Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula Nº 135
17 de dezembro de 2011
Boa-noite a todos, sejam bem-vindos.
Continuaremos aqui com a leitura das Meditações sobre Filosofia Primeira, de René Descartes, parágrafo 23 da Terceira Meditação. Diz ele:
"E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma idéia verdadeira, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz: pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é, de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma idéia de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu conheceria as carências de minha natureza?"
"E não se pode dizer que esta idéia de Deus talvez seja materialmente falsa, e que, por conseguinte, eu a possa ter do nada, isto é, que ela possa estar em mim pelo fato de eu ter carência, como disse acima, das idéias de calor e de frio e de outras coisas semelhantes: pois, ao contrário, sendo esta idéia mui clara e distinta, e contendo em si mais realidade objetiva do que qualquer outra, não há nenhuma que seja por si mais verdadeira nem que possa ser menos suspeita de erro e de falsidade".
Aqui ele está repetindo de certo modo --- mas de uma maneira invertida e como num espelho --- a idéia metafísica tradicional do infinito. Metafisicamente falando, o infinito é a idéia mais necessária de todas. Não se pode conceber que a totalidade do existente seja finita, pois isso implicaria um limite, e não existe limite se não há nada depois do limite. Portanto, depois do mundo finito deveria haver outro mundo --- [e mais outros, sucessivamente] --- e voltaríamos novamente ao mesmo problema. Este é o tipo de demonstração por absurdo, demonstrando que a pretensão da finitude da totalidade do existente é absurda. Na verdade, não é necessário demonstrá-lo, porque as pessoas instintivamente o concebem.
A única dificuldade é que, quando se fala em infinito, as pessoas geralmente pensam em infinito quantitativo, ou infinito matemático, o qual não é infinito de maneira alguma pelo simples fato de ser composto de uma única espécie de coisas --- números ---, já estando então limitado pela própria definição dos elementos que o compõem. Infinito é aquilo que é sem limites em todas as direções possíveis, em todos os sentidos possíveis; portanto, ele vem acompanhado da idéia de plenitude, do cheio.
Neste sentido, é claro que Descartes está montado na razão quando diz que a noção do infinito tem mais substância de realidade do que as outras. Porém, note bem que ele não está falando do infinito propriamente dito, e sim da idéia de infinito; ele examina essa questão não do ponto de vista metafísico do infinito, mas do ponto de vista gnosiológico --- epistemológico, por assim dizer --- do conhecimento que nós teríamos do infinito. Essa já é uma maneira nova de abordar o problema.
O infinito tem esta característica de que qualquer noção que possamos ter dele é insuficiente e falha com relação à própria realidade objetiva que o compõe. Portanto, parece-me um pouco difícil que se possa chegar a um resultado conclusivo a partir do exame, não do infinito em si mesmo, e sim da idéia que temos dele. Uma das evidências maiores de que o infinito tem, como diz Descartes, mais realidade objetiva do que qualquer outra idéia é justamente o fato de que a idéia que temos dele não o comporta, não o abrange. Dito de outro modo, não há propriamente idéia do infinito, nós não temos nenhuma idéia do infinito. Ter uma idéia é pensar alguma coisa. Se nós tentamos pensar o infinito, nós temos de defini-lo; e nós só podemos defini-lo negativamente. Porém, mesmo a definição negativa é falha porque teria de ser a negação de tudo. Negar tudo supõe que você conhece, ou sabe o que é tudo; e na verdade você não sabe. Definir o infinito negativamente pressuporia um conhecimento substantivo da totalidade, isto é, do próprio infinito. Isso significa que a estratégia negativa não funciona, e a positiva, por enumeração de qualidades, tampouco.
Este problema gerou as duas modalidades de discurso teológico: apofático e catafático. [Em apofático, o prefixo] apó- significa negação, que você procede por negação das qualidades finitas; em catafático, o [prefixo] cata- significa aquilo que vai adiante, que vai além, que é hiperbólico. Só uma combinação dessas duas estratégias permite discursar sobre o infinito. Mas se podemos discursar sobre o infinito, ao mesmo tempo em que reconhecemos que não podemos abarcá-lo conceptualmente, é porque algo nós sabemos dele --- e não é por meio conceptual.
Esta característica de ter mais realidade substantiva, que Descartes procura atribuir à idéia do infinito, é justamente o que não pode estar na idéia do infinito. A rigor, nós temos de reconhecer que não há nenhuma idéia do infinito. O infinito só pode ser conhecido mediante uma espécie de reconhecimento, ou de uma admissão que vem junto com a admissão da impotência da nossa mente para conhecê-lo. Ou seja, o infinito só chega ao nosso conhecimento como algo que se impõe e que não é pensável.
Uma característica que o infinito tem em comum com todos os objetos que existem é a de poder ser reconhecido como realidade, poder ser admitido como realidade, na verdade, exigir ser admitido como realidade, mas não poder ser pensável. Nenhum objeto é pensável na sua totalidade --- nunca --- e justamente por [isso] é que temos de admitir que ele existe extra mentis, para além da nossa mente. Isso é o que distingue realidade e pensamento. Nós sabemos que estamos falando a respeito de algo de real quando o conteúdo daquilo que dizemos não está totalmente abarcado pelo nosso discurso, mas exige a referência a algo que não é discurso.
Se falamos de Dom Quixote, nós sabemos que tudo o que compõe a realidade dele está no texto do livro que Cervantes escreveu; portanto, tudo o que eu digo a respeito dele tem por referência um discurso. Mas se falamos de Franklin Roosevelt: existe algum texto que o abarque? Não. Se somássemos tudo escrito sobre [ele], ainda faltaria alguma coisa, e pior, algumas coisas no texto não corresponderiam à realidade. Nós sabemos que estamos nos referindo a uma pessoa real porque o conteúdo dela não se limita àquilo que é pensável dela. Então essa experiência não se refere somente ao infinito, mas a qualquer coisa real.
Se aquilo que nós dizemos está contido inteiramente no nosso discurso, então a substância do ente do qual falamos se constitui [00:10] apenas de discurso como, por exemplo, quando definimos uma figura geométrica e, a partir daí, começamos a deduzir as suas propriedades. Estas propriedades estão contidas, de certo modo compactadas, dentro da própria definição e nós só vamos puxando de dentro dela as suas conseqüências, que serão justamente as propriedades da figura. Nós sabemos que esta figura tem uma realidade delimitada pela definição que demos dela.
É como se disséssemos [que] não há nada numa figura geométrica que não esteja contido na sua definição, então todas as propriedades do quadrado estão dadas na sua definição. [Em] um quadrado de papelão, o papelão não está contido na definição de quadrado: ele é uma coisa diferente da definição do quadrado. Além de ter as qualidades geométricas do quadrado em geral, o quadrado de papelão terá mais algumas propriedades físicas que não estão contidas na sua definição, que derivam da consistência do que quer que seja feito: de papelão; ou de madeira, de pedra.
O ser inabarcável pelo pensamento é a característica do real em geral. O pensamento não pode abarcar o real, ele se refere ao real. E, por isso mesmo, o discurso que se refere ao real, para ser compreendido, requer que o seu ouvinte ou o seu leitor também se refira ao mesmo real.
[Supondo que] eu fale mal da Roxane pelas costas, as pessoas só saberão se o que eu disse é verdadeiro, ou não, caso se refiram ao próprio ente real chamado Roxane, [pois] isso não está contido no meu discurso. [Se] eu digo [que] ela ronca e não me deixa dormir, existe alguma maneira de você verificar isso por meio puramente discursivos, puramente mentais? Não existe: não há uma definição de Roxane da qual você possa deduzir se ela ronca ou não; se é uma verdade, ou se é uma calúnia sórdida.
O transcender a concepção que temos dele não é uma característica do infinito exclusivamente, [mas] de tudo que é real. E nós sabemos que o infinito existe precisamente por causa disso: o que quer que procuremos nele estará lá, mas nós nunca podemos abarcá-lo conceptualmente; e a própria idéia de conceituá-lo negativamente é uma idéia auto-contraditória, porque, como eu disse, deveria implicar a negação de tudo. Mas o que é tudo? Se pudéssemos definir e ter uma concepção abrangente do que é tudo, então nós teríamos automaticamente uma concepção substantiva do infinito. Então não funciona nem a estratégia negativa, nem a positiva. Mas a tentativa de negar a existência do infinito me leva a contradições imediatas e paralisa a possibilidade do pensamento. Simplesmente para eu poder pensar, eu preciso admitir o infinito. O infinito de certo modo não se prova, nem se demonstra --- porque não há um conceito substantivo dele, nem um conceito negativo ---, mas ele se impõe, assim como, se você quer saber, qualquer ente real.
A prova da existência de um ente real deriva da existência dele, e não ao contrário. A existência prevalece sobre a prova. Como eu provo a existência de cavalos? É pelos sentidos? Se não existisse, porém, um cavalo que fosse acessível aos meus sentidos, como poderia eu ter a experiência sensorial dele? Não poderia. Portanto, a existência do cavalo é uma precondição para que haja uma prova da sua existência, e não ao contrário. Posso dizer o mesmo dos quadrados? Não, tudo o que eu possa saber dos quadrados, eu tiro de dentro do próprio conceito de quadrado que eu tenho.
É por isso que, em filosofia da matemática, sempre houve este problema de saber se as figuras matemáticas --- as figuras geométricas, por exemplo --- existem objetivamente, ou são somente criações do pensamento. Este problema é insolúvel, porque não há uma experiência extra-mental do quadrado que nós possamos ter. Edmund Husserl as chamava [de] figuras ideais --- [que] não são nem entidades físicas, nem entidades puramente mentais ---, porque elas têm [como] característica que as distingue dos entes puramente mentais propriedades objetivas que são, por assim dizer, invencíveis. Nós não podemos tirar de dentro da definição do quadrado propriedades que não estejam lá; nós não estamos livres para pensar do quadrado o que quer que desejemos pensar. [O quadrado] tem uma estrutura, esta estrutura permanece [e] isso indica que [ele] tem uma existência extra-mental.
A solução desse enigma é [que] as figuras geométricas e as entidades matemáticas têm um tipo de existência que não é a de entes, é a de leis e relações. Eles não são entes, mas têm uma realidade objetiva; não a realidade objetiva de um ente --- digamos, de um elefante, de uma pedra, de uma pessoa ---, mas, por exemplo, a das leis e relações da própria lógica.
[Tomando, por exemplo,] o princípio de identidade: uma coisa é ela mesma, eu pergunto se é possível ter uma experiência sensível da identidade. Não. É possível ter uma experiência extra-mental da identidade? Também não. É possível revogar mentalmente o princípio de identidade? Não é. A construção, por exemplo, das chamadas 'lógicas paradoxais' é toda baseada no princípio de identidade. A negação do princípio de identidade --- por exemplo: para em vez de você pensar "A = A", você pensar "A ≠ A" ---, pressupõe o conhecimento da identidade de "A". [Neste caso], se "A ≠ A", o "A" que é diferente do primeiro "A" é outro "A" ou é o mesmo "A" que é diferente de si mesmo? Isso é impensável sem o conhecimento e sem a admissão do princípio de identidade. As lógicas paradoxais são baseadas apenas na possibilidade que nós temos de fazer uma construção mental que funciona ao contrário do princípio de identidade, mas ainda baseada nele. Como poderíamos raciocinar ao contrário do princípio de identidade sem tê-lo admitido como premissa deste raciocínio? É impossível. A minha tese é [que] não existem lógicas paradoxais; existe apenas a lógica de identidade funcionando por hipótese em sentido inverso, porém ainda baseada no mesmo princípio de identidade.
Essas figuras abstratas --- figuras geométricas, números, etc. --- não têm a existência de entes, de coisas, de substâncias; não são substâncias, definitivamente, mas têm uma existência objetiva sob a forma de relações que se impõem a nós e que não podemos negar como, por exemplo, o princípio de identidade. Então não faz sentido perguntar se as figuras geométricas existem objetivamente, ou não; [mas] se elas funcionam objetivamente, ou não. É como qualquer outra lei ou relação abstrata que seja invencível.
Por exemplo, a relação da anterioridade e posterioridade. Por que [00:20] nós sabemos que o Exterminador do Futuro --- quer dizer, o sujeito que volta para o passado para modificar o seu próprio futuro --- não existe? Por que nós sabemos que isso é assim? Porque a seqüência dos momentos se impõe a nós não como a presença de um ente, mas como uma relação que é invencível, [que] não pode ser violada. O tempo que transcorre para trás é uma construção mental baseada no tempo que transcorre para frente, e não ao contrário. O simples fato de dizer "tempo" [significa] a ordem da sucessão e, na sucessão, o que vem depois [sucede] algo que veio antes, necessariamente. Então a idéia de anterioridade e posterioridade existe não como um ente, mas como uma relação necessária. Nós estamos cercados dessas relações, elas existem toda parte: a relação de causa e efeito, de anterioridade e posterioridade, de maior e menor, etc.; mas nenhuma tem a existência de um ente.
O entendimento deste texto --- entender o que é dito e poder averiguá-lo: se é verdadeiro, se é falso, se é adequado, se é inadequado --- supõe de algum modo um conhecimento de todo o repertório dos problemas filosóficos fundamentais. E isso acontece em todos os textos importantes de filosofia, eles são escritos para quem conhece este repertório; então não existe filosofia elementar, existe filosofia primeira.
Qual é a filosofia primeira? É a que trata dos problemas mais cabeludos e mais difíceis. [A partir da] filosofia segunda, terceira e quarta, começa a ficar mais fácil. Por exemplo, política é uma coisa que todo mundo pode discutir, porque não é a filosofia primeira, não é o fundamento de todo o conhecimento, mas é apenas o conhecimento de certo setor da realidade. Mas aqui nós estamos em plena metafísica. Que é a metafísica? São os princípios gerais de todo conhecimento possível. [Esse] é o conhecimento mais difícil e, como diria Aristóteles, ele é primeiro na ordem do ser, não na ordem do conhecer.
É claro que Descartes de certo modo domina essas coisas que eu estou explicando; mas, por um motivo que para mim ainda não está muito claro, ele decide olhar estes problemas não em si mesmos, porém, no espelho da mente. Não fala do infinito, mas da idéia do infinito, assim como muito mais tarde Carl Jung escreverá páginas e páginas, não [exatamente] sobre Deus, mas sobre a idéia de Deus, ou sobre a experiência interna de Deus, que é uma coisa completamente diferente. Daí nós poderemos perguntar: Essa experiência interna de Deus, ou esta idéia do infinito pode conter em si a objetividade da substância que é o seu objeto? Não, de maneira alguma. E é exatamente por isso que nós sabemos que este objeto existe: porque nosso pensamento não o abarca, apenas se refere a ele.
No caso dos entes sensíveis, podemos nos referir a eles mediante uma experiência sensível e isso parece diferenciar muito um elefante, uma pedra, do infinito, porque o infinito não pode ser experimentado sensorialmente. Existe, porém, alguma experiência sensorial que esgote o seu objeto? Impossível, mesmo porque toda experiência sensível se dá num certo momento e dentro de certa fração do tempo; mas para que isso aconteça é necessário que o objeto desta experiência exista antes da experiência e continue existindo depois dela.
[Tomemos como exemplo] uma coisa simples, um gato. Nós podemos ter experiência total do gato? Não, porque precisaríamos ter experiência dele de maneira ininterrupta desde o momento em que ele foi gerado até o momento em que ele morreu e começou a se decompor, porque enquanto está se decompondo ainda é o mesmo gato; e isso é absolutamente impossível. Portanto, a dificuldade em que nós esbarramos perante o problema do infinito é a mesma dificuldade em que esbarramos perante o conhecimento do que quer que seja. Porém, é esta dificuldade que atesta que nós estamos pensando sobre algo que existe fora de nossa mente.
A partir do momento em que Descartes decidiu só admitir como real aquilo que é claro e distinto para a sua mente, ou seja, aquilo que ele próprio pensou, nós temos um problema. O problema é que nós teríamos de encontrar as características do infinito na idéia do infinito; e isso é impossível. É por isso que esta demonstração que ele dá da existência do infinito é verdadeira, mas parece insuficiente nos termos em que ele a colocou. [Neste] pedaço Descartes está dizendo uma verdade fundamental, mas de tal maneira que não chega a ser completamente persuasivo. Nestes dois parágrafos, [Descartes] dá a impressão de estar usando um truque lógico, [mas] não está: eles não são realmente persuasivos [e] nós os aceitamos assim meio a contragosto. Parece que de fato ele não esgotou o problema, e não o esgotou precisamente porque ele está se referindo à idéia que nós temos do infinito.
Ao argumentar: "Esta idéia não poderia ter vindo parar em mim desde o nada, ou desde a minha própria invenção, mas ela requer uma causa e uma origem que me transcendem", de certo modo, ele está certo; mas está certo pelo simples fato de que a idéia que temos do infinito faz parte do infinito, não está fora do infinito. Pensar alguma coisa dentro do infinito acontece na realidade e a realidade está toda dentro do infinito, portanto, o que nós pensamos do infinito faz parte do próprio infinito.
É neste sentido que nós podemos aceitar esta demonstração de Descartes, e não no sentido causal que há um ente infinito que depositou a sua idéia na minha mente. Isso aí é verdadeiramente um non sequitur. Por que o infinito precisaria depositar sua idéia na minha mente? Por que eu não poderia estar totalmente alheio ao infinito e ele continuar existindo da mesma maneira? Eu suponho que os gatos e as tartarugas nada sabem a respeito do infinito e isso não modifica em nada a situação.
Portanto, a relação que existe entre o infinito objetivamente considerado e a idéia do infinito que eu tenho não é uma relação de causa e efeito, é uma relação de abrangente: de continente e conteúdo. A minha idéia de infinito está contida dentro do infinito, porque, se estivesse fora dele, nós teríamos de estar para além do infinito e seríamos nós mesmos o infinito porque o infinito seria uma parte de nós e estaria contido em nós. Portanto, nós seríamos maiores que o infinito, e isso leva, evidentemente, a contradições intoleráveis.
Mário Ferreira dos Santos dizia que tem coisas que se demonstra e tem coisas que se mostra. O infinito não se demonstra, mas de alguma maneira se mostra, e se mostra justamente pela limitação do nosso pensamento. Mas, como Descartes decidiu tomar como certo e como fundamental somente aquilo que está no eu pensante, ele é obrigado a esta torção e a demonstrar o infinito como causa da presença da idéia do infinito na mente dele, o que é uma coisa altamente arriscada.
Minha idéia do infinito não precisa provir do infinito, como o efeito provém da causa, porque está contida dentro dele, o que é uma relação muito mais exigente, muito mais impositiva, [00:30] muito mais compelling1 do que uma ideia de causa e efeito. Nós podemos conceber o efeito como algo que aparece depois que a causa cessou de agir, portanto a relação de causa e efeito supõe uma mediação [de] um terceiro elemento qualquer. Temos a causa, o meio e o efeito. Quando vemos a luz de uma estrela que já está extinta, a causa pode já ter desaparecido, porque entre a causa e o efeito tem o espaço percorrido; aquela luz percorre o espaço e chega a nós quando a estrela já apagou. A relação de causa e efeito não é uma relação imediata, é uma relação mediata, por isso mesmo ela não tem a mesma força da relação de continente e conteúdo. Uma coisa não pode conter a outra senão de modo simultâneo. [Em um copo d'água], por exemplo, a água está dentro do copo agora mesmo; nós não temos primeiro o copo e depois a água, [senão] a água estaria fora do copo. Então, a relação entre o infinito e a idéia de infinito é uma relação de continente e conteúdo e não de causa e efeito.
Será que Descartes não sabia disso? É claro que sabia, ele havia estudado filosofia escolástica e era perfeitamente capaz de raciocinar estas coisas, mas ele adotou a estratégia --- e permanece fiel a ela --- de tomar como critério da verdade aquilo que aparece claro e distinto à sua mente. A idéia de que só existe o que eu concebo clara e distintamente vai contra todo o senso comum; parece-me que contraria a própria condição de possibilidade da experiência humana.
Ao contrário: eu posso conceber coisas muito claras e muito distintas que não existem absolutamente e a maior parte das coisas que eu conheço não são de maneira nenhuma claras e distintas, [pois,] para que obtenhamos alguma clareza e distinção a respeito de qualquer objeto, é preciso que o conheçamos primeiro (eu não vou fazer perguntas a respeito daquilo que jamais chegou ao meu conhecimento). Desde o nascimento, começamos a receber o impacto da presença de seres que não compreendemos de maneira alguma, ou seja, que não têm nenhuma clareza e distinção dentro da nossa mente, mas que impõem a sua presença de fora.
A pergunta, então, ainda é: por que Descartes tomou essa decisão? Se nós sabemos que a presença real dos entes é condição para podermos chegar a alguma clareza e distinção a respeito deles --- a que, na maior parte dos casos, jamais chegamos ---, como é possível então tomar a clareza e a distinção mentais como critério da existência do que quer que seja? Clareza e distinção podem ser critérios de veracidade, mas só do ponto de vista da essência, ou seja, do puro raciocínio lógico; não do ponto de vista da existência. Existência é precisamente aquilo que transcende o que foi pensado a respeito. Temos aqui, de certo modo, uma inversão total do processo de conhecimento, que continua sendo, no fim das contas, o do próprio René Descartes. Por isso mesmo ele não pode contar a história com fidelidade, porque, se fosse fazê-lo, ele teria de contar como percebeu as coisas e como foi obtendo delas aquela clareza e distinção que buscava. Na sua inversão, ao colocar a clareza e a distinção como critério de existência, a ordem narrativa já está quebrada automaticamente.
A impossibilidade de uma narrativa que, ao mesmo tempo, se apresenta como narrativa é o paradoxo constitutivo das Meditações de Filosofia Primeira. O fato de ser tão enigmática é um dos motivos do seu sucesso ao longo dos séculos, porque todos os seus leitores são colocados, por assim dizer, dentro de um quebra-cabeça, que, não tendo solução, alimenta novas e novas perguntas, todas elas sem solução. De certo modo, Descartes inaugura uma nova problemática, uma nova temática da filosofia, não por ter explicado alguma coisa, mas por ter criado um enigma insolúvel. Essa é a mesmíssima coisa que acontece com Maquiavel: esses camaradas realizam o lema do Chacrinha --- "eu não vim para explicar, eu vim para confundir" --- e, na medida que confundem, evidentemente alimentam a discussão ao longo dos tempos. Eu não nego que seja uma coisa engenhosa, e até genial, mas nós podemos perguntar: para quê?
Por que [Descartes] fez assim? Não pode ter sido para os objetivos que ele proclama, porque eles não podem ser alcançados por esse meio. Então deve ter sido por algum outro objetivo. Evidentemente, estavam ali ele, seus companheiros de geração e outras pessoas empenhadas no mesmo projeto, por assim dizer, de mudança civilizacional, que não pode ser realizada somente pelos meios de René Descartes, nem somente pelos de Maquiavel, Newton, Galileu, etc.; mas o efeito do conjunto é realmente uma mudança civilizacional. Mais ainda, nenhum destes indivíduos podia controlar a mudança que desejava empreender, mas cada um colocava lá o seu pouquinho de lenha na fogueira, de modo que, no conjunto, a modificação viesse a ocorrer. Se nenhum deles tinha o controle do processo, então nenhum deles tinha também o entendimento total do processo. Este entendimento só começa a ser possível depois do encerramento deste processo. Olhando retroativamente o que aconteceu, explica-se como a humanidade letrada européia entrou durante três ou quatro séculos numa espécie de estado de fantasmagoria, do qual resultaram, por outro lado, mudanças políticas, científicas, tecnológicas absolutamente formidáveis.
Podemos dizer que um processo semelhante, de escala menor, aconteceu no século XX com relação à história do comunismo. Hoje nós podemos entender o que aconteceu, não só na própria história do que sucedeu efetivamente dentro dos países comunistas, mas o que aconteceu na mente dos seus intérpretes ocidentais. Nas duas últimas décadas --- desde a abertura dos arquivos de Moscou, que ficaram abertos durante um tempo e depois foram fechados --- aconteceu o fenômeno, que os maiores historiadores do período (que para o meu gosto são Zeev Sternhell, em Israel, e dois americanos, Stanley Payne e James Gregor) hoje reconhecem, [de] toda a historiografia ocidental enganar-se barbaramente durante um século a respeito do que estava acontecendo ali. Então isto é possível acontecer, mas só podemos adquirir o entendimento do processo depois que ele parou de acontecer. Enquanto ainda estamos no rolo, é muito difícil puxar a cabeça para fora e obter uma visão de conjunto. Às vezes isto acontece, mas, quando acontece e um [00:40] indivíduo diz o que está acontecendo, é certo que ninguém vai acreditar nele, porque ninguém vai sequer entender do que ele está falando.
A grande dificuldade com as Meditações Metafísicas de René Descartes é exatamente que elas apresentam um projeto que não pode ser realizado de maneira alguma; então elas não fazem aquilo que dizem que vão fazer, mas fazem outra coisa. E este efeito que a obra está desencadeando não se esgota nela, mas só adquire sentido quando cruzado com outros efeitos, que outras obras e outras filosofias produzidas na mesma época estão ajudando a produzir.
Um desses efeitos é aquele que eu mencionei na aula passada em resposta à pergunta do Lucas Lacerda: o surgimento da ciência moderna, que privilegia os aspectos mensuráveis da realidade e, por incrível que pareça, considera-os os únicos objetivos, dizendo que tudo mais é subjetivo, ou seja, invertendo completamente o senso da experiência real, onde nós sabemos que perceber os objetos vem primeiro, antes de podermos medi-los. Se somente o mensurável é objetivo, então só é objetivo aquilo que sai da minha mente, porque mensurar e mens é a mesma palavra, toda medição vem da mente. O que Descartes faz aqui é ajudar a produzir uma nova concepção civilizacional, na qual o que a mente criou é colocado como a realidade objetiva e o que é mensurável, ou seja, tudo aquilo que vem da própria realidade, dos próprios entes --- a sua cor, a sua própria presença física, a sua própria substancialidade --- é colocado entre parênteses. Ora, os objetos mensuráveis têm a característica de serem estáveis, como, por exemplo, as entidades geométricas. Estes objetos têm uma estabilidade que os próprios entes da natureza não têm. Por exemplo, digamos que você vê um gato sentado no sofá e diz que ele é amarelo. Mas você tem certeza de que ele é amarelo? Todos os pelinhos dele são amarelos? Quando você vai olhar de perto, [vê que] não: tem pelo branco, pelo marrom, pelo vermelho, etc., e o conjunto dá uma aparência de amarelo. Mais ainda, estes pelos estão caindo e se substituindo o tempo todo. Isto quer dizer que os objetos da percepção sensível têm esta mutabilidade e esta imprecisão que nos atestam que não podemos dominá-los mentalmente. Nós temos apenas de reconhecer que eles existem; trabalhosamente, modular o nosso pensamento por essa mutabilidade, essa quase incoerência da sua aparência; e tentar acompanhar os fatos na sua imensa variedade e mutabilidade na medida em que pudermos.
[Já] os objetos criados pela mensuração são estáveis, nunca mudam. A partir do momento em que tomamos como reais e objetivos os objetos mensuráveis, nossa experiência do mundo exterior começa a ser modulada pelas concepções matemáticas que nós mesmos geramos. Isto é muito importante, é uma coisa básica das nossas vidas: nós começamos a somente reparar, nos objetos do mundo exterior, aqueles aspectos que são estáveis, permanentes e mensuráveis; o mundo da natureza em torno adquire uma estabilidade, uma fixidez, que ele naturalmente não tem. Então nós começamos a viver num mundo de objetos estáveis, que podem ser manipulados pela mente humana para produzir os efeitos tecnológicos e científicos que desejamos, e isso passa a ser a natureza para nós. Ou seja, a natureza perde o seu aspecto enigmático, o seu aspecto de mutabilidade quase mágica, o seu aspecto caleidoscópico de mutação permanente e todo seu significado; [passa a ser] um conjunto de objetos estáveis que você mede e manipula. Só que isso não acontece apenas no mundo da ciência, isso penetra na vida cotidiana das pessoas: tudo aquilo que é mutabilidade, transformação, etc., que desminta esta estabilidade e fixidez, é remetido para o mundo da mente humana; e a natureza [passa a ser algo] estável, constituída de objetos que são duros, rígidos e imutáveis como os objetos da matemática; quando nós sabemos que é precisamente o contrário. Hoje em dia, a própria evolução das ciências nos mostra isso. Os estudos de fisiologia cerebral demonstram que a nossa mente tende a estabilizar as formas percebidas. Por exemplo, [quando] você recebe várias informações e tem várias percepções do mesmo objeto, você estabiliza uma figura na sua memória e daí para diante, ao olhar o mesmo objeto, você só vê os aspectos que já estabilizou. Isto é um processo cerebral: nosso cérebro é que faz isso, não os objetos percebidos. Hoje está mais do que demonstrado que isso é assim. A partir da época de Descartes existe então esta inversão: em vez de a mente ser o fator estabilizador, que enrijece os objetos na forma dos seus conceitos, [acontece] o contrário, o mundo enrijecido e permanente passa a ser a natureza externa e o elemento de mutabilidade e fantasia passa a ser a nossa mente.
Vocês entendem por que a noção do milagre se tornou inconcebível para a civilização presente? O mundo dos milagres existe dentro da própria natureza física. Eles são constituídos de mudanças do mundo físico que não são compatíveis com a idéia desta fixidez que a civilização científico-tecnológica meteu na nossa cabeça, de transformações que nos mostram a natureza funcionando como se fosse um sonho, onde as coisas estão a toda hora mudando de formas. Mas a natureza sempre foi assim. Por que os gregos já tinham essa experiência fundamental da natureza (physis) como o mundo da mutabilidade, e não o da fixidez? Na época de Descartes as pessoas passaram a acreditar em leis imutáveis que regem a natureza. Hoje nós sabemos que essas leis não existem, na natureza tudo funciona de maneira probabilística, pode ser assim ou pode ser assado. Hoje, depois da mecânica quântica, alguns cientistas voltaram a essa concepção da natureza, e a natureza é de fato uma imensa fantasia, é a fantasia de Deus, onde tudo pode acontecer! Mas a cultura, a sociedade ainda continua vivendo no mundo de Newton e Descartes, [no qual] é impossível uma pessoa enxergar sem pupilas; mas, quando o Pe. Pio reza, a menina [Gemma DiGiorgio] passa a enxergar sem pupilas, porque ela existe no mundo da natureza real, e não no da natureza concebida [por] Newton e Descartes. Os famosos gnósticos de Princeton diziam que não existem leis da natureza, existem hábitos da natureza, e eles estavam perfeitamente montados na razão. As coisas costumam funcionar assim, mas podem funcionar de outro jeito. Isto os gregos já sabiam; faz parte da experiência comum, da experiência humana geral da natureza. De onde saem os mitos, as lendas, as figuras fantásticas, etc.? Saem todos da natureza, [00:50] não há nenhum que não seja baseado em aparências naturais; baseados justamente na mutabilidade da natureza, onde as coisas que parecem de um jeito podem parecer de outro num outro momento.
[A resposta] à pergunta do Lucas Lacerda (que eu considero a pergunta fundamental feita ao longo de todo esse curso sobre Descartes: "Por que nós, sabendo o que aconteceu, ainda continuamos a raciocinar cartesianamente?") é que a obra de Descartes, acompanhada de várias outras: a de Galileu, a de Newton, etc., tende a fazer da natureza um bloco permanente e repetitivo --- determinado por leis imutáveis, como se fosse um mundo morto --- e a transferir para o mundo da mente humana tudo aquilo que é vivo, que se transforma.
Chegou-se ao absurdo de, no século XIX, acreditar que, enquanto o mundo da natureza é totalmente quantificável, o mundo das ciências humanas, das humanidades, não é. Ao que respondia Max Weber: "Que é mais fácil: calcular quem vai ganhar a próxima eleição, ou saber em quantos fragmentos um tijolo vai se estilhaçar quando cair no chão?" Na ordem da natureza, até hoje os meteorologistas não conseguem prever um terremoto senão com dez minutos de antecedência; e certos fatos da ordem humana, da ordem histórica, são previstos com dez, vinte anos de antecedência! (Eu mesmo venho dizendo há vinte anos tudo o que vai acontecer nas análises que faço do Brasil. Ontem eu até estava comentando com um amigo meu, o coronel Jorge, pelo telefone: "Coronel, parece que fomos nós que planejamos esta coisa toda, porque este pessoal faz tudo do jeito que a gente diz! A gente diz que eles vão fazer assim e assim e eles fazem!" Não é porque nós mandamos, é porque simplesmente nós sabemos o que está acontecendo.) Na ordem humana as coisas não são menos previsíveis do que na natureza e na natureza elas não são menos imprevisíveis do que na ordem humana. No entanto, essa divisão idiota, trouxa, de ciências naturais e ciências humanas, feita no século XIX, partia do princípio de que: na natureza tudo é matematizável, contado, pesado e medido; e na ordem humana existe a imprevisibilidade. Não, há imprevisibilidade e previsibilidade nos dois. As ciências humanas não têm porque ser menos exatas que as ciências da natureza. Na mecânica quântica nada é exato, tudo é mais ou menos. Mais ainda, na própria ordem matemática não existe sistema dedutivo perfeito, há sempre um buraco por onde entra o elemento intuitivo; nunca ouviram falar de Kurt Gödel? Vocês não vivem num mundo onde há uma faculdade de ciências exatas e uma faculdade de ciências humanas? As pessoas que têm mentalidade exata, matemática, vão para uma, e as pessoas que gostam de fantasia, etc., vão para a outra. É neste mundo que vocês estão vivendo e este é um mundo falso! O mundo verdadeiro é aquele em que a menina enxerga sem pupilas porque o Pe. Pio rezou; é o mundo onde acontecem os milagres.
Esta concepção que Descartes e os outros impuseram nesta época estupidificou a mente humana por três ou quatro séculos. Ela trouxe alguns benefícios, é claro, [pois,] para você dominar tecnologicamente um processo, é preciso estabilizá-lo mentalmente; não existe nenhuma tecnologia que possa lidar com elementos totalmente instáveis e mutáveis o tempo todo. A atenção preferencial que passaram a dar aos aspectos estáveis e repetitivos permitiu o desenvolvimento da tecnologia. Só que não existe nenhum invento tecnológico que controle as conseqüências da sua própria aplicação. A própria história da tecnologia se insere dentro da mutabilidade da natureza a que estou me referindo. A invenção de um tratamento para certa doença provoca outra doença desconhecida e assim por diante. Por isso mesmo que a ciência médica, que é uma das mais avançadas, ao mesmo tempo em que liberta a humanidade de certos males, cria outros males. Aqui nos Estados Unidos morrem um milhão de pessoas por ano por erros médicos. Isso não é controlável; qualquer doença é mais controlável do que isso. Os ataques cardíacos, o grande problema aqui, são entre quatrocentos e quinhentos mil [por ano: isso é apenas a] metade do que a medicina mata! Isso não é uma falha da medicina, [mas] é inerente à própria mutabilidade e imprevisibilidade da natureza, que só pode ser controlada sob aspectos muito locais e muito limitados, sendo que as ações que você pratica dentro desta esfera limitada têm conseqüências que vão muito além da esfera delimitada.
No entanto, esta idéia da natureza controlável chega hoje às suas últimas conseqüências quando as pessoas querem controlar o clima planetário! Digamos que o consigam, isso vai ter conseqüências absolutamente imprevisíveis, [porque] estabilizar certa área da realidade e conseguir manipulá-la mexe com tudo mais em volta. É curioso que os próprios ecologistas sejam capazes de fazer este raciocínio com relação, por exemplo, a uma fábrica que joga detritos no rio e provoca mudanças ecológicas, mas sejam incapazes de fazer o mesmo cálculo com relação à ação da ecologia como um todo. A implantação da administração tecnológica no planeta inteiro não vai ter conseqüências, não vai mexer com outras coisas que estão completamente fora da área de controle da ecologia? É claro que vai.
A noção da natureza criada na Renascença é 100% falsa. A natureza não é uma máquina, assim como o mundo humano também não é. Existem aspectos maquinais aqui e ali, mas ele está dentro de outro contexto, outro círculo de realidades que não é maquinal e que não nos obedece de maneira alguma. Nós temos de voltar à antiga experiência da natureza (physis) como o mundo da mutabilidade e entender que só existe estabilidade em dois domínios: no nível metafísico, [referente] à eternidade; e em parte da mente humana, referente à lógica, à matemática, etc.. Só existe estabilidade aí, [pois] o resto, como dizia Heráclito, tudo muda (panta rei), as coisas mudam, as coisas fluem.
[Se nós nos perguntarmos, veremos que] Descartes usou essa estratégia de inverter e falar da idéia do infinito em vez de falar do próprio infinito, sendo isto uma coisa tão flagrantemente errada do ponto de vista lógico, porque o objetivo dele não é o que está declarado aqui, de obter a certeza; mas o de criar uma nova concepção da natureza, uma nova concepção civilizacional: esta dentro da qual vivemos e dentro da qual todos os fatos comprovados que desmintam a concepção dominante têm de ser esquecidos. [Como] esses fatos não podem ser totalmente apagados, então eles são tirados do domínio público. Domínio público é aquilo que está aos olhos de todos simultaneamente (prestem atenção: têm coisas que 99% da população sabe, mas que não são acessíveis ao mesmo tempo, cada um tem de ver por si, então são coisas que estão no domínio privado, ainda que seja majoritário), só está no domínio público aquilo que vai para um negócio chamado mídia, que é aquilo que está no meio, que interconecta as várias percepções da realidade. [1:00] Ainda que todas as pessoas tenham visto milagres, elas não os vêem ao mesmo tempo, cada um [os] vê num momento e aquilo é experiência pessoal; e só é experiência coletiva aquilo que [é] validado publicamente na mídia. Fatos que sejam universalmente conhecidos, mas que não estejam na mídia, não têm validade pública, são relegados para o mundo da experiência privada e não têm autoridade.
O que aconteceu com os milagres [foi que, apesar] do seu número ser imenso, a comprovação deles ser arrasadora, só determinados grupos os viram. Quando muitos os viram ao mesmo tempo, [como], por exemplo, em Fátima, havia ali setenta mil pessoas, uma coisa assim. Que são setenta mil pessoas? É uma cidade de interior. É claro que durante um tempo a mídia deu validade pública a isso, chegaram a fazer filmes em Hollywood, etc., mas a coisa já chegava à mídia com a dúvida crítica, etc.. Não era propriamente o milagre que chegava, [mas] a notícia indireta e enfraquecida do milagre; o milagre não é mostrado.
É por isso que as pessoas vivem num mundo onde não há milagres, eles são parte da fantasia individual. Chegamos naquela situação do Groucho Marx: "Afinal, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?" Os meus olhos são apenas os meus olhos; eu estou vendo uma coisa, mas todo mundo --- quer dizer, o que aparece na mídia --- diz que eu não vi nada. Onde começou isso? Começou aqui, nesta época com René Descartes, Newton, Galileu etc..
Intervalo
Aluno: A quantas anda o livro sobre Descartes?
Olavo: O livro sobre Descartes é o que vocês estão vendo aqui. Eu comecei a escrevê-lo, mas o que eu precisava falar era coisa demais para ser escrita, então eu comecei a dar essa série de aulas sobre Descartes e dependo das transcrições delas para poder terminar o livro. Portanto, depende de vocês. Boa parte do livro vai ser constituída das transcrições corrigidas dessas aulas.
Eu já disse que eu sou o único escritor do mundo que faz rascunho oral do escrito. Primeiro eu dou as coisas na aula, depois mais tarde eu vou escrever, se der. Na maior parte dos casos não dá porque as coisas acabam ficando grandes demais, não porque eu queira, mas por causa da dificuldade intrínseca dos assuntos. Não se esqueçam que eu trabalho em condições que não são as de um professor universitário normal, que tem o ano sabático, cinco anos sem dar aula, sem fazer nada, só para escrever um livro, com um monte de gente ajudando, um monte de assistentes. Aqui não tem nada disso, nós trabalhamos na base do Terceiro Mundo.
Eu [também] tenho notado que o nível das perguntas que aparecem está cada vez melhor. Elas foram muito pertinentes, muito exatas e muito importantes. Isso é ótimo, mas ao mesmo tempo dificulta respondê-las todas na aula.
Aluno: Tipos de apreensão, segundo Descartes: (1º) a veracidade do raciocínio lógico a qual depende somente da sua coerência interna: é evidente, absolutamente certa, mas não nos acrescenta conhecimento; (2º) a verdade experiencial que é aquela que se apresenta sem ser falsa ou verdadeira: a veracidade ou falsidade deve ser buscada posteriormente e nos conduzirá a juízos de ordem probabilística apenas, nunca à evidência, nunca ao conhecimento apodíctico. Isso parece ser o mesmo problema com o qual Kant se deparou. Isso é correto? (...)
Olavo: Corretíssimo.
Aluno: (...) Kant tentou resolvê-lo criando o juízo sintético a priori. Mas, acho eu, em Kant está ausente a noção de princípios auto-evidentes. Quer dizer, ele não considerou a existência de outro tipo de apreensão, digamos assim, que difere desses dois apresentados, o qual junta o mérito do primeiro tipo. É evidente que nos oferece um acréscimo de conhecimento. A primeira tese da filosofia concreta de Mário Ferreira é um exemplo disso: "quando afirmamos alguma coisa A, tal é evidente e não apenas um raciocínio tautológico". Isso tudo é correto? (...)
Olavo: Corretíssimo.
Aluno: (...) A idéia de princípios auto-evidentes está presente em Descartes de que forma?(...)
Olavo: Ele aceita os princípios da lógica, evidentemente, então ele os toma como auto-evidentes e não tenta prová-los.
Aluno: (...) Outra pergunta: Na apreensão dos princípios auto-evidentes não há uma espécie de experiência do não-contingente?
Olavo: De certo maneira, sim. Isso aqui encaixa com uma outra pergunta...
Aluno: Na aula de hoje, você comentou que não temos a experiência do princípio de identidade. Porém, esse princípio de identidade não é uma experiência, e sim uma relação? Como entender a afirmação de Schelling: "Considerai essa lei em si mesma, conhecei o seu conteúdo, tereis contemplado Deus".
Olavo: Estas duas perguntas remetem às seguintes observações. Aquilo que se refere ao infinito e a Deus, etc., só chega a nós sob a forma de princípios abstratos. Nós podemos compreendê-los como princípios abstratos, mas nós, ao mesmo tempo, entendemos que a substância destes princípios não pode ser apenas de ordem lógica, que eles também não podem ser somente princípios, eles têm de ter uma consistência ontológica própria, embora nós só possamos conhecê-los como princípios. Por isso Schelling diz: "Conhecei o princípio de identidade, compreendei o seu conteúdo", não apenas a sua forma lógica. Ele não está dizendo que o princípio de identidade é Deus, [mas que] o conteúdo do princípio de identidade é Deus. Nós não temos, porém, acesso experiencial a esse conteúdo; mas nós entendemos que a existência dele é absolutamente necessária, que não há escapatória.
[Retornando à explicação] sobre a natureza, nós podemos dizer que só existe estabilidade, fixidez e permanência em dois domínios. No domínio da eternidade [que] por definição é imutável, mas de uma imutabilidade que abrange dentro de si todas as mudanças possíveis ocorridas na esfera temporal. Tudo o que acontece no tempo não é senão uma variação ou um aspecto de coisas que estão contidas na eternidade. Isso também nós entendemos que é absolutamente necessário que seja assim. E, por outro lado, existe uma fixidez e estabilidade no pensamento lógico humano, mas somente aí. O pensamento lógico é somente pensamento lógico, portanto é identidade formal; mas nós temos de entender que aquilo que em nós é identidade formal se refere a entidades perfeitamente existentes, que não são somente formais, mas tem um conteúdo. Este é que é o truque do negócio.
É por isso mesmo que a mera apreensão filosófica da idéia de Deus nunca é suficiente. Se ela fosse, não precisaria existir religião. Na hora que compreendêssemos o princípio de identidade e entendêssemos que ele tem um conteúdo, estaria resolvido o problema. Mas isso não basta, nós não podemos ir além da apreensão destes princípios formais, mas ao mesmo tempo sabemos que eles não se esgotam na formalidade, então deve haver outro meio de conhecimento auxiliar que nos leve a apreender algo deste conteúdo. É para isso mesmo que existe a religião, senão não seria necessário.
Por isso mesmo que a Igreja Católica diz que a admissão da existência de Deus não é matéria de fé. Nós entendemos isso pela razão natural. Entender, por exemplo, o princípio de identidade, o sentido do que Schelling está dizendo nessa sentença maravilhosa nos dá o conhecimento de Deus? De jeito nenhum. Não há conhecimento de Deus pela mente humana, só a conhecimento de Deus quando o próprio Deus se mostra para nós. O fator ativo nesta relação é Deus, não somos nós. Então é justamente para isso que existe a religião: é uma abertura para que Deus aja em nós, e aí sabermos alguma coisa. Fora disso, só sabemos na escala formal. Mas o conhecimento formal do princípio de identidade, mesmo o conhecimento formal de que esse princípio de identidade é Deus, ou deve ser [1:10] Deus, não aumenta o nosso conhecimento de Deus. Só ficamos sabendo que ele existe, e daí? Isso realmente não é nada.
Nós conhecemos Deus através da ação Dele, através dos indícios indiretos: na natureza, no simbolismo da natureza; ou mesmo nestas minhas explicações. Tudo isso ainda é conhecimento formal e indício indireto, mas existe uma maneira direta de conhecê-Lo: quando Ele age sobre você.
[Eu exponho], na minha apostila "Que é um milagre?" ["What is a miracle?", transcrição da aula de 26.03.2008, disponível em texto no Eric Voegelin Forum (tradução de resumo do texto original para o inglês de Jack D. Elliott), em http://www.voegelinview.com/what-is-a-miracle.html, e no Philosophy Seminar: em texto (tradução do texto integral para o inglês de Alessandro Cota e Bruno Mori); e em vídeo, com áudio em português e legendas em inglês] (cuja transcrição em português eu não sei onde foi parar, mas que será colocada em circulação), que a característica fundamental do milagre é, por assim dizer, de ordem semântica. Ele não é apenas um acontecimento estranho que "viola" as leis da natureza. (Em primeiro lugar, eu não acredito em leis da natureza, então como elas podem ser violadas; se só existem hábitos da natureza que a ciência apreende por percentagens, de maneira probabilística? Portanto, a expressão "hábitos da natureza" dos gnósticos de Princeton é uma coisa perfeitamente exata.) O milagre faz um sentido, ele nos diz algo e nós notamos claramente a intencionalidade da inteligência infinita que está falando conosco, que está mostrando algo para nós. Esta é a característica fundamental.
Senão qualquer coisa esquisita e inexplicável que acontecesse seria um milagre. Mas existem milagres, existem esquisitices e existem milagres demoníacos, que são coisas esquisitíssimas que não servem para absolutamente nada, só para atrapalhar. [Há uma] história do sujeito que chegou para o Thomas Green Morton e disse: "Ih, Thomas, você precisa ir lá em casa dar um "Há!" porque minha mulher foi embora, eu perdi emprego, estou doente, está tudo ferrado". Daí o Thomas foi lá, deu um "HÁ!", entortou todos os garfos, mas o cara continuou desempregado, doente e sem a mulher. Isso aí é o que chama milagre demoníaco. O mundo está cheio deles também, [e] eles também dizem algo para você: que você chegou na beirada do sentido, [que] você está a um passo do absurdo.
Ao passo que o milagre autêntico tem uma espécie de sobrecarga de sentido: o que ele diz é tanta coisa e tão auto-evidente que você não termina de explorar o sentido dele. O milagre de Fátima ajunta ali: primeiro, a mudança das aparências sensíveis vista ali por setenta mil pessoas; [a queda de] uma tempestade e as roupas ficarem todas secas em dois segundos; o fato de ter acontecido com hora marcada, quer dizer, a platéia foi convocada para isso; e isto vem junto com as profecias, que se realizam milimetricamente. O que o curso da história --- as guerras, etc. --- pode ter a ver com o negócio de chover e as roupas secarem? Absolutamente nada, aparentemente. Mas o milagre condensa e compacta essas coisas, de modo que o negócio da chuva e a dança do sol, etc. ficam como um indício exterior da profecia. A hermenêutica do milagre de Fátima não termina jamais. Que podemos retirar dali em matéria de filosofia da história, de compreensão do processo histórico? É uma coisa que não termina mais. Ao mesmo tempo temos o aspecto astronômico que está colocado a léguas de distância do acontecer histórico; mas que ali se articula um aspecto com outro. Só Deus pode fazer isso, só Deus pode articular um fato da natureza sensível com o desenrolar futuro da história. Como eu posso ver tudo isso e não entender que este é Deus falando comigo, [que] Ele está me dizendo alguma coisa, [que] não é só uma coisa estranha que aconteceu para que eu observasse? Todo milagre tem isto.
[O milagre] da menina que enxerga sem pupilas não é só um fato extraordinário da ordem médica, houve outros elementos que não têm nada a ver com oftalmologia. A oftalmologia não pode explicar e não tem nada a ver com o fato de que a menina ouviu falar do Pe. Pio e teve fé na promessa. Que tem uma coisa a ver com a outra? Absolutamente nada, não há uma relação de causa e efeito visível. E as palavras da oração que Pe. Pio usou? Também não têm nada a ver. Mas é justamente a articulação inseparável desses elementos que constitui o milagre.
Dizer que o milagre é algo que viola as leis da natureza é absolutamente falso. Supondo-se que as tais leis da natureza existissem, nós não as conhecemos; nós conhecemos uma parte ínfima dos hábitos da natureza (e olhe lá!). O objetor materialista pode dizer: "Não, nós não conhecemos, mas vamos conhecê-las, então isso está violando uma lei que será descoberta no século XXIV". É claro que este raciocínio é inteiramente absurdo, é uma presunção inválida.
Existem mais pessoas raciocinando sobre a explicação do milagre, do que sobre o que ele é, quando a própria palavra "milagre" (miraculum) diz [que] é algo para ser olhado e contemplado. Por que as pessoas, [ao invés de] tentar compreender --- olhar, contemplar e fazer a mais bela das perguntas: "Que é?" (Quid est?) ---, tentam arrumar logo uma explicação? A explicação vem depois da compreensão e a compreensão vem depois da percepção. Então a verdadeira atitude perante o milagre é mirá-lo, é olhá-lo e tentar percebê-lo tal como ele realmente é.
Aluno: Faz algumas aulas vimos que o suposto 'eu' pensante de Descartes não parece se adequar à experiência real do pensamento, uma vez que quem pensa na verdade é o 'eu' concreto (...).
Olavo: Claro! O eu pensante não existe substancialmente. Ele é uma função, uma ação [deste] eu concreto, que, na verdade, você só conhece em parte. É engraçado que as pessoas têm a presunção de conhecer até as leis universais da natureza quando na verdade não podem se conhecer totalmente sequer a si mesmas. Como eu sei que tenho um 'eu', que sou alguém? Eu não posso sabê-lo por meios mentais; a minha mente não abarca isso. Eu tenho de aceitar isso porque é um fato que se impõe a mim.
[A] isso eu chamo conhecimento por presença: é algo que está presente e é condição para a obtenção conhecimento do que quer que seja, embora este fator em si mesmo não possa ser apreendido e não possa ser conhecido. Tudo na vida é assim, o conhecimento por presença é a base de tudo o que existe e de tudo o que nós possamos conhecer.
Aluno: (...) O que pensa na verdade é o 'eu' concreto, ou seja, aquele que extrai conceitos de imagens guardadas na memória, imagens formadas a partir daquilo que inicialmente foi percebido através dos órgãos dos sentidos e, portanto, captados pelo próprio corpo desde uma realidade objetiva. O que me intriga é o seguinte: Como explicar a atividade da consciência no caso das experiências de quase morte em que não há atividade cerebral cardíaca que possa justificar a origem corporal das percepções?
Olavo: [Como eu já expliquei anteriormente], nós temos várias camadas quando falamos de 'eu'. Em primeiro lugar, é claro, o 'eu' pensante de Descartes, saber o que se está pensando; o raciocínio: "Penso, logo existo" é, de certo modo, óbvio em si mesmo, é uma experiência fácil de se ter. Por baixo disso, existe o 'eu' da memória e das percepções [1:20] sensíveis, [que] já é inabarcável. Você pode conhecer todas as percepções sensíveis que já teve? Não, mas você sabe que as teve e que elas se integram no seu patrimônio de conhecimento; então [elas] já não são algo que está dentro de você, mas é você que está dentro delas. O seu 'eu' pensante, reflexivo, está dentro de outro 'eu' maior que tem uma existência mais substantiva que a dele, mas que por sua vez é inabarcável.
Por outro lado, ao longo de toda a seqüência de experiências, de fantasias que você teve no decorrer de toda a sua vida, existe a permanência de uma identidade absolutamente inexplicável. De onde sai a sua identidade? Você não pode dizer que foi absorvida da cultura ou da sociedade; que foi porque as pessoas o chamavam pelo mesmo nome [que] você descobriu que você é você mesmo. Não, o senso de identidade não pode vir de fora, [senão] como eu vou saber que é comigo que estão falando sempre que me chamam pelo meu nome? Se eu já não tivesse esta identidade, eu não reconheceria. Então existe uma permanência de uma identidade. [Lembre que você] ainda é o mesmo [de quando] era bebê, [que] este mesmo núcleo permanece misteriosamente. Como dizia Apollinaire: "Les jours s'en vont, je demeure" (os dias vão e eu fico).
Que é este 'eu' que fica embaixo de tudo? Ele não é o 'eu' pensante, ele é a condição para que exista o 'eu' que percebe e lembra, e este, por sua vez, é condição para que exista o 'eu' pensante. Este 'eu' profundo não pode depender de percepções sensíveis porque ele é a condição para que haja percepções sensíveis. Para perceber, você precisa ser, você precisa existir. Este 'eu' efetivamente existente, que permanece ao longo da sua vida, é a condição das percepções sensíveis, e é evidente que ele pode operar sem elas, elas é que não podem operar sem ele. É isto que explica o fato de que, quando toda a atividade cerebral e cardíaca está paralisada, ainda há consciência. Esta consciência mais permanente --- que opera num nível mais profundo e que passa despercebida no dia a dia --- é a condição para que exista a consciência mais superficial do 'eu' percipiente e do 'eu' reflexivo.
Aristóteles dizia [que] a ordem do ser é inversa à ordem do conhecer. Eu conheço a mim mesmo em primeiro lugar através da reflexão; depois da reflexão eu aprofundo mais um pouco e percebo que existem por baixo dela as percepções, a memória, etc.; e vou escavando até chegar no 'eu' permanente. Mas o 'eu' permanente é o primeiro que estava lá. Pelo simples fato de ser permanente, ele tem uma prioridade ontológica sobre os outros 'eus' (ontológica, mas não epistemológica, não gnosiológica: ele é o primeiro que existe, mas não o primeiro que eu conheço).
Há quem passe a vida toda [sem] saber que tem um 'eu' permanente, chegando até a acreditar que ele não existe: [como] David Hume, vendo que tinha sensações, pensamentos e estados, mas não que existisse um 'eu' por baixo. [Mesmo que] você não perceba que tem um 'eu', a sua presença se impõe, porque ela não é para ser percebida: ela é a condição da possibilidade da percepção [e] só pode ser conhecida por admissão. É a velha [história] de Hegel na frente da montanha, que a olhava [detidamente] e falava: "É, é assim." [A presença deste 'eu'] não é um conteúdo mental, não é um pensamento que você tem, não é uma tese a ser provada; [ela] é algo que se impõe a você. Este impor-se é a característica da realidade em geral. A realidade não é um conteúdo de pensamento, o pensamento [é que] acontece dentro dela. Depois que percebemos a coisa, nós podemos até "provar" [como ela] é; mas provar para quê, se, uma vez que você a explicou, ela é auto-evidente por si mesma?
A consciência é própria do 'eu'. O 'eu' é a própria consciência.
Esta consciência, para aparecer nas condições deste mundo, precisa de todo o aparato corporal: órgãos dos sentidos, cérebro, sistema nervoso, etc.; mas [este 'eu'] pode operar sem tudo isso, porque é a raiz da consciência, ele é a condição da possibilidade da consciência. Ele não pode operar no vazio, ele precisa do mundo para funcionar; mas não podemos esquecer que este mundo, que nós estamos percebendo neste instante e que para nós é o mundo físico, tem uma existência somente fugaz: nós não percebemos nada de maneira constante e permanente, toda percepção é momentânea, quebradiça.
Como é que nós sabemos que existe um mundo permanente por baixo de tudo isso? Percebemos por admissão, porque a coisa se impõe e não temos como negá-la; se negamos, [nós] entramos no processo cartesiano de tomar o eu pensante como centro da realidade, e daí já invertemos tudo. Então só temos duas chances: a realidade ou o cartesianismo; não tem uma terceira. A realidade nós conhecemos por imposição. É o reconhecimento, a admissão da impotência da nossa mente de criar e abarcar tudo isso. Então por este meio somos levados a reconhecer que existimos dentro duma realidade imensa, infinita, que não abarcamos; e começamos a aprender com ela em vez de querer tirá-la de dentro da nossa mente.
Aluno: Eu estava lendo alguns trechos do Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier, e identifiquei muita coisa sobre as limitações das investigações científicas, do recorte da realidade que você sempre fala. Eu me lembrei do mapa da ignorância, já que eles apresentam uma coleção enorme de fatos que nunca foram devidamente estudados. Este livro tem alguma importância? (...)
Olavo: Tem uma importância extraordinária como depoimento de uma geração que finalmente descobriu que estas coisas existiam. O livro é mais uma expressão de perplexidade de pessoas que tiveram uma formação científica e depois tiveram algumas experiências que transcendiam aquilo infinitamente. Todo mundo sabe que o Pauwels foi discípulo do Gurdjieff, [o qual], com dez minutos de convivência, já lhe mostrava coisas perante a qual se via que era vã toda a sua filosofia. O Gurdjieff tomou posse, por exemplo, da Associação Médica Britânica e fez aqueles camaradas todos de palhaços, mostrou que eram todos ignorantes --- e eram mesmo.
Infelizmente, quando a mentalidade se empedra num orgulho científico imbecil, é preciso vir um Gurdjieff para castigá-los de alguma maneira. Não se pode negar que esse tipo de ensinamento às vezes tem uma função para dissolver esse empedramento, assim como às vezes a experiência das drogas faz isso, a liberdade sexual faz isso --- [se] o sujeito entra numa gandaia tipo Henry Miller durante uns meses, então toda aquela concepção rígida, fechadinha, bonitinha que ele tem vai para o brejo ---, que todas as experiências às vezes têm alguma utilidade. Mas existem maneiras menos traumáticas de aprender isso. A primeira é a humildade do reconhecimento.
Aluno: (...) Você se referiu várias vezes à astrologia, a sua importância e validade, apesar das dificuldades de tudo.
Olavo: Note bem, eu nunca falei da validade da astrologia. A própria pergunta: "A astrologia é válida ou não?", não faz sentido porque existem milhares de astrologias diferentes, não existem dois astrólogos que pensem a mesma coisa. Este, simplesmente, não é um assunto que possa ser abarcável, [mas com] algum conhecimento do fenômeno astral considerado em si mesmo --- independente do que falam os astrólogos e, portanto, apreendendo a coisa por meios não astrológicos --- é possível ter uma base para julgar determinadas técnicas astrológicas; mesmo assim em número limitado. É exatamente isso o que se tornou possível a partir da pesquisa do Michel Gauquelin. O desenvolvimento da ciência estatística, que ele usou, não tem nada a ver com a astrologia. [1:30] [Ele verificou], para seu grande espanto, que certos grupos profissionais --- que são definidos, em linguagem astrológica, pela dominância de certos planetas no seu horóscopo de nascimento --- de fato coincidiam quantitativamente com a presença maior ou menor desses planetas nos pontos decisivos do horóscopo. Ele fez esta pesquisa --- primeiro com cinquenta mil horóscopos, depois com quinhentos mil --- [contratado por] Paul Couderc, chefe do Observatório de Paris, que odiava astrologia. [Ao] entregar o resultado, ele falou: "Olha, Professor, falhou o negócio, alguma coisa aí tem!"
Se nós temos o conhecimento deste fato, então nós descobrimos algo sobre o fenômeno astral sem ser por meios astrológicos e temos [aí] já um começo de critério para começar a verificar retroativamente a validade ou não de certas técnicas astrológicas; não [a] validade da astrologia, mas da existência do fenômeno astrológico independente do que os astrólogos digam a respeito. Na própria pesquisa, já vinha indicação de que a maior parte dessas técnicas está errada, [pois] os pontos dominantes que ele via no horóscopo não coincidiam exatamente com aqueles que os astrólogos assinalavam (que coincidem com os pontos cardeais: norte, sul, leste e oeste), mas havia um deslocamento de aproximadamente vinte graus para trás. De cara, os astrólogos podem ter acertado de modo geral, mas há uma falha técnica fundamental. [No entanto], é impossível que eles estejam errados em tudo. A simples sugestão que eles deram da existência do fato que eles chamam "o planeta dominante", eu acho que é uma coisa comprovada. [Porém], comprovar uma asserção tradicional dos astrólogos, mesmo assim com alguma diferença em relação ao que eles disseram, não é validar a astrologia, mas é validar a necessidade de estudar o assunto (que é absolutamente negligenciada por todos).
Desviar a discussão do fenômeno para a astrologia em si é como dizer: "Não, nós não queremos estudar a vida animal, nós queremos estudar a zoologia". Mas a zoologia enquanto ciência --- o aspecto epistemológico da zoologia --- não é animal, [nem] tem nada a ver com a vida animal. Se eu estudo a estrutura da ciência zoológica, eu não estudo animais; [isto] é uma zoologia sem bichos. É a típica discussão boboca de acadêmico contemporâneo.
Aluno: O pessoal está perguntando se vai ter aula no Natal.
Olavo: No próximo sábado, dia 24 de dezembro, não haverá aula na véspera do Natal. E o outro, dia 31, é véspera de Ano Novo. Voltamos no dia 7 de janeiro, mas neste ínterim eu vou fazer algumas gravações que eu deixarei no Seminário aberto aos membros do Seminário, não só aos alunos. Continuem acompanhando a atividade ali porque haverá novidades durante essas duas semanas.
Então para todos um Feliz Natal, bom Ano Novo e até o dia 7.
Transcrição: Jussara Reis de Abreu, Roberto Mallet.
Revisão: Eduardo Afonso de Aguiar.
Footnotes
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Nota do Revisor: O prof. parece buscar a noção de compulsoriedade necessária. Eu o traduziria por compulsória (que tem a mesma origem latina: com+pellere) ou por obrigatória. ↩