar disso? O interesse por filosofia qualquer pessoa pode ter, qualquer um pode ler um livro de Platão, de Aristóteles, pode estudar um pouco disso no ginásio, mas também não era esse o foco da pergunta. Não se trata de um interesse em geral, mas trata-se da utilidade efetiva, o que quer dizer algo que desempenha uma função orgânica na estruturação da personalidade individual, ou seja, a filosofia como algo que vai me desenvolver, vai trazer de dentro de mim qualidades mais profundas e, de certo modo, me completar na medida do possível como ser humano. Eu acho que foi esse o sentido da pergunta que ele estava fazendo.
Aluno: (...) a filosofia não se aplica a todas as pessoas, mas apenas àquelas que chegaram a um nível de perplexidade em que se requer um tratamento filosófico das questões.
Olavo: Note que existe uma diferença enorme entre você simplesmente ver na estante um livro de Platão, ou um livro qualquer com o título de Filosofia e você ir até a filosofia em busca de atender a uma necessidade interior; são coisas completamente diferentes. Também é possível que o simples fato de você encontrar um livro por acaso -- como eu, aos quinze anos de idade, encontrei o Discurso do Método no escritório do meu pai --, e que a leitura de algumas páginas disso desperte a consciência de uma necessidade que você tinha, o que, confesso eu, não aconteceu na hora. Eu li várias páginas daquilo, me pareceu muito interessante, mas eu não posso dizer que ali tenha surgido na minha pessoa uma necessidade da filosofia. Na verdade, eu confesso que a primeira revelação de que eu poderia precisar daquilo eu recebi de um amigo que me leu, em voz alta, um texto de Martin Heiddegger, que veio a exercer muito pouca influência no meu desenvolvimento posterior. Mas aquele texto em especial, que era "O que é isto, a metafísica?", naquele momento me fez perceber que eu realmente precisava daquilo, que eu precisava pensar exatamente naqueles assuntos. Era aquilo, de algum modo, que estava faltando para estruturar meu mundo interior. Então, no meu próprio exemplo você vê a diferença que existe entre a aquisição de uma cultura filosófica e uma busca pessoal dentro da filosofia. O interesse por cultura filosófica foi despertado porque um dia eu encontrei no escritório de meu pai um exemplar do Discurso do Método, achei aquilo muito interessante, depois comprei alguns outros livros a respeito, porém, se passaram pelo menos quatro anos antes que uma verdadeira necessidade de uma busca filosófica aparecesse. Então, as duas coisas são muito diferentes.
Uma coisa pode servir para despertar a outra, mas também pode servir para camuflá-la ou para tomar o lugar dela. A aquisição de cultura filosófica por muitos anos, ou até o adestramento em técnicas filosóficas pode, de certo modo, apaziguar a alma do indivíduo e lhe dar certo senso de segurança e até uma identidade social e profissional que, justamente, servirá para amortecer a necessidade da busca filosófica. A busca filosófica só aparece numa situação que o Ortega y Gasset chamaria de desorientação radical, quer dizer, aquele ponto em que você realmente não está entendendo mais nada, que tudo lhe parece confusão e absurdidade; aí sim você precisa da filosofia, você de certo modo está obrigado a tornar-se um filósofo. Uma vez perguntaram ao Ortega y Gasset quem deveria [0:20] estudar filosofia, então ele respondeu: "Será un filósofo todo los que no puedan ser otra cosa" (vai ser filósofo todo aquele que não conseguir ser uma outra coisa). A busca filosófica só se torna legítima e autêntica quando ela corresponde a uma necessidade humana fundamental, e isto, evidentemente, não só não tem nada a ver com o exercício profissional da filosofia como chega a ser uma coisa antagônica. Outro dia, por exemplo, recebi uma carta de um indivíduo que dizia que eu havia feito uma lista dos grandes filósofos -- eu não havia feito uma lista, eu apenas havia citado quatro; eu não quero fazer a lista, mas tem quatro (isso aí está na apostila "Os filodoxos perante a História") que ninguém nega que estão ali que é Platão, Aristóteles, São Tomás e Leibniz; ninguém nunca negou que nenhum dos quatro fosse um grande filósofo, e pode haver alguma controvérsia quanto aos outros, sem contar casos ambíguos como Hegel, que é ao mesmo tempo um grande filósofo e um grande charlatão. O sujeito me perguntou por que eu não havia colocado na lista Bertrand Russel, que descobriu isso, mais aquilo e mais aquilo outro.
Bom, ele fez várias descobertas, mas estão todas na esfera da lógica, então ele foi um indivíduo que desenvolveu um aspecto da técnica filosófica -- ninguém pode negar que a lógica faz parte da técnica filosófica. Porém, se vocês se lembram do que eu escrevi nessa mesma aspostila, "Os filodoxos perante a história", eu disse que a filosofia surge como um esforço monstro de extrair o conteúdo inteligível de certo estado dos conhecimentos humanos num determinado ponto, o que significa uma visão abrangente da cultura e da situação humana daquele período e das perplexidades que ela coloca. Trata-se de uma resposta integral a uma situação inteira. Se não tem isso, claro que o indivíduo pode fazer uma contribuição aqui ou ali, mas não chega a ser um grande filósofo neste sentido.
Na obra desses quatro, em cada um você tem uma dada situação cultural e eles tentam responder à situação cultural inteira, quer dizer, tudo aquilo que é pertinente à vida humana naquele momento lhes diz respeito, e a perplexidade a que eles respondem diz respeito a esse conjunto da experiência humana até o ponto em que chegou, até a sua época. Eu chamo isso de extrusão, que é um termo geológico, quer dizer, você puxar uma coisa de dentro da terra. É esse processo de extrusão do conteúdo inteligível da experiência humana que caracteriza a filosofia, sendo que, para que isso seja possível, é necessário que o filósofo já encontre essas questões fundamentais de algum modo documentadas na esfera da arte, do ritual, das instituições. E que ele já tenha documentos verbais em cima dos quais ele possa exercer esse seu esforço ordenador. Ele não poderia fazer isso simplesmente. Quer dizer, você não pode chegar a uma tribo analfabeta e fazer uma filosofia lá dentro, porque os dados da cultura não estão suficientemente elaborados em formas simbólicas que eu chamaria de primárias, como a arte e o ritual, de modo a exercer em cima delas essa elaboração já secundária que é a passagem dessas formas simbólicas já compactadas para uma compreensão intelectual mais diferenciada. Essa compreensão intelectual mais diferenciada é que tornará possível, em seguida, a discussão racional desses tópicos, e é por isso que eu disse ali que o Júlio Lemos e o nosso amigo Joel Pinheiro estavam enganados quando eles diziam que a filosofia é a discussão racional. Não, ela não é discussão racional, ela é aquele processo inicial de estruturação do conjunto da experiência que torna possível a discussão racional. É impossível você equacionar qualquer pesquisa científica sobre qualquer coisa antes que o assunto tenha sido longamente elaborado, primeiro na esfera imaginativa, como a arte e o ritual, e segundo, na esfera filosófica.
Antes disso, você não tem sequer os conceitos para montar uma pergunta científica. O que é uma pergunta científica? É uma pergunta colocada a respeito de um campo muito bem delimitado da realidade para ser investigado segundo critérios e métodos que você já tem, então, no mínimo tem de ter tido antes a delimitação, a criação dos métodos, a fundamentação dos critérios. Sem tudo isso não existe a investigação científica. A ciência é uma discussão racional, mas a possibilidade da discussão racional depende da passagem do compactado simbólico da cultura para um equacionamento verbal explícito que, daí sim, pode ser objeto de discussão racional. Claro que a própria filosofia pode fazer uso da discussão racional como um instrumento ocasional, principalmente como crítica das filosofias anteriores, mas esse não é o objetivo dela, o objetivo é a formulação da experiência humana em termos intelectualmente manipuláveis. Neste sentido, quais são as pessoas que precisam da filosofia? São as pessoas que receberam o impacto da cultura do seu tempo e a conscientizaram de modo a perceber a sua insuficiência, a sua incongruência e as perplexidades, os enigmas, as dificuldades que estão dados no próprio tecido da cultura. Não somente na cabeça delas. Se fosse na cabeça delas não precisaria de filosofia, precisa de autoajuda.
Vamos supor que você tenha um problema pessoal qualquer, uma confusão mental ou emocional qualquer. Você vai procurar um psicoterapeuta, e ele, para curar ou ajudar você, ele vai usar os meios de que a própria cultura dispõe. Se você levar ao psicoterapeuta uma dificuldade que é desconhecida na sua cultura, para a qual a cultura não tem meios de elaborar, o psiquiatra vai dizer: "Eu não posso fazer nada! A sua questão me transcende." E não só transcende aquele psicoterapeuta em especial, mas transcende a profissão inteira da psicoterapia, então, isso quer dizer que os problemas que levam a filosofia não são problemas apenas de uma esfera pessoal, mas de uma esfera cultural mais geral. Claro que podem ser vivenciados pessoalmente, mas eles têm de ser problemas para os quais a cultura presente não tem a resposta. Se tivesse a resposta, então para que elaborar aquilo melhor? Para que pensar numa coisa que você está entendendo perfeitamente bem?
É esta necessidade humana que surge da confusão cultural ambiente, e não da confusão pessoal apenas, que trata a filosofia. É claro que existe uma zona de indeterminação entre o que é confusão pessoal e o que é confusão cultural. Qualquer pessoa, e mesmo dentro da esfera da psicoterapia e da psicologia clínica de modo geral às vezes aparecem problemas pessoais que você vê que não são pessoais, que eles refletem uma confusão cultural, e alguns deles refletem a confusão cultural a um nível que a própria cultura não tem meios de elaborar. Então, não é mais uma questão psicoterapêutica. Uma vez eu estava fazendo uma análise, coloquei uns problemas, e o médico, Dr. Juarez Strachmann disse assim: "Mas isto é um problema existencial, não é um problema psicoterapêutico." Eu perguntei: [0:30] "O senhor então quer dizer que eu estou ferrado objetivamente?", Ele me respondeu: "É".
Eu falo: "Aí acabaram os poderes da psicoterapia". Este é um bom motivo para fazer filosofia: quando você carrega dentro de você problemas que estão embutidos no próprio tecido da cultura em torno, e que esta cultura não tem os meios de elaborar, então vai ter de achar uma solução. É somente aí que você será realmente um filósofo. O que não quer dizer que você vai conseguir fazer essa estruturação inteira da cultura, porque isso também não é um empreendimento individual.
Você não pode se esquecer, por exemplo, que toda a filosofia de Platão e de Aristóteles se desenvolve no diálogo. Na verdade é um esforço de muitas pessoas e traz dentro de si uma infinidade de erros possíveis que terão de ser corrigidos ao longo do caminho. Então nós, é claro, que condensamos isto no produto final sob o termo "filosofia de Platão" ou "filosofia de Aristóteles", mas, quando Aristóteles usa aquela expressão "nós, os platônicos", ele sabe que está falando com uma comunidade muito grande de pessoas que estavam empenhadas no mesmo esforço.
Na época em que Platão estava escrevendo alguns dos seus Diálogos mais importantes --- diálogos de maturidade, como a própria República ---, nesta mesma época Aristóteles já era um professor auxiliar da própria Academia platônica, onde ele dava um curso de Retórica. Então esta atividade de Aristóteles dentro da Academia se integra de algum modo no produto final, que nós chamamos filosofia de Platão. É claro que a história da filosofia se condensa em torno de uns poucos nomes, mas estes nomes não produziram tudo sozinhos.
No próprio texto "Os filodoxos perante a História", eu ressalto que a própria estrutura das Sumas, que são a grande realização da filosofia escolástica, a inspiração para isso eles podem ter encontrado pronta na estrutura das catedrais. Se você for fazer um esquema gráfico --- faz estrutura da Suma Teológica ---, você vai ver que se parece com o desenho de uma catedral. Sobretudo, na idéia daquelas ramificações, aqueles arcos que saem de dentro de arcos em sentido opostos, quer dizer, dialeticamente, para as contradições sustentarem uma cúpula.
Eu acho realmente que a estrutura básica das Sumas eles encontraram aí, talvez não de uma maneira consciente. Quer dizer, você vê uma forma arquitetônica, passa uns meses, tem uma idéia de outra estrutura, e nem lembra a conexão de uma coisa com a outra, mas evidentemente esta raiz, esta inspiração inicial que veio da cultura artística da época está lá. É como se nós disséssemos que muita gente colaborou para que aparecessem essas grandes filosofias.
Raramente você vai ver um caso assim como o do Mário Ferreira dos Santos, cuja elaboração filosófica vai infinitamente além das necessidades da cultura local onde ele estava. É um caso de deslocamento entre a cultura e a mente do indivíduo, quer dizer, ele estava respondendo a questões de envergadura mundial, cuja inspiração ele não pode ter encontrado simplesmente na cultura local, mas numa cultura humana milenar. Mas esse é um caso raríssimo. Quando acontecesse isso é normal que o filósofo fique mais ou menos isolado no seu tempo.
Como acontecesse também com Leibniz. Não tem jeito de você explicar Leibniz a partir da cultura alemã da época. Ele estava respondendo a questões de envergadura universal, questões que vinham desde há milênios e que na sua cultura não tinham presença viva, não eram enigmas que estavam pedindo para ser respondidos ali. Então é claro que num primeiro momento Leibniz, no meio em que ele está, parece uma figura estranha e até caricatural sob certos aspectos.
Leibniz só começou a ser compreendido no século XX e, em parte, devemos isso ao próprio Bertrand Russell com o livro que ele fez sobre a introdução à filosofia de Leibniz, que é uma tese errada, parece-me, a interpretação que ele faz. Ele diz que "toda a filosofia de Leibniz deriva da sua lógica". Eu não acho que seja assim, eu não acho que a lógica de Leibniz seja a estruturação fundamental.
Parece-me que a inspiração inicial foi de ordem religiosa, a própria idéia da harmonia universal aparece para ele como uma possibilidade de solução dos conflitos entre a Igreja Protestante e Católica, e a lógica aparece como instrumento muito tempo mais tarde. Embora a tese esteja errada, ela teve o mérito de chamar atenção para a grandeza da filosofia de Leibniz que, até então, não tinha sido percebida em toda a sua intensidade. Aí tinha passado um século e meio da morte do cidadão. E o Mário Ferreira, eu digo: eu não sei quando o Mário será integrado na cultura oficial. Vai demorar ainda algum tempo.
Claro que existem também esses casos individuais, mas mesmo aí você não pode dizer que tenha sido tudo obra do indivíduo. O próprio Leibniz, toda a vida dele é um diálogo constante, quer dizer, talvez a parte mais importante da obra de Leibniz sejam as suas cartas. São milhares e milhares num diálogo constante com todos os pensadores, cientistas, filósofos da sua época. Então tudo isso, de certo modo, é um esforço coletivo que tem de se condensar numa mente individual.
Então, quer dizer, todos aqueles que estão empenhados de algum modo nesse processo de extrusão do conteúdo inteligível de certo estado da cultura humana, de certo estado dos conhecimentos, todos esses são filósofos, desde que a motivação deles seja esta, e não "estudar filosofia". Claro que o sujeito pode entrar na faculdade de filosofia sem ter a menor idéia do que é aquilo ou tendo apenas uma idéia estereotipada, e ali pode se desenvolver uma vocação filosófica verdadeira.
Mas a resposta fundamental a esta pergunta, "para quem é a filosofia é filosofia?", eu digo: para aqueles que chegaram a um estado de perplexidade cultural. Então é uma coisa que transcende evidentemente a esfera dos seus problemas pessoais e a esfera dos problemas padronizados que já podem ser discutidos publicamente, segundo categorias que todos reconhecem. Por exemplo, a discussão de um plano econômico: isto não vai colocar nenhum problema filosófico fundamental, quer dizer, toda a discussão vai se desenrolar dentro de conceitos e categorias que já são de domínio público, não é necessário elaborar novas categorias.
Mas, por exemplo, quando um indivíduo cria um conceito como esse que eu criei do círculo de latência. Eu criei a Teoria do Círculo de Latência para responder a uma coisa que não tinha resposta em parte alguma e para resolver certos problemas que estão de certo modo embutidos na própria cultura científica de um tempo, e que não estão ali elaborados de uma maneira satisfatória. Então você é obrigado a criar alguns instrumentos que não existiam.
Particularmente, esta idéia me apareceu justamente quando eu estava lendo Hume, e vi que a descrição que ele fazia da percepção como uma capacidade que só aprendia entes individuais e, por outro lado, havendo uma faculdade intelectual que organizava esses entes individuais em espécies, eu me perguntei: como é possível passar de uma coisa a outra? Tem alguma dificuldade aí. Quer dizer, se eu só percebo entes individuais, como eu posso fazer a comparação?
O que é a comparação? Comparação significa você colocar um par aqui, outro par aqui, outro par ali, quer dizer, juntar pares. Como eu poderia fazer a comparação, se algo na própria forma daqueles entes individuais já não me sugerisse [0:40] o parentesco dele com outros entes? Então eu me perguntei: será que a noção de espécie é uma pura criação intelectual e já não está dada de alguma maneira na percepção?
E daí foi que me deu o estalo: ninguém percebe uma coisa inteira, nós não percebemos entes individuais, percebemos aspectos de entes individuais. Se for ver na esfera da pura percepção, nós percebemos aspectos, é impossível você ter uma percepção sensível de uma coisa inteira, não tem jeito. Mesmo quando está comendo algo, eu digo: você sente o gosto daquilo todo de uma vez? Não. Quer dizer, a simples percepção do gosto se subdivide em vários momentos. Uma coisa tão simples como esta, você sentir o gosto, quanto mais uma percepção visual. Eu digo: se você está vendo uma coisa, está vendo por um lado, não pode ver frente e verso ao mesmo tempo. Se você está vendo a superfície, não pode estar vendo o conteúdo interno.
Se existisse um ato de percepção, por assim dizer, isolado, distinto em cima do qual mais tarde a mente vai ter de exercer as suas faculdades abstrativas, eu não digo que a mente não chegasse a conceber a noção de espécie, ela não conceberia a noção de indivíduo, porque só haveria aparências. É exatamente aí que chega Hume, ele leva a análise até este ponto. Eu digo: como eu poderia montar a espécie gato, se para isso eu precisaria montar a individualidade do gato, a qual eu não tive acesso? Eu só tive acesso a certos aspectos do gato em certos momentos. Eu digo: como o gato em si existe só naquele aspecto que eu percebi, e pela duração da minha percepção, ele desaparece quando eu parei de percebê-lo. Se ele desaparecesse, eu não poderia olhar para ele uma segunda vez e, no entanto, eu posso.
Então disse: esta noção de percepção que tanto os filósofos como o próprio Hume estão tomando como se fosse a experiência básica, inicial, primitiva, ela também é uma abstração, também é uma construção. Quer dizer, nós estamos pegando uma experiência completa, onde existem indivíduos, espécies, aspectos, tudo isso articulado, e daí nós separamos e dizemos que tem um pedaço aqui que é percepção, outro pedaço que é atividade construtiva da inteligência. Eu digo: mas foi você que fez essa distinção. Será que essa distinção foi bem feita? Será que a coisa acontece exatamente assim?
A idéia de Hume era separar, no processo do conhecimento, o que é uma atividade física corporal e o que é uma mental. Eu digo: mas eu sei onde termina o corpo e onde começa a mente? Eu também não sei e David Hume também não sabe. Então quem sabe se essa descrição toda está muito mal feita? Quem sabe se essa fronteira que está sendo colocada entre a percepção física corporal e a criação mental das espécies, quem sabe se isso não está mal feito, não houve um erro? Então se eu estou colocando esta questão, se eu cheguei a colocar esta questão, é precisamente porque não havia resposta para ela, ninguém havia elaborado isso dessa maneira, por assim dizer, com esse nível de radicalismo.
Quer dizer, supondo que toda a descrição que se consagrou e, portanto, toda a terminologia corrente usada para descrever esse processo, estivesse errada, então quem sabe se isso que eles chamam de "sensação" não existe absolutamente? Porque Hume parte da existência da sensação, no fim ele diz: "Nós só temos sensações, eu não sei se por trás das minhas sensações existem indivíduos concretos, eu não sei nem se por trás das minhas sensações existe um eu que unifica tudo isso". Então ele toma a idéia de sensação como se fosse um dado, uma coisa inquestionável e muito clara. E ele diz: "Só a sensação está clara, o resto está tudo obscuro". Eu digo: espere aí, quem sabe se a sensação também está confusa? Afinal de contas que raio de coisa é uma sensação? Daí você vê que isso que se chama, em filosofia, pelo menos desde o século XVIII, de sensação é uma coisa que nós não sabemos o que é.
Eu digo: eu não sei o que é sensação, eu não posso me conceber existindo num mundo composto de sensações, mas eu sei que existem entes com os quais eu me relaciono de alguma maneira: existem pessoas, existem móveis nos quais nós sentamos e dormimos, existem animais que nós vemos se movendo, existem alimentos que nós comemos --- tudo isso faz parte da experiência. Para que eu possa chegar a colocar questões filosóficas, é necessário que tudo isso já existisse antes. Então vamos chamar esse conjunto de elementos de mundo. O verdadeiro elemento primário, primitivo, não é sensação, é um treco que se chama mundo. A existência do mundo é uma condição prévia para que eu chegue a colocar até a noção de sensação.
Esta idéia de que a parte mínima obtida por análise é a primitiva é uma noção completamente errada, porque --- isto é importantíssimo --- o primitivo e o derivado não correspondem à distinção entre parte e todo. A sensação é uma parte do processo cognitivo, não o começo dela. Eu vi que Hume estava dando erroneamente um sentido cronológico a uma divisão de parte e todo. Mas, espera aí, para saber se uma coisa é primitiva, primitiva é aquilo que veio antes e que é condição para o que vem depois. O que é primitivo não é a parte em relação ao todo, o que é primitivo é o que veio antes.
E o que veio antes? É o que eu já encontrei quando comecei a colocar essas questões filosóficas. Então a noção de mundo, quer dizer, o campo todo onde está se desenrolando a minha experiência e que me contém, é obviamente anterior à noção de sensação. E sensação é apenas o nome que eu dou a um produto mental que obtive por análise, dividindo as coisas em partes. Ora, aquilo que é parte não pode ser origem, sobretudo quando é uma parte que não pode existir separadamente do todo. Por exemplo, o aspecto pelo qual eu vejo o gato agora: eu vejo um gato malhado, deitado na cadeira. Isto é um aspecto. Pode ser que este aspecto tenha gerado o restante do gato, inclusive que o gato já era antes de deitar na cadeira? Não é possível.
Então eu vi que fazia dois séculos que a busca do elemento fundamental, básico, primitivo do conhecimento tinha tomado uma direção completamente errada, e não este ou aquele, mas praticamente em escala mundial. Eles estão tomando parte e todo como se fosse a mesma coisa que primitivo e derivado. Ou seja, estão tomando uma distinção analítica como se fosse uma distinção cronológica. Daí você vê que é um erro monstruoso, um erro primário na verdade. Mas são esses erros primários que se disseminam pela cultura e criam as confusões. E desfazer essas confusões é uma das funções da filosofia.
Se essa confusão não tivesse se disseminado por toda a cultura e gerado uma infinidade de enigmas e confusões que vão infinitamente além da esfera das discussões acadêmicas, e que têm efeitos fundamentais na vida de milhões de pessoas, então não teria importância nenhuma, seria apenas uma questão de interesse de meia dúzia de acadêmicos. Mas o fato é que esta visão analítica gerou desastres não porque a análise seja uma coisa errada, mas porque tende a tomar os elementos mínimos como se fossem primitivos.
Você veja que, em toda a ciência física, o que se procura? As partículas elementares de onde tudo se originou. É o mesmo erro. Eu digo: quem disse que tudo tem de ter se originado de uma parte? [0:50] Quem disse que parte quer dizer começo? Então, eu digo, este problema que eu encontrei em Hume está embutido dentro da própria estrutura da ciência mais desenvolvida que existe que é a física. O resultado é aquilo que vocês viram no livro do Prof. Wolfgang Smith, que você cria certas teorias que se verificam empiricamente, mas não entende, não sabe o que elas querem dizer. Então, isto é uma crise da cultura: quando aqueles elementos da cultura que são tidos como os mais confiáveis, os mais certos, os mais inquestionáveis são ininteligíveis.
Aí chegamos àquele ponto em que entrou o Júlio Lemos: tem o departamento universitário encarregado de saber coisas e outro encarregado de compreendê-las. Só que aquele que sabe não compreende, o que compreende não sabe. Claro que é um esquema caricatural que eu estou fazendo, mas ele resume a situação. Então quem sabe está na hora de parar com tudo isso e tomar outra direção? Eu digo: parte é uma coisa, começo é outra e causa é uma terceira ainda.
Do mesmo modo que, creio eu, a origem do mundo não pode ser explicada a partir das suas partes, mas a parte para existir tem de ser parte de alguma coisa que a antecede, o processo do conhecimento não pode ser explicado a partir de supostas unidades mínimas tomadas como primitivas, como por exemplo, a sensação. A noção de sensação, se tomada como básica e primitiva, leva à conclusão que chegou o Hume: nós só temos as sensações, e eu não tenho nem certeza de que tem alguém sentindo a sensação, eu não sei se por trás da sensação existe um objeto e muito menos um sujeito.
Eu digo: muito bem, mas antes de saber o que era a sensação, você já sabia o que era objeto e sujeito. E para chegar a pensar nisso, você tinha de existir não como sensação. Ou seja, os objetos como totalidades se oferecem a nós antes que nós os analisemos e os decomponhamos em partes, portanto eu não posso tomar parte como sendo primitiva. Primitivo é o que veio antes. E o que veio antes? A presença dos objetos no mundo, a presença dos objetos e do sujeito num negócio chamado mundo, que é por definição uma coisa cujos limites eu não sei e do qual eu só ocupo um ponto no espaço, em certos momentos no tempo.
Posso dizer assim que o próprio conceito de mundo é extraído por abstração deste momento e deste ponto no espaço? Eu só tenho estes momentos e este ponto, e daí eu deduzo que deve haver um mundo em volta também? Não, de jeito nenhum, porque se o momento do tempo e o ponto do espaço fossem eles o elemento primitivo do qual eu teria de tirar por abstração ou por construção imaginativa todo o resto, eu não teria como conectar um momento com outro momento, Meu Deus do Céu! Então a conexão entre os momentos antecede os momentos, a continuidade antecede os momentos, assim como o espaço antecede o lugar.
Isto quer dizer que um indivíduo que está num lugar do espaço, ele sabe que o espaço não está limitado àquilo que ele está vendo. Isto faz parte da própria estrutura do espaço. Vocês já conheceram alguém que por um instante sequer acreditasse piamente que só existe, no universo inteiro, a sala onde ele está? Ninguém jamais acreditou nisso. Ou seja, estar num mundo em aberto é a experiência primitiva humana, Meu Deus do Céu! Vocês estão acompanhando esse raciocínio? Então todo o procedimento analítico está errado, desde que começou com aqueles filósofos sensualistas do século XVIII, nos botou numa direção totalmente errada, onde o sujeito faz uma análise, encontra uma parte e acredita que esta parte está antes de todo o processo. E eu digo: onde estava você durante o tempo que elaborava isto?
Outra coisa: se existissem somente as sensações sem a certeza de que existe um sujeito e um objeto por trás delas, como poderia David Hume escrever um livro? Ou seja, eu não sei se existe um sujeito aqui escrevendo esse livro e eu não sei se existe outro que entenda a língua inglesa na qual eu estou escrevendo e, no entanto, conservo na minha mente toda a língua inglesa. Eu digo: a língua inglesa está na sua mente? Você não a aprendeu de outras pessoas? E essas pessoas eram apenas ilusões da sua mente? Quer dizer, tudo isso é absolutamente caricatural.
Foi para responder a isso que eu tive de elaborar o conceito do círculo de latência. Ou seja, perceber um objeto não é ter uma sensação, é apreender um círculo de latência, ou seja, apreender um movimento, uma seqüência de transformações possíveis que já está dada na própria forma do objeto que você percebe. Então, quando você percebe um gato, percebe algo que pode agir como gato. Quando percebe uma bola, está percebendo algo que, se você agarrar, dará à sua mão a sensação de esfericidade. Quando você vai ver uma bola e, quando a pega, você sente um cubo? Não é assim. Quando eu vejo a bola, eu sei que, se eu a pegar, ela vai me dar uma sensação de esfericidade. Embora não a tenha pegado ainda, eu estou olhando apenas.
Às vezes essa expectativa do círculo de latência não se cumpre, ou seja, nem toda expectativa que você cria está certa. Mas a expectativa faz parte da própria percepção de qualquer objeto. Então isto quer dizer que ninguém tem sensações isoladas de coisa nenhuma, não existem sensações atomísticas. Agora, quando chega ao século XX, a herança de David Hume já se transforma na noção de fatos atomísticos, como tem em Wittgenstein: "O mundo é o conjunto dos fatos atomísticos".
Eu digo: é preciso ser muito burro para não perceber que esta frase em si é autocontraditória: "O mundo é o conjunto dos fatos atomísticos". Ou seja, são fatos isolados, e eles compõem um conjunto. Mas, ou eles compõem o conjunto por si mesmos --- logo, não são atomísticos ---, ou sou eu que estou estruturando esse mundo e, portanto, a estruturação só existe na minha cabeça e o mundo só existe na minha cabeça. Eu acho fantástico o sujeito escrever uma frase dessa e não perceber imediatamente a conseqüência. Parece que quem elaborou isso foi o Rodrigo Constantino. Quer dizer, o sujeito diz a coisa e não percebe a conseqüência imediata.
E, no entanto, isso daí está num livro do Wittgenstein: "O mundo é o conjunto dos fatos atomísticos". Eu digo: se são atomísticos, não há conjunto, meu filho! A não ser que você invente o conjunto. A frase é autocontraditória, é impossível e, no entanto, o sujeito escreve um livro inteiro baseado nisso e as pessoas lêem. Então eu acho que o Karl Löwith tinha toda razão quando considerava Wittgenstein um charlatão. Eu digo: isso não é filosofia, isso é um charlatanismo. Você coloca uma frase absurda como postulado e raciocina a partir dela e vai chegando a conclusões cada vez mais elaboradas e bonitas. Mas para que você está fazendo tudo isto? Isso não vai responder à questão nenhuma, isso só vai colocar na minha cabeça a confusão que está na sua. Isso não explica nada, isso só cria problemas.
Todos nós sabemos que Wittgenstein não era bom da cabeça, mas não ser bom da cabeça em certos momentos, dentro do estado da nossa cultura, começa a aparecer como um sinal de prestígio. Eu digo: [1:00] quando você tem um dinheiro e quer investir, vai procurar um especialista em investimento que não seja bom da cabeça? É isto que vai procurar? Não, porque você vai perder dinheiro. Mas se é para fins de filosofia, você vai procurar logo o mais louco. Por quê? Porque você imagina que daí não se deduzirão conseqüências reais. Para você não, porque você só vai usar aquilo para fazer brinquedinho acadêmico e brilhar na academia. Mas, e na cultura em geral, que efeito isso terá?
Você veja: quando hoje nós vemos toda essa coisa de abortismo, e você vê milhões e milhões de bebês sendo mortos para virar cosmético ou virar adoçante, ou seja, fazendo do ser humano um produto reciclável, eu digo: de onde sai isso? Sai deste procedimento analítico que toma parte como origem e que tem dificuldade de perceber os seres na sua integridade. Acha, por exemplo, que a condição de ser humano é uma criação cultural. E se é uma criação cultural, nós podemos trocá-la por outra criação cultural. Quer dizer, isso tem efeitos. Agora, se a criação humana é uma simples criação cultural, então, como dizia Viktor Frankl, não vai haver nenhum argumento sério contra o genocídio. Você vê que hoje existe toda uma tendência muito séria de impor à espécie humana inteira um novo padrão civilizacional na qual os seres humanos sejam exatamente produtos recicláveis, como se fossem um produto industrial.
Então é claro que tudo isso tem origem em idéias filosóficas, que por não terem sido contestadas com a devida energia no instante em que apareceram... David Hume tinha de ter sido respondido imediatamente e da maneira mais enérgica possível, porque, a partir dessa noção de sensação, ele destrói a noção de sujeito, de objeto e de toda a cultura, e diz: "No entanto, nós precisamos acreditar nisso". Os sujeitos não existem, os objetos não existem, não temos nenhuma prova, mas nós temos de acreditar, então temos de nos apegar ao quê? À tradição. Você, veja, isso virou uma das bases do conservadorismo britânico.
Quer dizer, o sujeito destrói tudo do ponto de vista intelectual e depois faz a apologia da tradição, ou seja, uma criação cultural. O sujeito tinha de ter sido respondido imediatamente: "Meu filho, você está completamente louco, você está confundindo parte com começo". E isso é uma confusão digna do Rodrigo Constantino. Você veja que o Rodrigo Constantino está em boa companhia.
Só que David Hume comete esse erro num assunto que ninguém tinha analisado antes. Ele pode ser perdoado porque ele é o primeiro que está lidando com uma coisa, ele tem o direito de fazer uma burrada. Agora, estes erros que raiam o retardamento mental aparecem na história da filosofia, mas nos parece retardamento depois, quer dizer, eu não estava na pele de David Hume. Talvez se eu estivesse lá, tivesse cometido o mesmo erro. Agora, depois que ele cometeu, eu não preciso cometer mais. E vendo as conseqüências desastrosas a que a filosofia dele conduz, nós temos de ver que, ou houve um erro no ponto de partida, ou alguma coisa sucedeu a meio caminho, quer dizer, as conseqüências são inaceitáveis. E se as conseqüências são inaceitáveis, então deve ter tido algum erro nas premissas. E a premissa fundamental foi esta: analisando as coisas, decompondo em suas partes, nós encontramos a parte primitiva.
Ou seja, é a idéia de que tudo tinha nascido de um pontinho. Eu digo: justifique esta idéia. Onde que você viu alguma coisa surgir de um pontinho? Aí você responde: "Temos aqui uma semente de uma árvore, e a árvore já está contida ali". A árvore está contida ali? Sim, mas e se a semente não comer? A semente não se alimenta de nada? Então não é da semente que surge a árvore, é da interação entre a semente e o terreno, portanto tem de existir o terreno. Então a árvore não surgiu inteira da semente. Tudo o que surge dentro do todo já estava dentro do todo. Então a totalidade, o mundo antecede às suas partes. Antecede, portanto, também, mais do que as suas partes, às suas partículas. Hoje em dia nós temos uma ciência inteira procurando a partícula inicial. E quanto mais eles se esmeram nisso e quanto mais aprimoram os seus cálculos, menos eles entendem e não sabem por que não entendem. Eu digo: é um erro filosófico que está na base. Não é um erro científico, mas um erro filosófico: o erro de acreditar que pode existir a partícula primitiva. Eu digo: e se a partícula não é primitiva?
Toda a percepção é percepção de partes que constituem pequenas totalidades dentro de uma grande totalidade. É como o negócio das mônadas do Leibniz. As mônadas não existem isoladamente, seria impossível porque uma mônada, diz ele, se compõe da diferença entra ela e todas as outras. Então uma mônada supõe todas as outras. Aí sim, aí o negócio já melhorou. Quer dizer que Hume estava cometendo um erro para o qual Leibniz já tinha a solução antes.
Eu estou explicando tudo isso para dar a vocês um exemplo de uma questão filosófica fundamental, que ela afeta toda a cultura humana. É quando você percebe na cultura humana problemas, perplexidades, sofrimentos, dores, enigmas etc., e tem de encontrar uma solução para ela, aí você é um filósofo, mesmo que não encontre a solução ou mesmo que contribua com uma parte minúscula para as soluções desses enigmas. Por exemplo, eu acredito que a teoria do círculo de latência não é uma filosofia inteira, ela é um pedacinho. Precisa de muita coisa ainda para formar uma filosofia.
Vamos prosseguir aqui:
"(...) A maior parte das pessoas jamais chega a esse nível de questionamento porque não tem a quantidade de informação adquirida da cultura ambiente para chegar a precisar de uma integração, de uma organização maior da sua visão do mundo. (...)"
Ou seja, uma visão do mundo você recebe da cultura. Essa visão pode ser incoerente, fragmentária, um monte de estilhaço, mas você a recebe de algum modo. E pior ainda: como é da natureza do ser humano acreditar na unidade do mundo, o ser humano acredita na unidade do mundo por quê? Porque já nasceu na unidade do mundo. Então estar na unidade do mundo é a base da experiência humana e, portanto, acreditar naquilo que se impõe a você como unidade é também instintivo no ser humano.
Porém desta crença da unidade do mundo deriva por analogia uma crença na unidade da cultura. Ou seja, você acredita que a cultura na qual você está e da qual está recebendo os seus aportes, contém uma visão organizada do mundo, e que esta visão é suficiente para a sua orientação no mundo. Em geral, isso se cumpre, mas às vezes não se cumpre, ou, melhor dito, às vezes se cumpre, às vezes não se cumpre. Então você acredita que tudo aquilo que não sabe existe alguém dentro da sociedade que sabe e que, somados todos esses saberes, o conjunto desse saber corresponde ao mundo objetivo. É claro que, isto sim, é uma construção, é uma expectativa construída e não faz parte da experiência.
Quando você procura ampliar a sua experiência efetiva do mundo da cultura e pergunta: "Vamos ver o que as pessoas realmente sabem?", aí encontra [1:10] os rombos e as dificuldades. E esses rombos e dificuldades podem mostrar que eles estão na raiz de muitos sofrimentos, muito padecimentos humanos, inclusive os seus próprios. Por exemplo, eu lembro que essa mentalidade analítica...
Eu não sou contra a análise, mas eu parto do princípio de que toda análise é análise de alguma coisa. Se não há nada para analisar, nada se analisa e que, portanto, os objetos considerados como totalidade são prévios à sua análise e que, da minha decomposição analítica deles, eu não posso chegar ao elemento primitivo, por quê? Porque o próprio objeto é primitivo em relação à análise que eu estou fazendo dele. Então a decomposição em partes só encontra partes, não encontra origem. Busca da origem é outro procedimento intelectual completamente diferente. Saber de que partes se compõem um objeto é uma coisa, saber de onde ele surgiu é outra completamente diferente.
Por exemplo, tome um objeto qualquer. Tome isto aqui e decomponha-o em partes. Você tem o plástico, tem vários pedaços de papel, tem várias letras escritas e vai decompondo, decompondo, decompondo. Agora diga de onde isto surgiu. Você não vai chegar de jeito nenhum. Então a investigação da origem teria de seguir uma linha complemente diferente. Por exemplo, uma das maneiras de saber a origem é ver onde o negócio foi impresso e telefonar para a fábrica e dizer: onde fica? Aí eu sei de onde saiu.
Ou seja, este é outro preceito: um objeto não pode conter em si a total explicitação da sua origem. Ele não contém a origem nele mesmo, ele pode conter alguma marca da origem, mas não a própria origem. E essa origem necessariamente o transcende, quer dizer, é uma coisa que está para além dele. Então o raciocínio que vai buscar a origem é um raciocínio de tipo analógico, quer dizer, a partir de uma parte eu vou tentar conceber o todo que o originou. Exatamente o contrário de buscar a origem na parte, buscar a parte originária.
Eu me lembro que nos primeiros contatos que eu tive com esse tipo de raciocínio, quando era ainda adolescente --- e isso me apareceu justamente no ginásio, quando eu estava estudando ou matemática ou biologia ---,via que as pessoas que raciocinavam dessa maneira falavam com uma certeza absoluta. E aquele tipo de raciocínio me causava horror, eu não sabia por quê. Eu sabia que aquilo era inumano, que o indivíduo que adotava essa postura se colocava como se estivesse fora da humanidade, fora da experiência humana comum, como se ele fosse uma pura máquina pensante que olha os seres humanos nos seus dramas, nas suas vidas reais como se fossem... Nos olhasse com um desprezo, com uma distância enorme. Quer dizer, eu estou colocado aqui numa esfera de pura inteligibilidade lógico-matemática, infalível, ao passo que vocês estão aí nesse mundo de dramas e sofrimentos etc.
E eu via que tudo isso era um teatro evidentemente. Era uma espécie de autodefesa, quer dizer, o indivíduo se defendia atrás de uma atitude de frieza analítica infinitamente distante e se colocava numa posição quase divina. Mas, quando você ia ver, era um sujeito fraco como os outros, às vezes mais fraco. Quanto mais fraco o sujeito, mais ele precisava deste tipo de defesa. E eu fazia analogia disso com os indivíduos que, exercendo cargos públicos, se defendiam da responsabilidade humana das suas decisões por trás de regulamentos anônimos. Então é aquela desculpa: "Não fui eu, foi o computador". O indivíduo que não quer assumir uma responsabilidade pessoal por uma decisão se defende por trás de regras anônimas.
Esta mentalidade analítico-científica, para mim, soava da mesma maneira. E, olhado do ponto de vista de psicologia clínica, é um sinal de esquizofrenia evidentemente. E isto está disseminado na nossa cultura a um ponto que dominou praticamente tudo. De onde surge isso? Surge da mentalidade analítica do século XVIII. Então você vê que é um problema grande, é um problema de esfera cultural mundial, tem efeitos devastadores sobre a vida humana e tudo parte de um erro intelectual.
De onde surgiu esse erro? Aí teríamos de estudar a origem dele: por que David Hume foi levado a pensar assim, assim e assim, dentro do contexto da cultura do seu tempo? Mas não é este o problema que eu estou lidando agora. Eu não estou dizendo que é apenas a filosofia de Hume, quer dizer, que uma parte gerou esse todo. Não, isto seria impossível. Eu estou apenas rastreando um ponto da origem. E vejo que talvez para corrigir o conjunto não precise corrigir o conjunto inteiro. Se nós mexermos nesta parte, o resto talvez se ajeite por si mesmo. Talvez, não temos certeza.
Mas demolir essa mentalidade analítica é absolutamente necessário, porque a análise é um instrumento cognitivo importantíssimo, mas ela não pode ser prostituída ao ponto de justificar erros primários como esse de confundir parte e origem.
"(...) No geral, a visão do mundo (cosmovisão) é algo recebido da sociedade: o indivíduo já a recebe pronta e, melhor (ou pior) ainda, nenhum dos indivíduos que compõem a sociedade precisa tê-la completa. (...)"
Essa é uma característica da cosmovisão. Quer dizer, nenhum dos indivíduos que compõem a sociedade tem o domínio da sua cosmovisão inteira. Não tem e não precisa ter porque ele acha que aquilo que ele não sabe os outros sabem, sempre haverá alguém que sabe. O fato é que às vezes não há. Você procura, procura, e não há ninguém.
"(...) Cada um conta com alguém que saiba as partes faltantes. Então há uma série de convicções tácitas, não declaradas, que circulam por toda a sociedade e servem de base para o julgamento e até para as decisões para a vida pessoal. (...)"
É claro que os critérios, por exemplo, morais, legais vigentes na sociedade são a base para a conduta pessoal, para decisões pessoais. Se você acredita que todo mundo pensa dessa ou daquela maneira, você, como quer ser uma pessoa normal, vai tentar pensar como acha que todo mundo pensa. Mais ainda quando essas crenças gerais se consolidam em leis. A lei passa a ter por trás de si a autoridade do Estado, que tem um exército e uma polícia para impor essas decisões. Então aquilo, além de ser uma crença geral, passa a ser uma espécie de força física, tem um poder coercitivo. Aí tanto mais é assim, tanto mais o indivíduo se sentirá impelido a pensar de acordo com essas linhas predeterminadas. Então, quer dizer, isso não é só um problema que está na sociedade anonimamente, não, isto está dentro do tecido das nossas vidas.
Vamos supor, por exemplo, uma briga de marido e mulher. Grave, se for possível, e analise os argumentos usados. Você vai ver que não há um só destes argumentos que não se baseie em normas morais ou legais estabelecidas para toda a sociedade. Por exemplo: "Ah, eu peguei você transando com o fulaninho". Qual é a emoção que isto aparece? "Fui traído, nosso casamento acabou, meu mundo caiu". Eu digo: Por quê? Isso tem de ser assim? Não, mas a convicção geral é que é assim. Jesus Cristo disse que é para perdoar sete vezes setenta, mas é isto o que está em vigor? Não. Que eu saiba em todo lugar você vê isto: se houver um adultério, acabou o casamento. Não é assim? Por quê? Porque a lei determina que é assim e a convicção geral determina que é assim. Esta convicção geral entra na vida dos indivíduos e determina as suas reações. A não ser que você consiga repensar a coisa, analisar tudo e buscar no próprio legado cultural não imediato, mas no mais remoto, outras bases que lhe pareçam mais [1:20] aceitáveis.
Outra coisa: nós vemos centenas de filmes em que as pessoas se queixam que seus pais não lhe deram atenção suficiente. Curioso, você não vê ninguém na Antigüidade se queixando disso. Quanta atenção deu a Moisés o pai de Moisés? Você não vê em parte alguma Moisés dizendo [chorando]: "Meu pai não me prestou atenção!" Você vê ali a história de Jesus Cristo, um pai adotivo, São José. Quanto tempo São José perdeu com Jesus Cristo? Ficava brincando, ficava jogando bola com ele, ficava o tempo todo ali dando atenção? Não consta nada disso.
Eu digo: mas, ora, se é uma necessidade humana tão premente, tão fundamental, por que ninguém durante séculos, séculos e séculos prestou atenção nisso? De repente aquilo parece que virou uma necessidade tão premente que, se seu pai não passou o tempo todo paparicando você, carregando no colo e jogando beisebol com você, vai ficar traumatizado o resto da sua vida. Isto é uma convicção gerada pela influência de certos grupos e que acaba se consolidando quase que em lei ou explicitamente em lei. As situações reais individuais humanas começam a ser julgadas a partir desses critérios.
Agora, eu tenho a experiência contrária. Eu acho que eu não fui um mau pai, meus filhos gostam demais de mim. E pergunta para eles: "Seu pai gastava muito tempo com você, ficava lá jogando bola com você?" Nunca fiz isso na minha vida. Eu não vou descer aqui do meu posto para ficar jogando bola com moleque, ora, pô! Então funcionou. Quer dizer, eu fiz um experimento na minha vida e funcionou. Eu falei: "Eu estou aqui para ser um pai, eu não sou seu companheiro de futebol, seu companheiro de gandaia". Então eu falei: eu experimentei e funcionou, graças a Deus. Isto prova que não tem de ser do jeito que as pessoas estão falando. Claro, um pai tem de ser amoroso e justo, mas esse negócio de que ele tem de estar presente ali o tempo todo, eu falo: não sei por quê. Pode funcionar sem ser isso.
Por exemplo, eu tive um grande amigo na minha juventude que foi como um pai para mim, que foi o Dr. Müller. O Dr. Müller ficava o tempo todo se metendo na minha vida? Não, ele até morava longe. Quando eu precisava de alguma coisa, eu ia lá, falava com ele e eu sabia que ele não ia falhar: qualquer coisa que eu pedisse para ele, ele ia fazer. E isto era uma segurança para mim. Então, me pareceu que a idéia de pai corresponde mais a isto do que a do sujeito que fica jogando bola com você.
Esse é um experimento pessoal que prova que essa crença geral está errada. Porém, com base nessa crença geral, você veja quantas pessoas explicam o trajeto inteiro das suas vidas porque o pai não jogava bola com elas. Se as coisas não são assim na realidade, são pelo menos no imaginário. Como é que nós sabemos que está no imaginário? Pelos filmes. Filme americano, 80% dos filmes falam disso. Quer dizer, é uma crença que existe. Agora, a partir da hora que o sujeito viu no filme, ele pode dizer: "Quem sabe o meu problema é esse?" E isto lhe dá uma explicação, acalma a sua expectativa, acalma as suas culpas.
Nós recebemos o tempo todo o impacto dessas crenças, dessas imagens, dessa coisa. E isso compõe a cosmovisão. Você não sabe de onde se originou essa cosmovisão, ela se compõe de múltiplas fontes. Quando houve erros de percurso, quer dizer, houve falsas crenças que se incorporaram ali, você não tinha a menor idéia. Problemas pessoais todo mundo tem, suas perplexidades etc., porém chega um ponto em que você vê que as suas perplexidades não são só suas, elas estão na cultura, e a cultura não tem solução para elas porque às vezes ela mesma não tem consciência de que esses problemas existem.
Quantas pessoas você conhece que, se a mulher ou o marido as trair dez vezes, perdoarão e continuarão a coisa do mesmo jeito? São raras. Em geral, na primeira já acabou tudo. A fidelidade matrimonial em vez de ser um benefício que você recebe, um dom, um presente dos céus, passa a ser um direito. Ora, não pode ter sido um direito antes de ter sido regulamentado. A partir de certo momento foi regulamentado e virou um direito. A partir da hora que é um direito, as pessoas acreditam que têm esse direito, e isto influencia todas as decisões e reações que elas terão na vida.
O problema da reforma da cultura é o problema filosófico básico. Não que vá conseguir reformá-la inteira, mas você lança as bases de uma coisa que, ao longo dos séculos, pode ser aproveitada aqui ou ali e melhorar um pouco a situação em contextos que você não consegue nem imaginar porque estão muito além da duração da sua vida. Não se trata de um plano de reforma a ser conduzido por uma autoridade, a autoridade do filósofo, não é. Platão está muito consciente de que num certo momento da vida ele tem de fazer escolha. Quer dizer, ele diz: "O homem só se realiza no corpo da sociedade humana", porém para você estar totalmente integrado na sociedade humana, precisa ser igual aos outros, precisa agir igual aos outros. E isso faz com que você vá assimilando os costumes, as reações, os sentimentos etc. que já são dominantes, então perde a possibilidade de se colocar um pouco fora daquilo e examinar outras possibilidades.
De certo modo, o filósofo se coloca um pouco à margem da sociedade humana e, portanto, perde a possibilidade da participação intensa nela como governante, como coisa assim, e isto é uma opção que tem de fazer. Se você quer ser o governante, eu falo: muito bem, você pode ser o governante, mas vai ter de pôr em execução a filosofia dos outros e não a sua própria. Agora, você quer ter a sua própria? Então se coloque à margem da sociedade, e ela não vai colocar em execução as suas idéias. Talvez as coloque depois de alguns séculos.
Isso aqui é para esclarecer o que é o destino de um filósofo. Nós desejamos influenciar o curso das coisas? Sim, mas nós não desejamos dirigi-lo. Porque para dirigi-lo, você teria de ser um governante, teria de ter um poder e teria de criar uma hierarquia de comando. Porém, para criar uma hierarquia de comando, já surge um pequeno problema: as pessoas só obedecem em função, por assim dizer, de reflexos condicionados que elas já têm. Então, a base da obediência são as crenças que já existem, e você teria de se apoiar nelas. Ora, se as pessoas me obedecem em função de crenças que elas já têm, elas obedecem em função das crenças delas e não das minhas, então elas vão fazer no fundo o que elas querem.
É o negócio do Napoleão. Perguntaram para Napoleão: "Qual é o segredo da sua autoridade?". Ele disse: "Eu descubro o que o sujeito quer fazer e o mando fazer exatamente isso. Portanto, eles fazem o que eles querem e não o que eu quero". Também tinha um filme --- até esqueci o nome --- que se passa na Amazônia, e tem lá uns engenheiros que estão fazendo uma obra e tem uns trabalhadores indígenas. Tem o engenheiro e tem o capataz. O capataz é um índio que passa o comando para os índios em língua de índio. O engenheiro fala assim: "Por que eles não estão trabalhando?", e ele fala: "É porque eles não querem". Ele disse: "Mas você é o capataz, vai lá e mande-os trabalhar!". Ele diz: "Bom, mas se eu mandá-los fazer o que eles não querem, eles não vão me obedecer mais".
É este o problema: se você quer o poder, vai ter de se amoldar às condições que tornam o poder possível. E se você [1:30] quer uma visão objetiva, superior à mitologia reinante, então vai ter de abdicar do poder, o que não quer dizer abdicar da influência. O poder entra já na esfera do plano revolucionário.
"(...) Então há uma série de convicções tácitas, não declaradas, que circulam por toda a sociedade (...)"
Tudo isso que eu estou explicando agora estava implícito nas respostas que estava dando ao Maurício e estou tentando explicitar um pouco agora. Não é preciso dizer que, em tudo aquilo que eu estou explicando aqui nessas aulas, sempre tem mais coisa implícita. Quer dizer, faz parte do instinto filosófico esse impulso abrangente, por assim dizer: você conecta uma coisa com outra coisa, com outra coisa, com outra coisa, e nada é uma opinião solta.
"(...) convicções tácitas (...) que fazem parte daquilo que Gramsci chamava o 'senso comum', no sentido específico que ele dá a esta expressão. Para a maior parte das pessoas, esse senso comum é mais do que suficiente para servir de base às decisões. Mas, quando você começa a estudar, por exemplo, história, ciências etc., começam a surgir perguntas para as quais o senso comum não tem nenhuma resposta. (...)"
Claro que podem surgir outras que o senso comum já tem. Mas chega uma hora que você vê que não existe na sua cultura uma solução para aquilo, como não existe solução para esses problemas do processo do conhecimento que eu estava explicando com relação a David Hume.
"(...) Muitas vezes esses dados, essas informações, vão contra o senso comum, surgindo outro nível de perguntas que requer um tratamento mais sério, mais sistemático. Assim, uma das primeiras preocupações é quase instintiva: o Ser Humano procura assegurar uma coerência ou uma integridade maior por meio da coerência do discurso. (...)"
E aí surge o segundo problema. Esse já é um problema que surge no curso da realização da própria vocação filosófica. Esse instinto da unidade surge do fato de que você sabe que está num universo que é um só. Para usar a expressão de Ortega y Gasset: "Nós sabemos que é um universo e não um pluriverso". Ou seja, eu sei que não há dimensões de realidade totalmente estanques. Podem estar mais ou menos próximas ou separadas, mas totalmente estanques não. Quer dizer, não há universos paralelos ou, como dizia Paul Eluard: "Há outros mundos, mas estão neste". Isto é a base da experiência humana, quer dizer, a unidade do real é a base de toda a experiência humana, e ela é já o conteúdo da primeira experiência humana.
Mas por ser unidade e ao mesmo tempo totalidade, é uma unidade em aberto. Ou seja, você sabe que é uma unidade, mas não pode enxergar os confins dessa unidade. E esta é a tensão fundamental, a tensão entre unidade e totalidade é também uma das bases da experiência. Tudo o que você conhece. Por exemplo: você conhece uma pessoa e sabe que aquela pessoa é uma pessoa distinta específica. Você sabe disto e, se não soubesse disto, não poderia conviver com ela, não poderia conversar com ela. Por exemplo, você faz uma pergunta para uma pessoa, espera que, pela voz dela, fale ela mesma e não um terceiro. Sem isso a convivência seria impossível. No entanto, eu conheço essas pessoas como totalidades? Eu vi essa totalidade? Não. Eu, de certo modo, a conheço. Mas, presta atenção, a conheço...
Mas, presta atenção, conheço-a tal como ela existe na realidade e fora de mim. Eu não posso fazer disso um conteúdo da minha consciência. Eu sei que ela é uma totalidade em aberto. E conhecer a pessoa é conhecê-la como totalidade em aberto. Se eu pudesse conter a pessoa, abarcar a pessoa inteiramente no meu pensamento, ela não seria uma pessoa e seria um pensamento meu. Então, não poder dominar intelectualmente a realidade concreta de um ser humano é uma exigência fundamental da própria existência do ser humano e da possibilidade da sua convivência. Porém, o senso da unidade... E quando você se defronta numa situação de fragmentação, de confusão, de caos cultural, faz com que reaja querendo criar uma unidade intelectual, verbal que sirva de senso de orientação.
Por exemplo, para os discípulos de Platão, o pensamento de Platão era um esquema de referência mais claro e melhor do que a cultura ambiente na qual, no entanto, ela também se integrava de algum modo. Neste esforço, pode ser que o impulso da unidade conduza você a tentar criar um discurso uniformemente coerente do começo até o fim. Criar uma unidade fechada. Seria, então, a teoria de tudo. Nem sempre esse impulso é vivenciado de maneira totalmente consciente, mas ele está ali. Agora, para os filósofos do tempo do racionalismo clássico como Spinoza, eles tinham essa idéia. Descartes tinha essa idéia. Quer dizer, vou fazer aqui uma explicação de tudo, um sistema do mundo.
Então, é preciso enfatizar claramente o tipo de unidade que busca o filósofo, que é uma unidade que corresponda à estrutura da realidade tal como ele a experimenta. E, como tal, não pode ser objeto de um discurso fechado. Porque é incoerente com a própria natureza da realidade que nós vimos que é unidade e totalidade ao mesmo tempo. Conhecida como unidade e como totalidade só em aberto, ou seja, unidade potencial, nunca real, nunca perfeitamente realizada. Isto quer dizer que o discurso totalmente coerente, o sistema do mundo, pelo simples fato de sê-lo já estaria em contradição com a própria estrutura do mundo. Se ele não tiver aquelas aberturas para o imprevisível, o ilimitado, então já está errado.
Isto quer dizer que a unidade que um filósofo procura não é a unidade de um discurso, unidade de uma teoria completa. É a unidade de um sistema de suporte verbal que permita aos seus leitores, discípulos, alunos, estudantes, como queiram chamar, ou seguidores, como diz o Rodrigo Constantino, vivenciar essa unidade do mundo de maneira consciente nas suas próprias pessoas sob a forma de uma tensão consciente entre unidade e totalidade. E, nesse instante, você se ajustou à estrutura real do mundo, porque ela é assim. Esse ajuste, esse foco não é só intelectual, ele é existencial. Abrir na alma das pessoas a possibilidade de encontrar este foco, este centro, por assim dizer, este é o objetivo da filosofia, e a filosofia é a mesma coisa que ensino da filosofia.
Eu acho que já foi bastante coisa. Então, vamos fazer um intervalo e daqui a pouco nós voltamos.
Então, vamos lá. Tenho várias perguntas interessantíssimas.
O Evandro Albuquerque pergunta se haveria algum exercício ou dica para que possa apreender melhor a noção da perspectiva rotatória. A perspectiva rotatória não é nada mais do que o correspondente epistemológico ou gnosiológico daquilo que na esfera objetiva ou ontológica é o círculo de latência. Como a percepção de qualquer ente, qualquer objeto ou de qualquer situação é um círculo de latência, a atividade cognitiva correspondente a isso é o que eu chamo a perspectiva rotatória.
Quer dizer, você apreender um objeto sob vários aspectos [1:40] sabendo que por trás desses vários aspectos, existe uma unidade que eles simbolizam, mas que jamais apresentam. Quer dizer, a unidade de nenhum objeto nunca é presente. Estar presente na sua unidade implicaria automaticamente a sua completa extinção porque todas as suas possibilidades teriam de estar já realizadas, então, seria incompatível com a estrutura da realidade. Os objetos só podem se mostrar por partes e aspectos porque a exibição, a completa exteriorização de todas as suas possibilidades interiores os esgotaria automaticamente e faria com que eles saíssem da existência. Então, você só percebe os objetos por partes e aspectos, por quê? Porque eles continuam existindo. Eles não realizaram todas as suas possibilidades. O fato de você não poder perceber o objeto inteiro, só perceber por aspectos, ou por sensações como diria Hume, não coloca em dúvida de maneira alguma a existência objetiva deles. Mas o contrário é precisamente o que a prova. Porque se o objeto puder ser visto inteiro, ele estaria automaticamente esgotado. Seria a completa manifestação, exteriorização de todas as suas possibilidades internas. Feito isso, ele cessaria de existir, então, isso seria contraditório com a existência. Se eu só percebo partes ou aspectos, é porque os objetos só manifestam partes e aspectos momento a momento. Portanto, a minha percepção deles corresponde rigorosamente à estrutura objetiva deles.
Por exemplo, quando você vê uma pessoa, você só a vê na idade que ela tem naquele momento. Você não pode vê-la ao mesmo tempo como bebê, criança, adolescente, pessoa madura, velho e falecido. Não pode ser tudo isto ao mesmo tempo. Isto é contraditório com a própria modalidade de existência dela. Se você visse tudo isto pronto, então, você realizaria neste mesmo instante o verso do Mallarmé: Tel qu'en lui-même enfin, l'eternité le change. Então, você já estaria na eternidade, não estaria mais aqui. É totalmente contraditório. Quer dizer, muitas vezes a gente comete erros filosóficos porque simplesmente não faz a hipótese contrária. Quando Hume diz: "Nós só percebemos as partes e aspectos e não há nenhuma garantia de ter um objeto por trás". Façamos a hipótese contrária de que nós percebemos não um ou outro aspecto, mas tudo ao mesmo tempo. Essa hipótese é inteiramente absurda. Então, você está reclamando que uma hipótese absurda não se realiza e você alega isso contra a veracidade, objetividade e eficácia do conhecimento. Não tem sentido! Você está alegando contra o conhecimento humano o fato de que ele não é absurdo. Isso aí o que é que é? Isso é falta de treino dialético. E a incapacidade para o raciocínio dialético é característica de toda essa escola analítica. Eles pegam uma linha de análise e seguem aquilo até o fim e dizem: "Não lembro a hipótese contrária".
Uma boa maneira de você treinar essa perspectiva rotatória é ouvir uma música. Eu dava esse exercício para os meus alunos em São Paulo. Pedia para ouvirem a Quinta Sinfonia de Beethoven, ouvia, ouvia, ouvia até decorar. A hora que você decora, eu digo: "Pense a Quinta Sinfonia de Beethoven". Você tinha a idéia da totalidade daquilo num relance que durava muito menos do que o tempo da execução da música. Agora, se isto não fosse possível, você jamais saberia que existe a Quinta Sinfonia de Beethoven porque só poderia ter contato com ela na sua duração total. E quando ela terminasse, você só poderia lembrar um pedacinho. Como é que você sabe que existe algo como Quinta Sinfonia de Beethoven? É porque o conjunto deixou certo impacto, não apenas suas partes e notas isoladas embora você só possa ouvir uma por uma.
Outro exercício da perspectiva rotatória é você olhar o quadro do Diego Velázquez, "Las Meninas", onde aparece... É um negócio incrível porque aparece num primeiro plano, tem umas menininhas brincando com um cachorro, mais atrás tem o próprio pintor olhando na direção do espectador e pintando o quadro. Mais atrás tem mais duas pessoas e no fundo tem um espelho onde está o rei e a rainha exatamente na posição de onde você está olhando. São as várias perspectivas que estão se articulando ao mesmo tempo.
Outra coisa interessante. Os quadros do Escher. Eles são exemplos de perspectiva rotatória. Quer dizer, você percebe os entes em parte por aquilo que eles estão mostrando evidentemente. Está visível exteriormente neles e em parte por uma conexão interna que eles não mostram, mas que está lá. O que é que o Escher faz? Ele desenha essa conexão interna como se ela estivesse visível. Existe um monte de maneiras de fazer isto.
Por exemplo, quando você assiste a uma peça de teatro. Assiste a uma peça de Shakespeare, Otelo, e veja como esses personagens se definem uns pelos outros. Tente fazer abstração mental, digamos da Desdêmona, no caso de Otelo. Se ela não estivesse ali, que sentido fariam as falas do Otelo? Nenhum. Essas falas nunca são completas porque elas supõem uma resposta, está certo? Em suma, o exercício da Quinta Sinfonia é interessante. Também, quando você vê um quadro, você examina o quadro, o quadro está ali inteiro ao mesmo tempo. Mas se ele tem uma série de relações internas, por exemplo, de posição, de perspectiva, que você só vai vendo aos poucos. Você está desenrolando no tempo, algo que está no quadro tudo ao mesmo tempo. Mas ao mesmo tempo, o pintor pintou tudo ao mesmo tempo? Também não, então, você tem uma série de jogos entre o simultâneo e o sucessivo e estes jogos, constituem por um lado o quadro e por outro lado a sua percepção dele. Isso tudo ilustra para você tanto o círculo de latência, quanto a perspectiva rotatória.
Quer dizer, todas essas relações que você não percebe à primeira vista, que você pode analisar depois, elas estão presentes no quadro. Elas fazem parte do círculo de latência dele. E, no momento em que você as percorre e volta depois à unidade do quadro, está realizando o quê? A perspectiva rotatória.
A Clélia Maria Haberfellner me manda bons votos de aniversário: "E se hoje sou uma mulher de pé, foi que o grande artista que habita em seu coração lapidou com mãos de mestre nosso cérebro cheio de ignorância com a maestria do seu conhecimento e talento". Muito obrigado, Clélia. Muito tocante o que você está dizendo.
Aproveito aqui também para agradecer a Kay Lira que me enviou dois CDs e um cartão que é o cartão mais tocante que eu recebi na minha vida. Não vou ler aqui para vocês para não ficar entrando em detalhes muito pessoais, mas é muito, muito bonito o cartão. Realmente muito tocante. O cartão foi melhor que o presente.
Guilherme Peixoto diz o seguinte: Ele está com uma dificuldade com a explicação que eu dei na outra aula que diz: "Se existe algum ser necessariamente possível, ele exclui por isso mesmo uma possibilidade da sua inexistência e, portanto, tem de existir necessariamente. O que contradiria a inexistência do ser necessário". Ele diz: "A única maneira de usar um sentido real para o termo contingência, se existe um ser necessariamente possível, então, ele não exclui a possibilidade da sua inexistência, mas a necessidade da sua inexistência". Não, Guilherme, não é isto. Se você diz "necessariamente possível", significa impossibilidade da inexistência. Os termos são equivalentes, eles são sinônimos, por assim dizer. Não há realmente a dificuldade. Eu apenas estou usando o mesmo termo de outra maneira. Quando eu digo que se a possibilidade da existência dele é necessária, isto significa que a inexistência é impossível, automaticamente. É a mesma palavra. É o mesmo termo. Não há dificuldade alguma. O que não quer dizer que ele exista efetivamente. Quer dizer, se ele é necessariamente possível, isso exclui... Quer dizer, a palavra necessidade exclui o seu contrário. Ele não pode ser impossível.
E, se o ser é necessariamente possível, qual é a possibilidade da sua inexistência? Se a possibilidade de um ser é absolutamente necessária? Qual é a possibilidade de que ele não exista? Isto é importante. Parece isto aí que você disse. O que não quer dizer que ele exista. Se ele é necessariamente possível, a possibilidade da sua inexistência é em si mesma nula. Ele pode não existir num determinado momento, mas se ele é necessariamente possível, então, no curso total da manifestação, ele terá de se manifestar de qualquer maneira. Quer dizer, sob algum aspecto, em alguma modalidade, ele terá de existir. Porque se você excluir a existência, se a excluir, você a excluiu da possibilidade automaticamente. Você não excluiu só do ser. Se disser: "Esse ser jamais existirá". Isto quer dizer que você está dizendo que a existência dele é impossível. Isto pode ser que a sua existência não venha a se manifestar em tais ou quais condições durante bilhões e bilhões de bilhões de anos, mas você não pode excluir a sua existência, não pode decretá-lo inexistente. O que quer dizer? Seria uma inexistência acidental. Acidentalmente ele não veio à existência. Mas você não pode excluí-la de uma vez para sempre, porque excluí-la seria decretar o que é impossível.
Isso quer dizer a inexistência de um ser necessariamente possível é uma frase vazia, na verdade. Você não está dizendo coisíssima nenhuma. Há um ser cuja possibilidade é absolutamente necessária. Você não pode ao mesmo tempo excluir a possibilidade da sua existência. E, se você... É que a palavra existir aqui... Talvez a frase tenha sido mal construída. É, não é que ele tenha de existir necessariamente, portanto, você não pode excluir a sua existência. Ainda que ele não venha a se manifestar em tais ou quais condições, ela não pode ser excluída. Então, o que eu estou querendo dizer é o seguinte: a existência de um único ser necessariamente possível, já é de algum modo existência de um ser necessário. Se a possibilidade de "X" é absolutamente necessária, algo de absolutamente necessário existe. Se existe algo que é necessariamente possível então você não pode dizer que não existe nenhum ser necessário. Existiria pelo menos este. Agora, ele coloca um parágrafo aqui interessante:
Aluno: O fato é que agora... A dificuldade toda é querer dar simplicidade e obviedade extremas. Todo o esforço para abordá-lo logicamente é imerecido. A sua evidência imediata e gratuita que dispensam depurações lógicas. Servirão apenas como ruído ofuscante, pois é claro que em qualquer ser que já existe, não pode deixar de existir, isso é o mesmo que dizer que a possibilidade da sua inexistência é zero. (...)
Olavo: Sem dúvida, sem dúvida.
Aluno: (...) Esse é o sentido da sua afirmação?
Olavo: É, mas ela é um pouco mais ampla do que isto. O que eu quis dizer é que [1:50] se um ser é necessariamente possível, a sua inexistência só pode ser contingente, evidentemente. E, se ela é contingente, ela é limitada a uma determinada condição, você não pode excluí-la do campo inteiro do ser. Se disser: "Ele não, não existe, não existirá nunca, jamais". Então, isso é contraditório com a necessidade da sua possibilidade. Eu ainda não sei se ficou claro. Se não ficou, você repete, Guilherme. Vamos tentar explicar isto melhor.
Aluno: A expressão "necessidade", ela necessariamente significa exigência...
Olavo: Exigência ou existência?
Aluno: (...) Não, a necessidade.
Olavo: Necessidade significa uma exigência absoluta, claro, pergunta se a necessidade no sentido de exigência. Sim, necessidade vem do latim Nec cedere, quer dizer, não cede, é uma coisa que tem de ser e não pode não ser. Então, eu digo, se a possibilidade de um determinado ser, ela é absolutamente necessária, não há como você excluí-lo totalmente da esfera do ser. Dizer que ela é necessariamente possível, é dizer que ela é necessariamente existente de algum modo e em algum plano, a não ser que você diga que esta possibilidade não quer dizer nada. Eu digo que uma possibilidade existe como tal evidentemente. Se ela é necessariamente possível, ele já existe como possibilidade e não pode deixar de existir como possibilidade. O que significa que é impossível você exclui-la da esfera do existente. Se não ficou claro, Guilherme, insista, esse tópico é realmente importante.
Aluno: Existe uma experiência que ajuda a esclarecer a idéia da extrusão. À primeira vista eu vi um caminho oposto àquele de Santo Anselmo. Fui conduzido durante a minha graduação universitária de volta à Igreja por via do raciocínio abstrato e especulativo. Na época eu era fascinado por sistemas filosóficos especialmente aqueles dos idealistas alemães e considerava que a essência da filosofia era a liberdade na especulação. O raciocínio decisivo para a minha volta foi reconhecer a criação da realidade por Deus e a participação nesse ato criador como fundamento da objetividade de qualquer especulação livre e autônoma. Se o mundo não fosse ele mesmo um produto de um ato livre, um pensamento livre só poderia conhecer um simulacro do mundo. (...)
Olavo: Certíssimo, isso é um puro raciocínio. Ele diz que por esse raciocínio, ele foi conduzido de volta à fé.
Aluno: (...) Relembrando a experiência hoje, veja que a força lógica do argumento residia mais na confiança inabalável que eu tinha de poder conhecer a verdade, o que já era uma confiança no espírito do que no argumento em si sobre o qual é possível debater.
Olavo: É sempre assim, Antônio. Todo argumento, ele não é senão o símbolo de uma experiência. O que você fez aqui é exatamente o que tem de fazer com os argumentos. Você perceber que o argumento remete a uma experiência mais profunda e não ficar discutindo o argumento em si. A discussão de qualquer argumento sempre pode prosseguir indefinidamente. Quer dizer, o número de objeções que se pode levantar a qualquer argumento é indefinido. A eficácia dos argumentos depende em parte da confiabilidade da memória que se refere a uma experiência anterior. Quer dizer, se você está falando com uma pessoa que não tem experiência, que não sabe a que você está se referindo, não adianta argumentar. O argumento está vazio, está no ar. Então, pode suscitar uma infinidade de objeções. Por que é que, em geral, as objeções cedem depois de umas quantas respostas? É porque você está falando com uma pessoa honesta, uma pessoa que tem memória e ela lembra as condições da sua experiência e ela sabe que ela não pode ir além daquilo. E se ela não souber? E se ela estiver desconectada do raciocínio e experiência? Aí a discussão pode prosseguir indefinidamente. Aí é exatamente como discutir com o diabo. É exatamente aí que você passa da objeção humana para a objeção diabólica. A diferença não é de ordem lógica. É da ordem da experiência. Quer dizer, nós estamos todos no mesmo mundo, nós participamos de uma mesma condição e nós nos reportamos a ela. Mas se isolamos disso o puro raciocínio, então, o raciocínio se desenrola no vazio e você não tem nada que possa servir de baliza para o raciocínio.
Aluno: (...) Dito de outro modo, fui reconduzido do pensamento abstrato para a linguagem compacta dos símbolos. (...)
Olavo: Mas é exatamente o que tem de fazer! [2:00] É isto que eu estou sugerindo que faça: passar da linguagem dos símbolos para o pensamento abstrato e vice-versa, mas o pessoal esquece o vice-versa. Quer dizer, quando chega à formulação lógica, o sujeito se dá por satisfeito. Eu digo: sim, mas o que é que significa esta formulação lógica? O que é que significa para você na hora que a formulou ainda que não a percebesse?
Aluno: (...) Fui reconduzido do pensamento abstrato para a linguagem como o pai do símbolo, pois entendi que a especulação enquanto atividade vivida tinha uma ambição, uma riqueza só expressa na religião, e até hoje a inspiração no conhecimento metafísico permanece para mim uma estrela-guia que me impele no crescimento intelectual no Curso Online de Filosofia.
Olavo: É perfeito! Quer dizer que ele fez um raciocínio, viu que esse raciocínio tinha uma força probante, porém ele sabe que essa força probante não é definitiva. O argumento poderia continuar sendo discutido, mas por baixo dele havia uma experiência e essa experiência, sim, essa tinha um poder persuasivo. Agora, a experiência não é transportável, ela pode ser simbolizada e "transmitida", mas não transportada, portanto, o que quer que você diga, dependerá de uma atividade, por exemplo, anamnética que o ouvinte faça consigo mesmo. Quer dizer, ele tem de se recordar de sua experiência, e se ele não quiser fazer isso? E pior, se ele mentir, se ele fingir que não teve a experiência? Aí não tem jeito. Portanto, é a coisa do Platão.
Não se trata da prova, mas da persuasão espiritual, onde você convoca as pessoas a que se recordem das coisas como elas viveram realmente. Mas nada pode obrigá-las a fazer isso. Se elas quiserem representar um teatro, fingir que não sabe aquilo que sabem, toda a argumentação fica impotente automaticamente. Portanto, isso quer dizer que a técnica da argumentação tem certa importância de ordem pedagógica na prática da filosofia, para você poder expressar as coisas com certa clareza e estabilidade. Mas como poder persuasivo, é muito pequeno, a não ser que você esteja conversando com pessoas que atendam aos requisitos dos debates filosóficos. Platão dizia: "Não se deve discutir jamais com quem não conheça ou não respeite as regras da argumentação". Bom, a primeira regra da argumentação é aquela que diz que você tem de estar presente ali com a sua pessoa real, com a sua memória real, e com alguma sinceridade. Sem isto, nada é possível.
Aluno: Conversando com um amigo que assim como eu será pai em breve, surgiu uma discussão a respeito da importância do contato religioso da criança. Segundo ele é totalmente desnecessária a religião para a construção da moral e dos valores de uma criança. Ele citou ainda que países bem avançados têm taxas altíssimas de ateísmo, como Suécia, Japão, França e Noruega. Como estou praticando abstinência de opinião eu preferi refletir sobre isso e trazer a pergunta aqui. Sei que um dos grandes discursos dos ateus que têm visibilidade na mídia é de que é possível ser ateu e ter valores morais superiores aos de qualquer cristão aplicado. É possível realmente uma criança crescer com valores através de uma educação ateísta?
Olavo: Um momento, um momento. O que pode haver nesses países não é uma moralidade elevada, é apenas uma baixa taxa de criminalidade, que se explica pela eficiência da polícia. No Japão, a polícia desvenda 98% dos crimes. (Ela exclui os crimes e daí acusa porque acusa o próprio governo, então não pode investigar.) Os crimes piores ela não investiga, dos outros ela descobre 98%. Então a baixa taxa de criminalidade não significa de maneira alguma altos valores morais! Ao contrário, se houvesse altos valores morais, não haveria nesses mesmos países tantos drogados, tantos loucos, tantos suicidas quanto lá. Em primeiro lugar isso é uma confusão. Em segundo lugar, desses exemplos pelo menos um está falho, que é o próprio exemplo do Japão. Quer dizer, o modo como as crianças ainda são educadas no Japão até hoje, ainda é reflexo da antiga educação xintoísta, patriarcal, hierárquica etc. Da qual foi tirada a referência religiosa, mas que continua funcionando do mesmo modo, e onde ela falha você cai na criminalidade. Em terceiro lugar, a educação religiosa é desnecessária. Eu digo, sim, desde que você ensine a criança com valores e critérios que surgiram da própria religião, sem dar o nome da religião.
Por exemplo, a noção da reciprocidade, de você julgar os outros pelos mesmos critérios do que você julga você. Preste atenção: isso aí não é natural no ser humano. Natural no ser humano é ele até negar a condição humana da pessoa que ele não gosta. Dizer que há uma coisa mais universal do que o racismo, e até o racismo radical... Você tem tribos nos Estados Unidos, agora não lembro o nome exatamente, mas o nome quer dizer "humanos", seres humanos. Quer dizer, tem os seres humanos que é nós, e tem os outros, que nós não sabemos que raio de coisa é. Então a ideia da reciprocidade integral para com todos os habitantes do planeta Terra é uma ideia que só surgiu no cristianismo, e depois foi se infiltrando na cultura ao ponto de parecer muito natural. Quando se ensina isso a uma pessoa, você está ensinando um mandamento religioso, só não diz que é religioso. Mostre-me um único preceito moral eficiente que não tenha saído da religião. Quando você começa com a chamada moral laica, a moral laica se constitui de duas coisas: de valores religiosos, dos quais você tira o rótulo religioso e de absurdidades, de "pseudovalores" que você inventou e que quando você implanta na sociedade a destrói. Porque você cria tanta, tanta, tanta contradição.
Por exemplo, se acha assim que "Todos têm direito ao matrimônio". Você não pode negar o matrimônio gay, e se nega o matrimônio gay você está discriminando os gays. Você está pressupondo na base que qualquer pessoa que queira casar com qualquer uma ela tem de ter esse direito, senão é discriminação. Está confundindo a noção do matrimônio com a simples noção genérica de relação entre duas pessoas. O matrimônio é uma coisa específica. Qualquer pessoa que junte passa a ser matrimônio. Então, por que deveria haver uma idade mínima para o matrimônio, ou por que deveria haver um limite quantitativo? Por que não casar com 15 pessoas, com 20 ou com 30? Pior ainda, surgiu do primeiro o seguinte problema que ninguém analisou: nos regulamentos mundiais a respeito do casamento heterossexual, do casamento em si, o marido e a mulher não têm todos os direitos sexuais, têm só alguns, aqueles relativos à procriação. Por exemplo, se uma mulher se recusa a ter uma relação genital com você, ou se recusa a ter com ela, ela pode ir ao juiz e pedir o divórcio.
Porém, se você quiser ter uma relação anal com ela, ela é obrigada a ceder? Não. Ao contrário, se você quiser insistir, ela pode pedir o divórcio por causa disso. "Ele quer me forçar a ter uma relação anal e eu não quero!" Agora, o que seria um casamento homossexual sem direito à relação anal? Seria nada. O próprio sexo oral, ele é um direito absoluto das pessoas casadas? Não. Ele depende do consenso mútuo. Posterior ao casamento. Ele não é um direito assegurado em lei. Se você quiser fazer isso com a sua mulher, ela faz se quiser, e se ela não quiser? Você pode forçar? É um direito que você tem? Você não tem o direito, ela vai ao juiz e reclama.
Agora, a partir do momento que você aceita o casamento homossexual, então significa o seguinte: está dando aos gays o direito ao sexo anal que é negado ao restante da espécie humana. Estão sendo discriminados. Das duas uma: ou você consagra o direito ao sexo anal universalmente, ou seja, mulher nenhuma vai poder negar o seu traseiro, ou então vai ter de aceitar que o direito ao sexo anal é só de uma parte da humanidade. Valores absurdos, contra valores, caricaturas de valores, quando levados a sério e aplicados, eles geram essas situações. Você imagina um gay: "Casei com outro gay, sei lá, [2:10] casei com o Alessandro, casei com o misterioso senhor Eduy", e daí eu peço o divórcio porque ele quer fazer sexo anal comigo. Daí o juiz vai dizer: "Não, mas sexo anal é inerente à própria noção de casamento gay, você não pode recusar". Quer dizer que no caso, o critério é absolutamente inverso ao do casamento heterossexual. Toda a parcela da espécie humana heterossexual que quer fazer sexo anal ou oral estará totalmente discriminada.
Quais são as atividades sexuais que definem o chamado "dever conjugal"? No casamento heterossexual só tem uma: é a relação genital e isto é um dever, o resto não é dever. E se não é dever de um, não é direito do outro, isso é fundamental. Se a mulher não tem o dever de fazer sexo anal ou oral com você, então você não tem o direito de fazer com ela. É uma concessão que ela lhe faz, e não um direito. Mas o que seria um casamento homossexual sem o direito a sexo oral e anal? Não pode fazer nada! Quer dizer, você casa, mas o genital está excluído, porque não há correspondência. Ou não há uma vagina, ou não há um pênis. Então tem de ser ou oral, ou anal ou as duas coisas. É só, não tem outra alternativa. Agora, quando o gay casa, mas ele não quer fazer nem o oral, nem o anal? Não pode fazer nada. Já viram a absurdidade da situação? Isto é gerado pela ideia absurda de casamento gay. Quer dizer, a objeção contra o casamento gay não corresponde a uma objeção moral contra o homossexualismo. São coisas completamente diferentes. É difícil meter isso na cabeça do pessoal cristão, católico, evangélico que argumentam, porque para eles é tudo a mesma coisa.
Olha, o homossexualismo sempre existiu e nem por isso as instituições foram derrubadas, mas a partir da hora em que houver casamento gay, o direito civil todo vai cair. É muito diferente. Quer dizer, eu estou aqui esperando a prova de que essas pessoas desses países têm valores morais superiores. Baixa taxa de criminalidade, um bom aparato policial resolve. Na verdade, se existe uma coisa bem provada é isto, é que só uma baixa taxa de criminalidade: uma boa polícia, o resto, não. É possível uma criança crescer com valores através de uma educação ateísta? Sim, se a educação ateísta é simplesmente passar os velhos valores religiosos sem nome.
Daí ele pede indicação de bibliografia. Não me ocorre no momento, eu já li muitas coisas sobre isso, mas não com esta abordagem que eu estou fazendo. Por exemplo, esta questão do sexo oral e anal ninguém levantou! Que para mim é a primeira coisa óbvia, porque quando eu vejo um conceito, eu imediatamente, eu digo: "Mas a que isso corresponde materialmente, fisicamente?" Se isso não corresponde a nada, então, ou é apenas um esquema abstrato que não pode ser realizado, mas se pode ser realizado tem de corresponder a algo materialmente, então o que é relação homossexual? É sexo anal ou oral. Ponto final. Pode ser também masturbação mútua, de preferência os dois no mesmo quarto, porque um se masturbar num quarto e o outro no outro quarto não é uma relação. Também é isso, a masturbação conjunta é um direito conjugal? Para os heterossexuais, não. É uma concessão. É uma brincadeira, você quer fazer, se a mulher topar, faz. Agora, para o homossexual é um direito inerente e o cara não quer fazer nem sexo oral, nem anal, nem masturbação, ele não quer fazer nada, então não tem casamento. Aquilo que está excluído numa modalidade de casamento é obrigatório no outro. E, portanto, ela cria direitos especiais, da qual o restante da humanidade estará excluído.
Aluno: Lembrei-me de um o filósofo que eu gosto tanto e que o senhor cita, o Ken Wilber. Muitas ideias dele vêm provar o conceito de holon, palavra aparentemente criada por Arthur Koestler, mas acho que é equivalente às mônadas de Leibniz (...)
Olavo: Perfeitamente.
Aluno: (...) Só queria ver se compreendi melhor as implicações não exatamente filosóficas, e sim chegar a um universo ou cosmos como uma mônada de Leibniz. Teria então a ver uma compreensão da unidade e hierarquia ou holarquia como diria o Wilber, que estrutura a realidade ainda que aberta ao novo. Seria isso?
Olavo: Mas é exatamente disso que eu estou falando, você pode chamar de holon ou de mônada, vai dar na mesma. Porque quando Leibniz diz que uma mônada contém em si as diferenças que a distingue de todas as demais --- todas as demais em número indefinido ---, as que já existiram e as que vão existir e as meramente possíveis. Isso significa que o número de traços que definem uma mônada é ilimitado, você não pode dizer que é infinito, mas é ilimitado. Portanto o conhecimento da mônada é necessariamente um conhecimento em aberto. Note bem, o conhecimento em aberto não quer dizer um desconhecimento. É o conhecimento de um círculo de latência. Claro que a sua imaginação do círculo de latência vai até certo ponto e depois para. Para por quê? Porque cai naquilo que Leibniz chama de infinitesimal, são diferenças que na prática não vão fazer diferença. Então, muito bem, eu acho que por hoje é isso. Muito obrigado a todos, então até a semana que vem.
Transcrição: Maurício Doval, Jussara Reis, Rimi de Oliveira e Antonia Javiera Cabrera Muñoz.
Revisão: Antonia Javiera Cabrera Muñoz.