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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula nº 139

28 de janeiro de 2012

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

Hoje eu queria retomar os nossos estudos cartesianos e, para isso, eu escrevi uma introdução, uma apostila, que eu vou ler e comentar aqui para vocês. Não vou colocá-la, ainda, on-line porque ela não está completa; e este assunto que eu foco aqui me veio à mente não só por causa da continuidade normal dos nossos estudos cartesianos, mas também devido a uma nota que eu li na Revista Dicta&Contradicta online, escrita pelo Júlio Lemos, na qual ele fazia uma baita apologia do Sir Michael Dummett, um pensador no qual nunca prestei grande atenção, como, aliás, eu não costumo prestar atenção nos pensadores da chamada escola analítica porque o rendimento que se obtém da leitura dos livros deles é muito pouco: você tem um trabalho miserável para atravessar páginas e páginas de distinções lógicas muito sutis e no fim você se pergunta: "e daí? A que isso leva?"

Ele também escreveu uma nota sobre a nota dele ― sobre um assunto que não tem muita importância ―, mas que só me chamou a atenção devido à devoção do autor aos filósofos da escola analítica que muito o impressionaram pela sua habilidade de partir cabelos em quatro e discutir assuntos perto dos quais o sexo dos anjos começa a ter a materialidade de um rinoceronte. Vou ler só um pedacinho das notas que eu tomei aqui só para vocês se situarem1:

"Num post dedicado a exaltar a memória do filósofo britânico Sir Michael Dummett (1925-2011), o sr. Júlio Lemos aproveita a ocasião para sublinhar a diferença entre os pensadores mais afins à literatura e às ciências humanas e aqueles que se inspiram antes na lógica matemática, na física e, de modo geral, nas chamadas "ciências duras". Ele rotula os dois grupos respectivamente de "cigarras mágicas" e "formigas engenheiras", ressaltando que somente estas últimas fazem trabalho sério. Eu seria o último a negar os talentos do sr. Lemos, mas o desprezo com que ele fala do outro grupo leva-me a esperar que ele nos brinde com a publicação de suas grandes e, deploravelmente, inexistentes obras de filosofia, infundindo assim alguma razão de ser no seu sentimento de superioridade ante Georg Simmel, Karl Jaspers, Benedetto Croce, Xavier Zubiri, Eric Voegelin e outros tantos incapazes de elevar-se às alturas da exatidão matemática que ele exige de um filósofo para admiti-lo entre os santos da sua devoção.

Curiosamente, ele coloca entre estes últimos o autor do Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein, que se notabilizou pela precariedade dos conhecimentos de matemática e lingüística com que se meteu a enfrentar os problemas da linguagem filosófica. Ninguém melhor que Wittgenstein se enquadra na categoria das "cigarras mágicas", que, segundo o sr. Lemos, "defenderam teorias grandiosas, capazes de explicar tudo --- e por isso inspiraram uma fidelidade quase religiosa".

Também é um tanto cômico que o sr. Lemos, após essa apologia das "formigas engenheiras" da escola analítica e similares, se derrame em elogios a Michael Dummett por haver trazido de volta "os problemas filosóficos realmente importantes: a natureza do ser, Deus, o livre arbítrio, as 'leis lógicas' do pensamento, os limites do conhecimento". Com exceção dos dois últimos, esses foram precisamente os problemas que os analistas lógicos fizeram o possível para excluir da lista das preocupações filosóficas. Se algum mérito não se pode negar a Dummett foi justamente o de voltar o feitiço contra os feiticeiros, adaptando os métodos deles ao tratamento de questões que eles rejeitavam (ainda que não alcançasse nisso nenhum resultado espetacular).

Muito menos creio que o amor devoto às "formigas engenheiras" seja um sentimento homogêneo que se possa estender uniformemente a todas elas, como parece sugerir o sr. Lemos. Não tem cabimento, por exemplo, admirar por igual Ludwig Wittgenstein (supondo-se que seja realmente uma "formiga") e Gottlieb Frege. Quando Frege tentou ler o Tractatus, confessou que não conseguia ir além das primeiras páginas, porque nada daquilo fazia o menor sentido. Se lesse um pouco mais, encontraria trechos que faziam muito sentido, já que tinham sido copiados de suas próprias obras ― sem menção à fonte, como era do hábito de Wittgenstein.

Só na comparação entre Frege e Wittgenstein se vê o que é a comparação entre um filósofo sério e um carreirista que se prevalece daquela norma do Einstein de que o gênio consiste em grande parte na ocultação das fontes. O Tractatus se divide em duas partes: uma parte copiada do Frege --- que faz muito sentido --- e outra parte que não faz sentido algum, de autoria do próprio Wittgenstein. Realmente eu não vejo nada para se admirar nesse sujeito.

Aliás o que me libertou da admiração juvenil às "formigas" foi o haver constatado a freqüência com que os cultores da "exatidão analítica" incorriam em bobagens pueris sempre que abandonavam o terreno seguro do formalismo lógico, acessível a qualquer nerd filosófico com algum talento matemático, e se aventuravam em questões substantivas da realidade humana e histórica, que exigem cultura, maturidade, honestidade e bom senso. Wittgenstein deixou-se hipnotizar pelo sex-appeal do stalinismo ao ponto de querer emigrar para Moscou."

Na verdade ele fez mais do que isso; existe um livro chamado The Jew of Linz -- O Judeu de Linz -- cujo autor é Kimberley Cornish, no qual ele oferece elementos convincentes que nos levam a crer que Wittgenstein conseguiu, durante a guerra, decifrar os códigos secretos da Marinha de Guerra nazista ― o que é, sem dúvida, um feito, não filosófico, mas profissional, admirável ―, mas, em vez de entregar esses códigos ao governo britânico, ao qual ele devia tudo e lhe tinha dado emprego, aplauso, paparicação etc., passou a coisa secretamente para os russos: para se ver até que ponto ia a adoração dele pelo governo soviético. Curioso é que ele tinha essa adoração sem ser pessoalmente comunista.

"Bertrand Russell, que um dia propusera singelamente o bombardeio atômico preventivo da URSS, terminou seus dias como apologista de Ho Chi Minh, passando da direita à esquerda sem nada perder da babaquice originária. Hans Reichenbach ― um dos fundadores da escola analítica ― foi bobo ao ponto de servir de garoto-propaganda para os ativistas estudantis da Universidade da Califórnia.

Por duas vezes a filosofia tentou transformar-se numa profissão acadêmica altamente técnica: na escolástica medieval e no meio universitário anglo-saxônico do século XX. Nos dois casos um começo promissor foi seguido de uma queda duradoura na mais acachapante esterilidade. Qual seria, então, o mérito excelso das "formigas engenheiras" se não o de parasitar o prestígio das ciências duras, fonte, aliás, de tantos desastres filosóficos? Sem contar o fato de que, ao menos na América, o predomínio da escola analítica nas universidades não se deveu a nenhuma superioridade intelectual, mas à politicagem pura e simples, da qual foram vítimas, entre outros, Eugen Rosenstock-Huessy, William Barrett e Richard Rorty." (Isso não quer dizer que eu goste muito de Richard Rorty).

Essa nota sobre Michael Dummett me lembrou da conveniência de esclarecer essa relação entre ciência e filosofia ― que hoje é tida como uma relação estabelecida e fixa, e que desempenha um papel importante na estruturação das carreiras acadêmicas; papel tão importante que alguns filósofos como Eugen Rosenstock-Huessy e o próprio Eric Voegelin encontraram algumas dificuldades porque as pessoas não sabiam exatamente em que departamento colocá-los. Eric Voegelin, quando esteve na Alemanha ― ambiente profundamente afetado pela escola analítica ― fez algumas conferências dizendo que eram de filosofia política, o que fez muitas pessoas na platéia ficassem perplexas: "Que raio de filosofia política é essa? Ele não falou da soberania, não falou da legitimidade, [00:10] não falou dos três poderes, ele não falou de nada que estamos acostumados a chamar de teoria política". Por aí se vê que há uma espécie de consolidação de programas universitários que passam como se correspondessem exatamente à divisão objetiva do assunto; como se correspondessem a um setor da realidade que está perfeitamente delimitado; quando na verdade não é assim: a filosofia política pode ser abordada por mil e um aspectos.

Rosenstock, quando chegou aos Estados Unidos, também as pessoas não sabiam em que departamento colocá-lo. Sugeriram colocá-lo no Departamento de Teologia: "Mas não podemos colocá-lo no Departamento de Teologia porque ele fala de física atômica". Então vamos colocá-lo no Departamento de Ciência: "Não podemos deixá-lo na Física Atômica porque ele fala de Teologia." Então vamos colocá-lo no Departamento do Direito: "Não, não se pode colocá-lo na Faculdade de Direito porque ele fala de questões epistemológicas", e assim por diante. Simplesmente o cara era uma batata quente já que não se enquadrava nas divisões estabelecidas do programa universitário. E se você examinar direito verá que toda essa situação remonta à obra do René Descartes; ou pelo menos à época do René Descartes.

Sabendo que Michael Dummett analisava essa questão desde um ponto de vista inteiramente determinado pela divisão atual das disciplinas acadêmicas ― que ele toma como se fosse um estado de coisas definitivo e passa a analisar isto e a procurar quais seriam as funções da filosofia num panorama definido pelo império das ciências ―, é que eu, para esclarecer isso, estudo essa análise profundamente inadequada, porque toma uma distinção meramente administrativa entre Departamentos e Carreiras como se fosse uma expressão da própria estrutura da realidade; coisa que não é de maneira alguma.

Vocês se lembram de que, quando expliquei aqui o conceito de fato concreto, eu expliquei que nenhum fato concreto vem com a sua devida distinção acadêmica. O exemplo que eu dei foi o de um crime: o sujeito dá um tiro no outro no meio da rua: você pode examinar o assunto sob o aspecto da ciência físico-balística; você pode examinar sob o ponto de vista psicológico: as motivações que levaram o indivíduo [a cometer o crime]; você pode examinar do ponto de vista sociológico: quais eram os valores sociais, as motivações sociais implícitas no ato; você pode examinar do ponto de vista jurídico; você pode estudar sob o ponto de vista religioso: se foi um pecado ou não. Há uma infinidade de pontos de vista e o que caracteriza o fato concreto é justamente que nele estão presentes todas as linhas causais acidentais ― que não fazem parte da sua "essência" ― e vai haver uma "essência" jurídica, uma "essência" psicológica, uma "essência" teológica e assim por diante. Quer dizer: essas várias "essências" são apenas aspectos do fato concreto.

A realidade não se constitui de "essências", mas de fatos concretos que a nossa mente subdivide em outras tantas "essências", que são objetos de estudo das várias ciências e que simplesmente não existia a ciência do fato concreto. A única ciência do fato concreto que existe é a própria filosofia; mesmo assim, o estudo do fato concreto não pode ser reduzido a nenhum método experimental, a nenhuma conjunção deles e mesmo à interdisciplinaridade porque a interdisciplinaridade parte de divisões de "essências" já dadas anteriormente. Somando "essências" você não vai obter nenhum fato concreto, pois o fato concreto não se constitui somente da sua "essência" ou das suas "essências", mas de uma infinidade de fatores acidentais sem os quais ele não poderia produzir-se. Por exemplo: se um sujeito comete um crime ― deu um tiro em outro ― ele certamente deu o tiro em algum lugar. Ele poderia ter dado o tiro em outro lugar, mas coincidiu que a vítima estava naquele lugar. Isto não tem nada a ver: pode ter ou pode não ter nada a ver com a motivação do crime. É um fator meramente acidental. Também no fator balístico, por exemplo: para onde estava batendo o vento? Se você der um tiro através de um vidro, a bala pode se desviar e não acertar seu alvo e assim por diante. Tem uma série de fatores puramente acidentais: quando o sujeito atirou, o outro estava dentro da loja, ou estava fora da loja, e assim por diante. Esses fatores acidentais são absolutamente necessários para que qualquer fato se produza. Qualquer fato concreto é composto do entrelaçamento de uma série de linhas causais, essenciais e acidentais, sem as quais ele não pode se produzir de maneira alguma.

O que faz uma ciência? A primeira coisa é separar uma dessas linhas causais ― separar uma dessas "essências" abstratas ― e considerar somente os fatores que são relativos a ela. Por exemplo: podemos analisar a motivação do crime independentemente da sua constituição jurídica. Isso quer dizer que a motivação pode ser a mesma em crimes cometidos em países diferentes, com legislações criminais completamente diferentes. Por exemplo: na União Soviética, o crime de homicídio só dava dez anos de cadeia, ao passo que o crime de dilapidar dinheiro público dava pena de morte. É uma hierarquia de valores completamente diferente da de outros países. Mas a motivação psicológica do crime pode ter ou pode não ter nada a ver com isso.

A articulação dos vários pontos de vista das várias ciências só é possível de se fazer de maneira proveitosa, a partir da consideração da natureza do fato concreto, e esse, que eu saiba, é um ponto de vista que nem mesmo existe no mundo acadêmico atual. Não existe sequer uma teoria do fato concreto que, evidentemente, deveria ser ensinada em primeiríssimo lugar para que depois ― quando se constituem vários pontos de vista abstrativos correspondentes às várias ciências ― as pessoas, pelo menos, saibam de onde aqueles pontos de vista foram abstraídos. Como não se faz isso, evidentemente os vários pontos de vista abstrativos começam a ser vistos como se fossem fatalidades, ou como se fossem eles próprios a natureza do fato em questão. Isto é a origem de uma confusão monumental que nenhuma interdisciplinaridade pode corrigir, porque, como eu disse, interdisciplinaridade é parte de distinções abstrativas já feitas anteriormente e, somando-se várias distinções abstrativas, não se vai obter nenhum fato concreto, jamais.

Em vista disso, achei que seria bom colocar aqui uma série de esclarecimentos que estão nessa apostila que vou ler e comentar para vocês ― que quando estiver pronta eu colocarei no site do seminário2. Seria ótimo se toda semana eu pudesse redigir a apostila da aula seguinte e trazê-la pronta. Infelizmente, nas nossas condições de trabalho ― onde é preciso escrever artigos de jornal, fazer programa de rádio, responder um monte de e-mails etc. etc. ― isto é impossível. É nessas horas que eu queria ser a Dona Marilena Chauí que, para reescrever a sua tese sobre Spinoza que já estava pronta desde a juventude, teve seis anos livre de todos os compromissos pedagógicos, jornalísticos, partidários e até sem atender telefone. Mas, isso para nós é impossível porque não temos os amigos corretos no PT e no establishment.

Vou ler para vocês e comentar e daí, daqui a pouco, vocês verão o encaixe disto com o estudo cartesiano que estamos fazendo:

"Inúmeros manuais de filosofia, e também algumas obras de maior prestígio, relatam que na modernidade várias ciências originadas da filosofia foram se separando dela e adquirindo uma autoridade independente, superior mesmo à da velha mãe e mestra, a qual, vendo-se despojada da jurisdição sobre tantos assuntos que lhe eram caros, acabou tendo de justificar sua sobrevivência buscando novas ocupações ou cavando um nicho modesto nas poucas áreas restantes do condomínio, sempre temerosa de que estas lhe sejam também arrebatadas mais dia, menos dia." [00:20]

Só nas últimas duas semanas eu li dois livros a respeito desse processo de separação entre ciência e filosofia: um deles do próprio Michel Dummett chamado Natureza e Futuro da Filosofia (que foi uma série de conferências de 2001) e outro livro, de Harry Redner, que se chama Nova Teoria da Representação, que, na verdade, é todo um novo conceito de filosofia, tentando delimitar qual o terreno que sobrou para a filosofia dentro desse panorama.

"A descrição desse processo histórico vem quase que invariavelmente sublinhada por juízos de valor, explícitos ou implícitos, segundo os quais (a) o que aconteceu tinha de acontecer; (b) foi bom que acontecesse; (c) seus resultados são definitivos e irrevogáveis, só restando à filosofia acomodar-se ao fato consumado e tratar de buscar um emprego mais modesto. Nunca vi a menor tentativa de justificar essas três assertivas, que aparentemente devem ser aceitas sem qualquer análise crítica."

Ou seja, parte do princípio de que isso é um fato consumado -- aconteceu, está acontecido ― e temos que nos ajustar dentro disto.

"Muito menos vi algum filósofo conjeturar sequer a possibilidade de que o estado de coisas possa ser revertido, mesmo a longuíssimo prazo. Só posso concluir daí que a doutrina hegeliana da História como tribunal supremo da razão se impregnou profundamente até mesmo nos cérebros mais hostis ao hegelianismo."

Quer dizer: todo esse pessoal que fala isso está raciocinando como se fosse Hegel: a história é manifestação objetivada do espírito e, portanto, a sucessão dos acontecimentos é como se fosse um longo raciocínio lógico. Não há diferença, no caso, entre o "ser" e o "dever ser" e aquilo que foi o resultado de um processo histórico é como se fosse a conclusão de um raciocínio. Está todo mundo raciocinando assim, mesmo as pessoas que odeiam Hegel.

"O desenrolar dos fatos, em vez de ser apenas "o conjunto dos resultados impremeditados das nossas ações" tal como o enxergava Max Weber, passa a constituir o rigoroso desdobramento silogístico de uma lógica secreta, divina, que arrasta inexoravelmente a conclusões irrespondíveis. Subscrita pelo consenso dos bem-pensantes, a sentença do tribunal da História transfigura-se em dogma universal e padrão de sanidade, brandindo a ameaça do ostracismo ou da internação hospitalar, antes que ousem colocá-la em dúvida."

Hoje se você entrar numa universidade e falar que as várias ciências são apenas departamentos da filosofia, as pessoas o mandam internar; se você disser que a antiga concepção da filosofia abrangia todas as ciências ― concepção que valia nos tempos de Newton, Leibniz e do próprio Descartes, quando, então, os estudos de física se chamavam filosofia natural, filosofia experimental ― caso defenda essa perspectiva hoje, as pessoas vão dizer que você está quatro séculos atrasado; que você é um anacronismo vivo; e que você não deve ser muito bom da cabeça.

"A filosofia, que começou como análise crítica das verdades consagradas, (...)"

Com Sócrates, era exatamente isso. O que Sócrates fazia era andar pelas praças questionando aquilo em que todo mundo acreditava.

"(...) trata agora de adaptar-se obedientemente ao status quo, e se julga muito feliz quando consegue encaixar-se num espacinho vazio onde não cause nenhuma incomodidade em torno.

Muitos filósofos, no afã desesperado de justificar a sobrevivência da sua profissão num terreno balizado pelo império das ciências, chegaram ao cúmulo de exclamar, como o recém-falecido Sir Michael Dummet: "A filosofia não faz avançar o nosso conhecimento: ela esclarece aquele que já temos."

Isso aqui é uma frase de Michael Dummett; mas ele não foi o primeiro a dizer isso: muita gente disse isso e essa é, mais ou menos, uma crença consensual de muitos membros da escola analítica. Quem faz avançar o conhecimento ― quem aumenta o conhecimento ― são as ciências; a filosofia somente esclarece conceitos, esclarece a gramática, esclarece a sintaxe, a lógica da ciência etc.

"Em vastas províncias da filosofia universitária essa frase ― como outras do mesmo teor ― é tida como a expressão final do óbvio irrespondível, e aqueles que a subscrevem mostram até alguma satisfação ao enunciá-la."

É a satisfação do sujeito que, vendo a filosofia ser deslocada para fora do terreno intelectualmente certo pelo avanço das ciências, descobre um lugarzinho em que ele diz: "Isso aqui é minha propriedade; isso aqui é o terreno filosófico propriamente dito". O próprio Michael Dummett insiste muito nisso, mas é uma coisa que vem desde o tempo de Bertrand Russell. Essa missão de esclarecer os conceitos não pode ser atribuída a nenhuma ciência experimental: requer uma atividade específica e essa atividade é exatamente a filosofia: Descobrimos aqui o nosso terreno que dificilmente alguém vai poder tomar de nós.

"Nenhum deles parece ter-se dado conta de que uma situação em que a inteligência humana se vê dividida entre duas atividades heterogêneas, uma produzindo conhecimentos que não precisa compreender, a outra empenhada em compreender conhecimentos prontos nos quais não pode interferir, é a descrição sumária de uma catástrofe cognitiva sem precedentes. É como se na fábula do cego e do aleijado o cego fosse fraco demais para carregar o aleijado, e este, além de aleijado, fosse mudo, não podendo ensinar o caminho ao cego."

O que seria o conhecimento? Conhecimento é a transfiguração da experiência em elementos inteligíveis. O que quer dizer inteligível? Quer dizer uma coisa que faz sentido dentro do quadro geral de referência de que se dispõe. Isso quer dizer que um conhecimento que não é compreendido não é conhecimento de maneira alguma. Se você se esforça para a busca da compreensão ― se você tenta entender os conceitos científicos mais profundamente ― o que você está fazendo? Você está escavando qual é o verdadeiro significado deles dentro da própria lógica científica. Na medida em que você esclarece o verdadeiro sentido deles é evidente que os entes ― os objetos abrangidos por esse conceito ― adquirem uma nova e mais nítida consistência perante você. Então, como é que isso não faz avançar o conhecimento? Compreender um conceito a mais ou a menos não aumenta o seu conhecimento? Antes eu não compreendia, agora eu compreendo, mas isso não aumenta em mais nada o meu conhecimento? O que significa conhecimento sem compreensão e compreensão sem conhecimento? Não significa absolutamente nada. No entanto, Michael Dummett ― que segundo o Júlio Lemos é um grande filósofo ― diz uma coisa dessa e ninguém na platéia reclama, quando ele, evidentemente, está descrevendo como se fosse uma situação ideal, aquilo que é justamente uma catástrofe cognitiva completa!

Felizmente as coisas não são assim como ele diz. Felizmente as ciências não apenas produzem conhecimento independente da compreensão, e a filosofia, ao aprofundar a compreensão dos conceitos, faz aumentar o nosso conhecimento sim! Não existe essa distinção categórica entre o fato e a sua compreensão. Isso é apenas mais um preconceito da escola analítica que só serve para atravancar o processo de inteligência.

"Por que, no fim das contas, tanto empenho em traçar uma fronteira nítida entre a "filosofia" e as "ciências", se ainda há poucos séculos um Newton ou um Leibniz se sentiam perfeitamente à vontade no meio de uma alegre e multicolorida mescla de jurisdições?"

Naquele tempo ainda chamavam as ciências físicas de filosofia natural, ou também chamavam de filosofia experimental. Quer dizer: entendiam que os estudos feitos com determinado método ― o método experimental sobre a natureza ― faziam parte da filosofia.

"O processo separatista, com toda evidência, reflete mais as necessidades funcionais da burocracia universitária em expansão do que uma visão organizada da estrutura do real e das suas subdivisões objetivas em distintas "ontologias regionais", como as chamava Russell, cada uma com seus respectivos estatutos epistemológicos."

Russell entendia que a divisão dos sistemas das ciências, para significar alguma coisa, deveria corresponder a divisões objetivas [00:30] dentro da própria estrutura do real. Assim como você tinha uma ontologia geral ― uma teoria geral do ser ― você tinha que ter o que ele chamava as ontologias regionais. Por exemplo: se é possível um estudo de um negócio que se chama seres vivos, é porque você tem uma ontologia dos seres vivos: você sabe, mais ou menos, qual é o lugar deles dentro da estrutura geral do ser e sabe distingui-los de outros tipos de objetos.

Então, Husserl insistia que existem fronteiras objetivas e intransponíveis. E, ele exemplificava isto numa frase, dizendo: "Não existe uma embriologia dos triângulos, nem uma trigonometria dos leões". Há aí um abismo de separação. Não é possível traduzir-se a linguagem da trigonometria para a da embriologia e vice-versa. Não há princípios comuns, a não ser os princípios mais gerais da ontologia. Dentro da ontologia, você teria de saber o que é um embrião e o que é um triângulo, mas, uma vez dito isto, tão logo conseguiu definir os dois dentro da estrutura geral do ser, você sabe que eles estão separados por abismos absolutamente infranqueáveis: que nunca será possível fundir estas ciências numa só, baseada em princípios comuns.

Isto quer dizer que os princípios gerais da ontologia não são princípios explicativos das várias ciências especializadas. Não, eles somente situam esta ciência dentro da estrutura geral do ser. Mas a ontologia por si não tem nenhum princípio explicativo de por que é que a trigonometria funciona ou por que é que a embriologia funciona. Estes princípios explicativos são próprios daquelas "ontologias regionais" e são intraduzíveis para outras "ontologias regionais". Assim explicava Edmund Husserl.

"As várias cátedras e departamentos universitários não podem fundir-se a seu bel-prazer sem suscitar crises e protestos corporativos. (...)"

Nem fundir-se nem separar-se.

"(...) mas as dimensões do real não cessam de interpenetrar-se, fundir-se e distinguir-se, sem ligar a mínima para regulamentos acadêmicos, decretos de reitores e planos de carreira. O fato mesmo de que, transcorrido um século do nascimento da escola analítica, a questão das fronteiras ainda ressurja nas conferências de Dummet em 2001, mostra que o separatismo, na mesma medida em que procura impor-se ao público como solução final, não tem, por dentro, nenhuma segurança de si.

Que acontece, em substância, quando uma ciência "se separa" da filosofia? Em que consiste, no mundo real e não na esfera dos puros conceitos, essa proclamação de independência?

A filosofia, tal como aparece em Sócrates, Platão e Aristóteles, se caracteriza por ingressar nos problemas que investiga sem trazer nenhum método pronto, nenhum conceito previamente estabelecido, e, aliás, nem mesmo perguntas padronizadas."

Se você dissesse a Sócrates: "Quais são as perguntas filosóficas?" Ele ia dizer: "Qualquer pergunta pode ser a pergunta filosófica". Principalmente a pergunta o que é isto? O que é que é aquilo? ― quid est? A pergunta quid est não tem um sujeito determinado. Você pode perguntar: o que é uma formiga? O que é a justiça? O que é um triângulo? E assim por diante.

"Ela entra em campo, literalmente, desarmada. Ela começa com o espanto (thambos) ante a realidade da experiência, e apelando a todos os recursos cognitivos que possa encontrar entre os céus e a terra ― a memória, a imaginação, o raciocínio lógico, a confrontação dialética, as opiniões correntes, os relatos dos viajantes, os preceitos dos médicos, os mitos e poemas, até mesmo as artimanhas retóricas dos sofistas ―, busca laboriosamente descobrir quais são as perguntas mais viáveis, os conceitos descritivos mais apropriados, os métodos mais produtivos e, por fim, os princípios básicos desde os quais as perguntas, uma vez depuradas e formalizadas, possam ser respondidas com relativa segurança."

Quer dizer: a filosofia pega o assunto inteiro. Ela pega o assunto em estado nu e cru e trata de criar as primeiras distinções, as primeiras perguntas, as primeiras hipóteses, os primeiros conceitos etc.

"Ela atravessa assim o percurso inteiro que vai da experiência bruta à sua transfiguração em formas conceptuais inteligíveis organizadas em discurso coerente."

Se vocês se lembram do meu livro A Teoria dos Quatro Discursos, vão se lembrar também de que ali tem um resuminho da teoria aristotélica da abstração: ele diz que você primeiro absorve os dados dos sentidos; estes dados se reorganizam espontaneamente na memória e na imaginação; da memória e da imaginação, você abstrai então o que nós podemos chamar de esquemas fáticos ― esquemas grosseiros dos fatos ―; dos esquemas fáticos, então você pode tirar mais ou menos um esquema eidético ― um esquema ideal ― e, deste esquema ideal, você produz então um conceito. Isto para cada elemento que você conhece. Quer dizer que a filosofia percorre todo este trajeto, e note bem que nem sempre é possível chegar ao último estágio de elaboração. Se você pegar os quatro discursos, onde tem primeiro o discurso poético que corresponde mais ou menos à esfera da imaginação, e assim por diante, vai estreitando como se fosse uma pirâmide; no ponto em que você chega ao discurso lógico analítico, ou seja, aos conceitos perfeitamente depurados que podem servir de elementos para um discurso silogístico, existe o estreitamento do horizonte. Quer dizer que a maior parte da nossa experiência vai se esgotar ao nível puramente sensorial e imaginativo: nós não vamos conseguir chegar à elaboração final. Quer dizer: o horizonte da experiência é infinitamente mais amplo do que o horizonte daquilo que pode, segundo Aristóteles, ser abarcado num discurso lógico cientifico. Isto quer dizer que, por definição, o discurso lógico cientifico só abrange uma parte da realidade e, da imensidão da experiência, a parte maior, ficará num nível puramente imaginativo ou conjetural; não vai passar disso.

"Pouco a pouco, num processo que vai do século IV a. C. ao começo da idade moderna, os vários domínios do conhecimento se articulam em sistema, os conceitos se cristalizam em fórmulas repetíveis, os métodos se estabilizam em rotinas lógicas e dialéticas e se consagram em programas de ensino universitário.

Isso não quer dizer que os problemas iniciais tenham sido resolvidos. (...)"

Se observarmos, por exemplo, as investigações que Aristóteles procedia, e compararmos com as discussões dos escolásticos, veremos que estes raramente têm de remontar à experiência originária: eles já partem de conceitos elaborados por Aristóteles e as gerações seguintes partem dos conceitos elaborados por seus antecessores e assim por diante. Isto quer dizer que, na medida em que existe uma transmissão da cultura filosófica, existe também uma cristalização de conceitos e métodos que são repassados de geração em geração de modo que as gerações seguintes não sejam obrigadas a refazer o serviço todo desde o começo. Foi exatamente por causa disso que a unidade entre os quatro discursos, que eu assinalei no meu livro, se perdeu com o tempo. Chegou-se a acreditar que existem apenas dois discursos: é o mundo das ciências e o mundo das artes ou da imaginação etc. etc. São as duas culturas de que falava o Edgar Snow. Então, a divisão entre as ciências e as humanidades pareceu durante muito tempo representar mesmo a quintessência do conhecimento humano. Tínhamos chegado a um ponto onde essas duas estruturas tinham se cristalizado e elas eram as duas grandes divisões do conhecimento possível. Quando você vai ver em Aristóteles, não existe essa divisão: o conhecimento é como uma árvore que tem sua raiz no mundo dos sentidos e que vai subindo para a memória e imaginação e vai se prolongando até chegar nos conceitos lógicos. Então, havia na verdade, não duas divisões, uma ao lado da outra, mas quatro andares que correspondiam a um afunilamento progressivo do conhecimento possível. [00:40] Quer dizer: aquilo que você conhece pelos sentidos e pela imaginação é infinitamente mais amplo do que aquilo que você pode submeter aos conceitos científicos. Acontece que como esses conceitos científicos, desde que foram elaborados por Platão e Aristóteles, vão sendo repassados de geração em geração, o trabalho das gerações seguintes é poupado, eles não têm que fazer todo o processo abstrativo desde o começo. Resultado: A discussão cientifico-filosófica perde a raiz que tinha no discurso poético retórico. Então, imagina-se que essa atividade cognitiva cientifico-filosófica é uma coisa independente ― que ela não depende em nada do anterior ― e o resultado é justamente a consolidação das tais das duas culturas incomunicáveis.

"(...) Isso não quer dizer que os problemas iniciais tenham sido resolvidos. Volta e meia, a experiência constantemente ampliada traz novas perguntas que os métodos consagrados não abarcam, as velhas perguntas revelam aspectos que tinham escapado aos antigos filósofos, ou, mais irritantemente ainda, os raciocínios mais perfeitos levam a contradições intoleráveis, mostrando que algum erro sutil, muitas vezes não de mera lógica, mas de percepção e abstração, havia escapado ileso no meio do caminho."

Quer dizer: você está lá raciocinado bonitinho e quando chega às suas conclusões, elas não se aplicam à realidade. Por quê? Porque quando você elaborou os conceitos iniciais, ao abstrair da experiência sensível até o conceito, você cometeu algum erro, você pulou algum pedaço. Então, o conceito está furado e, evidentemente, o raciocínio mais perfeito que você faça com conceitos furados, vai levar a resultados inaceitáveis.

"Então é preciso recomeçar tudo desde a base, puxando da experiência, como os pioneiros gregos, os rudimentos da possibilidade de um conhecimento satisfatório."

É evidente que quanto mais os quatro discursos se tornem independentes uns dos outros mais isto tende a acontecer. Porque os conceitos se cristalizam como se fossem entidades reais eles mesmos, perdendo a raiz que têm na experiência viva: na presença real dos objetos.

"Qualquer que seja o caso, aos trancos e barrancos o processo de estabilização vai adiante, ao ponto de que a experiência real e pessoal da escalada abstrativa é poupada a gerações e gerações de estudantes, na medida em que estes não têm de apreender por si próprios as formas inteligíveis na massa viva dos objetos presentes, mas recebem os conceitos prontos da tradição filosófica."

Segundo Aristóteles, todo ente que nós observamos no mundo sensível, ou toda e qualquer experiência que possamos ter na interioridade da nossa alma, contém dentro de si uma forma inteligível que a inteligência humana capta e diz o que é. Ora, esta forma inteligível não aparece pronta. Ela tem de ser separada e abstraída. Como você faz esta abstração? Primeiro é preciso que a sua memória e imaginação separem dos objetos singulares apreendidos uma forma mais ou menos estável; por exemplo, uma imagem, um ― como Aristóteles chamava ― 'fantasma'. Por exemplo: você viu várias vacas, você tem um esquema que lhe permite reconhecer a próxima vaca. Você sabe que é um bicho da mesma espécie do outro. Você não tem o conceito ainda ― você não é capaz de expressar verbalmente o que é uma vaca ―, mas você sabe reconhecê-la. Por quê? Porque você ― a sua imaginação, a sua memória ― de maneira mais ou menos espontânea, estabilizou aquela imagem esquemática que permanece mais ou menos constante entre os vários exemplares da mesma espécie. Só depois que você fez isto, é que é possível, deste 'fantasma' ou 'esquema fático', abstrair o conceito e dizer o que é --- Quid est. Aí você tem um conceito e se expressa verbalmente. Mas este conceito não saiu do nada: ele saiu da massa viva das impressões sensíveis estabilizadas na memória.

Só que quando você aprende os conceitos em filosofia ― em qualquer escola de filosofia ― você não é obrigado, e nem mesmo lhe é sugerido, que você faça o trajeto inteiro: que você remonte inversamente dos conceitos até às experiências sensíveis iniciais; que você volte daquele recorte intelectual tão bonitinho até a massa confusa das impressões de onde aquilo emergiu. Na verdade, as pessoas, se você quer saber, nunca fazem isto. Isto é uma coisa em que tenho insistido muito aqui: você retornar dos conceitos filosóficos científicos até a sua experiência originaria. É um processo que vai daquilo que está claro àquilo que estava confuso. Ora, é muito mais fácil você lidar apenas com os elementos que já estão esclarecidos e continuar raciocinando verbalmente sobre conceitos que você não sabe de onde saíram e que, portanto, passam a constituir para você entidades independentes e coisas perfeitamente reais quando, na verdade, são apenas produtos da abstração humana.

Por que é que no começo deste curso eu insisti tanto na formação literária? Na cultura literária? Porque sem isto nada é possível. Porque a cultura literária é um primeiro nível de elaboração da experiência. É um nível de elaboração da experiência imaginativa na qual você não tem ainda a compreensão intelectual diferenciada, mas as formas sensíveis estão mais ou menos estabilizadas; quer dizer: você não é capaz de explicar o que é, mas é capaz de contar e narrar o que aconteceu. Você sabe que para narrar, não precisa entender. Por exemplo: você assistiu a uma situação confusa qualquer: você chega em casa, você conta precisamente porque você não entendeu. Mas sem este primeiro nível de elaboração, os outros não são possíveis. E se ao longo dos tempos foi feito todo o trabalho da abstração desde a confusão dos sentidos e da imaginação até a sua depuração em conceitos, e se na geração seguinte você passa só ao conceito, sem ter passado o trajeto inteiro, as pessoas simplesmente não sabem de onde os conceitos saíram. Tornam-se, então, como que hipnotizadas pelos conceitos. Os conceitos são coisificados, são hipostasiados. O Mário Ferreira dos Santos escreveu páginas memoráveis sobre esse fenômeno do abstratismo ― que não é a mesma coisa que abstração. Abstração é um mecanismo absolutamente necessário, precioso, mas o abstratismo consiste em tomar os conceitos abstratos como se fossem entidades concretas. E você faz isto sempre que não é capaz de retraçar o caminho desde o pensamento conceptual até os elementos imaginativos e sensoriais das quais ele se originou.

"O progresso em filosofia é, portanto, uma conquista ambígua, na qual com freqüência se perde em senso da realidade concreta (e da relação entre o concreto e o abstrato) quanto mais se enriquece o arsenal de conceitos recebidos, prontos para o uso nas discussões filosóficas."

Por exemplo: no romance do E. M. Forster, The Longest Journey, o livro começa com uns estudantes discutindo uma vaca no pasto para saber se a vaca existe em si ou se ela existe somente na nossa mente. Essa questão da existência ou inexistência do mundo exterior é um exemplo característico das conseqüências catastróficas do abstratismo. Desde logo, você vê que para você discutir se o mundo exterior existe ou não, é preciso que você já esteja nele. Por que se não, você iria discutir com quem? Se existe um interlocutor, e se o interlocutor não é por sua vez uma mera criação do seu pensamento, então você já reconheceu que o mundo exterior existe e que você está nele. Então, essa discussão é absolutamente ociosa. No entanto, quantas páginas não se gastaram com a discussão da existência ou da inexistência do mundo exterior! Essa é uma questão que se a mostrasse a Aristóteles, ele iria rir na sua cara, porque a primeira coisa que ele iria perguntar é: de onde você tirou esta pergunta? De onde você tirou esses conceitos de mundo exterior etc. etc. Vamos voltar à experiência da qual você puxou isto e você verá que isto não é um problema filosófico de maneira alguma; verá que isto é apenas uma questão ociosa para estudantes mal preparados que receberam os conceitos prontos e não sabem de onde eles saíram. [00:50]

"Os conceitos abstratos adquirem como que uma vida própria de ordem fantasmal e passam a encobrir o que deveriam revelar. Volta e meia surgem, por isso, apelos a um retorno às realidades concretas (...)"

O próprio Dummett diz: "Vou dar um exemplo de questão puramente filosófica, que as ciências experimentais não podem atingir. A pergunta é: O tempo passa realmente?" Ele acha que isto é uma pergunta filosófica. Eu acho que não é de maneira alguma; eu acho que isto é uma questão ociosa cuja resposta já está pressuposta na pergunta mesma. E assim, muitas perguntas que a escola analítica considera que constituem a própria essência da atividade filosófica, na verdade são questões ociosas baseadas em premissas absurdas que foram colocadas gratuitamente e que por sua vez geram problema. Se você quer um exemplo disso, o próprio Tractatus Logico-Philosophicus do Wittgenstein é um exemplo maravilhoso de como premissas arbitrárias podem criar uma infinidade de problemas que podem parecer muito interessantes para garotos de mentalidade matemática que gostam de lidar com formas abstratas sem nenhum conteúdo de realidade. O Gottlob Frege tem toda a razão de não conseguir continuar lendo o Tractatus depois das primeiras páginas porque as primeiras páginas se constituem, exclusivamente, de premissas arbitrárias que são colocadas sem nenhuma razão de ser, mas que se você aceitou aquelas frases, delas se segue, por automatismo lógico, uma série de questões. Por exemplo, uma dessas premissas foi a seguinte: "um fato atomístico pode acontecer, ou mudar, sem que nada em volta seja alterado." Mas eu digo que isto jamais aconteceu. Primeiro: não existe nenhum fato atomístico. Um fato atomístico seria o fato abstrato. O que é um fato abstrato? É um fato que só foi pensado como conceito e que nunca aconteceu. O fato concreto é aquele que para acontecer exige, como vimos, uma multidão de linhas causais acidentais sem os quais não poderia acontecer. Então, fato atomístico é um conceito que não quer dizer absolutamente nada. É um conceito que pode ser postulado; é um fato atomístico considerado separadamente de todos os outros. Mas, se você já diz que ele está separado de todos os outros, é evidente que ele pode acontecer ou desacontecer sem que os outros sejam alterados. Só que o primeiro fato atomístico não existe e os segundos que não foram alterados por ele também não existem. Isto é de uma inépcia filosófica absolutamente monstruosa. No entanto, o livro foi aceito como uma obra de gênio. Claro que isto só pode acontecer dentro de uma situação histórica em que o ensino acadêmico da filosofia já estava muito avançado, já estava muito estabilizado em conceitos tradicionais, em problemáticas tradicionais etc. etc., tão estabilizado que ninguém se lembrava de perguntar qual é o fundamento disso na experiência? De onde tiramos esses conceitos?

Isso quer dizer que a partir daí a discussão filosófica se torna uma mera elaboração lógica de frases, e mais nada. Esta elaboração pode prosseguir até os últimos detalhes, principalmente com as inovações que o próprio Gottlob Frege introduziu em lógica matemática que permite distinções enormemente sutis que antes eram inalcançáveis. Então, você tem uma técnica lógica mais aprimorada ao mesmo tempo que você perdeu o fundamento da técnica filosófica propriamente dita. Quer dizer: você sabe elaborar, até seus últimos detalhes, conceitos que você não sabe de onde saíram e que, na verdade, foi você mesmo quem os inventou. Isso quer dizer que caímos no puro formalismo.

Ora, o puro formalismo é elaboração lógica. O formalismo consiste de relações lógicas ― ou lógico-matemáticas ― entre meros signos. Por exemplo: quando você estuda álgebra, você não sabe sequer a que quantidade você está se referindo. Ou seja: a quantidade já é uma abstração. Quando em vez da quantidade, você coloca um símbolo qualquer, um 'x', você não sabe nem qual é a quantidade. Veja a que ponto o raciocínio abstrato está separado da experiência real. E, a elaboração dessas formas pode ser aperfeiçoada infinitamente, sobretudo depois da invenção dos computadores. Só que tudo isto se refere a nada. São meros esquemas da possibilidade lógica.

Ora, o pensamento lógico é uma capacidade natural do ser humano: ele tem a capacidade de pensamento lógico desde que nasce, embora precise de algum aporte lingüístico para que isto possa começar a funcionar de maneira mais evidente. O pensamento lógico não precisa ser ensinado: ele é, de certo, modo instintivo. Isto quer dizer que um garoto de dez anos, com alguma vocação lógico-matemática, pode produzir tratados inteiros de lógica-matemática porque ele não precisa ter experiência da vida; não precisa conhecer nada: é o puro pensamento lógico funcionando segundo suas próprias leis internas.

Agora, para abordar questões filosóficas reais você precisa ter alguma experiência; você precisa ter memória acumulada; você precisa ter atenção; autoconsciência etc. Isto é muito mais complicado. É por isto que eu digo que o puro formalismo é acessível a qualquer nerd filosófico.

"(...) Os conceitos abstratos adquirem uma vida fantasmal e passam a encobrir o que deveriam revelar. Volta e meia surgem, por isso, apelos a um retorno às realidades concretas, para infundir sangue novo nesses corpos esqueléticos que assombram as discussões filosóficas. Os mais famosos desses apelos foram o nominalismo de Ockam e Abelardo (...)"

Quer dizer, o nominalismo pode ter tido as conseqüências catastróficas que teve, mas a sua inspiração originária é perfeitamente legítima: era separar, na discussão filosófica, aquilo que tinha existência meramente conceptual verbal e aquilo que correspondia a entidades reais. A solução que Ockam e Abelardo deram ao problema pode ser inadequada, mas o problema em si mesmo era perfeitamente legítimo e levantava realmente uma obrigação. Quando eles chegam à conclusão de que os conceitos universais não têm existência e são puramente verbais e que só existem as entidades singulares do mundo sensível, a conclusão é exagerada e até errada, mas levantar o problema era perfeitamente adequado e louvável.

"(...) Os mais famosos desses apelos foram o nominalismo de Ockam e Abelardo, o experimentalismo de Bacon, a dúvida metódica de Descartes e o grito de Edmund Husserl: Zu den Sachen Selbst! ("às coisas mesma"!), com que inaugurou, na entrada do século XX, a escola fenomenológica."

Vê-se que de vez em quando aparece alguém que diz: "Espera aí, isto aí está muito verbalismo, muito formalismo vazio, e nós temos de saber de o que é que nós estamos falando; nós temos que voltar à realidade da experiência". Esses vários apelos que marcam tão brilhantemente a evolução das discussões filosóficas refletem exatamente o protesto do buscador filosófico sincero, ante um formalismo sufocante onde a precisão cada vez maior das distinções lógicas corresponde à insubstancialidade cada vez maior dos conceitos envolvidos. Em cada um desses casos, o anunciado retorno ao concreto resultou, porém, num upgrade da escalada abstrativa e no incremento do processo estabilizante. Quer dizer: o sujeito quer voltar para a realidade concreta, mas tão logo ele faz isto, ele incrementa, ele fortalece o processo abstrativo que daí gera novos e maiores formalismos.

"Houve um momento em que o processo de abstração-estabilização deu um salto formidável. Foi quando, em nome do experimentalismo mesmo, o último resíduo de experiência concreta foi suprimido, sobrando apenas, da variedade dos dados sensíveis, o esquema seco e descarnado das aparências mensuráveis. Os artífices dessa amputação cirúrgica foram Bacon, Galileu, Descartes e John Locke. Excluídas da observação científica foram as qualidades que só podem ser conhecidas por intermédio de sensações subjetivas, variáveis de indivíduo para indivíduo: a cor, o gosto, o cheiro, o som. [1:00] Ficaram aquelas que supostamente residem nas coisas mesmas e podem ser determinadas com certeza por todos os seres humanos unanimemente: a figura, a extensão, o movimento e o número. Estas são as qualidades primárias que definem a realidade física. Aquelas, as secundárias, só existem para a psique individual que as apreende."

Por exemplo, a extensão de uma coisa pode ser medida com uma régua e essa medida será igual para todos os seres humanos que tiverem a paciência de medir; mas, o gosto de uma coisa depende de uma variedade subjetiva: não é possível medir se duas pessoas comendo a mesma coisa sentiram o mesmo gosto ou não. Ademais, essas sensações dependem do estado fisiopatológico de cada um: por exemplo, se você dá um gole de vinho para um sujeito que está saudável, ele diz que aquilo é doce, mas se ele estiver doente, vai sentir que é amargo ou azedo e assim por diante.

"Concentrar-se exclusivamente nas "qualidades primárias" não só permitia fazer observações precisas e comunicá-las numa linguagem padronizada, mas tornava relativamente fácil ao observador fazer generalizações que podiam rapidamente ser conferidas por outros estudiosos sem muita margem de erro, ao menos aparente."

O sujeito observava certos fenômenos, fazia as devidas medições, daí tirava certas conclusões generalizadas e passava aos outros observadores dizendo: "agora vocês façam as mesmas medições e vejam se a conclusão a que cheguei não está correta". Isso é relativamente fácil de fazer.

"Logo o conjunto dos procedimentos de observação, medição e verificação se padronizou e estabilizou sob a forma daquilo que viria a se chamar método experimental --- um sistema de regras uniformes que podiam ser seguidas por todos os estudiosos da natureza, desde que consentissem em deixar de lado as qualidades "secundárias", isto é, a impressão viva do mundo observável, e em ater-se, por assim dizer, ao esqueleto matemático das coisas e dos seres."

No livro A Crise das Ciências Européias, Edmund Husserl escreveu páginas memoráveis sobre esse processo de formalização e matematização.

"A vantagem imediata que isso representava, desde o ponto de vista do aumento quantitativo do conhecimento, era patente: o novo método constituía-se de um protocolo mais ou menos fixo e padronizado de procedimentos cognitivos uniformes que podiam ser ensinados e repetidos ilimitadamente, produzindo resultados que se integravam no discurso filosófico científico geral sem maiores dificuldades, abrindo no seio da civilização européia todo um campo de intercomunicação erudita homogênea, alheio a todas as dificuldades semânticas que, ao longo de dois milênios, tinham sido um pesadelo para os filósofos. Não é preciso dizer que, como um rastilho de pólvora, o novo método espalhou por toda a Europa uma febre de investigações e descobertas, como nunca se tinha visto antes na história humana.

O novo método não deixava, é claro, de trazer em si certas dificuldades. Algumas delas foram percebidas quase que de imediato. Gottfried Wilhelm von Leibniz, ele próprio um entusiasta e praticante do método, logo notou que a soma das "qualidades primárias" não bastava para produzir uma coisa, um ente real. Além de possuir figura, extensão, movimento e número (ou quantidade), o objeto precisava também "ser" algo, possuir caracteres definidores internos que o diferenciassem, como gênero e espécie, de todos os demais objetos."

Pegue, por exemplo, uma vaca e a meça sob todos os aspectos: some a figura, a extensão, o movimento etc. e veja se isso basta para constituir uma vaca. Não basta. Ela precisa também "ser" uma vaca, isto é: pertencer a uma espécie e gênero que a distinguem de outros seres parecidos.

"Precisava, em suma, possuir aquilo que a velha escola aristotélica chamava de "forma inteligível". Nunca apareceu uma resposta satisfatória a essa objeção."

Outras dificuldades levaram séculos para ser percebidas e formuladas claramente. Uma delas é aquela que o professor Wolfgang Smith iria chamar de "bifurcação".

Ele explica isso em vários livros, mas um resumo da explicação está no livro O Enigma Quântico, que foi publicado em português com tradução do Raphael de Paola pela VIDE Editorial.

"A divisão das qualidades primárias e secundárias, portanto dos aspectos da realidade a ser incluídos ou excluídos da observação científica, correspondia àquilo que Descartes havia chamado, respectivamente, de res extensa e res cogitans --- coisa extensa e coisa pensante ― ou "matéria" e "pensamento", a primeira constituída de figura, extensão, movimento e número; a segunda inteiramente de estados interiores do ser humano, como raciocínio, memória, sentimento, sensação etc. Ao mesmo tempo, porém, Descartes enxergava no pensamento lógico matemático a modalidade suprema da inteligência humana, a quintessência da res cogitans (coisa pensante). Ora, as qualidades ditas primárias eram precisamente aquelas que só a inteligência matemática, e não os sentidos deixados a si mesmos, podia apreender nos objetos mediante medições e comparações. A própria palavra "mensuração" traía sua origem do latim mens: "a mente". Daí resultava, inexoravelmente, que os termos da nova equação metodológica estavam invertidos: tudo aquilo que nos objetos era mais caracteristicamente mental, ou racional, era chamado de "matéria" ou "corpo", ao passo que o verdadeiramente corporal, que não podia ser conhecido pelo puro pensamento e só chegava a nós pelo impacto dos cinco sentidos, vinha rotulado como "mental". O "mundo do sr. Descartes", como então se costumava chamar o livro em que Descartes expunha a sua concepção da natureza, era, nada mais, nada menos, um mundo às avessas.

O método experimental trazia embutido, no entanto, um mecanismo de imunização automática contra o exame sério dessas dificuldades (e de inúmeras outras que não vêm ao caso agora). Na medida em que, por definição, o campo de estudo era limitado à medição e comparação das "qualidades primárias", o exame da relação delas com as secundárias, ou com qualquer outra coisa no universo, incluído o verdadeiro estatuto ontológico dos objetos de estudo, estava a priori eliminado do horizonte de atenção, e os investigadores não tinham de prestar a mínima satisfação às objeções dos descontentes. As dificuldades, em suma, podiam ser varridas para baixo do tapete sem que isto perturbasse a marcha triunfal das investigações e descobertas.

Mais ainda: o novo método importava num acréscimo de precisão matemática que fomentava, também de maneira automática e inexorável, o progresso da tecnologia em todos os setores da sua aplicação praticamente ilimitada na guerra, na indústria, na medicina, na agricultura, na administração privada e pública etc. Em poucas décadas as máquinas e equipamentos daí resultantes haviam mudado de tal maneira a face visível do mundo, que davam credibilidade aparente à noção de que a "natureza" era de fato aquilo que Descartes dizia: o sistema matematizado e organizado das "qualidades primárias". Leibniz e a ontologia que fossem lamber sabão: as urgências do homo faber (o homem fabricante) predominavam de tal modo sobre as indagações do homo theoreticus que estas já não pareciam senão jogos eruditos sem o menor interesse para o progresso geral da humanidade.

As dificuldades e incoerências, é claro, permaneciam lá, escondidas no fundo, e não deixavam de produzir efeitos culturais e sociológicos que eram invariavelmente atribuídos a outras causas ou simplesmente desconversados. Um deles foi o advento do fenomenismo, que hoje entendemos ter sido um dos maiores desastres intelectuais da história humana. Aconteceu que, incapazes de dar conta do estatuto ontológico dos objetos que investigavam, mas cada vez mais desinteressados de fazê-lo, os praticantes do novo método acabaram por assumir a deficiência como uma qualidade positiva, declarando que a natureza profunda das coisas simplesmente não era da sua conta: tudo o que lhes interessava era a organização matematizada das aparências ("fenômenos", do grego phainestai, "aparecer" ou "parecer"), de modo a poder manipulá-las tecnologicamente, produzindo efeitos repetíveis e desejáveis."

Ou seja: estamos apenas lidando com aparências que nós medimos exatamente, articulamos umas com as outras e daí tiramos aplicações tecnológicas. Essas aplicações tecnológicas, por sua vez, mudam o mundo das aparências.

Onde você vive hoje? Onde você existe hoje? Todos nós estamos separados da natureza originária [1:10] por uma camada de elementos que nasceram da tecnologia. Você vive mais no meio de objetos de fabricação humana do que no meio de objetos naturais. Entre você e a natureza originária existe uma separação imensa! Quando você vê garotos criados num meio urbano, o sujeito pode ter chegado aos trinta anos sem jamais ver uma galinha e saber de onde sai um ovo. Isto muda o mundo das aparências. E o domínio que a Ciência e a Tecnologia têm sobre esse mundo das aparências de criação humana dá a impressão, realmente, de que a natureza física é aquilo que a Ciência diz que é: o conjunto das aparências mensuráveis. E o resto, a que você só pode ter acesso mediante experiência sensorial direta, não existe: fica por conta da Pintura, das Artes, da impressão subjetiva etc. Então, o que era Natureza virou Cultura. E o que era Cultura virou Natureza.

"Desde então as perguntas filosóficas mais dramáticas e incontornáveis foram excluídas do campo da atenção científica "séria" e deixadas à curiosidade de pensadores excêntricos. Que muitos destes, como Leibniz, Pascal e o próprio Newton, estivessem também entre os mais destacados praticantes do novo método, foi explicado retroativamente como detalhe biográfico sem maior importância no quadro geral dos progressos do conhecimento.

Foi a partir desse momento, e só dele, que se produziu a separação formal entre "ciência" e "filosofia".

Então, estudando a origem dessa separação, você vê que ela, em si mesmo, não tem uma justificativa ontológica razoável: ela resultou de meras conveniências ou universitárias, ou administrativas, ou publicitárias, ou políticas. Não há mal nenhum, não há loucura nenhuma, em colocar essa separação em questão novamente, que é exatamente o que nós estamos fazendo aqui.

[INTERVALO]

Aluno: Para mim não ficou claro como vencer a alienação. O senhor disse que devemos vencer não a sociedade, mas a nós mesmos. Como se dará isso?

Olavo: Esse tema é enormemente vasto. O fenômeno da alienação é resultado da própria capacidade humana de abstração. A abstração consiste em você pensar certos aspectos do objeto, fazendo abstração de outros. No curso do processo de abstração, acontece que você se esquece de onde você operou a separação originária e começa a lidar com as partes abstraídas como se elas mesmas fossem o objeto. Ora, nós fazemos isso conosco mesmos. E fazemos, em parte, por aquele processo que o dr. Freud chamava a "repressão": certos conteúdos de consciência que nos incomodam, perturbam ou atemorizam, nós varremos para baixo do tapete como se eles não existissem e nos concentramos apenas naqueles que fortalecem o nosso sentimento de segurança. Isso mostra, de cara, a tremenda vulnerabilidade humana ao fenômeno do erro e da mentira. Quando a Bíblia diz que o diabo é mentiroso e o pai da mentira e ao mesmo tempo diz que ele é o príncipe deste mundo, isto é uma verdade: a mentira é uma das forças que move o mundo. Vocês jamais podem esquecer isso aí. Ela move o mundo na esfera da política, da história. Há mentiras que se consagram historicamente e levam três, ou quatro, ou dez séculos para serem desmascaradas. E, sobretudo as nossas mentiras existenciais, no sentido em que o Dr. Müller definia a neurose como a mentira esquecida na qual você ainda acredita. Isso quer dizer que não existe remédio ou vacina contra alienação: nós somos seres permanentemente sujeitos à alienação e temos de lutar contra ela o tempo todo. E mesmo assim você não tem garantia. A vida terrestre tem essas limitações: nós somos realmente muito fracos! Nossa inteligência às vezes nos impressiona pelo volume das suas realizações ao longo dos tempos, mas essas realizações são mais impressionantes como demonstrações de força do que como provas da capacidade humana de atingir a verdade.

Existem imensas realizações intelectuais que se baseiam inteiramente na mentira, por exemplo, Escola Analítica da qual estou falando aqui. Para mim, ela é inteira uma neurose! Ela é uma rejeição contra certos aspectos da realidade que não são domináveis pelos métodos disponíveis; então as pessoas varrem aquilo para debaixo do tapete, dizem que não existe, que não interessa. A pergunta é: como é que você sabe que não interessa? Quando você retorna aos filósofos gregos --- Sócrates, Platão e Aristóteles ---, você vê que eles estavam muito mais abertos a uma infinidade de questões que eles não compreendiam. E eles achavam normal não compreender isso. Aristóteles escreveu um livro inteiro chamado Problemas (ou Questões) que é uma lista de perguntas: são milhares e milhares de perguntas para as quais Aristóteles não tinha a menor resposta! E muitas delas não têm resposta até hoje! Se nós não nos acostumamos com esse coeficiente de ignorância, de perplexidade, e não entendemos que isso é a própria natureza da nossa forma de existência, nós nos apegamos a uma espécie de ilusão de onipotência, na qual nós só queremos olhar, só queremos saber, aquilo que nós já controlamos.

Sempre que me vejo tentado a fazer isso, eu me lembro de um amigo meu, que morava em Ubatuba e lá tinha uma praia chamada Praia Vermelha, que tinha ondas de cinquenta metros de altura, e só ele nadava lá. Na verdade, ele não nadava, ele se deixava levar pelas ondas: elas o levavam daqui para lá e ele simplesmente ficava. Ele não estava fazendo força, não estava lutando para dominar a situação: ele entendia que ali ele não podia fazer nada, ele tinha que se deixar levar. Isso aí para mim foi de certo modo uma lição inesquecível: justamente na medida em que ele estava consciente da sua fragilidade, da sua inermidade perante a vastidão daquelas forças da natureza, de algum modo ele se ajeitava no meio delas. No meio das perplexidades, das perguntas, das questões que nos assombram, nós estamos exatamente assim. E se não temos a modéstia de entender que aquilo que nós sabemos é um fragmento pequeno, é o mínimo indispensável para nossa orientação imediata, então vamos nos fechar dentro dessa ilusão de onipotência. E essa ilusão é ela própria a alienação: você se aliena e se afasta daquilo que não gosta, incomoda e atemoriza. Mas o fato é que nós vivemos no meio disso. Uma boa vacina para isto é lembrar o seguinte: você está vivo agora, mas pode estar morto daqui a dois segundos. Você não tem a menor garantia da sua subsistência: de repente um vaso estoura no seu cérebro, seu coração pára de bater, acontece alguma coisa e você morre! Se não temos sequer garantia de estar vivos nos próximos cinco minutos, que imensa estupidez não é você imaginar que pode criar uma rede de conceitos que vai dominar o conjunto da realidade. O que você pode saber sobre o conjunto da realidade são apenas princípios muito gerais da ontologia, que não dizem materialmente nada sobre nada, só distinguem o possível do impossível. Mas saber a distinção do possível e do impossível é apenas uma condição mínima de orientação na realidade e não é, de fato, materialmente falando, conhecimento sobre nada específico. [1:20]

No entanto, a idéia de se chegar a uma teoria unificada do universo físico que explique, em princípio, tudo o que se passa no universo físico, inclusive, portanto, a totalidade do mundo humano, dos pensamentos etc., é uma coisa que não pára de assombrar a mente dos cientistas e filósofos. Eles querem isso de qualquer maneira. É uma ambição absolutamente insana, porque eu tenho certeza de que essa teoria unificada, quando ela chegar ― se chegar a ser alcançada ― não vai explicar coisa nenhuma. A idéia mesma de uma concepção científica integral da realidade é uma idéia autocontraditória. O que nós podemos chamar de totalidade universal é, ela mesma, um fato concreto. E como fato concreto ela é constituída de uma infinidade de linhas causais, umas essenciais, outras acidentais, que, por definição, é inabarcável. Se você conseguisse chegar a explicar a essência do universo, ainda assim você não explicou o processo, o acontecer. Então, você tem apenas um esquema eidético muito sumário de uma essência abstrata. Essa essência abstrata não é o universo, é apenas a sua concepção do universo.

É o que dizia Chesterton: é a diferença de você botar sua cabeça no mundo ou querer botar o mundo dentro da cabeça. Essa limitação, essa modéstia, essa abertura do ser humano perante o desconhecido, perante o espantoso: essa é a inspiração originária da filosofia. Aristóteles dizia que o conhecimento começa com o espanto. E quando você vê o livro dele, As questões, você vê a infinidade de razões de espanto que ele tinha, e da qual ele não tinha a esperança de abarcar nem um milionésimo. Isso não é uma coincidência, não é um estado de ignorância provisória que nós possamos esperar superar nos próximos séculos ou milênios, ou até na infinidade do tempo. Se a humanidade continuar existindo indefinidamente, ela não vai chegar a isso. Porque o que significa a humanidade possuir um conhecimento? Significa ter uma infinidade de registros que estão nas bibliotecas, nos museus, e que idealmente poderiam ser absorvidos por uma infinidade de pessoas, das quais nenhuma em particular saberia nada daquilo. Assim, a ignorância sobre a quase totalidade do real é a nossa condição e nós temos de nos acostumar com ela.

Então, o que é um conhecimento adequado? O que é o conhecimento da verdade? É o conhecimento daquilo que é necessário e que é moralmente obrigatório você saber dentro da sua situação concreta. Isso pode parecer bastante coisa, às vezes. Se você pensar toda a vastidão dos ensinamentos que eu estou dando nesse curso, parece bastante coisa, mas é o mínimo necessário para a minha orientação no mundo. Não tem nenhuma pretensão de ser uma rede de conceitos que abarca a totalidade da existência. É apenas a totalidade daquilo que eu posso saber. Em segundo lugar, como esta vida tem uma duração limitada, o que significaria um conhecimento infinito sendo de propriedade de um ente finito que vai acabar daqui a pouco? Nós não temos nenhuma garantia de que a memória daquilo que nós aprendemos, supondo-se que a imortalidade exista, que essa memória será preservada, ou se será totalmente alterada; nós não temos a menor idéia disso. Portanto, a própria idéia de um conhecimento ilimitado, possuído por uma mente limitada, já é um contrassenso. Logo, a verdade não pode ser a totalidade do conhecimento objetivo sobre a natureza das coisas. A verdade é a adequação entre uma consciência individual vivente e a sua situação. Situação, cujo limite não é só o imediato, evidentemente, mas cujo horizonte se prolonga até os confins do universo conhecido, mas que é estruturado desde a sua posição concreta. Dessa forma, o importante não é eu querer saber tudo, mas o que preciso saber para eu reduzir o meu estado de estupidez ou de alienação ao mínimo invencível, por assim dizer.

Então é assim: lembrar-se de que o processo é abstrativo; lembrar-se de que tudo aquilo que você conhece é acompanhado de um desconhecimento sistemático, de uma ignorância proposital sobre outras coisas. Quer dizer: você tem aquela diferença entre o que Mário Ferreira dos Santos chamava de atualização e virtualização: a sua atenção se concentra em certas coisas que se tornam, para você, atuais, efetivas, e outras se tornam virtuais. Essas virtuais podem ser esquecidas. Assim, nós precisamos estar continuamente chamando aquilo de volta e de volta, para que nós não nos tornemos as vítimas da nossa própria capacidade abstrativa.

A propósito, existe aqui outra pergunta muito pertinente:

Aluno: Esse fenômeno da separação entre a filosofia e a ciência é o mesmo fenômeno que Eric Voeglin chama de perda do campo epistêmico? Quer dizer: grande porção do real ― antes passível de estudo científico ― deixa de sê-lo; deixa de pertencer ao terreno da episteme (científico) e passa a ser o da doxa (mera opinião)? O trabalho do filósofo sério, então, não consistirá em trazer de volta a episteme das realidades desprezadas?

Olavo: Mas sem a menor sombra de dúvida. Isso não apenas é obrigação do filósofo, como isso é também o nosso mecanismo de defesa contra a alienação: trazer de volta. Se você observar a maior parte das técnicas psicanalíticas que existem, elas consistem apenas em trazer de volta o conhecimento esquecido; trazer de volta a mentira esquecida para que você possa então lidar com ela.

É claro que no processo de aprendizado, ou na vida de qualquer atividade cultural, é muito mais fácil você lidar com conceitos que já estão estabelecidos e com uma semântica que você recebe pronta, do que você fazer todo o trabalho, como os antigos filósofos faziam, de puxar desde a experiência direta a linguagem apropriada para dizê-la. Quer dizer, a expressividade é a condição da sanidade humana: conseguir dizer o que se passa e não somente conseguir dizer o que já foi dito, porque o conjunto do que já foi dito é tão imenso que você pode ficar o resto da vida lidando só com esse material verbal sem nunca pensar sobre uma única realidade.

Quando leio o Tractatus Logico-Philosophicus, do Wittgenstein, tenho essa impressão de que ele só está lidando com palavras. Não há uma única realidade. A própria definição que ele faz dos fatos: "fato atomístico". Mas me mostre um "fato atomístico", pelo amor de Deus! Fato atomístico só pode existir na minha mente através do meu processo abstrativo que se recusa a enxergar a conexão dele com outros fatos. É um direito que eu tenho, mas será sempre da minha conveniência? Às vezes sim, por uma questão de facilidade, mas às vezes não, porque essa é a origem das neuroses. E, se você quiser um exemplo de neurótico, você estude a vida do Wittgenstein e você vai saber o que é um neurótico. Um neurótico é uma consciência enrijecida num circuito de idéias que o impede de ter um contato com a realidade da sua existência. É claro que uma pessoa nesse estado ainda assim pode se interessar por assuntos muito profundos. Wittgenstein se interessava por meditação budista, por exemplo, mas o que significa meditação budista numa mente que não é capaz de contar a sua própria história e de assumir responsabilidade pelo que ela mesma está fazendo?

Um indivíduo que fez toda a sua carreira na Inglaterra, sob a proteção do establishment britânico, do governo britânico, e depois trai a nação ajudando ao exército de outro país, ao qual ele não deve absolutamente nada, que nunca lhe deu nada e que àquela altura estava matando milhões de pessoas: que consciência tem essa pessoa? Ele não é capaz de julgar o que ele está fazendo. E, no entanto, está lá escrevendo sobre budismo, sobre a estrutura da linguagem, dando palpite sobre tudo e acreditando que resolveu todos os problemas filosóficos e que jogou os outros no lixo como não filosóficos. É evidente que se trata de uma neurose monstruosa, que não tem absolutamente nada para nos dar. Você pode estudar a vida do Wittgenstein como um exemplo de tudo o que não se deve fazer, e só isso. [1:30] De fato é um doente mental muito forte em certas áreas do pensamento humano, mas, na totalidade, muito fraco. O próprio Bertrand Russell o considerava um chato neurótico, que só servia para incomodar as pessoas. Mas, hoje em dia, na cultura atual, existe uma espécie de adoração por essas pessoas. Quanto mais neurótico, quanto mais impotente, quanto mais torto o sujeito, mais as pessoas fazem questão de admirar. Quer dizer, você precisa ser um doente, um neurótico ou até psicótico, senão um delinquente, um bandido, para você atrair alguma admiração. É claro que isso é um masoquismo.

Porque é o tal negócio: você pode admirar muito Nietzsche, mas você queria ser Nietzsche? Você queria ser o Wittgenstein? Acho que ninguém gostaria de ser. O que você gostaria é de ter conquistado o sucesso literário deles, mas sem precisar padecer dos sofrimentos e limitações que eles tinham. Você quer ser Nietzsche? Então você quer pegar uma sífilis e morrer louco aos quarenta e poucos anos? É isso que você quer? "Ah, não!". Então você só quer ser o Nietzsche de brincadeira. Agora, se você perguntar: você quer ser Aristóteles? Sim, é uma vida exemplar, feliz, realizada, boa. Você vê pelo testamento dele que era um homem realmente realizado, sem revolta; um homem que aceitava seu destino; que mesmo na hora da morte ainda tinha amabilidade e a gentileza de um verdadeiro cavalheiro. "É uma bela vida! Não tenho nada contra viver uma vida como a dele."

Você pode admirar Karl Marx, mas você quer ser o Karl Marx? Ver os seus filhos, uns morrendo de fome, outros se suicidando? É isso que você quer? Casar com a mulher que você mais amou no mundo e submetê-la aos piores sofrimentos, um negócio verdadeiramente sádico. É isso que você quer fazer? Não, ninguém quer ser Karl Marx. Você quer ser só o Karl Marx literário, não o de carne e osso. Então, aí nessa própria admiração, existe um princípio de alienação. Ou seja: você admira aquilo que você não quer ser de maneira alguma; então para que serve essa admiração? Você não quer incorporar as qualidades, porque as qualidades vêm junto com os defeitos. Todas essas qualidades não são entidades abstratas que você possa absorver sem conseqüências. Desse modo, nós também temos de saber a quem nós admiramos e graduar nossa admiração, conforme seja a admiração a uma pessoa, ou apenas a uma qualidade abstrativa. Você desejaria ter todo o dinheiro do Steve Jobs? Sim. Mas você desejaria ser o Steve Jobs para morrer jovem de uma doença incurável que, com todo seu dinheiro, não conseguiria vencer? "Não, então não quero!". Então você está admirando uma qualidade abstrata. E pergunto eu: "É possível você assimilar essa qualidade abstrata sem as condições existenciais dentro das quais ela se desenvolveu?". Às vezes sim, às vezes não.

Então esse negócio da alienação e também esse negócio das realidades desprezadas ― que pergunta o aluno ― tudo isso tem a ver com a nossa abertura ao conjunto da realidade, ao conjunto que nós não conhecemos, que nós sabemos que é inabarcável e que é incontrolável, exatamente como aquelas ondas de cinquenta metros onde o meu amigo nadava. É uma questão de você se sentir mais à vontade ou menos à vontade no meio do desconhecido. E isso, no fundo, é uma questão de fé. O que há por trás desse universo? Há uma potência hostil que quer ferrar comigo ou há um Deus benévolo etc.? Bom, para você acreditar no Deus benévolo você precisa de alguma coragem. Mas, para você acreditar numa potência hostil, basta você estar com medo. Então, o próprio ato de fé é uma condição de sanidade, mas, para isso, é preciso um pouco de coragem.

Aluno: O método científico se aplica apenas ao sensível, ou à res extensa de Descartes (...)

Olavo: Na verdade não é sensível. Nenhuma dessas qualidades primárias de que ele fala são propriamente sensíveis. Todas elas só podem ser obtidas por mensuração. Tudo vem da mente: não existem medidas naturais; existem proporções naturais entre vários objetos. Porém, que objeto você toma como padrão de medida e que objeto você toma como aquele a ser medido? A escolha é totalmente sua. Você pode medir a mesa com uma régua ou medir a régua com uma mesa; é uma escolha totalmente subjetiva. Então, todo esse universo dos objetos, definidos pelas qualidades primárias, são objetos mentais, na verdade; são frutos da abstração; ao passo que o mundo realmente sensível, corporal, nos chega através de cores, sons etc. Exatamente tudo aquilo que o método experimental, na época de Descartes, afastou como sendo subjetivo. Então a própria distinção que ele faz do subjetivo e do objetivo está invertida.

Aluno: (...) é uma redução da realidade ou apenas um de seus aspectos?

Olavo: Mais do que uma redução da realidade, é uma negação. É uma negação da própria condição na qual está se dando a experiência sobre a qual você está pensando.

Aluno: As disciplinas ditas metafísicas não são levadas a sério nos meios escolares. Falamos de metafísica como se fala de algo fictício. Aí não estaria um dos pilares da crise intelectual e espiritual que assola a nova geração?

Olavo: Mas sem sombra de dúvida! Na hora em que se decidiu que somente aquele esqueleto matemático da realidade seria objeto de estudo, então é claro que você disse adeus à realidade e se concentrou naqueles setores que poderia dominar intelectualmente da maneira mais fácil e da qual você poderia tirar, então, aplicações tecnológicas que mudariam a face do mundo. Isso, evidentemente, era altamente conveniente à classe burguesa que estava prosperando.

Existe um estudo de Antonio Negri ― Antonio Negri, vamos falar o português claro, é um bom "f. da p.", é um assassino, mas é um filósofo bastante competente. Ele tem o livro Descartes político em que ele demonstra que toda a obra de Descartes foi um elemento essencial para a ascensão e triunfo do poder burguês. E foi mesmo; não podemos negar isso.

Essas aplicações tecnológicas e industriais facilitavam a indústria, o comércio etc., bem como a ascensão de milhões de pessoas que estavam enriquecendo com isso. Então, havia um interesse político-econômico por trás do triunfo desse método. Ele triunfa porque ele é o mais fácil, porque é padronizado e fácil de ser transmitido e porque ele trás certas conveniências industriais, tecnológicas etc. que são favoráveis às pessoas que têm o dinheiro para atuar nessas áreas, e não porque ele expressasse a estrutura objetiva da realidade. É um triunfo social e político, não um triunfo intelectual. Na verdade, houve um dano intelectual muito grande. Agora, esse dano intelectual resultou em benefício tecnológico, o qual inicialmente favorece somente à burguesia, mas, em longo prazo, acaba favorecendo a humanidade inteira. Nós já não podemos viver sem a tecnologia e inclusive os danos que ela possa ter trazido são compensados pelas suas vantagens. Não há motivo para ter aquela revolta dum Heidegger contra a tecnologia, ou mesmo a revolta do Tolkien contra a tecnologia. Você vê, no Senhor dos Anéis, a epopéia da luta contra a tecnologia, da natureza contra a tecnologia, é uma profissão de fé absolutamente irracionalista que se enquadraria até mesmo nos cânones da análise marxista do Lukács: a destruição da razão. Nesse ponto, Lukács teria razão sob certos aspectos ao chamar tudo isso de irracionalismo; essas reações antitecnológicas e anticientíficas de irracionalistas.

Não se trata, evidentemente, de esculhambar com a ciência e a tecnologia. Ao contrário: nós estamos assimilando tudo isso, nós queremos tudo isso, só que nós queremos o resto também. Nós não vemos por que, em nome de certas vantagens tecnológicas e econômicas, abdicar-se do próprio senso da realidade da experiência sensível que se vive todos os dias. Quer dizer: agora eu vou negar as cores, os sons etc., [1:40] todo o mundo vivo da experiência, e vou passar a chamar de natureza somente aquilo que a minha própria mente mediu e articulou? É realmente uma inversão e isso tem conseqüências.

Eu vou prosseguir redigindo esta apostila, no decorrer da semana que vem, mostrando como aqueles problemas que foram varridos para baixo do tapete na época, continuaram a existir e alimentam não só crises culturais ― como as de que estamos falando agora ―, mas alimentam crises dentro do âmbito de cada ciência. Isso pode ficar escondido por bastante tempo, mas um dia aparece. Quando que aparece? Quando uma ciência alcança o seu limite máximo de desenvolvimento; quando a ciência está inteiramente desenvolvida e chega à sua perfeição: aí a crise aparece. E aqueles detalhes que foram deixados de lado, que foram varridos para baixo do tapete, reaparecem com uma potência caótica absolutamente fantástica. E foi exatamente o que aconteceu na física. Os problemas todos que o Wolfgang Smith explica no Enigma Quântico resultam do que ele chama de "bifurcação" e que na verdade é uma inversão da realidade operada entre as qualidades primárias e secundárias. Isso reaparece como crise de fundamentos da ciência. Quer dizer, essa crise de fundamentos não pode ser resolvida pelos meios experimentais que produzem os próprios resultados da física; tem de ser examinada filosoficamente. Então, isso quer dizer que todos esses resultados experimentais, os métodos, têm de ser reexaminados filosoficamente. Em suma, essa ciência é reintegrada dentro do corpo da filosofia. Só que isso só acontece com as ciências que se desenvolvem até um limite extraordinário: isso aconteceu com a física, agora está acontecendo com a biologia, com a genética.

É por isso que eu defino a ciência como a estabilização provisória de certos campos de investigação que podem, durante algum tempo, ser estudados por métodos uniformes e padronizados, produzindo conclusões que são uniformemente aceitas por todo mundo; mas que, mais dia, menos dia, levará a contradições. Quando leva a contradições tem de se recolocar filosoficamente as bases daquela ciência e então a ciência se reintegra à filosofia.

[INTERRUPÇÃO].

Então, o que eu estava explicando é que as ciências são apenas estabilizações provisórias de certos campos que foram tão bem abstraídos e delimitados que, por algum tempo, as investigações ali podem continuar procedendo por um protocolo metodológico fixo, estável, sem que surjam novos problemas de fundamentos, de conceitos básicos. Mas, quando essa ciência se desenvolver e chegar a certo pondo de desenvolvimento, a própria delimitação do terreno e a própria fundamentação dos conceitos básicos vão ser submetidas [a questionamentos]; o problema todo vai voltar e será necessário recolocar essas questões desde os seus fundamentos filosóficos iniciais. Isto quer dizer que, de certo modo, essa ciência é reintegrada na filosofia.

É claro que a busca do conhecimento científico pelos métodos estabelecidos continua, mas, ao mesmo tempo, tudo isso está sendo colocado em questão. É por isso mesmo que quase todos os grandes físicos do século XX se dedicaram a alguma especulação filosófica, levados pela própria necessidade criada pelo estado de coisas na sua ciência. Então, a separação da filosofia e das ciências foi uma coisa provisória e sempre problemática; e destinada a produzir reintegrações, ou reinserções, de tempos em tempos. Isso significa que o velho conceito de Filosofia Natural, Filosofia Experimental, está inteiramente certo: a separação é apenas funcional e provisória; não definitiva. Não reflete um corte na própria estrutura do real. Não reflete um corte entre ― como diria o Husserl ― ontologias regionais perfeitamente separadas. A distinção entre ciência e filosofia não é como a distinção ― para voltar ao exemplo do Husserl ― entre trigonometria e embriologia, em que uma pode prosseguir indefinidamente sem nada dever à outra. Não é uma distinção desse mesmo tipo. Então, a meu ver, não existem "as ciências" como campos cognitivos inteiramente autônomos. Essa autonomia é provisória, é problemática e destinada a sempre ser, de novo e de novo, recolocada em questão.

A própria formulação, para mim desastrada, do Michael Dummett, de que as ciências produzem conhecimento e a filosofia produz compreensão, na sua própria impossibilidade intrínseca esse modo de expressar as coisas já traduz exatamente aquilo que eu estou dizendo. Quer dizer, não há conhecimento sem compreensão, nem compreensão sem conhecimento. Então, não são coisas que possam ser separadas como atividades distintas. Essa é uma separação meramente formal, quando não puramente convencional. Na prática o sujeito que está buscando conhecimento, busca a compreensão imediatamente. Se bem que, para efeitos práticos da rotina dos laboratórios, ele pode prosseguir, por algum tempo, as suas investigações, sem recolocar os fundamentos filosóficos da coisa, mas, mais dia menos dia, não aquele indivíduo, não este ou aquele cientista em particular, porém aquela ciência, como um conjunto, será levada a se problematizar.

Vejam que, quando houve as comemorações dos dois milênios de Aristóteles, houve um congresso da UNESCO, e as contribuições mais espetaculares vieram, não de filósofos profissionais, mas de biólogos. Todos aqueles conceitos aristotélicos, a enteléquia, o conceito dele de alma, tudo isso voltava a ter uma atualidade extraordinária; e isso vai acontecer sempre que as ciências alcancem certo nível de desenvolvimento. Quer dizer: o desenvolvimento das ciências implica crises, e essas crises recolocam em questão os seus fundamentos e aí aquela ciência retorna ao estágio da discussão filosófica dos conceitos iniciais.

Por hoje é só. Até a semana que vem. Muito obrigado!

Transcrição: Paulo Ricardo Costa Pinto, Rimi Oliveira, Mário Jorge de Sousa Freire, Jeferson Leandro Milani.

Revisão: Eduardo Garcia de Queiroz

Footnotes

  1. Veja o texto completo do artigo Cigarras e formigas (Meus caros críticos --- II), neste site: http://www.olavodecarvalho.org/semana/120204msm.html. Há pequenas diferenças entre as anotações lidas em aula e o texto publicado no site.

  2. http://www.seminariodefilosofia.org/node/2484