Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula Nº 142
19 de fevereiro de 2012
Boa noite a todos! Sejam bem vindos!
Em adendo àquela apostila que li para vocês semana passada, tomei mais algumas notas a respeito do mesmo assunto. Como ficaram mais ou menos num tamanho adequado, acabei enviando como artigos ao Diário do Comércio, onde devem sair semana que vem. Mas tenho evidentemente muito mais a dizer do que está anotado e por isso vou ler e complementar para vocês.
O primeiro artigo chama-se "A filosofia e seu inverso":
"Se há um dado histórico do qual não se pode duvidar, é que a filosofia nasceu na Grécia, e adquiriu sua forma clássica de uma vez por todas com Platão e Aristóteles, ambos sob a inspiração original de Sócrates. Você pode chegar a ser filósofo ignorando Sartre, Husserl, Nietzche, até mesmo Hegel, Leibniz ou São Tomás de Aquino, mas quem não tomou um banho de imersão nos ensinamentos dos dois pais fundadores, permanecerá eternamente alheio ao espírito da filosofia. Ninguém descreveu esse espírito melhor do que Eric Voegelin quando disse que "perdido o antigo senso cosmológico de orientação na vida, em que a ordem da existência aparecia como uma imagem dos cosmos, a filosofia emergiu como tentativa de encontrar um novo princípio ordenador, já não na contemplação do universo físico, mas na interioridade da alma." Na confusão geral do mundo, o filósofo busca ordenar a sua própria alma, para tomá-la como medida de aferição da desordem exterior.
Dentre os múltiplos estilos de pensamento que a filosofia universal nos oferece, o estudante sempre acaba no fim das contas por se apegar a algum; formal ou informalmente torna-se kantiano, hegeliano, marxista, nietzchiano, estruturalista, neo-empirista ou qualquer outra coisa. Mas nenhuma dessas linhas de orientação faz por si o menor sentido se separada do projeto ordenador originário inaugurado por Platão e Aristóteles, principalmente porque aquelas várias escolas se definem umas pelas outras dentro dos limites de um debate filosófico profissional, com problemas e termos estabelecidos por uma longa tradição acadêmica, ao passo que os clássicos gregos nos dão um senso de orientação muito mais abrangente, um senso de orientação não na rede das discussões universitárias, mas na vida em geral. Descartes, Kant, Husserl ou Wittgenstein nos ensinam "filosofia", isto é, certos problemas filosóficos e certas maneiras sofisticadas de abordá-los. Mas somente em Platão e Aristóteles você aprende o que é ser um filósofo: ser um filósofo não é a mesma coisa que dominar apenas um conjunto de técnicas intelectuais que tornem você um membro reconhecível, ou até mesmo respeitável de uma determinada corporação acadêmica, supondo-se que a universidade as ensine realmente, em vez de lhe dar somente um título destinado a encobrir a falta delas.
Essas técnicas permitem que você entenda o que os filósofos estão discutindo, e até formule seus palpites em linguagem academicamente aceitável. Mas ninguém em seu juízo perfeito pensaria em aplicá-las à vida real, à vida de todos os dias, fora do âmbito profissional. Ninguém ao tomar decisões sobre casamento, emprego, educação dos filhos, administração doméstica, ou mais ainda, lidar com as grandes crises da existência pessoal, vai agir baseado em Hegel ou Wittgenstein. Na verdade, a simples idéia de buscar na filosofia um senso de orientação na vida real soa estranha nos meios universitários hoje em dia. Filosofia, dizem, é atividade intelectual séria, não autoajuda: na hora da encrenca esquecem a seriedade e vão buscar a ajuda de um psicoterapeuta, ou de um pai de santo, como tantos professores da USP.
Mas é justamente nos momentos decisivos da vida, nas horas de crise e perplexidade, que Platão e Aristóteles, e pairando acima deles o espírito de Sócrates, vêm em nosso socorro, infundindo-nos o senso da ordem interior da alma, que fará de cada um de nós não um profissional acadêmico, mas um spoudaios, um homem verdadeiramente adulto, humanamente desenvolvido até o extremo limite dos seus poderes cognitivos, capaz de perceber a realidade, e tomar decisões desde o centro e o topo de sua consciência, e não desde as paixões de um momento, desde um oportunismo profissional, desde o temor do julgamento dos pares, ou desde algum preconceito da moda.
Em força pedagógica, em poder de ordenação da alma, os escritos de Platão e Aristóteles não perdem senão para a Bíblia e as palavras dos Santos Padres e Doutores da Igreja, com uma diferença a favor deles: a Bíblia está escrita em linguagem simbólica, às vezes difícil de interpretar, e os escritos dos padres e doutores lotam bibliotecas inteiras, que você não conseguirá ler no prazo de uma vida, mesmo supondo-se que saia inteiro das controvérsias teológicas que atravancam o caminho.
É verdade também que muitos estudiosos não enxergam em Platão e Aristóteles senão aquilo que encontram também em Descartes, Kant ou Husserl: questões filosóficas para alimentar a pesquisa erudita e aquecer o debate acadêmico. Mas fazem isso por que querem, por que amam a filosofia como profissão, não como norma e sentido da vida. Nada os obriga a isso, exceto a decisão que livremente tomaram de buscar antes a segurança de uma identidade profissional do que a ordem da vida interior, conciliando sem maiores dramas de consciência o rigor das investigações acadêmicas com a fragmentação, desarmonia e deformidade das suas almas. Que justamente esses tipifiquem aos olhos da multidão a imagem de filósofos por excelência, já que a multidão nada sabe da filosofia e julga tudo pela aparência dos papéis sociais, é uma das maiores ironias da sociedade atual, pois a orientação que adotaram na existência é o inverso exato da vida profissional, tal como a entendiam Sócrates, Platão e Aristóteles. São filósofos profissionais precisamente na medida em que ignoram ou desprezam o espírito da filosofia."
Houve também um leitor que me escreveu, eu não sei se é aluno do seminário, Fábio Salgado de Carvalho, dizendo que na universidade a que ele está ligado de alguma maneira -- não me recordo o que lá está cursando -- só há duas alternativas: os filósofos marxistas e o pessoal mais ligado à filosofia analítica -- análise da linguagem etc, e que, de fato, estes últimos são os únicos que fazem algum trabalho sério, ou seja, no presente estado de coisas, você tem de optar ou entre a vulgaridade marxista, ou entre se ater a este trabalhinho técnico de análise da linguagem, nas linhas criadas por Rudolf Carnap, Bertrand Russell, Wittgenstein, e outros tantos.
O Fábio me pergunta o que fazer diante disso. Acontece o seguinte: se você procurar as faculdades de ciências sociais, irá encontrar exatamente a mesma coisa: há duas tradições, uma marxista, outra positivista, esta última representada por Durkheim e Max Weber. De onde vem isto? Essas duas linhas representam a quintessência desse período moderno posterior à Revolução Francesa. Já na Revolução Francesa se perfilam dentro da assembléia aquelas duas correntes internas da revolução que se chamam "montanha" e "gironda". A "montanha" são os revolucionários radicais, que querem levar a revolução às suas últimas consequências, e a "gironda" o pessoal mais ligado à burguesia, que quer imediatamente estabilizar e consolidar as conquistas da revolução, A mesmíssima coisa acontecerá na Revolução Russa, onde há duas etapas: a revolução de 1905, que derruba a monarquia e estabelece a democracia constitucional, e depois a segunda revolução de 1917, onde a ala mais radical quer continuar a revolução.
Todo processo revolucionário tem, pela sua própria dialética interna, esses dois movimentos. Derrubado um estado de coisas, em seguida se irá consolidar o que se conquistou ou continuar o processo destrutivo até o fim? É praticamente inevitável que essa pergunta surja no dia seguinte à revolução. Portanto, desses dois momentos internos do [00:10] processo revolucionário surgem as duas correntes que praticamente acabam dominando o panorama da modernidade, que são as correntes positivista e marxista. Não se pode esquecer que o positivismo surge precisamente no instante em que Augusto Comte percebe que a revolução havia cumprido seu papel histórico, mas havia deixado, por assim dizer, um vazio espiritual: não tinha colocado nada no lugar da tradição religiosa que havia derrubado. Então ele cria esta nova idéia de uma ordem, idéia que acabou por se estampar como lema do Brasil na bandeira nacional, "Ordem e Progresso", ou seja, tratava-se de conciliar o movimento histórico com a necessidade de dar uma nova estrutura à sociedade. Comte cria sua filosofia positivista como uma espécie de mito fundador da sociedade burguesa e, por outro lado, temos a outra linha dos herdeiros da revolução, os anarquistas, os socialistas, que tentam prosseguir o processo revolucionário. Isso acontece necessariamente em toda e qualquer revolução: o mesmíssimo processo acontece na China.
É da própria natureza do processo revolucionário não se saber exatamente onde ele vai chegar, pois se uma revolução tivesse metas absolutamente definidas, ela poderia ser julgada a partir da realização ou não dessas metas. Mas, se ela admitir isso, então tem de admitir também uma autoridade soberana acima dela, ou seja, ela será julgada. E o processo revolucionário que aceite ser julgado por uma ordem externa, elimina a si mesmo: seria autocontraditório. Portanto, a revolução é ao mesmo tempo a força que conduz o processo e o tribunal de última instância. Se ela é o tribunal de última instância, ninguém pode julgá-la desde fora. Não é possível jamais uma força externa à revolução - que seja a própria população - julgar a revolução e absolvê-la ou condená-la, saber se ela atingiu seus resultados ou não. Por outro lado, como a dialética interna do movimento revolucionário consiste em você se arrogar no presente uma autoridade que vem de um estado futuro ao qual a revolução está tendendo, então naturalmente o futuro é que passa a ser o juiz. Mas acontece que, ao mesmo tempo, como o único juiz possível é a própria elite revolucionária, então ela se identifica com o futuro, e naturalmente para onde essa elite se desloca, o futuro também se desloca junto dela: você vai empurrando o futuro com a barriga, ele nunca chega, e a revolução nunca pode ser julgada.
Isso quer dizer que daí decorre uma consequência, também inevitável, que é a perfeita irresponsabilidade histórica inerente a todo processo revolucionário, ou seja, nenhuma elite revolucionária pode jamais responder pelos seus feitos, porque ela não tem perante quem responder: não há um tribunal ante o qual ela possa responder! O tribunal é o futuro, mas ao mesmo tempo quem personifica o futuro? A elite revolucionária. As pessoas perguntam como é possível que, depois de tantas violências, crimes e fracassos na história do comunismo, esse pessoal ainda se apresente em público defendendo o comunismo com a mesma cara de pau, como se nada tivesse acontecido. O observador leigo imagina que isso é uma espécie de hipocrisia. Mas isso não é hipocrisia, isso é uma estrutura inerente ao processo revolucionário: assumir a responsabilidade pelo que você fez só é possível dentro de uma ordem social na qual haja uma instância julgadora que não é a mesma força agente do processo, assim como, por exemplo, numa democracia você elege um governante, que constitui seu ministério e governa durante algum tempo e depois você o julga nas eleições seguintes. Você o julga porque você tem o poder de eleger o governante ou de tirá-lo do poder, e ao mesmo tempo você não é a personificação do poder, ou seja, o povo não governa, mas apenas julga o governante.
Esta distinção entre a instância decisória e a instância julgadora só existe dentro de uma ordem jurídica burguesa. E é justamente isso que a revolução abole. Então a elite revolucionária é ao mesmo tempo quem comanda o processo e é a única instância que pode julgar o processo e, por isso mesmo, ela não tem perante quem se responsabilizar: ela não pode aceitar que haja um instância superior. No instante que aceitasse isso, acabaria o processo revolucionário na mesma hora, e estaria instaurada uma ordem democrática constitucional. E isso seria contraditório.
É justamente por causa desse processo que existe essa dualidade interna da revolução: por um lado você se dirije a um futuro que permanece indefinido, mas por outro lado você tem de tomar alguma medida imediata: você tem de governar, administrar imediatamente. Também é estranha a posição do governante que é eleito por uma força revolucionária dentro de uma ordem que em si não é revolucionária. Por exemplo, o Lula no Brasil, o Obama nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo ele tem de prosseguir na demolição da ordem, mas também tem de administrar: ele está indo na direção do futuro, mas tem de tomar conta do presente, e essas duas coisas são contraditórias.
Eu conheço poucos casos em que um sujeito colocado nesta posição se saiu tão bem quanto o Lula -- talvez pela duplicidade inerente do seu caráter -- mas ele conseguiu lidar muito bem com estas duas coisas: administrar o presente como se estivesse dentro de uma ordem normal, e prosseguir o processo revolucionário, que é a demolição da ordem anterior. Como isso foi feito com muita habilidade, a população nem percebeu direito o que aconteceu. Vemos, por exemplo, a total desaparição das forças de oposição no Brasil. Sumiu tudo: a hegemonia virou controle completo da situação. Isso é um processo revolucionário e foi realizado de maneira quase indolor no Brasil. Nos Estados Unidos não está sendo tão indolor assim, mesmo porque o Barack Hussein Obama não tem essa habilidade escorregadia do Lula. Não esqueçam que o Lula chegou ao poder depois de quarenta anos de experiência na política; Barack Obama saiu do nada; é apenas um ator, um leitor de teleprompter. Aqui também ocorre a mesma coisa: por um lado, Barack Obama está tentando demolir as forças armadas americanas, mas por outro lado ele precisa delas, pois pode haver um ataque do Irã e ele não pode posar publicamente como um aliado do Irã.
Esse dualismo é inerente a todo processo revolucionário, e desse dualismo saem as duas correntes que depois se consolidam nos meios universitários, sobretudo em países culturalmente mais pobres como o Brasil enquanto alternativas últimas: ou você vai para o lado marxista, ou para o lado positivista. O pessoal da filosofia analítica é evidentemente o herdeiro direto do positivismo, inclusive a escola analítica no começo foi chamada de neo-positivismo, que é o nome mais certo. Isso é um sinal da própria pobreza brasileira, pois essa alternativa, essa dualidade, de certo modo se cristaliza e se perpetua através de gerações e gerações, e não aparece absolutamente nada de novo, só se camufla um pouco a superfície, mas no fim das contas é sempre a mesma alternativa que se tem. Notem que as duas correntes são revolucionárias: a idéia positivista essencial é substituir a Igreja por uma nova casta de intelectuais, os "tecnocratas", que administram tudo segundo os cânones da ciência, ou seja, a extensão da ciência à todos os domínios da vida humana, e a submissão de tudo ao critério "científico" -- qualquer que seja a concepção de ciência - esse é o programa positivista por excelência.
Automaticamente, na medida [00:20] em que a ciência adquire uma autoridade em todos os domínios da vida, ela é também um processo racionalizante e centralizante. Se todos os elementos da vida humana são submetidos a um critério científico racional, é claro que a margem de manobra das individualidades diminui formidavelmente. Vou lhes dar um exemplo: se a "ciência" provou que determinada coisa faz mal, por exemplo, açúcar faz mal, então em que medida o governo poderia permanecer indiferente à quantidade de açúcar que a população consome? Não pode, ele tem de intervir, porque se a administração é científica e a própria ciência forneceu esse dado, e o governo tem a obrigação de zelar pela saúde da população, então o governo tem de zelar para que as pessoas não consumam açúcar, gordura, ou não fumem, ou não façam isso ou aquilo. Quanto maior a taxa de intervenção da ciência na vida social, quanto mais são as áreas da vida onde a ciência penetra, também são mais áreas em que a administração pública irá penetrar, de modo que, aos poucos, todos os setores da vida humana acabam sendo problemas da administração central. É como se a sociedade fosse praticamente engolida pelo Estado.
No século XX isso é uma teoria que foi absorvida igualmente pelos regimes socialistas e pelos regimes fascistas. Na Itália, a teoria do regime italiano é mais radical do que a prática. Na prática o fascismo italiano sempre se acomodou a uma situação mais flexível, mas na teoria, como se vê nos livros do teórico do fascismo, Giovanni Gentile, a idéia era exatamente a de que a mente do indivíduo é apenas um reflexo da racionalidade do Estado, ou seja, o indivíduo não existe, a autoconsciência é suprimida e todos os problemas, decisões, valores, são decisões do Estado, dentro do próprio processo de racionalização científica da vida social. O mesmo preceito é seguido nos regimes socialistas. Quando Mussolini diz "nada fora do Estado e nada contra o Estado", ele está ecoando a doutrina do Giovanni Gentile, se bem que Mussolini jamais chegou a aplicar isso em toda sua extensão: ele aceitava a existência de dois poderes concorrentes, que eram a Monarquia e a Igreja Católica. Ele nunca conseguiu submeter nem um nem outro e, aliás, nem tentou submetê-los a um controle estatal completo. Ora, onde se aceita a existência de poderes concorrentes ou intermediários, volta-se de certo modo a uma situação medieval, onde não há administração central, mas corporações de poderes independentes que, de uma maneira ou de outra, se arranjam, dialogam uns com os outros, e vive-se uma espécie de situação mais espontânea.
Na medida em que o fascismo aceitou a existência desses poderes concorrentes, ele não chega a ser um regime totalitário. O que define o totalitarismo é que não há poderes concorrentes e intermediários, há somente a hierarquia estatal que tudo absorve e controla. Isso é herança positivista. É um processo profundamente revolucionário, sob certos aspectos até mais radical do que o marxismo. O que vai caracterizar a tradição positivista é justamente a revolução desde cima, feita pelos tecnocratas: a elite que governa o Estado tem a ciência a seu serviço e administra tudo cientificamente. A idéia marxista continua a ser durante algum tempo a de uma revolução desde baixo, feita pelas classes oprimidas. Mas a partir de Lênin, com a idéia da vanguarda revolucionária, depois mais ainda, com Gramsci e a revolução dos intelectuais, a revolução marxista começa a se parecer muito com a revolução positivista, porque também se torna uma revolução desde cima. Sem contar o famoso fator levantado por Hermann Rauschning, um militante nazista que depois se arrependeu e escreveu duas análises formidáveis do nazismo, e que na Revolução do Niilismo explica que a sociedade moderna e a administração pública chegaram a uma complexidade tal que as revoluções populares se tornaram impossíveis: só restaram revoluções desde cima. Isso praticamente anulou a diferença entre marxismo e positivismo.
Dentro da linhagem chamada filosofia analítica, ou neo-positivista, a maior parte dos seus adeptos são também adeptos da ordem constitucional democrática. Porém, eles o são, porque, em primeiro lugar, só acreditam na ciência experimental moderna. Não acreditam, portanto, nos mitos históricos, nas macro-explicações da história, como o marxismo.
O positivismo na sua origem também se baseia numa macro explicação da história, que é a lei dos três Estados: a humanidade passa por um Estado teológico, onde acredita em mitos; depois passa por um Estado metafísico, onde acredita nos grandes sistemas explicativos e, por fim, termina na era positiva, onde só acredita na ciência experimental. Mas embora ele próprio seja um mito histórico, a sua etapa final é a anulação de todos os mitos históricos, pois se só acredita-se em ciência experimental, não há mais crença em grandes explicações do conjunto do movimento histórico, mas só nos fatos atomísticos comprovados.
O marxismo é, por excelência, um mito macro-explicativo da história: é uma tentativa de descrever um movimento inteiro da história que vem desde a origem dos tempos até o coroamento messiânico da história com a realização do reino universal da justiça sob o socialismo. Os herdeiros da escola analítica, ou do neo-positivismo, rejeitam toda esta mitologia histórica e se apegam ao espírito das ciências experimentais, aos fatos atomísticos: ao método científico, em suma. Num país como o Brasil não há uma terceira via, não há uma terceira solução: ou é uma coisa ou é outra. Na Europa, em função da herança filosófica milenar, ainda continua existindo uma terceira alternativa. No século XX tem-se a fenomenologia, o existencialismo, que são o que os ingleses chamam de "filosofia continental", que não se enquadra nem no marxismo, nem no positivismo: é uma tentativa de prosseguir a filosofia dentro da tradição propriamente européia.
Na modernidade, porém, essa herança filosófica entra em crise, em parte pela provocação que recebe do neo-positivismo: são as ciências invadindo o recinto das questões filosóficas, tentando e conseguindo puxar para si o trato de certos problemas que antes eram filosóficos, e que agora são submetidos ao método científico experimental. Por outro lado, o ataque do marxismo, que denuncia todas as filosofias anteriores como ideologias, e como estratégias camufladas de dominação. A terceira linha são os ataques internos que surgem da própria evolução filosófica, como, por exemplo, Nietzsche, que analisa a história da filosofia sob o ponto de vista da psicologia pejorativa. Notem bem que na antiguidade havia a escola cética pirrônica, a qual tentava desmoralizar todas as filosofias por meios lógicos, ou seja, pegavam suas teses e as reduziam ao absurdo. É a técnica da reductio ad absurdum, com a qual acabavam mostrando de algum modo que todas as idéias e doutrinas se contradizem, terminando tudo em um nada.
Nenhum dos três ataques modernos à filosofia é feito nessa base: nem o ataque positivista, nem o ataque marxista e nem o ataque nietzschiano, freudiano, etc. [00:30] A estratégia de Nietzsche e Freud é psicológica: não tentam impugnar as doutrinas mediante a demonstração de sua inconsistência e contradições lógicas, mas mediante a exibição de suas raízes psicológicas doentias ou malignas. Nietzsche retrata Sócrates e Jesus como se fossem verdadeiros pervertidos! Depois do ataque psicológico, do ataque científico-positivista e do ataque marxista, a filosofia entra evidentemente numa crise, e dessa crise ela tenta sair a partir dos anos vinte, trinta, por meio de novos mitos messiânicos surgidos de dentro da própria filosofia. O filósofo marxista György Lukács, por exemplo, carrega dentro de si toda a tradição filosófica e muito da herança das correntes heréticas messiânicas, infundindo um tom de mitologia religiosa no marxismo, que é a origem remota da teologia da libertação. Ele trabalha nessa linha, e seu amigo Ernst Bloch também.
Outro que tenta um esforço no sentido messiânico é o Heidegger, que vai descrever toda a história do pensamento como se fosse a história do esquecimento do ser: aqueles que têm dentro de si a recordação do ser originário vão destruir toda a tradição filosófica e inaugurar uma nova episteme completamente diferente, baseada na revelação direta do ser, tal como está trazida na linguagem. Mas só valem duas linguagens: o grego e o alemão. Essas línguas são as portadoras do ser que a tradição filosófica esqueceu. Outro que trabalha na mesma linha de uma revolta contra a tradição filosófica, mas que é também ao mesmo tempo uma revolta contra a ciência, contra a democracia, contra o Iluminismo etc., é o Wittgenstein.
Esses três são, portanto, exemplos de tentativas desesperadas de salvar a filosofia por meio de uma injeção de messianismo, o que no fundo piora as coisas, pois vai transformar a filosofia em ideologia, seja ideologia comunista, seja ideologia nazista. Hoje sabemos que o comprometimento de Martin Heidegger com o nazismo foi muito mais profundo do que parecia à primeira vista. Em um primeiro momento pareceu apenas um arranjo de ocasião que ele fez para conservar o seu cargo de reitor, mas hoje já se sabe que não foi só um apoio profundo, mas também que toda a sua obra é, no fundo no fundo, uma tentativa de justificar o advento do Führer.
Dentro desta situação onde há, por um lado, a revolução positivista e neopositivista, por outro, a revolução marxista e, dentro da própria herança filosófica ocidental, a autocrítica corrosiva e destrutiva de nietzschianos, freudianos etc., o que sobra e representa a filosofia é , no fim das contas, a tradição continental. Mas qual é a principal atividade dessa tradição? A de a filosofia destruir-se a si mesma e provar que a sua autodestruição e negação é também uma atividade filosófica, ou seja, que não há instâncias além dela que possam julgá-la e decretar-lhe o fim --- o seu próprio fim se torna um tema fundamental da filosofia.
É natural que nessa situação acontecesse outro processo em que, a partir do fim da Segunda Guerra, quando as tentativas desesperadas de salvar a filosofia por parte de Wittgenstein, Heidegger e outros terminaram muito mal, justamente no exato momento em que a filosofia se persuade do seu próprio fim, ela se torna no mundo inteiro, no mesmo instante, uma atividade profissional e universitária, processo esse que já havia antes começado no mundo anglo-saxônico. A partir do fim da Segunda Guerra vemos que os filósofos públicos, os quais ou não eram professores universitários ou vinham de outras áreas, como literatura e ciências --- como Gaston Bachelard, que, vindo do campo das ciências naturais, nunca fez um curso de filosofia e nunca foi professor universitário de filosofia ou Karl Jaspers, que era médico psiquiatra, e de muitos outros --- começam a desaparecer. Esse processo é descrito no livro Os Últimos Intelectuais, onde Russell Jacoby mostra que os grandes intelectuais públicos, que se dedicavam a examinar a cultura como um todo e criar dentro dela um senso de orientação, desaparecem e são substituídos, cada vez mais, pelo professor universitário de filosofia. Isso acontece a partir do fim da Segunda Guerra.
Não por coincidência, a segunda metade do século XX não vê surgir grandes obras de filosofia que tenham importância mundial comparável à das descobertas científicas. Na primeira metade do século, por exemplo, a fenomenologia de Husserl foi, por assim dizer, uma descoberta quase tão formidável quanto a teoria da relatividade --- ambas tiveram importância cultural considerável e comparável e produziram revoluções intelectuais de grande porte e abrangência mundial. Contudo, na segunda metade do século XX, justamente na medida em que a filosofia se profissionaliza, tornando-se uma atividade cada vez mais universitária e menos pública, ela nada produz que se compare, nem de longe, às descobertas científicas do tempo, que foi uma época de descobertas científicas espetaculares, como os computadores, o DNA, os últimos requintes da física de partículas, até o ponto em que hoje já quase temos uma teoria unificada da física.
Mas o que a filosofia produziu que se possa comparar, de longe, a tudo isso? Pode-se dizer que há sim coisas que se comparam a isso --- é só pensar na obra de Eric Voegelin, quem tem importância tão grande quanto a daquelas descobertas. Só que ninguém a conhece! A atividade filosófica mais criadora dissolve-se no meio da produção universitária, porque já não há um público habilitado a ler obras de filosofia fora das universidades; e dentro delas há somente uma espécie de formação de estudantes especializados em assuntos cada vez mais limitados e estritamente profissionais.
É justamente nesta altura que a herança neopositivista, a herança da filosofia analítica tende a se tornar predominante, porque é a mais técnica e profissionalizada, a mais gremial, por assim dizer, a que se caracteriza mais como uma discussão interna entre profissionais que falam de coisas que a população de fora nem mesmo tem idéia do que seja. Esta é a situação: a filosofia acabou, ao mesmo tempo em que se profissionalizou.
Um dos motivos do sucesso das filosofias de Heidegger ou de Wittgenstein é justamente o fato de que elas pareciam oferecer à filosofia uma oportunidade de sair inteira do triplo [00:40] ataque do marxismo, do positivismo e do neoceticismo, ou melhor, do niilismo moderno. Heidegger diz que sua filosofia inteira é uma revolta contra o niilismo, mas, quando você vai ver, percebe que ele também está lá dentro.
Foi no meio de tudo isso que nós aparecemos. O que é que fazemos aqui?
Um dos elementos fundamentais da crise ou fim da filosofia é a progressiva demolição das pretensões da metafísica clássica --- a pretensão de se criar uma explicação racional da totalidade do ser e seus princípios fundamentais respondendo às perguntas sobre a existência de Deus, sobre a imortalidade da alma etc., como se pode ver em Descartes, Malebranche, Spinoza, Leibniz. Tais pretensões foram --- ou se diz que foram --- demolidas pela crítica kantiana, nietzscheana, pela análise da linguagem, pela psicanálise, etc ; o "fim da metafísica" é dado como um fato consumado.
É natural que dentro da própria escola analítica surjam indivíduos empenhados em voltar o feitiço contra o feiticeiro, em usar o mesmo instrumental de análise da linguagem para mostrar que a demolição tem de ser demolida também e que é preciso restaurar a metafísica. Toda essa discussão baseia-se na idéia de que a finalidade da filosofia é construir uma "doutrina", uma "teoria" que possa dar conta do universo de problemas, que ela de certo modo abrange, e criar um senso de orientação geral que valha para a humanidade inteira durante certo período. A filosofia seria, então, uma espécie de rainha das ciências, dando o sentido geral daquilo que os vários domínios especializados abrangem em suas respectivas áreas. Mas, como a filosofia não conseguiu fazê-lo, está acabada a metafisica, a própria filosofia etc.
Porém, pergunto eu: foi assim que a filosofia começou? Os pré-socráticos apenas tentavam fazer uma cosmologia, quer dizer, uma explicação do cosmos, sendo por isso mesmo que Aristóteles os chamava de "filósofos físicos". A filosofia só se perfila como uma atividade original autoconsciente com Sócrates. Mas Sócrates ensinava alguma metafísica? Não, você pode dizer que algumas sementes de metafísica lançadas por Sócrates foram depois desenvolvidas por Platão, criando o sistema chamado platonismo. Na própria atividade de Sócrates não se vê nenhuma tentativa de passar uma doutrina metafísica pronta. Qual a finalidade, o objeto formal terminativo da atividade de Sócrates? O que ele tenta formar? Filósofos, almas humanas, e não uma doutrina. Qual é de fato a doutrina de Sócrates? Não sabemos.
Em Sócrates não há uma doutrina, mas um processo de educação que visa a tornar os seus estudantes e ouvintes conscientes das implicações das suas próprias crenças, pensamentos e atitudes e confrontá-los com uma espécie de senso profundo da verdade. Se não houvesse esse senso nas pessoas seria inútil Sócrates lhes fazer as perguntas que faz. Quando Sócrates discute com as pessoas na rua, apela às suas próprias consciências. Quem são as testemunhas daquilo que ele faz? Os próprios ouvintes com que discute. Aqueles cujas idéias contesta são eles mesmos chamados a serem testemunhas da falsidade de suas próprias ideias e do seu próprio processo de conversão a uma busca mais profunda e mais séria.
Em todos os casos dos diálogos socráticos, quando Sócrates pergunta às pessoas o que é a justiça, o que é o bem, o que é isso, o que é aquilo, elas respondem com opiniões que já circulam publicamente e que são do senso comum. São opiniões gerais, que já fazem parte daquela cultura, e que aquelas pessoas apenas repetem. Através do interrogatório, do método a que chamamos maiêutica, Sócrates faz com que os indivíduos recuem desde as crenças comuns até uma instância mais profunda, que é a sua própria consciência individual. O indivíduo ecoa em suas opiniões a opinião pública --- a doxa, aquilo em que todo mundo acredita; e daí, pouco a pouco, porém, já não como cidadão da cidade-estado, mas como indivíduo, é levado por Sócrates a meditar e ver que aquelas crenças não se sustentam perante o seu próprio senso profundo da verdade. Através da interrogação, Sócrates demonstra o seguinte: "Você sabe que isso que disse não é verdade." O próprio porta-voz da falsidade publicamente admitida torna-se a testemunha da falsidade e ele mesmo um buscador da verdade.
A filosofia surge, em primeiro lugar, como um sistema pedagógico que não visa a passar nenhuma teoria ou doutrina prontas, mas simplesmente elevar os indivíduos à condição de buscadores responsáveis e sérios --- buscadores da verdade, e, portanto, filósofos, amantes da sabedoria. Sócrates se dirige a pessoas que são amantes da opinião pública, da doxa, apegadas naturalmente às opiniões correntes, as quais defendem, e as transforma em amantes da sabedoria, sabedoria que não possuem ainda, mas que será doravante o objetivo dos seus esforços.
O primeiro objetivo da filosofia é, portanto, formar filósofos, transformar as pessoas em amantes da sabedoria. Isso está muito claro em todos os diálogos socráticos de Platão. É claro que depois ele dá um passo a mais criando uma doutrina metafísica, cosmológica etc. Mas o impulso originário que vem de Sócrates não é o de fazer uma doutrina --- e notem que, como herança de Sócrates, não aparece só uma doutrina, mas duas: o platonismo e o aristotelismo. Embora um seja a continuidade do outro, eles têm algumas áreas de contradição interna. Qual é o fio condutor que vai de Sócrates a Platão, e deste a Aristóteles? Não é uma crença doutrinal, uma teoria positiva, mas o simples amor à sabedoria.
O amor à sabedoria não aparece, portanto, como adesão a uma determinada doutrina, mas como descoberta de um senso profundo da verdade que deve ser por assim dizer ativado na pessoa, e ativado mediante as perguntas certas. O que Sócrates tenta mostrar às pessoas é algo que elas, diz ele, no fundo já sabem. Aparece, então, o mito da existência anterior, que você não precisa tomar ao pé da letra: antes de você nascer nesta Terra, teve outra vida, na qual contemplava a Verdade, tinha acesso às essências eternas, etc. E agora o que você precisa é lembrar. A explicação cronológica disso [00:50] como vida anterior também não precisa ser tomada literalmente, pois o que Sócrates pretende dizer é que existe, dentro do ser humano, uma instância profunda que já tem esse amor à sabedoria, e basta você fazer as perguntas certas e isso será então ativado.
As perguntas feitas por Sócrates não são somente de natureza teórica: não se referem somente à física, à metafísica, à política, mas a tudo isso ao mesmo tempo. São ao mesmo tempo perguntas de ordem metafísica, moral, política, e assim por diante. Elas não têm um domínio especializado ao qual se referem: referem-se à totalidade da experiência humana. O que Sócrates procura demonstrar é que se pode fazer o indivíduo recuar desde aquela superfície de opiniões correntes até à profundidade de seu ser e descobrir ali o "miolo", o "fundo" --- mais tarde, Ortega y Gasset empregaria a maravilhosa expressão "fundo insubornável do ser humano" --- que não lhe dará imediatamente o acesso à Verdade, mas criará a abertura para ela. E essa abertura fará com que o indivíduo prossiga na busca da Verdade, que não chegará a possuir.
Sempre que desafiam Sócrates a dizer o que ele pensa de fato, o que ele faz? Expõe uma teoria? Não, ele conta um mito. Ao fazê-lo, Sócrates mostra que as verdades que buscamos transcendem o entendimento humano e que não podemos possuí-las intelectualmente de maneira plena. Podemos, sim, entrevê-las através de símbolos, que, embora obscuros, iluminam-nos. A primeira função da filosofia não foi, portanto, criar uma metafísica, mas filósofos, amantes da sabedoria.
Aristóteles aperfeiçoará essa teoria mediante o conceito do spoudaios. O que é o spoudaios? O homem perfeitamente desenvolvido. Ser perfeitamente desenvolvido não significa ter todos os poderes, nem ser um gênio, mas ter toda a personalidade construída em torno deste núcleo, que é o amor à sabedoria. Esse centro por assim dizer natural, tornar-se-á o centro existencial. Todo homem tem esse centro, esse fundo insubornável, real, permanente, que é o amor à sabedoria e está escondido no fundo, o qual, tão logo desperto, precisa tornar-se também o centro da existência, da vida de todos os dias. A busca dessa centralidade torna-se o objetivo de toda educação, tal como a concebem Sócrates, Platão e Aristóteles, ou seja, toda a filosofia.
Na medida em que o tempo passa, a filosofia transforma-se, em várias etapas históricas, em uma profissão universitária e, assim, já tem pouco a ver com o desenvolvimento do indivíduo enquanto tal e torna-se sua habilitação para o exercício de certas profissões, entre as quais a de professor universitário. Um exemplo disso é o que se passa na escolástica. A partir dos séculos XII e XIII, formam-se as universidades --- aparece o regulamento da Universidade de Paris ---, constitui-se a profissão de professor universitário tal como se conheceria depois, e a filosofia se transforma em uma profissão especializada. Acontece que nos séculos antecedentes havia nas chamadas escolas catedrais um tipo de ensinamento que não visava a produzir professores de filosofia e muito menos a se exteriorizar numa produção escrita, mas que visava a criar pessoas.
É o assunto do famoso livro A inveja dos anjos --- The envy of angels ---, que já mencionei antes, onde se mostra que o período de tempo entre os começos do século IX e o do século XII foi o auge, o ápice da educação ocidental, mas que não deixou documentos escritos porque o objetivo, tal como o de Sócrates, não era o de criar doutrinas, mas pessoas que fossem exemplos desta centralidade, deste equilíbrio, ou seja, que fossem a realização do spoudaios. É justamente das possibilidades criadas por essa educação dos séculos IX a XII que aparece depois o florescimento magnífico do século XIII, com a grande Escolástica, São Tomás de Aquino, Duns Scot e tantos outros, que logo em seguida entra em crise e se fecha numa espécie de circuito fechado universitário, provocando, alguns séculos depois, o surgimento de uma revolta.
O que é o pensamento moderno senão uma revolta dos não profissionais, dos amadores contra os profissionais? Dos grandes filósofos do começo da modernidade --- Descartes, Bacon, Malebranche, Spinoza, Leibniz ---, nenhum é professor universitário, são todos gente de fora, cuja maioria passa a escrever em idiomas nacionais, protestando contra a uniformização do idioma internacional das universidades, o latim. A revolta dos amadores contra os profissionais quebra a casca daquele ensino universitário, já cristalizado numa repetição doutrinal sufocante, e abre novas possibilidades. Contudo, a tendência à profissionalização volta, e volta, e volta, e volta. Podemos marcar como grandes etapas disso o romantismo alemão, com Hegel, Fichte, Schelling, e depois, no século XX, o advento do neopositivismo, da escola analítica, que, sobretudo depois da Segunda Guerra, concorre para a profissionalização geral das universidades.
Existe sempre, portanto, essa luta entre a filosofia como profissão universitária, que tende a se consolidar em formas doutrinais com pretensões de validade e obrigatoriedade universais, e a filosofia como atividade do indivíduo em busca da sabedoria. Só que a idéia mesma da filosofia como pedagogia para a formação do filósofo realmente desapareceu. Dentro da própria tradição continental, com Husserl, Heidegger etc., também se pratica a filosofia como uma atividade profissional especializada, e já praticamente não se fala da filosofia como pedagogia.
O processo, que mencionei em aulas anteriores, a partir do qual as ciências tomam para seu domínio certas áreas, certos assuntos da filosofia, que antes eram filosóficos, faz com que os filósofos sintam-se cada vez mais desprovido de assunto e obrigados a tentar justificar a sua atividade dentro de uma situação onde tudo parece negar a legitimidade da sua profissão. O curioso é que, no meio disso, não apareça ninguém para dizer que a filosofia é, eminentemente, a formação do amante da sabedoria, do spoudaios. Não existe nenhuma outra atividade, ciência ou técnica que trate disso. Portanto, qual é o problema? [1:00] Como podemos dizer que a filosofia teve os seus assuntos roubados por assim dizer, pelas ciências e ideologias, se o assunto principal, o primeiro, continua sem dono? É justamente aí que a filosofia tem de entrar.
A ideia subentendida em toda a atividade de Sócrates é a de que, embora o ser humano tenha uma predisposição à busca e ao conhecimento da verdade, essa predisposição pode estar deformada ou soterrada sob pilhas e pilhas de crenças, preconceitos, convenções, temores etc. Existem obstáculos à busca da verdade que têm de ser removidos antes de qualquer outra coisa.
Para que vocês entendam melhor isso, vou ler a segunda parte do texto, que se chama "Coerência e integridade".
"Meu artigo anterior poderia dar ocasião a inumeráveis outros, tantas são as consequências que anuncia e as perguntas que sugere. Uma destas é: Qual a importância da lógica na formação do filósofo? De certo modo, essa pergunta já foi respondida pelo próprio desenrolar dos fatos históricos. Existiu filosofia, e grande filosofia, a maior delas, uma geração antes de que Aristóteles formulasse pela primeira vez as regras da lógica. O pensamento lógico é, decerto, uma capacidade natural do ser humano, e desde os tempos mais remotos a especulação filosófica faz uso dele quase que por instinto. Mas a lógica enquanto técnica explícita só apareceu quando a filosofia, sem ela, já havia alcançado seus mais altos cumes, nunca ultrapassados pela evolução posterior.
Quando Alfred Whitehead disse que a história da filosofia não passa de uma coleção de notas de rodapé aos escritos de Platão, ele incluía nisso, é claro, a filosofia inteira de Aristóteles. Assim como esta é apenas a exploração avançada de sendas já abertas pelo platonismo --- e o filósofo de Estagira é o primeiro a reconhecê-lo ao referir-se a si próprio como 'um de nós, os platônicos' ---, a tekhne logike não passa de um ramo especial da filosofia aristotélica, que a transcende infinitamente e não é, de maneira alguma, determinada por ela, nem na sua forma expositiva, nem no seu sentido íntimo.
A coerência do discurso, objeto da lógica, é decerto importante, mas apenas como expressão exteriorizada de uma coerência mais profunda, a consistência da percepção do mundo, manifestação, por sua vez, da unidade e integridade da alma, o equilíbrio interno do spoudaios, o homem maduro maximamente desenvolvido, consciente de si, dominador do seu universo interior, capacitado a buscar, se me permitem citar-me a mim mesmo, 'a unidade do conhecimento na unidade da consciência cognitiva e moral, e vice-versa'."
De onde e de que modo surge a lógica? Ela não surge de repente, mas depois da tradição de alguns séculos de discussões e debates públicos, e, no tempo de Sócrates, já está bastante aprimorada a idéia de levar, através do discurso, das perguntas e das contestações, o interlocutor de volta e de volta àquilo que ele já sabe. Se você diz que as coisas são assim ou assado, e, mais adiante, diz algo que contradiz aquilo, é preciso que você seja trazido de volta: "Lá atrás você disse tal coisa, agora, porém, está negando a si mesmo, e nós ficamos sem saber o que você pensa".
A própria arte da retórica, e, sobretudo a dialética tal como é aprimorada por Sócrates e Platão, tem, antes de tudo, a finalidade moral e pedagógica de reconduzir o indivíduo de volta e de volta desde a superfície do falatório, da fala, até à consciência profunda daquilo que ele já sabe e sempre soube. Essa é a técnica. Quando Aristóteles formula a lógica, ele não faz senão formalizar um processo cuja ordem interna já estava dada na lógica e na retórica. A lógica não surge, portanto, como uma arte independente, mas dentro do contexto pedagógico da busca do retorno à consciência. Em uma discussão ou demonstração, você estabelece certas premissas lá atrás, e, dentro do desenrolar do discurso, pode acabar tirando conclusões completamente contraditórias com aquilo, mas que, no entanto, parecem verossímeis para quem o ouve. É uma questão de honestidade você voltar atrás e trazer à tona de novo as premissas que ficaram escondidas ou esquecidas. Todo esse processo da retórica, da dialética e da lógica tem, basicamente, um fundamento moral. Não se trata apenas de uma técnica de demonstração, de provar certas coisas, mas da técnica de não esquecer as premissas, da técnica de não permitir que o discurso entre num movimento automático e se perca dos seus fundamentos, não permitir que o discurso, em última análise, se desgarre da consciência.
Esse padrão da honestidade no discurso deve refletir a própria honestidade da busca da verdade. Não se trata da coerência do discurso em si mesmo, do discurso como um produto verbal escrito e impresso. É um processo humano de busca da verdade, e, portanto, um processo de retorno às premissas fundamentais, retorno aos princípios e, portanto, de retorno da periferia falante do ser ao seu centro consciente, retorno àquilo que você já sabia antes, e do qual você se esqueceu no meio do seu discurso. O surgimento da lógica só tem explicação dentro deste processo.
"Separado desse fundo, o culto do discurso coerente torna-se apenas um fetichismo, hipnoticamente atraente como todos, arriscando erguer as mais sofisticadas construções intelectuais em cima de uma base perceptiva pobre ou deformada...".
Note bem, no processo da investigação da verdade, você está lidando com seres humanos reais, a cuja consciência você tem de apelar, no curso da discussão. Se o indivíduo com quem você está discutindo é um mentiroso crônico, ou um louco, não adianta apelar ao testemunho dele. Então quer dizer que tanto a retórica quanto a dialética, quanto a lógica, pressupõe um interlocutor honesto. Ele pode estar enganado, mas no fundo quer a verdade. Ele quer a verdade e tem, segundo Aristóteles, a capacidade natural de apreendê-la. No entanto, este processo, ou o da discussão dialética, ou da prova, na lógica, pode ser formalizado, por assim dizer, num papel, e se transforma num discurso fixo, independente dos seus emissores humanos. Logicamente esse discurso coisificado também pode ser internamente coerente ou incoerente. Então existe a incoerência do próprio discurso (como existe a coerência do próprio discurso), tal como existe a coerência da busca da verdade, e a coerência entre o indivíduo falante e a sua consciência.
Ora, a consciência do discurso é somente um reflexo da coerência da própria busca, coerência do buscador consigo mesmo, a coerência do [1:10] homem consigo mesmo. Os discursos não aparecem sozinhos. Eles são o produto do homem que está em busca da verdade, o ser humano real que está em busca da verdade. No entanto, tão logo se descobrem as regras da lógica, fica fácil montar certos discursos, cuja coerência você pode examinar dentro exclusivamente do âmbito do discurso, separado do contexto da busca da verdade. Você faz uma série de silogismos, e verifica se aquilo está formalmente correto. Mas acontece que esse formalmente correto, a preocupação do formalmente correto, surge dentro do contexto da busca da verdade. Então, por um lado, existe a coerência puramente lógico-formal e existe a coerência do conhecimento com a consciência do conhecedor. Isto quer dizer que à medida que se aperfeiçoam os instrumentos de formalização do discurso, cada vez mais há a impressão de que o discurso deve ser analisado em si mesmo, independentemente da pessoa do emissor.
Mas acontece o seguinte: o discurso é a etapa final do conhecimento. Nenhum conhecimento que nós temos chega até nós sob a forma de um discurso lógico. O mundo chega a nós sob a forma de percepções sensíveis, de experiências sensíveis, internas e externas, e só muito gradativamente, através daquele processo complexo que eu descrevi no livro Aristóteles em Nova Perspectiva, é que as imagens vão gerando por sua vez os esquemas fáticos, os esquemas fáticos se transformam num esquema eidético, e esquema eidético se transforma em conceito, o conceito se transforma em juízo, proposição, etc, e daí se forma o discurso. Então isso quer dizer que o discurso não é conhecimento, mas apenas expressão formal do conhecimento obtido. E se você pegar o maior especialista em lógica -- Aristóteles, ou Leibniz, ou Arthur Prior --, ele, na vida real, continua conhecendo as coisas como nós mesmos, a partir dos dados dos sensíveis. O mundo não chega para ele como uma estrutura lógica pronta. Ao contrário, ele é que está tentando elaborar alguma coisa a partir desta base confusa dos sentidos, sentimentos, imaginações, etc. O processo do conhecimento continua o mesmo para todos os seres humanos. E o processo de estruturação lógica é uma coisa muito complexa e problemática.
Então nós temos dois problemas técnicos colocados para nós, e não um. Um, é claro, é o da formalização do discurso, quer dizer, a técnica lógica em si mesma. Mas o outro problema é o seguinte: é a técnica do conhecimento da verdade. E o conhecimento da verdade não pode ser obtido por métodos lógicos, ele sempre dependerá do dado sensível. Isso quer dizer que o progresso da formalização lógica não é necessariamente um progresso dos meios de conhecimento. A lógica, neste sentido, tem mais a ver com intercâmbio de conhecimento do que com a sua conquista. O próprio Aristóteles insiste nisso: para que você elabore um discurso lógico é preciso ter as premissas, e não há como a própria lógica descobrir as premissas. As premissas têm de ser tiradas da experiência, ó raios! Ou são tiradas da experiência ou são tiradas da intuição direta dos primeiros princípios, como, por exemplo, o princípio de identidade etc. As premissas nunca são obtidas logicamente, você precisa de outro método.
Nós podemos dizer: "ah, este método é a indução". Mas indução quer dizer que de vários casos similares você tira uma forma comum e começa a raciocinar a partir dela. Muito bem. Mas o que me garante que a percepção que eu tive dos casos particulares estava certa e objetiva? O que me garante que eu percebo a realidade como ela é, para poder depois elaborá-la dialeticamente, indutivamente, dedutivamente, logicamente? Antes de tudo coloca-se o problema da integridade do conhecedor. E esse é o problema filosófico fundamental, não o da formalização lógica. Eu vou lhe dar um exemplo: em psicanálise se conhece um fenômeno que se chama racionalização. O que é a racionalização? É um raciocínio que pode ser formalmente perfeito, pelo qual o indivíduo mente para si mesmo para não perceber a verdadeira natureza dos seus sentimentos e das suas motivações. A racionalização pode ser logicamente perfeita. Onde ela falha? Em colocar a lógica, o raciocínio, onde deveria estar a memória. Eu já expliquei para vocês a experiência de se perguntar para uma pessoa de onde ela tirou certa idéia, à qual o indivíduo geralmente responde com argumentos em favor da idéia. E você diz: "eu não perguntei o fundamento lógico, mas a origem". O indivíduo não lembra mais a origem, não lembra de onde aquilo veio, então produz uma argumentação lógica para justificar aquilo. Ora, o processo socrático é um processo de recordação, de voltar ao núcleo central da memória, no qual você diz as coisas como elas realmente chegaram a você.
Séculos depois de Sócrates, virá Edmund Husserl, e dirá novamente que este é o problema, quer dizer, você voltar à experiência real tal como ela chegou a você, não tal como você elaborou em discurso depois. Mas também nós podemos dizer: uma coisa é a fenomenologia de Husserl concebida como técnica de investigação, outra coisa seria essa fenomenologia concebida como técnica pedagógica para a formação do investigador. Infelizmente só a primeira foi desenvolvida. Isso quer dizer que a fenomenologia também perde o seu impulso pedagógico originário e se transforma apenas numa técnica de discussão acadêmica, por assim dizer.
E daí eu pergunto: onde sobrou, no mundo, a idéia de formar o filósofo? Ela desapareceu. Você só tem a formação das investigações filosóficas e das discussões filosóficas, das publicações filosóficas, das questões filosóficas, etc... E cadê os filósofos? A formação do filósofo é a formação do buscador da verdade. Ele tem de ser, antes de tudo, um spoudaios, um homem maduro, portanto, uma pessoa cuja visão da realidade, cuja absorção da experiência não está nublada nem distorcida por temores, por preconceitos, por paixões, pelo temor da opinião dos outros, etc. Então, tem de ser uma pessoa qualificada para captar a verdade. Isso não quer dizer que ela vai ter a sabedoria. Simplesmente quer dizer que ela está pronta para começar a busca da sabedoria. E onde se ensina as pessoas a serem assim? Em parte alguma. Isso não existe. E este é o domínio da filosofia. E este ninguém pode tirar dela, por definição. Todas essas discussões sobre o fim da filosofia, sobre a inutilidade da filosofia, surgem do fato de que a filosofia passou a se dedicar a tarefas secundárias, entre as quais a de criar uma doutrina, e esqueceram a parte originária, que ainda está à disposição dela e está esperando que alguém assuma. A filosofia é eminentemente educação. Mas não educação para isto ou para aquilo. É educação para a busca da verdade, é formação do spoudaios, que ainda não é um filósofo. Imagine, portanto, o spoudaios, o ser humano centrado, autoconsciente, com sinceridade interior, com limpidez de visão interior, ao qual se dê em seguida os instrumentos técnicos [1:20] da ciência, da lógica, da dialética, etc., para a busca da verdade: é isso que tem de ser feito. E é isso que eu estou tentando fazer com vocês aqui, ainda que de maneira muito rudimentar.
Essa é a verdadeira técnica filosófica. E a lógica? A lógica entra aí como um dos instrumentos. Mas quando a lógica assume a função principal, temos a perversão das perversões. É como se você fosse fazer uma psicanálise -- você tem uma neurose e o psicanalista está lá tentando fazer você recordar as coisas como realmente se passaram, para você confessar realmente o que sentiu, o que realmente quis, etc. E em vez de fazer isso você vai criando uma racionalização cada vez mais logicamente perfeita . É exatamente isso que se passa hoje.
Quais são os obstáculos que se opõem a nossa busca da verdade? O primeiro é aquele que Sócrates já dizia: o esquecimento. Ou seja, nós quando raciocinamos não lidamos com um material puro da experiência, nós lidamos com as suas formas consolidadas repetidas na memória. Essas formas, por sua vez, podem não ser muito fiéis à experiência originária. Por quê? Porque você submeteu a experiência originária a um processo de abstração, você separou certos pontos e guardou só certos esquemas. Em cima desses esquemas você criou uma expressão verbal. A expressão verbal, tão logo você conseguiu formulá-la, se torna, por sua vez, independente dos próprios esquemas depositados na memória. Tanto é assim que quando falamos, cada palavra que estamos usando evoca de algum modo alguma experiência originária, e algum esquema depositado na memória. Mas será que quando eu falo é preciso que todas as imagens de onde tirei essas palavras perpassem pela minha memória? Não, eu uso todas as palavras diretamente. Nessas várias transições dos sentidos para a memória, da memória para a fala, da fala para a discussão, da discussão para a depuração dialética, e da depuração dialética para a prova, imagine o quanto se pode perder! Ou seja, a experiência originária desaparece, e era esse mesmo o famoso protesto do Husserl: "nós temos de voltar às coisas! Chega de idéias, de palavras, de considerações. Nós temos de voltar até onde nós tiramos tudo isso". É claro que a inspiração originária da fenomenologia, nesse sentido, era absolutamente perfeita. Era de fato um retorno ao espírito socrático. Por que não funcionou? Porque foi usado apenas como instrumento de investigação filosófica e não na formação da alma filosófica. Tanto que na segunda geração da fenomenologia já aparecem aberrações como Heidegger ou Sartre. Husserl sempre protestava e dizia que "não foi isso que eu ensinei, eles estão desviando tudo". Mas se você pensar: "nós temos os livros de Husserl que explicam a técnica fenomenológica", eu digo, mas cadê a educação fenomenológica? Não existe isso em Husserl. Então ele criou mais uma técnica, essa técnica se transformou em outro meio de discussão filosófica interminável, de debate de questões filosóficas, se tornando mais um instrumento de alienação no fim das contas.
Então o fato é o seguinte: a educação básica do filósofo para a busca da verdade foi totalmente esquecida. Outro dia eu estava ouvindo uma série de conferências do meu amigo Antônio Donato, onde ele fazia exatamente a mesma pergunta - esse mesmo assunto de que estamos falando aqui, o Donato estava pensando lá longe. E ele dizia o seguinte: ora, em princípio a educação é uma coisa feita para desenvolver a inteligência humana até o máximo limite das suas possibilidades. E ele pergunta: onde se ensina isso? Em parte alguma. Onde quer que você vá estudar eles vão lhe educar para alguma profissão, não para o desenvolvimento da sua inteligência. Claro que algumas profissões exigem bastante inteligência; o sujeito não pode ser físico e burro ao mesmo tempo. Mas é somente a inteligência necessária para o exercício daquela profissão. Quando o físico desenvolve a sua inteligência de modo geral é porque ele quer. A física é a mais notável das ciências experimentais e há uma infinidade de físicos que dominam vinte, trinta setores do conhecimento e até filosofam melhor do que os filósofos às vezes. Eu encontro mais filosofia quando eu leio os livros do Heisenberg, Schrödinger, e outros, eu vejo mais filosofia ali do que nas obras dos filósofos profissionais. Mas é porque eles quiseram. Eles não receberam essa formação. Ninguém os ensinou a ser assim. Por exemplo, nas memórias de Heisenberg, ele conta que durante a Primeira Guerra as crianças atravessavam as linhas inimigas para buscar comida -- os adultos não podiam, então mandavam as crianças --, um pouco de açúcar, um pouco de carne, e essa era a vida cotidiana deles durante a guerra; e nos intervalos disso ele se fechava no sótão da igreja para ler Platão. Bom, ele estava buscando alguma coisa. Era uma alma de um jovem, de um adolescente, perdido no meio da confusão da guerra buscando alguma ordem naquilo. Bom, ali você tem a origem de uma alma filosófica. Mas depois, quando ele entra na universidade, é isso que continuam a ensinar para ele? Não, vão dar apenas um treinamento específico para o exercício da profissão de físico.
Isso quer dizer que o ser humano, o estudante, foi transformado em instrumento para a manutenção da ordem social e econômica e só. Ele não é mais a finalidade da educação. Não há nenhuma escola que diz a você: "aqui nós vamos transformá-lo numa pessoa extremamente inteligente, numa pessoa equilibrada, centrada, capaz de investigar a verdade, de maneira que depois de certo tempo você adquira uma autonomia de vôo e siga sozinho e chegue a grandes alturas". Ninguém lhe ensina isso. Isso significa que, como dizia o Donato, em nenhuma escola do mundo o ser humano é a finalidade da educação. A finalidade é sempre usá-lo para alguma coisa. E Sócrates, quando se dirigia a seus discípulos, seus ouvintes, ele queria treiná-los para o quê? Para nada. Treinava-os para que se tornassem homens maduros, spoudaios, capazes de buscar a verdade e encontrá-la. Essa função originária da filosofia está totalmente abandonada. Por isso não entendo porque os filósofos ficam chorando que "ah, as ciências e as ideologias tomaram as atividades que nos são próprias -- até a preocupação com a integridade da alma passou a ser ocupação dos psicoterapeutas e da autoajuda. Até isto virou uma atividade especializada, meu Deus do céu!"
Mas se você vai num psicoterapeuta em busca de educação, ele não vai lhe dar; se você vai a um educador em busca do equilíbrio da alma, ele não vai lhe dar. Mas como é que você pode obter isso de duas fontes diferentes? Isso ou vem de uma fonte só ou não vem de parte alguma. Então, a filosofia é justamente a técnica de equipar o indivíduo com os instrumentos para que ele se desenvolva desde o centro da sua consciência.
Claro que os obstáculos que existem à busca da verdade e à formação do filósofo são enormes, sobretudo hoje em dia. De cara, você encontra o problema da identidade social do indivíduo. Isso já no tempo de Sócrates acontecia. Por quê? Quando Sócrates fazia as perguntas para os seus ouvintes eles respondiam conforme a sua posição na sociedade, conforme a sua classe social, conforme a sua profissão, e assim por diante. Eles levavam os preconceitos do seu grupo profissional ou do seu grupo social. Na Retórica, de Aristóteles, existe um capítulo muito interessante onde ele fala sobre a mentalidade dos vários grupos humanos, a mentalidade dos ricos, a dos pobres, a dos médicos, dos jovens, [1:30] das mulheres, etc. Essas mentalidades são coletivas. São identidades sociais que o indivíduo vestiu. E elas fazem parte daquela casca, por assim dizer, falante. Sócrates faz uma pergunta para você, por exemplo, "o que é justiça?", e você responde conforme seu sexo, conforme sua idade, conforme sua classe social, conforme sua profissão, conforme seu grupo de amigos... Onde está a sua própria voz no meio disso? Você não está sendo responsável pelo que você está dizendo. Você está apenas ecoando o que entrou pelos seus ouvidos; você não lembra mais como entrou, mas está falando isso porque alguém lhe falou. Da onde veio? Trata-se de puxar o indivíduo desde esta casca que tem mil faces e mil vozes até o centro onde ele tem uma face e uma voz, que é a sua. Essa função ninguém cumpre.
Se nós fizermos a seguinte pergunta: vamos olhar a coisa desde o ponto de vista da psicanálise, não necessariamente a psicanálise freudiana, mas de toda essa tradição -- Freud, Jung, Adler, Szondi, a tradição da chamada psicologia profunda. Analise as filosofias sob esse aspecto e você chegará a conclusões muito próximas às de Nietzsche. Você dirá que tudo isso aí é uma racionalização de paixões baixas, paixões vis. Ora, se a sua filosofia não passou por esse teste, então não é uma filosofia de verdade, é apenas uma doutrina, uma teoria, elaborada para satisfazer um determinado grupo social que são os filósofos profissionais; mas isso não é filosofia de verdade. Ou seja, a alma do filósofo tem de passar pelo teste do autoconhecimento, é a coisa mais básica.
Esses dias surgiu aquela discussão com o Júlio Lemos, e ele estava fazendo a apologia da técnica lógica. Muito bem, mas a técnica lógica é uma coisa relativamente fácil de obter; com alguns meses de treinamento você adquire o domínio da lógica clássica, e depois da logica matemática, o que não é um bicho de sete cabeças. Mas essa técnica também não serve de nada se você não tem a alma apropriada do filósofo. Se você não tem aquele autoconhecimento, aquela clareza dentro de você para enxergar a verdade. Então eu via que o Júlio fazia uma coisa e daqui a pouco disfarçava, encobria, fazia de conta que não tinha sido ele, depois ele pedia desculpas, depois voltava atrás no pedido de desculpas... Eu disse: esse cara está muito confuso! Eu vi ali um exemplo - sem querer falar mal dele, eu acho o Júlio um homem de muito talento, e espero que tenha um grande futuro - de um individuo que se apegava à coerência do discurso lógico como uma espécie de muleta para disfarçar ou se defender da sua confusão interior. Então não adianta nada. É um conjunto de racionalizações.
Quando eu falo da centralidade do filósofo, isso não tem nada a ver com as virtudes no sentido moral religioso. Porque você pode ter se transformado num spoudaios, num homem cognitivamente capaz de saber a verdade, e você ainda não ser capaz de regrar a sua conduta pelo que você sabe. Houve um caso célebre, o de Max Scheler. Ele era um grande filósofo e um homem de cuja sinceridade não se pode duvidar de maneira alguma, mas que ao mesmo tempo era um mulherengo viciado. Ele disse que quando não estava pensando em filosofia, estava pensando em mulher. E houve uma etapa da vida em que ele era muito católico. E chegou um bispo para ele e perguntou: "mas como é que você, que ensina as pessoas num sentido católico, pode se comportar assim?" Ele disse o seguinte: "o poste que indica para você a direção da rua, não anda pela rua. Ele indica para onde você deve ir, mas ele fica no lugar". Quer dizer, Max Scheler reconhecia a sua contradição existencial. Ele não fugia dela, sabia que estava errado e vivia nessa tensão.
Ora, quantas pessoas você conhece que são capazes de enfrentar as suas tensões com total consciência? Eu dificilmente vi alguém assim. Por exemplo, por muito tempo eu estudei esse negócio de psicanálise, me submeti a várias análises, e vi aquele negócio que o psicanalista Gérard Mendel conta no livro A Revolta Contra o Pai. Ele disse: a prática da psicanálise mostra para você que o tal do inconsciente existe, e é um negócio barbaramente escorregadio e muito esperto. Eu tenho essa experiência. Porque eu vi o meu. Eu vi a facilidade com a qual eu inventava racionalizações e encobria a minha própria realidade porque não aguentava a tensão das contradições.
Vocês já viram o símbolo de Mercúrio, o Caduceu? Mercúrio, quando nasce, aparecem duas cobras, e ele segura as duas. Ele fica no meio, uma cobra indo para cá e outra para lá. Essa é uma das qualidades absolutamente requeridas para a busca filosófica. O indivíduo tem de dominar as suas tensões interiores; dominar quer dizer que ele não vai negar as contradições, ele vai simplesmente aguentar aquela tensão até que, gradativamente, ele vá subindo novos patamares de integração e aumente, por assim dizer, a transparência da sua alma, até o ponto em que ele possa - agora entrando já no domínio mais religioso - receber o Espírito Santo; e o Espirito Santo vai dar para ele uma coisa que por si só ele não poderia obter, que é o conhecimento dos seus pecados. Só aí é que ele saberá o que é certo e o que é errado. Até aí ele esteve que nem Mercúrio, segurando as duas cobras. Quando Clemente de Alexandria disse que a filosofia é o pedagogo que leva ao Cristo, ele está dizendo exatamente isto. A filosofia tem de formar o spoudaios, para que o spoudaios se transforme no filósofo, e, sendo filósofo, ele possa então receber a mensagem do Espirito Santo. Mas aí você já saiu do domínio da filosofia, pois a força ativa não é mais você. Mas tudo isso é um problema técnico, um problema de pedagogia. Ora, se nós não fazemos nada disso, se nós fugimos da tarefa, então nós estamos na completa perdição, nossa alma está fragmentada, nós não sabemos quem nós somos, mentimos para nós mesmos com a maior facilidade, desconhecemos as nossa tensões interiores, não sabemos qual é o papel que estamos representando a cada momento, e no meio desta confusão nós nos apegamos à técnica lógica do discurso, e procuramos a coerência do discurso. Só que a coerência do discurso, nesta situação, se transforma num perigo, porque ela é uma técnica da racionalização. Uma técnica da mentira, e tanto faz o conteúdo da mentira, meu filho. Quer dizer que se você usar essa técnica lógica para destruir a metafísica, ou destruir a religião, etc., ou se você usá-la para reconstruir tudo, será a mesma coisa, será tudo mentira, porque a técnica lógica só funciona quando reflete a unidade da percepção do mundo desde a unidade de uma alma centralizada, que sabe o que está falando e que possa ver claro no seu próprio coração.
Há, então, uma alma integrada, que não é uma alma santa, mas apenas uma alma cujas energias estão dispostas em torno de um centro consciente, que Lipot Szondi chamava homo pontifex, o homem construtor de pontes, o sujeito que constrói pontes entre as várias tensões e impulsos contraditórios de sua alma, [1:40] sem apagar ou esconder nenhum deles, e a cada momento ele vive a tensão de se achar no centro enquanto suas paixões, de dentro ou de fora, da herança genética, do inconsciente, da herança cultural, do ambiente social, giram em torno dele como num palco giratório. Essa é a técnica filosófica, e não é de estranhar que alguns dos apóstolos da filosofia analítica, da coerência do discurso, fossem neuróticos e até psicóticos de marca, e que na análise da vida real caíssem num infantilismo terrível, a ponto de se ter uma ideia como a de Bertrand Russel, de jogar uma bomba atômica de caráter preventivo na União Soviética. Quanta gente havia na União Soviética? Para acabar com o comunismo, então, seria preciso matar todos os comunistas e também todos que estivessem perto deles. Anos depois, Russel participa do tribunal dos crimes de guerra, julgando os Estados Unidos, tribunal que foi uma das principais armas de propaganda dos vietcongs, que serviu para amarrar as mãos dos americanos e para que os comunistas tomassem o poder no Vietnã e no Camboja e matassem três milhões de pessoas. É claro que Russel não sabia do que estava falando. Ele é um grande matemático, um grande lógico, mas não tem a alma integrada. É uma alma fragmentária, da qual alguns fragmentos cresceram formidavelmente e devoraram o todo, e é isso o que se deve evitar.
"Separado desse fundo, o culto do discurso coerente torna-se apenas um fetichismo hipnoticamente atraente, como todos, arriscando erguer as mais sofisticadas construções intelectuais em cima de uma base perceptível pobre ou deformada. Que tantos filósofos notáveis por suas contribuições à lógica tenham descido ao nível da mais acachapante puerilidade quando abandonaram os domínios do puro formalismo e se aventuraram a tratar de problemas substantivos da história, da moral, da religião e da política -- Wittgenstein e Russel são casos exemplares --, não é um detalhe marginal das suas biografias, mas o sinal de que a busca da integridade do discurso pode ser às vezes a camuflagem usada para encobrir uma consciência fragmentária e dispersa, incapaz de responder por si mesma ante as realidades da vida.
Aristóteles sempre esteve consciente de que o discurso lógico não surge no ar, mas se ergue em cima de todo um caleidoscópio de percepções e recordações que não cede ao impulso da formalização lógica senão após uma série de depurações muito trabalhosas, que vão passando da linguagem poética, muito bem definida por Benedetto Croce como expressão de impressões, através das escolhas retóricas e confrontações dialéticas, até o formalismo da demonstração lógica, incapaz de abranger senão um fragmento mínimo da experiência humana. Escrevi um livro inteiro a respeito e não preciso me repetir. Quando se perde de vista as raízes que o raciocínio lógico tem nas modalidades menos abstratas de discurso, e estas na complexidade da alma vivente, os progressos da formalização arriscam tornar-se pretextos de uma irresponsabilidade cognitiva quase demencial, tanto mais danosa quanto mais adornada de perfeições técnicas imponentes. Não por coincidência, as escolas filosóficas que privilegiam acima de tudo a análise lógica concentraram-se no idioma padronizado das ciências e na "linguagem cotidiana" -- muitas vezes constituída de frases banais, inventadas ad hoc pelo próprio filósofo, do tipo "a vassoura está atrás da porta" --, fugindo de enfrentar a linguagem da grande literatura e da revelação, as únicas nas quais se expressam as possibilidades máximas da fala, e, portanto, nas quais transparece a verdadeira natureza da linguagem. Foi por isso que nos seus célebres confrontos com Ludwig Wittgenstein o genial crítico literário Frank Raymond Leavis, que só enfocava a linguagem com base em exemplos reais colhidos na complexidade da trama social e da herança literária dos séculos, acabou por se definir como um anti-filósofo. No sentido grego, seria um filósofo até maior do que aquele seu amigo e antagonista. Num ambiente de filósofos profissionais apegados ao formalismo lógico, só podia ser mesmo um "anti"."
É algo que também acontece aqui nos Estados Unidos; muito do que há de melhor no pensamento americano está nos críticos literários e não nos filósofos profissionais.
"Uma certa dificuldade no aprendizado da lógica moderna -- nada no entanto que não se possa superar com um pouco de paciência -- ameaça dar ao estudante a impressão de que ali se encontra o máximo de seriedade que a inteligência humana pode alcançar. Mas a integridade do discurso lógico só é verdadeiramente séria quando arraigada na integridade de uma visão pessoal responsável, de uma percepção abrangente e madura da realidade, estendida para muito além das possibilidades acessíveis da prova lógica. A disciplina do pensamento lógico definitivamente não é o padrão máximo da honestidade filosófica. Ela é apenas a sua expressão mais externa, mais visível e menos essencial. O filósofo que descura da disciplina da alma e capricha o máximo na coerência lógica é como um capo mafioso que, vivendo da jogatina, da exploração do lenocínio e do assassinato dos concorrentes, se achasse muito honesto por manter seus livros de contabilidade na mais perfeita ordem."
Aluno: Caro professor Olavo, sou novo no curso de filosofia e estou admirado com o apoio e alto nível de estudiosidade dos colegas. Creio que o Tratado da Lavação da Burra*, de Ângelo Monteiro, é um dos estudos fundamentais para a formação da personalidade intelectual no Brasil. E, segundo as conclusões desse ensaio, como nós, alunos do COF, poderíamos nos empenhar para tomar a direção oposta? Como evitar a tentação de querer lavar a burra?*
Olavo: Não temos como evitar a tentação. Todo dia você será convidado a se integrar nessa mediocridade brasileira. Mas penso que o problema principal seja o da insegurança e do medo. O medo é um terrível conselheiro, sobretudo o medo da solidão, do isolamento, medo das pessoas pensarem e falarem mal de você, de o olharem feio, de passar por ridículo. O medo do ridículo é uma coisa terrível, ele é uma arma do capeta. Não é bem do capeta, pois entre os três inimigos da alma humana, o mundo, o diabo e a carne, o medo do ridículo refere-se ao mundo. O mundo o escraviza através do medo do isolamento e do medo do ridículo, medo de ser objeto de chacota. Quando você tiver esses medos, lembre-se do meu próprio exemplo: há alguém que foi mais alvo de chacota do que eu? Já inventaram mil e uma coisas, colocaram no youtube aquela gravação em que chego em casa e encontro minha filha grávida; foi um vagabundo que a engravidou, um sujeito que trabalhava num posto de gasolina e foi demitido, que ganhava meio salário mínimo. Fizeram cada coisa. Não fizeram chacota com Jesus Cristo? Quando fazem comigo, lembro que fizeram com Jesus Cristo também e que não sou nada melhor do que Jesus Cristo. É preciso lembrar o que dizia Aristóteles: "a palavra cão não morde". Falarem mal de você não significa nada. Olharem feio para você não significa nada. Você tem de começar a se preocupar de "porrada" para cima. Se houver o perigo de uma pancada ou um tiro, o medo começa a ser justificável. Raramente essas pessoas chegam sequer a tormar o seu emprego. O que elas fazem é deixar uma vaga ameaça no ar, o que já faz muitas pessoas caírem de joelhos. Olha, lhe dou um conselho: pague para ver. Em 99,9999% dos casos não acontece absolutamente nada. É apenas um jogo de blefes. Se você consegue perder o medo disso, dificilmente você será atingido. Esta é a primeira coisa.
Segundo: lembre-se da morte. Vamos todos morrer. Noutro dia alguém me falou: "Ninguém vai sair daqui vivo". Essa é a coisa mais verdadeira que existe. A imortalidade existe, e é uma coisa terrível constatar isso dia após dia. E nós não estamos de fato preparados para entrar na imortalidade. Não estamos e não estaremos nunca. Neste mundo só há uma coisa que interessa: obter o perdão divino. Com o resto não se preocupe. Iremos morrer, haverá o juízo final e poderemos nos dar muito mal nisso tudo. Não adianta querer ser santinho, ser bonzinho. É preciso pensar no perdão divino vinte e quatro horas por dia. [1:50] Nem sabemos exatamente quais são nossos pecados. E a questão não é fazer listinhas de pecados. Não há aquela expressão: Timor domini principium sapientiae (o temor a deus é o princípio da sabedoria)? Se tivermos o temor a Deus, não temeremos mais nada, nem mesmo a morte. Se alguém quiser nos matar, qual é o problema? Morreremos de qualquer jeito.
É o desejo de preservação de certos bens que você perderá de qualquer maneira... -- o primeiro bem que você perderá é a juventude; quando somos jovens, pensamos que seremos eternamente jovens, e tudo ali se torna importante: a namoradinha que nos abandona, o patrão que olha feio. Pense no medo da eternidade , em pedir o perdão de Deus, e em esperar o amor d'Ele. Com isso podemos incomodar Deus o tempo todo: "Deus tenha amor por mim". Devemos pedir isso o tempo todo e não nos preocuparmos com o resto.
É preciso ler o Tratado da Lavação da Burra. É uma maravilha.
Aluno: Por que muitas pessoas, mesmo orando, erram se afastam tanto de Deus, e, apesar disso, se acham iluminados? Que outros fatores são necessários para a abertura à transcendência?
Olavo: Tenho um pouco de medo de falar dessas coisas, não tenho nenhuma autoridade nisso. Não sou um guia espiritual. Por isso, vou dizer o que acho, o que concluí da minha experiência pessoal. Não vai passar disso.
Muitas vezes, quando faço algo que acho ser um pecado, penso se estou verdadeiramente com medo do julgamento divino ou se estou com medo do que as outras pessoas vão dizer de mim. Isso é uma coisa terrível. A maior parte das pessoas não tem nenhum temor a Deus. Elas têm temor à opinião dos outros e, com isso, se afastam ainda mais de Deus. Deus não é um fofoqueiro malicioso, Ele não o interpretará mal nunca, Ele não o olhará os com olhos do demônio. Você será julgado por Deus, por alguém que o ama, que o compreende, que sabe mais sobre você do que você mesmo e que nunca o olhará torto. Não devemos ficar com esse temor, pois esse é o temor errado, é o temor do mundo. Acho que a maior causa de perdição e erro nos meios religiosos é confundir o temor a Deus com o temor do mundo. O temor do mundo é o temor à comunidade religiosa, do que o padre vai dizer, do que seus amigos vão dizer. A melhor cura para isso é a seguinte: falarem bastante mal de você. Já estou bastante tarimbado quanto a isso. Tudo o que se tinha para falar mal a meu respeito já foi falado. Já inventaram as coisas mais estapafúrdias a meu respeito. Então, já não ligo mais. Agora, se nunca ninguém falou mal de você, se você foi criado numa família em que papai e mamãe gostavam de você, em que as tias lhe davam presentes, as priminhas brincavam de médico com você, era tudo uma maravilha, nesse caso, você vai ficar com medo depois das primeiras "porradas" da vida. Mas, como dizia o grande filósofo Nelson Ned, "tudo passa, tudo passará". Não se preocupe com isso. Siga o conselho do Padre Pio: "reze e não se preocupe".
E quando começar a preocupação, você deve parar e pensar seriamente sobre o ocorrido. Às vezes basta você fazer isso e sua preocupação desaparece, pois era apenas a voz do capeta que estava colocando coisas na sua cabeça. Existe todo um automatismo mental, todas as "vozes do sangue", que ficam falando bobagem e instilando medo. Temos de deixar passar todas essas coisas, pois nunca nos livraremos disso. As paixões da alma nunca vão embora.
Lembrem que tudo o que estou dizendo é apenas opinião pessoal. Isso não é magistério da Igreja, é magisterio do Olavo e olhe lá. Um outro erro é querer corrigir a sua conduta antes de ter corrigido o seu coração. O que Jesus Cristo ensina é que é preciso deixar o joio e o trigo crescerem juntos. Depois de crescidos é que você deve cortá-los. Agora, há outras pessoas que ensinam que "é de pequenino que se torce o pepino". Primeiro: eu não sou pepino. Sou fortemente contra a intervenção excessiva na vida de criança. É preciso deixar a criança crescer. O bem e o mal crescerão juntos e, no devido tempo, o adulto deve entrar com as instruções. Mas em nossa educação as pessoas interferiram muito. Eu, quando era criança, tive muita sorte, porque eu estava tão doente que ninguém me dava bronca nenhuma. "O cara vai morrer mesmo. Deixe-o aí fazer o que quiser". Então, me deixaram um pouco em paz. Às vezes eu ficava horrorizado ao ver as mães de meus coleguinhas, que gritavam o dia inteiro com eles, davam chineladas a torto e a direito, não que às vezes não merecessem! Mas as crianças geralmente começam a merecer apanhar na adolescência, justamente quando os pais param de bater. Não há sequer um garoto de cinco anos que mereça apanhar como um adolescente.
Então, para que você quer corrigir a conduta? Para você não dar uma má impressão, para não lhe julgarem mal. Mas Deus não julga você por sua conduta; Deus sonda os rins e os corações. É preciso, então, primeiro, tentar ter uma alma centralizada, que não é necessariamente bonita ainda. Por que Deus mandou Jesus para o Império Romano e não para outro lugar? Porque o Império Romano tinha atingido uma espécie de perfeição natural. Moralmente o Império Romano não era bonito, mas era organizado, tinha um centro. Então, devemos primeiro ter um centro, buscar a pura perfeição humana no sentido natural da coisa, que não é o moralmente bonito.
Uma das primeiras biografias que estudei na minha vida foi a de Goethe, quando na minha sala estavam lendo A Moreninha e eu não me interessei pela coisa. Uma professora minha viu que eu estava lendo Os Sofrimentos de Werther, de Goethe, que é um negócio de outro mundo, uma coisa seríssima, de arrancar lágrimas das pedras, e eu falei para a professora que não iria ler A Moreninha. A professora perguntou o que eu queria ler e lhe mostrei que estava lendo Os Sofrimentos de Werther. Ela olhou e no dia seguinte me trouxe uma biografia de Goethe, escrita por Emil Ludwig. Li a biografia e fiquei impressionadíssimo. A personalidade de Goethe era centrada, esteticamente bonita, com muita autoconsciência, muita seriedade nas coisas. Mas moralmente não era bonito, ele continuou um sujeito com muitos vícios até o fim da vida. Sobretudo, há um certo arremedo de cristianismo que não é muito bonito. Mas, considerada do ponto de vista puramente natural, é uma bela personalidade. É isso o que você tem de ser primeiro, sabendo que é então que você poderá ouvir a voz do Espírito Santo e se corrigir. Deus tem muita paciência com você! Ele tem comigo que estou com sessenta e cinco anos, por que não vai ter com você que está com vinte, trinta? Busque essa perfeição no sentido que diz Szondi, do homo pontifex, de saber tudo a seu respeito. Um dos dias de maior satisfação da minha vida foi quando, aos quarenta e três anos, fazendo a barba, me olhei no espelho e de repente vi que já sabia tudo sobre mim, que não conseguia mais me enganar. Já não sou mais problema para mim, e agora posso começar a pensar em alguma coisa. Foi só então que comecei a escrever meus livros de filosofia, pois eu já não era um problema para mim mesmo. É um problema de autoconhecimento, [2:00] de saber quais são suas verdadeiras limitações.
Quando eu era jovem, havia muitos analistas bons na praça. Hoje em dia não recomendo que ninguém faça análise, pois corre-se o risco de o analista encher sua cabeça de idéias erradas. A profissão de psicoterapeuta entrou numa crise mundial. Mas recomendo muito os livros da Karen Horney, como A personalidade neurótica de nosso tempo, e sobre auto-análise, para você aprender a ver como nos enganamos, como mentimos para nós mesmos o tempo todo, e aprender a desmantelar as racionalizações que faz e saber dizer quais são as emoções que você realmente tem. Se você não sabe o nome verdadeiro da sua emoção, você a encobre com outra coisa e começa o processo neurótico, da "mentira esquecida na qual você ainda acredita". Portanto, a sanidade, a centralidade é a coisa básica para o ser humano. Se você for fazer uma confissão e estiver completamente enganado a seu respeito, vai mentir para Deus. Vai fazer como Jean Jacques Rousseau, que conta coisas horríveis que nunca fez, que conta os pecados que nunca cometeu. Aquilo não vale nada. É um sincerismo histérico e não a verdade.
Há pessoas que estão dispostas a fazer um show diante de você, a mostrar o quanto são ruins, mas não contam as coisas sérias que fizeram. Estou atualmente discutindo com o Júlio Lemos, de quem posso falar, pois é uma figura pública. O sujeito mente sobre mim e depois disfarça, pede desculpas , mas diz que nada fez. Por que ele não diz logo que inventou uma coisa sobre mim, que depois tentou varrer para debaixo do tapete, mas que se arrepende, pede desculpas, e fim de história? É simples. No entanto, ele começa a se enrolar muito e acaba fugindo de si, acaba agindo como um rato na toca. Isso é incompatível com a busca da verdade. A técnica lógica é importante sim, mas a técnica da percepção real é muito mais importante, ainda que da percepção real não consigamos exprimir nada ou muito menos escrever. Sócrates e Jesus Cristo não escreveram um livro. Faça o voto para Deus de querer saber a verdade, ainda que você não consiga dizê-la para ninguém e ainda que ninguém vá acreditar em você. Queira saber a verdade para poder ser sincero com Deus, é só isso o que interessa, a verdadeira confissão, que é feita no coração e da qual vai depender a sua vida eterna, é só isso o que interessa na vida.
Aluno: Em português, a única fonte de notícias confiável que conheço é o Mídia sem Máscara*. Além dela, existe algum meio de informação neste idioma a que eu possa dar credibilidade?*
Olavo: Não. Neste idioma não há nada. Adoro a língua portuguesa, mas quem disse que ela é o túmulo do pensamento, tem razão, porque não encontramos as coisas de que necessitamos e que sejam confiáveis nela. Se você for ler em inglês, recomendo muito o site de Cliff Kincaid, Accuracy in Media, www.aim.org. Conheci Cliff Kincaid, ele é um homem seríssimo, muito honesto, sem presunção nenhuma, autor de um excelente livro sobre a ONU e a nova ordem mundial. Eu o acho o melhor crítico de mídia. Há também o Media Research Center, www.mrc.org, de Brent Bozell, um trabalho de maior envergadura, que abrange toda a mídia americana e parte da mídia européia. Estas são fontes absolutamente confiáveis. Quando estivemos com Brent Bozell em 2002, ele disse que a grande mídia dos EUA estava para cair. Falado em 2002, parecia absurdo. Hoje vemos que o New York Times está falido, teve de alugar parte de seu prédio para pagar as dívidas. O Washington Post está mal das pernas. O nível de credibilidade da grande mídia não chega a 30%. Bozell estava certo, e suas previsões não eram fortuitas. Ele tinha informações e via a curva para onde a coisa estava indo.
Aluno: Acredito que o PT já tenha ou esteja em vias de atingir o status de imperativo categórico gramsciano. Não vejo qualquer possibilidade no discurso público ou na esfera política que não seja a favor ou contra o PT.
Olavo: Acho que você tem razão. E antes do fato consumado já dava para saber que ia dar nisso, porque era possível ver quais eram as forças em jogo e para onde elas estavam indo. Quando uma força atinge um certo declínio, ela já não se levantará mais . Eu escrevi anos atrás um artigo chamado "Assunto Encerrado", onde dizia exatamente isso. O PT tomou o poder, controla a sociedade inteira e a oposição não existe mais. Essa é a situação no Brasil. É um estado totalitário no qual o governo não precisa perseguir ninguém, não precisa de um Gulag, de um Auschwitz, porque ele não tem contra quem o fazer. É a ditadura perfeita: o ditador com total consentimento dos governados, não porque eles o aprovam, mas porque estão alienados e são covardes. Conseguiu-se alienar todo mundo. O Faustão, o Big Brother Brasil ajudam no processo de alienação, até o povo começar a aceitar qualquer coisa, como votar no Tiririca, como o mensalão. A oposição às vezes dá uma "esperneadinha", mas é pouco. O protesto dos militares é um exemplo desta fraqueza dos opositores ao PT. Eles reclamam que o PT prometeu anistia, mas que agora o ministro está perseguindo-os. Choradeira.
Então, abandonem a ideia de fazer política no Brasil. O que temos de fazer é tentar levantar a alta cultura, para que daqui a quarenta ou cinqüenta anos a situação política mude. Mas não conte com isso.
Aluno: Gostaria que o senhor explicasse o que são os chamados socialistas fabianos, e se Fernando Henrique Cardoso seria um positivista.
Olavo: O FHC teve formação marxista e weberiana, isto é, positivista, tendendo um pouco mais para o lado weberiano, ao menos em sua posição pública. Mas não posso dizer que ele seja um positivista. Ele é uma mistura das duas coisas, marxista e positivista, como aliás é todo mundo que estudou ciências sociais na USP à sua época.
Quanto ao fabianismo, é um movimento que nasceu na Inglaterra. Chama-se fabiano por causa de um general que se chamava Fabius, cuja tática era evitar o confronto. Ele nunca entrava na batalha, ia escorregando até vencer o inimigo pelo cansaço. O fabianismo é isso. Seu símbolo é uma tartaruga, tendo em vista a fábula da tartaruga que aposta corrida com o veado e o vence porque o veado dorme no meio da corrida. A idéia é a de implantar o socialismo através da legislação. Hoje em dia está provado que esse sistema é o que funciona. O sistema insurrecional não dá certo. A insurreição, porém, pode servir, como na Colômbia, para se criar uma situação de desequilíbrio institucional que obrigue o governo a negociar uma paz com os inssurrectos, e com essa negociação estes se infiltram nas instituições do estado, como se infiltraram no sistema judicial da Colômbia. Deste modo, sem que haja uma mudança institucional evidente, tudo, na verdade, muda drasticamente, como aconteceu no Brasil.
Uma coisa que os conservadores e liberais ainda não perceberam é que a convivência com o movimento revolucionário é impossível. [2:10] E é impossível destruí-lo pela violência. Não que por vezes não se deva usar da violência. Se há uma guerrilha, é claro que é preciso combatê-la. Mas não é por aí. O que é absolutamente necessário é existir uma luta propagandística constante contra os revolucionários. É preciso alertar as pessoas constantemente acerca de quem são os revolucionários e quebrar a confiabilidade deles. É preciso queimar sua reputação o tempo todo, sem deixar esquecer o que eles fizeram.
Os comunistas fazem muitos crimes e depois deixa-se de falar deles, como aconteceu com o caso russo. Não se pode esquecer o que eles fizeram. Certos estão, por exemplo, os judeus, que não deixam ninguém esquecer o holocausto, pois se o esquecerem, o farão novamente. Por que o nazismo se desmoralizou completamente após o término da guerra? Foi porque ele perdeu a guerra? Não, mas porque não pararam de falar do que ele fez. Já da União Soviética, como não foi derrotada na guerra, mas foi se acabando sozinha, ninguém diz nada e até dão dinheiro para eles. Não se pode deixar de falar do que eles fizeram, não se pode confiar neles. A mentalidade revolucionária é a mentira, a malícia organizada, e o será sempre. E,sobretudo, é irresponsabilidade. O perfil da sociopatia corresponde exatamente ao perfil da mentalidade revolucionária. Eles nunca têm culpa de nada e façam o que fizerem são sempre a encarnação do bem. É como diz o Duguin, que o pecado dos russos vale mais do que a virtude dos outros. Os comunistas sempre pensaram assim. Se eles roubam, matam, estupram, isso é uma virtude. Já se os outros vão à igreja rezar, é por má intenção, por vigarice. Se eles pensam assim, podem tudo. Como é possível conviver com uma pessoa que pensa assim? Claro que eles nem sempre dizem isso em público, mas o fazem nos círculos internos. Os conservadores, no entanto, não leram o que os revolucionários falaram entre si. Se perguntarmos a eles quantos deles leram as atas do PT, as atas do Foro de São Paulo, os livros marxistas, veremos que nenhum o fez. Então, eles não sabem o que os revolucionários estão tramando e não querem saber. É o negócio do positivista, que acha que tem a ciência e que os outros fazem ideologia, e que, portanto, não se deve dar atenção ao que eles fazem. Enquanto isso, os sujeitos da ideologia puxam o tapete dos positivistas, que vão para o buraco.
Transcrição: Instituto Olavo de Carvalho
Revisão: Murilo Resende Ferreira --- Instituto Olavo de Carvalho