Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 125
08 de outubro de 2011
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Nós vamos continuar aqui com a leitura das Meditações de Descartes. Vocês vão ter paciência de ir até o fim. Vamos ver como é que se lê um livro de filosofia. Levar muito meses e tem de ir devagarzinho, porque senão não percebemos as coisas. Tudo é cheio de sutilezas, especialmente quando o autor pretende que o raciocínio dele seja uma linha ininterrupta, como Descartes está pretende. E quando o lemos pela primeira vez, acompanhamos seu raciocínio e temos a impressão de que realmente está tudo muito bem demonstrado. Só aos poucos é que percebemos que a coisa tem incongruências e falhas. E é precisamente nessas falhas que às vezes está o segredo do pensamento do sujeito. Vemos aqui, por exemplo, que quando Descartes diz que reduz tudo ao pensamento, ele diz que a única coisa que conhecemos efetivamente é nosso próprio pensamento. Mas, quando ele inclui no pensar o sentir, e diz que não pode sentir em o corpo, temos aí uma ambiguidade, porque ou o corpo faz parte do meu pensamento ou, ao contrário, ele é um objeto externo, que o pensamento examina e que pode também colocar entre parênteses, como coloca entre parênteses o restante do mundo. Assim, vemos que a expressão "eu" e a expressão "pensamento" têm um sentido ambíguo. Ora, Descartes se refere à pessoa inteira dele, considerando pensamento e corpo reunidos, ora ele se refere somente ao pensamento em oposição ao corpo. Mas ele mesmo diz que o pensamento em oposição ao corpo não existe. Só existe o pensamento como um conjunto de funções que, ao abranger o sentir, afirma necessariamente a existência do corpo. Logo, o "eu penso" é apenas um ente de razão. O "eu pensante", enquanto entidade separada e distinta, não existe. Ele existe apenas como ente de razão. Podemos decidir pensar nosso próprio pensamento como se fosse separado do corpo, mas, Evidentemente, esse é apenas um exercício de nossa faculdade de abstração. Podemos pensar qualquer coisa isolada de qualquer outra, o que não quer dizer que seja possível isolá-las na realidade. Não é isto? Descartes dirá no fim das contas que o "eu pensante" enquanto isolado de toda a realidade material é a única certeza. Mas, ao mesmo tempo, vimos que este "eu" dentro da própria seqüência do raciocínio de Descartes aparece apenas como um ente de razão, não como um ente real, e então perguntamos se Descartes percebeu que estava fazendo isso. Ele está consciente de que tomou um ente de razão como se fosse um ente real e, mais ainda, como o ens realissimum (dos escolásticos), o ente mais real, que garante a realidade dos outros? Ele enganou-se a si próprio ou ele está nos enganando? Acredito que essa pergunta jamais será respondida. Não consigo chegar a crer que Descartes tramou tudo isso para nos enganar, porque deste modo seria ele o gênio maligno de toda uma civilização, pois essa demonstração da prioridade epistemológica do eu sobre o mundo foi aceita por praticamente todo mundo durante dois ou três séculos. Esse problema vai culminar em Kant. Sem esse pressuposto cartesiano a obra de Kant não existiria, e todo o idealismo alemão também não existiria. Quando Fichte diz que a única realidade é o eu, está apenas tirando uma conclusão com base numa premissa que Descartes colocou. Se Descartes tramou tudo isso, ele mesmo desempenhou o papel do gênio maligno para toda uma civilização: a civilização européia de dois ou três séculos. Isso pode ter acontecido, mas a hipótese é um pouco fantasiosa. Se Descartes fez isso, ele é um gênio muito maior do que ele mesmo imaginava, mas um gênio do mal. Ou pelo menos um gênio do engano. Ele seria o maior piadista da história universal. É mais fácil acreditar que ele se enganou de fato, que houve uma confusão. Porém, como pode haver um engano num escrito que é eminentemente autobiográfico, isto é no qual ele está contando a sua própria história. Surge desta forma a pergunta: ele está contando a história de quem? A história real dele mesmo ou a história de um ente de razão cujo conceito lhe apareceu na mente?
A confusão entre a realidade experienciada e a realidade conceitual acabou entrando tão profundamente na alma ocidental que todos nós ainda somos vítimas dela. Já contei para vocês que, para verificar se as pessoas sabem qual a diferença entre seu eu real e seu eu pensante, costumo perguntar a elas de onde elas sacam suas opiniões, qual é a origem de tal ou qual opinião que tal pessoa tem. Em cem por cento dos casos, as pessoas, em vez de rastrearem a história da origem daquele pensamento, imediatamente emitem um argumento em favor daquele pensamento. Ou seja, elas confundem a origem de seu pensamento com o seu fundamento. Se pergunto de onde você tirou tal idéia, estou perguntando como ela foi parar na sua cabeça. Foi você mesmo que pensou sozinho, você leu em algum lugar, alguém lha falou, a idéia adveio de uma associação de idéias, foi um sonho que você teve, o que foi? Não estou perguntando pelo fundamento da veracidade da idéia. A primeira pergunta é respondida pela memória. É preciso verificar na memóriad e onde a opinião veio. A segunda pergunta se dirige ao raciocínio, pede como resposta uma sequência de argumentos. São operações completamente diferentes. Uma operação é, por assim dizer, passiva. A memória, todos sabemos, não pode ser forçada. Ao contrário, para lembrar alguma coisa, temos de deixar a memória muito confortável, e deixar que a recordação venha sozinha, por assim dizer espontaneamente, ao passo que o raciocínio é uma coisa montada, criada, como se estivéssemos desenhando uma coisa no ar. Vocês devem se lembrar que no começo deste curso lhes dei o exercício do Narciso Irala, das faculdades receptivas e emissivas. Com exemplo da faculdade receptiva, ele dizia o seguinte: devemos fechar os olhos e voltar nossa atenção para todos os sons que vêm do ambiente, uma pessoa respirando, um mosquitinho voando, uma buzina ao longe, um cachorro latindo etc... Não criamos nada neste caso. E quando fazemos isso, de fato percebemos muito mais sons no ambiente do que suspeitávamos existir, simplesmente porque nos abrimos para a experiência, ficamos abertos e receptivos. Em contraste a essa atividade, Irala oferece outro exercício, das faculdades emissivas. Ele diz para fecharmos os olhos e imaginarmos tudo preto e, nesse fundo preto, devemos traçar um segmento de reta branco. Da ponta desse segmento de reta, formando um ângulo reto, devemos traçar uma linha perpendicular do mesmo tamanho, [00:10] e assim por diante, até montarmos um quadrado. Devemos perceber que este quadrado não existe como o cachorro na rua existe no caso do exercício de recepção, ele é uma criação de nosso pensamento. Essas duas faculdades não funcionam ao mesmo tempo. Há uma espécie de troca, quando uma funciona a outra deixa de funcionar. Como diria o Mário Ferreira, são atualizações e virtualizações: quando uma se torna atual, efetiva, a outra se torna virtual.
Qual dessas duas funções estava em ação quando Descartes escreveu o seu "relato"? Ele estava recordando ou estava criando? Vemos que em certos momentos é impossível discernir o que ele estava fazendo. E desta confusão entre as funções receptivas e as funções emissivas, surge o problema da duplicidade do sentido da palavra "eu" e da expressão "eu pensante" em Descartes. O "eu pensante" é o eu real que historicamente, temporalmente, pensou isto ou aquilo e chegou a tais conclusões, ou é o puro conceito de "eu pensante"? O primeiro inclui todas as funções do eu, inclusive o sentir, que por sua vez requer o corpo. O segundo não, o segundo é considerado abstrativamente, separadamente de tudo, só existe conceitualmente, não existe como dado de experiência. Ninguém pode ter a experiência do puro "eu pensante", nem por um segundo. É certo que Descartes tirou esse argumento da peça de Plauto, Os Anfitriões. Na peça de Plauto, o servo chega na casa [do seu senhor] e encontra o deus Mercúrio na porta idêntico a ele. Mercúrio assume suas funções e diz: "eu sou você e você é um farsante". E o escravo, então, chega a duvida de sua identidade, até ter a seguinte intuição. Mercúrio diz para ele (o nome ddo escravo é Sósia): Quando eu não quiser ser o está bem que você o seja. Mas quando eu quiser ser ele, você é um outro e vai levar umas pancadas se insistir no contrário. O escravo fica naquela dúvida, mas de repente percebe algo e diz: "Quando penso, é claro que sou aquele que sempre fui." De onde ele tira essa idéia? Da percepção da continuidade entre o que ele está pensando no presente e os dados de sua memória. Logo, ele está falando de seu eu real. Quando eu penso, percebo que sou o mesmo que estava pensando agora a pouco. O servo estava se referindo ao seu eu histórico, ao eu real com toda a substância das suas funções, das suas memórias, das suas emoções etc... E é claro que foi daí que Descartes tirou este argumento. Garcia Hernandez mostra que Descartes leu esse livro. A biblioteca de Descartes era muito pequena, com cerca de cem livros. Ele lia sempre os mesmos livros e um de seus livros era Os Anfitriões. Isto quer dizer que o famoso cogito, ergo sum é uma elaboração conceitual que Descartes fez a partir da experiência do escravo em Plauto, a qual em parte foi a experiência dele mesmo. Mas isto não seria um grande problema se tal experiência não tivesse tornado um hábito geral da alta cultura no ocidente durante dois ou três séculos. A idéia de que a única coisa certa é o nosso pensamento e de que o mundo possa ser colocado em dúvida, se espalhou. George Berkeley acreditava nisso, David Hume acreditava nisso, Fichte acreditava nisso, Hegel em parte acreditou nisso, Schelling também, em parte. No século XX, Edmund Russerl compartilha dessas idéias ao dizer que a única certeza é a da existência da consciência, sendo tudo mais dados que aparecem na consciência, e de tal modo que posso descrever não só a consistência do objeto mas também o seu modo de aparecimento. O modo como um elefante aparece não é o mesmo modo em que aparece um sentimento ou uma recordação. Praticamente toda a obra de Edmund Russerl é o desenvolvimento de uma técnica de descrever o modo de aparecimento dos entes, técnica que toma sempre a consciência como centro. Edmund Russerl, em suas primeiras obras, não afirma a prioridade ontológica da consciência sobre o mundo. Ele apenas parte disso como elemento técnico. Mas, numa certa etapa da sua carreira, ele adere seriamente a uma filosofia idealista. Da prioridade metodológica do eu, ele chega à afirmação ontológica da prioridade da consciência sobre as coisas. So depois de muito tempo ele desiste disso
Para se ter idéia da força desse esquema, desse "engrama", conforme a notação da psicologia -- um conjunto de representações que se impõem de uma maneira quase hipnótica, como uma imagem que víssems e que impressionasse tanto que não conseguíssemos mais tirá-la da cabeça, ao ponto de passarmos a interpretar toda a nossa experiência à luz daquele esquema -- a força desse engrama foi tal que ele entrou profundamente na mente de todos. Ele não afeta somente os filósofos e pensadores que são professadamente idealistas, que afirmam acreditar na prioridade da consciência sobre o mundo, mas penetra também na mente dos materialistas e realistas. Eles também acabam se tornando cartesianos de algum modo, ou kantianos de algum modo, mesmo a contragosto. Assinalei este fato em O Jardim das Aflições. Karl Marx, ao dizer que o mundo não é o produto da nossa consciência, do nosso pensamento, mas que a realidade básica é o trabalho humano não nota que toda a quantidade de trabalho que o ser humano fez desde do tempo do homem de Neandertal até agora não foi suficiente senão para afetar uma parte de um único planetinha do universo. Mesmo quando mandam-se astronautas pata o espaço, pergunto em que medida eles afetaram no espaço. A resposta é: em absolutamente nada. Assim, se o trabalho humano é colocado no centro da realidade, temos aí uma espécie de idealismo. Conforme Marx, a realidade básica não é dada pela natureza material, mas pelo que o homem está fazendo com ela. A natureza é vista apenas como matéria prima de um esforço humano, de uma criação humana. Então, é essa criação humana que está no centro, e não a natureza. Neste sentido, Karl Marx não é um materialista, mas um idealista objetivo coletivista. Isso nos dá idéia da profundidade da influência deste giro da atenção humana que, em vez de prestar atenção [00:20] no universo objetivo, repara em primeiríssimo lugar no eu, na consciência, na atividade pensante e toma-se essa atividade pensante como se fosse um terreno firme, sendo o resto duvidoso. Temos de deduzir o mundo do eu, e não o eu do mundo. É claro que essa atitude se volta contra o senso comum, porque uma coisa é certa: já existíamos materialmente antes de termos qualquer idéia do eu. Não é fácil identificarmos a nós mesmos centros agentes, porque no começo das nossas vidas não somos centros agentes, mas objetos passivos das ações alheias. Um bebê não pode "fazer" propriamente nada. Ele não tem uma ação, tem apenas uma reação a situações exteriores. O homem não nasce como um centro agente. Ele vai se transformando nisso gradativamente. Há um longo processo de personalização, longo, complexo e problemático. Se não fosse isso, simplesmente não haveria doenças mentais. O que são doenças mentais? Na verdade não existem doenças mentais, existem doenças do eu, doenças da consciência, por assim dizer. Podemos até definir certas patologias, como a esquizofrenia, como uma fragmentação da consciência, não propriamente da personalidade. A pessoa continua inteira, sendo o que ela é, mas ela não sabe disso. Quando um esquizofrênico diz que ele é você, ele não se transforma em você nem fisicamente nem historicamente. É uma coisa que só se dá na consciência. Lembro-me de que o dr. Muller definia a psicoterapia como reescrever a história do eu. Há uma história que se passou realmente, da qual temos memória, mas não conseguimos estruturá-la tomando como centro o eu, pois há vários centros conflitantes. E se reescreve a própria história para se reconstruir a unidade do que passou.
No século XX, há obras como a de Freud e a de Jung, que vão reconstruir todo um panorama do universo tomando como o centro a história do eu. Isso não aconteceria se não fosse a mudança de ponto de vista operada por Descartes.
É claro que na época que estudamos aconteceu muita coisa, mas tantas coisas importantes quanto o vulgo imagina. Muitas coisas que acreditamos ter origem na modernidade são muito anteriores a ela. Quando lemos nos livros de história escolares que no Renascimento dos séculos XV e XVI começou-se a reler os livros da antiguidade, que se redescobriu a beleza da literatura greco-romana, isso é absolutamente falso. Já havia nas famosas escolas monacais e catedrais da Idade Média o culto dos clássicos greco-latinos desde o século X pelo menos. Existe um livro que mencionei para você que se chama A inveja dos anjos, The envy of the angels. Aquelas escolas eram centros de formação de grandes mentalidades, de grandes inteligências. Era uma coisa tão sublime que se dizia que até os anjos se invejavam do que eles estavam fazendo ali. Já havia ali o culto da beleza clássica, o naturalismo, a idéia da natureza material inteira como epifania, como manifestação de Deus, tudo já estava presente nessas escolas dos séculos X e XI. A idéia de que foram os humanistas do século XV e XVI que trouxeram isso de volta, que é uma idéia consagrada em todos os manuais escolares e consagrada no senso comum, consagrada na cultura, é totalmente falsa. Há um grande historiador francês, chamado Roland Mousnier, que diz que a idéia de renascimento não corresponde efetivamente a uma realidade histórica, mas corresponde ao que as pessoas pensavam daquele momento histórico. Ele se nos lembra da famosa História dos Pintores, de Giorgio Vasari, onde ele relata a evolução das pinturas nos últimos séculos de tal modo que os pintores contemporâneos dele parecem ter realmente redescoberto certas belezas antigas. Isso pode ter acontecido na pintura, mas não nas letras. E não nas ciências, e não na concepção geral da natureza. Quando estudamos o conteúdo da educação naquelas escolas do século X e XI, vemos que a noção da natureza como epifania, ou seja, do estudo da natureza como um caminho para Deus, já existia cinco séculos antes de Galileu aparecer. Mas os homens da época de Galileu tinham a convicção de que representavam uma coisa totalmente nova, de que havia uma mutação. Era uma coisa que estava no espírito da época. Então, como sinal do espírito da época, podemos falar de um renascimento. Houve um renascimento na cabeça das pessoas, mas não historicamente. Foi um caso, para usar uma expressão de Mário Ferreira dos Santos, de "Colombos retardados". Estava-se descobrindo coisas que todo mundo já sabia, mas pensava-se ser tudo novidade.
No entanto, diz ainda Mousnier, não se pode dizer que essa convicção que as pessoas tinham na época era totalmente falsa, porque havia algumas coisas realmente novas acontecendo, não no domínio das letras, não no domínio do pensamento, mas havia, em primeiro lugar, o sistema copernicano. Esse era realmente uma novidade, e trouxe consequências científicas de grande porte. Em segundo lugar, houve novidades na arquitetura. Essas novidades aconteceram, porque existiu um sujeito chamado Marcino Ficino, autor de um livro belíssimo, cheio de erros, mas muito bonito, chamado Teologia Platônica, no qual ele tenta restaurar a idéia do platonismo de que as idéias, ou formas que existem na mente de Deus são o modelo deste mundo. E ele diz que através da arte o homem trabalha a natureza para que ela reflita de maneira mais clara as idéias divinas. A arte é a busca daquela perfeição que está escondida dentro da natureza, e que a arte desenterra de dentro dos seres naturais, dando-lhes a forma pela qual eles exibem a perfeição divina de uma maneira mais evidente. O homem, segundo a visão de Ficino, é uma espécie de auxiliar de Deus na criação. Ficino nasceu em Florença no tempo dos Médici, e foi um sujeito muito bem sucedido, mas os artistas, os pintores e arquitetos de Florença não souberam traduzir em obras as idéias dele. Elas foram fazer sucesso em Roma, quando os papas, especialmente Júlio II, vendo que a Igreja naquela altura estava cheia de dinheiro, decidiu usar o dinheiro para alguma coisa que prestasse e falou que daria a Roma, já que ela era o centro da irradiação [00:30] cristã no mundo, uma forma condigna com a sua missão, fazendo dela a melhor cidade do mudo. E os papas compraram a idéia de Marcino Ficino e chamaram os arquitetos, especialmente Bramanti -- que fez a Donata Bramanti, que planejou o Vaticano --, para que eles construíssem templos que refletissem a concepção platônica. Bramanti inicialmente concebeu um plano gigantesco, que não chegou a ser realizado. Ao observarmos as proporções e a grandiosidade do Vaticano, temos de lembrar que ela não é nada perto do plano que o homem tinha. Não sei se faltou dinheiro ou se faltou tempo, mas, pelo que foi realizado, vemos a grandiosidade do plano. A idéia dele era fazer um templo cuja entrada fosse um pouco escura e, na medida em que se avançasse na direção do altar, chegar-se-ia numa cúpula totalmente iluminada. A arquitetura do templo refletiria o trajeto da alma desde os entes sensíveis, onde a imagem de Deus aparece obscuramente, até a revelação mais plena da beleza divina na cúpula. Essa foi uma grande novidade, essa concepção arquitetônica era completamente diferente das do gótico e do românico. Essa idéia da cúpula totalmente iluminada é uma coisa que não existe na arquitetura gótica, mesmo porque não havia os meios técnicos de ter uma imensa cúpula sem suporte nenhum. A igreja gótica é toda cheia de colunas, que suportam outras, que suportam outras, até se chegar num centro. Mas não há uma cúpula; há o que se chama de nave. A idéia da cúpula também refletia, segundo o livro do Frank Castel, uma certa mudança da mentalidade dos papas, pois naquele momento a Igreja alcançava uma situação de domínio pela primeira vez na história. A idéia de que durante a Idade Média a Igreja dominava tudo é completamente errada. A Igreja chega a uma posição de hegemonia precisamente nessa fase, nos séculos XV, XVI, XVII. Na Igreja Renascentista, em vez da idéia de uma fuga do mundo, como observamos na igreja gótica -- quando se entra em uma igreja gótica já se está em um outro mundo, por assim dizer --, a idéa da cúpula refletia a concepção do império da Igreja sobre o mundo. A igreja é colocada em uma colina, e da colina ela impera sobre o mundo. Tudo isso era novidade na arquitetura. E, finalmente, a terceira novidade foram as grandes navegações, que de fato não aconteceram na Idade Média. Durante o período medieval a civilização européia era praticamente isolada de todas as outras, e as outras todas isoladas entre si. Quando começam as grandes navegações, a Europa interconecta o mundo inteiro. Não teríamos nenhuma idéia de "história da humanidade" se não tivesse acontecido isso. Nós podemos dizer que até o século XVI não houve nenhuma "história da humanidade". Houve a história dessa comunidade, dessa outra e daquela, cada qual simbolicamente tomada como se fosse a expressão do destino humano. É claro que podemos tomar uma determinada comunidade, contar a história dela e usá-la simbolicamente como a expressão do destino humano em geral, mas ela será apenas uma referência analógica à história da humanidade. Materialmente, ela é a história de uma única comunidade. A idéia mesma de humanidade não pode existir antes das grandes navegações. Antes, havia a idéia de humanidade apenas como um conceito abstrato. Humano é quem possui estes e esses traços, como a racionalidade, por exemplo. Mas a idéia da humanidade tomada quantitativamente, tendo em vista todos os seres humanos de toda parte, essa idéia era impossível antes. Foram as navegações que aproximaram as várias civilizações, inicialmente com experiências de grande estranheza. Existe até, em Michel de Montaigne, a referência aos primeiros índios da américa que foram levados para a França, os Tupinambú. Eles provocavam grande estranheza, há muitos relatos de como o viajante europeu, de uma impressão inicial de estranheza, vai passando para uma compreensão mais próxima dessas outras civilizações. Um exemplo disso é um livro maravilhoso de Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, onde o autor relata que os europeus começam a interrogar um garotinho asiático, malaio ou chinês, e com grande surpresa eles descobrem que as idéias essenciais do cristianismo já estavam presentes dentro da cabeça do moleque. Eles são diferentes, mas não são tão diferentes assim. Há toda a riqueza dos contatos e das descobertas mútuas.
Mas a Europa não criou somente a noção de espécie humana, a noção de história humana. Ela fez algo mais. Todos os avanços técnicos que permitiram as grandes navegações já vinham se desenvolvendo também desde o século X. Nada ali era novo. Em um certo momento, aquelas várias descobertas, todas aquelas contribuições científicas, se condensaram nas técnicas das navegações marítimas e permitiram que a Europa então conectasse as várias culturas entre si. Note que os animais, todos os animais, vivem em mundos absolutamente separados, eles se desconhecem uns aos outros. Quando um leão tomou ciência da existência de um urso polar? Quando os leões tomaram conhecimento da existência dos tigres? Só há leões só na África, e tigres somente na Ásia. Eles nunca se encontravam. No entanto, hoje se põem os dois no zoológico, um numa jaula e outro noutra, e até já se experimentou cruzar os dois para ver no que dá. Essas possibilidades não existiam. Todos os animais sempre viveram em mundos separados, naquilo que o biólogo [verificar 38:30] chamava de unvert, ou o meio em torno. Ele não vive num mundo, ele vive no seu unvert, o mundo que o circunda, e para lá da fronteira desse mundo nada existe para ele. O homem é o único ser para o qual o mundo existe, para quem o universo existe. Os outros animais não sabem que existe o universo. Porém, até o advento das grandes navegações, as civilizações viviam apenas no seu unvert, cada uma se considerando naturalmente o centro do mundo, e às vezes se considerando como a única versão aceitável da espécie humana. Há uma tribo na África, cujo nome em sua língua esqueci, mas que significa "os seres humanos". "Nós somos os seres humanos, e os outros não sei o que são, sapos, minhocas, qualquer outra coisa". Acontece que as civilizações com as quais os europeus entraram em contato nessa época não conseguiram assimilar [00:40] os valores civilizacionais que a Europa lhes levava. Em alguns lugares conseguiram, em outros lugares não. Onde esse esforço de globalização e de cristianização do mundo funcionou, as culturas locais se integraram na história européia e começaram a fazer parte dela. Não sem choques, evidentemente, às vezes com choques e violência, mas a longo prazo com enorme vantagem para aquelas culturas. Não podemos comparar o modo de vida de uma tribo africana com o modo de vida de um africano moderno integrado na civilização européia, com internet, hospitais, estradas etc. Mas em alguns lugares "a coisa não pegou". E o que aconteceu nesses lugares? Essas civilizações foram passadas para trás. Na medida em que não assimilavam o cristianismo, também não assimilavam a técnica, a ciência européia etc., e assim foram passadas para trás, o que facilitou a dominação européia do mundo inteiro, a hegemonia européia no mundo. Essas três coisas: a nova arquitetura, as navegações e o sistema copernicano, essas foram realmente as únicas novidades que surgiram na época do chamado Renascimento. E tais novidades foram de tanto impacto, que, de maneira um pouco ingênua, os intelectuais da época projetavam essa nova situação sobre o conjunto da cultura, acreditando que tudo era novo. Mesmo quando eles já estavam repetindo coisas que já eram velhas de cinco ou seis séculos. Em parte a noção de Renascimento é engano, em parte uma tradução da realidade.
Outra idéia que já estava no ar na época de Descartes era a do individualismo. Esse individualismo era baseado sobretudo na idéia de que Cristo tinha vindo para salvar os indivíduos e não as comunidades. A condição humana é simbolizada por Cristo no alto da cruz, totalmente abandonado pela comunidade e absolutamente sozinho em face de Deus-pai, e num certo instante desprovido até de Deus-pai, separado de Deus-pai. Essa idéia levou muito tempo até despertar as conseqüências históricas que ela estava destinada a despertar. No evangelho São Paulo apóstolo diz não existir para os cristãos nem gentios nem judeus nem romanos, mas somente as almas que Jesus veio para salvar. São Paulo afirma claramente a prioridade da alma individual sobre todas as culturas, comunidades, estados etc. No entanto, embora esta idéia estivesse arraigada no cristianismo, não havia os meios intelectuais e simbólicos de lhe dar uma efetividade social. Durante toda a Idade Média, o indivíduo estava imerso na comunidade. E a maneira de as pessoas se relacionarem era altamente marcada pelo predomínio do coletivo. A própria estabilidade da estrutura social, com a divisão em classes que eram quase castas, onde, como dizia Sá de Miranda, o filho de sapateiro casa com a filha de outro sapateiro e a filha do nobre casa com o filho de outro nobre. Neste ambiente não havia muito espaço para a idéia da autonomia individual. Mas, dentro das escolas do século X, começa a surgir a consciência de tal autonomia e surge algo de importância extraordinária na época a que nós chamamos Renascimento: a prece moderna, com São Francisco de Sales, Santa Teresa, Santa Catarina de Siena. Eles inventam uma modalidade de prece pela qual o indivíduo sozinho fala com Deus, o que antes não existia. Havia a prece coletiva. Essas formas da mística em que o individuo se separa do meio social e se imbui até de um desprezo pelo mundo exterior não existiam anteriormente, isso faz parte do individualismo moderno, o qual já estava no ar na época de Descartes.
É claro que o individualismo também tem um lado ambíguo, quando a idéia da autonomia do indivíduo se afirma no plano político, o que acontece na Itália, onde aparecem governos tirânicos com um indivíduo no topo. Neste caso, a afirmação de grandeza desse indivíduo implica a submissão dos demais. Este não é um individualismo para todos, mas apenas para certos indivíduos. Os outros ficam gemendo debaixo do governo tirânico, o que era impensável na sociedade medieval. Esta era uma rede de poderes entrelaçados na qual ninguém mandava muito. Se tomarmos como exemplo a Alemanha dos séculos XVI e XVII, havia ali pelo menos trezentos focos de autoridade completamente autônomos. Havia o rei e a aristocracia, cada qual mandando em seu feudo. Mas dentro de cada feudo havia corporações que tinham poder autônomo, havia cidades com leis totalmente autônomas, feitas pelo povo das próprias cidades. É como se ninguém mandasse realmente, era um verdadeiro caos. Porém, na Itália surge pela primeira vez a idéia de um governo central poderoso em cujo topo está um indivíduo, que se vê como alguém acima de todas as leis, como alguém cuja vontade é a lei. Isso é individualismo sob certos aspectos, mas é opressão coletivista sob outros, na medida em que um indivíduo manda em outros e esses outros não têm chance de afirmar sua individualidade.
Portanto, politicamente, o individualismo é ambíguo. Entretanto, do ponto de vista da espiritualidade ele não é ambíguo. Quer dizer que a idéia de um contato pessoal entre o indivíduo e Jesus Cristo, uma espécie de diálogo que é impenetrável pelos outros, de um segredo que está sendo trocado, idéia que já estava embutida em Santo Agostinho, só se torna propriedade de mais pessoas a partir das novas técnicas da prece, criadas pela Igreja moderna. É claro que, se há, por um lado, essas novas técnicas da prece aparecendo, este convite ao diálogo direto entre a alma e Jesus Cristo, de modo que cada um se transformasse num novo Agostinho, e, por outro lado, há a igreja fomentando uma forma de arte que criava uma atmosfera visível de tipo platônico, que refletia a ascensão da alma desde o mundo sensível até o mundo inteligível, então é claro que [00:50] aí o estímulo à autonomia da alma é poderosíssimo. Quando, depois, aparece a reforma protestante, os instrumentos promotores da autonomia criados pela Igreja se voltam contra ela.
Em Descartes acontece a mesma coisa: o indivíduo se coloca como o centro de construção da própria realidade; há o "eu pensante", isolado e independente do mundo externo, o qual está em contato com Deus, e colocar a idéia de infinito, de Deus, dentro da alma do indivíduo é a única garantia da existência de um mundo. Essa é uma experiência que podemos ter num dado momento, mas ela se volta contra toda a experiência anterior que tivemos, a experiência de nossa autobiografia, em que vemos nosso eu se formando gradativamente no meio de névoas. Na apostila O que é a psique mostrei como o eu vai se formando a partir da interpretação que ele faz de sua própria história. A história do eu antecede a consciência que ele tem de si mesmo. Se não tivéssemos experiências repetidas que confirmassem nossa identidade, não tomaríamos consciência dela, ainda que a tivéssemos. Uma identidade até mesmo um cachorro tem: um cachorro não é outro cachorro. Mas o cachorro só tem o eu objetivo, não tem o eu subjetivo. Ele tem um eu em si mas não um eu para si, para usarmos uma expressão de Hegel. Este eu para si se desenvolve trabalhosamente e problematicamente no indivíduo. Porém, a experiência histórica é contraditada pela experiência racional da busca do fundamento da verdade tal como aparece em Descartes. As duas experiências são verdadeiras de algum modo, mas o que Descartes faz é ficar numa zona ambígua onde ora a palavra eu reflete o eu real, histórico, que inclui o corpo, as sensações etc. e ora reflete o eu puramente abstrativo, considerado distinto de seu corpo e de suas funções, como memória, sentimento e sensações. Esse eu conceitual só existe conceitualmente. No entanto, quando Descartes afirma a prioridade desse eu sobre o eu histórico, está criado um abismo que caracterizará muito da cultura ocidental por muito tempo até o século vinte, e tal idéia penetrará na consciência de cada indivíduo, por mais alheio que ele esteja de preocupações filosóficas ou da alta cultura. O indivíduo humano não tem condições de criar os instrumentos cognitivos/intelectuais com os quais interpretará sua própria história. Ele tem de usar os instrumentos que recebeu da cultura, ainda que os tenha recebido de modo muito remoto. O indivíduo não precisa ter lido Descartes e ter começado a pensar descartianamente, pois, através de uma série de mediações, o modo cartesiano de contar sua própria história acaba chegando à alma de cada um, de modo que até hoje essa ambigüidade, essa tensão entre o eu histórico e o eu pensante existe na alma de cada um. (00:55:12) Ontem eu estava assistindo a um documentário, feito o por Ray Comfort, "180°", pois ele diz fazer um giro de cento e oitenta graus na opinião das pessoas. O documentário começa falando do holocausto e termina tratando do aborto, e, através da analogia entre uma coisa e outra, há um impacto tremendo sobre a consciência das pessoas. Ele coloca várias pessoas diante da idéia de um julgamento divino, perguntando se elas são boas pessoas. Todas respondem que são. Pergunto: de onde elas tiraram essa "boa pessoa"? Não foi de sua experiência histórica, mas do eu pensante. Elas conhecem sua história, seus pecados, e sabem que não se limparam perante Deus. Então, o entrevistador pergunta a cada uma das pessoas: "Se você morresse agora, e Deus fizesse justiça, você iria para o céu ou para o inferno?" Algumas pessoas respondem que iriam para o inferno. Se ele perguntasse para mim, eu diria que não quero justiça, mas misericórdia. Se eu depender da justiça, serei condenado. Não foi isso que Deus me prometeu. Ele prometeu que, apesar dos pecados, ele pode perdoar, porque a pena já foi paga, Jesus já pagou a pena. Mas em suas perguntas o entrevistador coloca apenas a questão da justiça, e na resposta daquelas pessoas há a ambigüidade cartesiana, pois elas não pensam a si mesmas conforme suas história, mas segundo um conceito abstrato que cada uma tem de seu eu. Vejam a que profundidade a influência dessa ambigüidade chegou. E não foi preciso que todo mundo lesse Descartes. Isso aconteceu por impregnação indireta, que se dá por meio de círculos concêntricos [de influência].
No século XIX, a idéia da ambigüidade entre eu histórico e eu pensante penetrou tão profundamente na consciência social que aparece um gênero chamado romance, que é definido pelo conflito entre o eu e o mundo. Se o eu não tem o seu próprio espaço separado, onde ele possa conceber a si mesmo separada e distintamente do mundo, não há a possibilidade do romance. No gênero romance aparece a tensão entre o eu histórico e o eu conceitual. Em Crime e Castigo, Raskólnikov está planejando um crime de uma baixeza extraordinária: ele quer matar uma velhinha indefesa para tomar o dinheiro dela. E no mesmo instante em que está tramando esse ato degradante, Raskólnikov pensa a si mesmo como uma criatura muito superior à velhinha. A concepção que ele tem dele mesmo não reflete sua verdadeira história, mas um conceito abstrato. Conceito abstrato baseado no quê? Nas potencialidades que o eu imagina ter. Ou seja, a grandeza que ele vê em si mesmo é a grandeza futura: "Se eu tiver dinheiro, vou terminar meus estudos e ser tão grande quanto Napoleão Bonaparte". Tudo isso é hipótese, só existe mentalmente. Porém, no instante em que ele a pensa, a coisa é a verdade para ele: este é o seu verdadeiro eu. E para você descer [01:00] desse pedestal, tem-se um trabalho miserável, porque é preciso retornar ao eu agostiniano, que é, como o de Descartes, um eu distinto do mundo, mas não distinto da sua própria história. É no instante em que o eu pensante aceita a realidade da sua própria história, em vez de se tornar conceito separado, em vez de tomar o eu conceitual como se fosse uma realidade, é aí que se tem de novo o eu agostiniano, o eu da confissão, de fato a pessoa humana na sua inteireza, em toda a sua complexidade. Note bem, o eu que aparece no romance nunca é um eu agostiniano, é um eu cartesiano, mas o que acontece no decurso da história? Se tomarmos como modelo supremo Crime e Castigo: qual é o destino vivido por Raskólnikov? Tão logo comete o crime, ele é roído internamente por uma culpa que ele não aceita, mas instintivamente ele vai dando à polícia todas as pistas para que ela o descubra. Ele está pedindo, por assim dizer, um confronto com a verdade, com a verdade da sua história, e a culminação do romance é o arrependimento, quando o eu pensante conta realmente sua história e diz: "é , de fato, eu fiz isso e mais aquilo e de fato eu não presto". O que é o Crime e Castigo? Como dizia Plínio Marcos, "é a longa jornada do imbecil até o entendimento", e é o longo trajeto do eu cartesiano de volta ao eu agostiniano. Evidentemente, o sentido de tudo o que estou fazendo nesse curso é exatamente isso. Ensinar as pessoas como voltar desde o conceito que elas têm do seu eu até a história verdadeira do seu eu. Assim conseguiremos salvar a autonomia gnoseológica do eu, que é de fato superior a tudo que o circunda, pois é a parte que tem contato direto com Deus, mas salvar esse eu sem glorificá-lo, fazendo com que a superioridade do eu com relação ao mundo esteja efetivamente vinculada à consciência que o indivíduo tem da sua sujeição a Deus e, portanto, da sua sujeição à realidade do mundo exterior e à realidade da sua história, de modo que o eu apreenda a sua própria realidade, que é de tipo tensional, dialética, de tipo conflitiva. Este processo é maravilhosamente descrito por Louis Lavelle.
Aluno: Quando você traz experiências de vida suas, de autores ou de amigos seus, a aula fica mais interessante e eu consigo entender alguma coisa, porém, quando você lê um texto e tenta explicá-lo, tenho dificuldade de acompanhar e acabo me desconcentrando. Por que não adotar textos mais claros e narrativas de experiências e deixar para mais tarde os analíticos e confusos, como este e o de Maquiavel?
Não posso deixar estes textos para mais tarde. Durante mais de dois anos não houve leitura de textos. Acho que o aprendizado tem de começar de forma passiva e ir se tornando ativo gradativamente. Os alunos perguntavam no começo do curso o que era para ler. Não era para ler nada. Mas agora já se passou muito tempo, e está na hora de enfrentar os textos filosóficos, por maior que seja a dificuldade. Se é qualquer dificuldade de entendimento, o chat existe justamente para dirimir as dúvidas. Não estou com pressa de terminar o texto. Podemos ficar meses com cada texto. Você vai ter de ler esse texto três vezes: uma vez sozinho, antes de vir para a aula e depois de você ver minhas explicações, você lê de novo, e ainda vão sobrar perguntas e você pode mandá-las para mim. Não há mais tempo para esperar. Vamos ler aqui as Meditações de Descartes, os Discursos de Metafísica de Leibniz e alguns outros escritos fundamentais. O enfrentamento com estes textos é absolutamente decisivo para a formação filosófica. Eu não acredito, como o Arthur Giannotti, que a filosofia é uma atividade que lida com textos, mas com problemas, com a relidade, e usa os textos como suportes. Nós estamos lendo Descartes, mas não estamos tão interressados em conhecer a filosofia nem o pensamento de determinado indivíduo, mas em saber como aquilo pode refletir na nossa própria experiência da realidade. Ainda assim os textos são elementos fundamentais do estudo. Não vamos confundir a filosofia com a cultura filosófica, mas sem a cultura filosófica não é possível exercer filosofia, a não ser dum modo que seria demasiado excêntrico. O próprio Descartes, de certa maneira, é excêntrico, porque a cultura filosófica dele é muito limitada. Embora ele tivesse estudado no colégio La Flèche, é possível ver que às vezes as concepções que ele tem da filosofia escolástica são um pouco rudimentares. Duvido que ele jamais tenha lido um texto de Sto. Tomás de Aquino do começo até o fim, nem mesmo a Summa Theologica, para não falar das quaestinones [verificar], ele só conhece a filosofia escolástica "de orelhada". Conhece as noções que eram comuns no ensino da época. Em primeiro lugar você observa que ele trata a filosofia escolástica como se ela fosse um todo, a filosofia da escola é vista por Descartes como uma doutrina unificada. Quem quer que conheça a filosofia escolástica sabe que não é assim. Não só havia correntes de opinião conflitantes, mas havia tambem métodos muito diferentes de tratar as questões: era adotada uma outra ordem, uma outra hierarquia. Esta unidade do pensamento escolástico é uma fantasia, nunca existiu. Tenho a impressão de que na época o ensino que se tinha dava mesmo essa impressão. Nós sabemos que Descartes lia muito pouco. Ele é um homem com uma cultura filosófica limitada e a sua presunção de começar tudo do zero não deixa de ser uma espécie de justificativa para sua própria incultura.
Muito tempo vai passar antes que o meio intelectual adquira um conhecimento adequado da filosofia escolástica. Por exemplo, existe o famoso livro de Maurice Devaux sobre a filosofia escolástica, escrito por volta de 1905, que foi um dos livros que inauguraram o movimento neo-escolástico. Não que inauguraram, porque ele existia desde 1870, mas a partir de então houve uma maior difusão do movimento. O panorama que ele traça da concepção que se tinha da filosofia escolástica na época, no meio universitário, é absolutamente desastroso, inteiramente inventado. Se não fosse a neo-escolástica, criada por Leão XIII na encíclica Aeterni Patris, em 1879, a filosofia escolástica continuaria existindo apenas sob a forma de fantasia, de mito. O conhecimento que Kant tem da escolástica também é totalmente mitológico; ele não sabe nada a respeito. Sabe de ouvir falar, mas não tem exatamente [01:10] aquele confronto direto com os textos. É curioso o seguinte: muitos livros escolásticos são parecidos uns com os outros sob o aspecto do método lógico com que se discute cada questão. Esse método lógico é baseado em Aristóteles, que dizia que a melhor maneira de enfrentar um problema filosófico é levantar todas as hipóteses possíveis ou pelo menos as mais razoáveis a respeito dele, e, para se fazer isso, é possível inventar hipóteses, pois nossa imaginação é ilimitada. Aristóteles sugere partir dos textos existentes, do que outras pessoas já disseram a respeito. Primeiro, fazemos uma lista das hipóteses, algumas inventadas, e depois de as confrontarmos, resolvemos o problema. Esta técnica é aplicada para cada questão isoladamente, mas no conjunto as filosofias diferem muito, e os métodos que elas adotam também diferem muito, na ordem das questões, na prioridade relativa das questões. Elas só são semelhantes na micro-estrutura, na macro não são. Além disso, é preciso ver que a confrontação sistemática de hipóteses é o próprio método científico. É claro que ele tinha de desenvolver-se primeiro na discussão de questões meramente teóricas. Se a lógica da confrontação de hipóteses não se desenvolvesse até as últimas consequências, não seria possível aplicá-la depois, por exemplo, aos dados da natureza. Se não há uma matemática desenvolvida, não haverá uma física-matemática desenvolvida. Podemos dizer que quem criou a possibilidade de método científico foram as discussões escolásticas. Elas são o próprio método científico. Apenas, depois, o assunto muda. A ciência moderna começa a adotar o mesmo sistema de confrontação de hipóteses, agora quanto a dados escolhidos experimentalmente da natureza, mas a estrutura é exatamente a mesma. Mas os filósofos da idade moderna ignoraram completamente esse fato. Quando Spinoza ou Descartes propõe tratar as coisas segundo uma ordem geométrica, essa possiblidade já existia desde o século XI pelo menos. Em Pedro Abelardo o tratamento das questões é estritamente geométrico. Você pode dizer que as sumas escolásticas são um discurso analítico construído com os resultados de várias investigações dialéticas sobre pontos específicos. Da investigação dialética sobre um assunto, tira-se uma conclusão, que, por sua vez, serve de premissa de outra investigação. São dois métodos cruzados, um método lógico-analítico e um método dialético. Este métudo é de uma precisão moderna, e toda a filosofia moderna, quando comparada com isso, deixa a desejar. Nenhuma das confusões feitas por Descartes seriam feitas por filósofos escolásticos.
Aluno: O rumo das aulas mais recentes tem me parecido um pouco confuso. Lembro que desde que comecei a acompanhar as aulas mais recentes -- sou aluno novo --, passamos dos comentários dos diálogos platônicos para a tarefa de memorizar e recitar os grandes poemas da literatura universal. Agora estamos estudando Descartes. Pois a minha dúvida é se voltaremos àquela fase referente aos poemas.
Você não está entendendo o espírito da coisa. Este curso não tem uma sequência pré-determinada. Meu método é polifônico, articulando vários elementos aparentemente muito estranhos uns aos outros para que os alunos apreendam a integração que há entre eles. Não acredito que seja possível uma exposição seriada da filosofia; foram tentativas que se fizeram em outras épocas. Os escolásticos tentaram, Descartes tentou, mas eu não acho que isso seja possível nem conveniente hoje em dia. Isso se fazia na época em que se acreditava que era possível uma doutrina abrangente universalmente válida sobre a realidade. O objetivo da filosofia não é construir uma doutrina que responda a todas as perguntas, mas criar um senso de orientação no conjunto da cultura, com o conjunto das informações disponíveis. E, sobretudo, nos últimos dois séculos houve um progresso enorme da ciência histórica e ele tem de ser levado em conta. Muito da nossa visão da realidade é definido por esse aporte da história. A história é o negócio menos sistemático que existe, pois as coisas não acontecem numa ordem lógica. Elas acontecem com uma simutaneidade muito confusa, que é o próprio tecido da realidade. Isso quer dizer que nos permitimos ir e vir entre diferentes temas, de modo que vocês aprendam exatamente que há [uma variedade de fatos acontecendo ao mesmo tempo]. Nesta mesma aula, veja os diferentes elementos de que me vali. Usei elementos de história da lógica, de história da ciência, de história da arquitetura, de história da arte, de história da religião. Tudo isso para tentar dar para vocês uma idéia do que estava acontecendo realmente numa certa época e de como o que aconteceu naquela época ainda está presente na nossa vida. Entram também elementos de psicologia, de psicanálise etc. Não é possível e não é conveniente fazer disso uma exposição seriada. São várias melodias que se cruzam. Se você é um aluno novo, está evidentemente assistindo às aulas desde o começo, em série, e está ao mesmo tempo assistindo esta aula presentemente. Só quando você juntar as duas correntes é que você vai pegar a estrutura do todo.
Quando eu digo que não há uma ordem seriada, não quer dizer que não haja ordem alguma. Há uma estrutura muito nítida. E você ficar um pouco desorientado no conjunto é muito bom; esta desorientação é que vai impeli-lo a buscar entender as coisas mais profundamente. Logo no começo do curso adverti: quem não tem tolerância para com o estado de dúvida, não vai poder estudar filosofia jamais, porque a maior parte das questões filosóficas não estão resolvidas e algumas talvez não sejam resolvidas jamais. O próprio Aristóteles já dizia que o primeiro passo é juntar todas as hipóteses; o que é juntar todas as hipóteses senão ficar com uma coleção de dúvidas e depois ter de tratar uma por uma, articular uma com a outra, o que vai dar um trabalho miserável. A impressão de obscuridade e desorientação é absolutamente inevitável.
Quanto aos poemas, este curso começou com a exigência de que o aluno adquirisse o máximo de cultura literária que pudesse. Isso não quer dizer que vamos tratar de assuntos literários aqui, mas o domínio histórico da arte literária é uma conditio sine qua non para o exercício da filosofia. O acervo de recursos lingüísticos que podem ser necessários para a filosofia é ilimitado. Acabamos de ver a dificuldade narrativa que um grande espírito, uma grande inteligência, como Descartes, encontrou, que ele se atrapalhou como se fosse atravessar um mata-burro. Ele quer ao mesmo tempo contar a história dele e tirar dela certas conclusões de ordem universal, então passa da clave narrativa para a clave dedutiva. [01:20] E ele de fato se atrapalha no meio do caminho, e, se ele se atrapalha, porque nós não deveríamos nos atrapalhar também?
Aluno: Há tempos dedico meu esforço ao estudo do tema arte, e, após algumas leituras, me ocorreu uma espécie de sistema que poderia servir de critério para uma crítica de arte bem fundamentada. Partindo do pressuposto de que o artista está sendo totalmente honesto à sua intuição, os principais pontos para se formar uma boa crítica são: 1. capacidade revelativa do objeto escolhido, 2. ponto específico onde o artista foca sua atenção, 3. sensibilidade de apreensão e retenção [do objeto] na memória do artista, 4. capacidade expressiva do gênero artístico escolhido e desenvoltura técnica do artista, 5. capacidade da matéria prima de se moldar segundo determinações do artista, 6. nível de profundidade da obra, indo do transcendente ao subumano.
Olavo: Esse é um bom critério, mas não necessariamente o único. Você precisa ver que qualquer tipo de atividade cognitiva que você esteja desenvolvendo tem aquelas três exigências que estão presentes em todas as ciências, segundo os escolásticos: o objeto material da ciência, que é a arte; o objeto formal motivo, que são as perguntas específicas que você vai fazer sobre aquele objeto, diferenciando seu enfoque de outros, que teriam o intuito de responder a outras perguntas; e o objeto formal terminativo, que diz respeito à finalidade da resposta àquelas perguntas. Seu método é bom, mas eu sugiro que você esclareça, primeiro, o objeto formal motivo, segundo, quais são as perguntas que você está fazendo sobre a obra de arte e no que que elas se distinguem de outras perguntas possíveis, de outros enfoques possíveis, e terceiro, qual é o resultado final que você pretende obter, a que tipo de conclusões você pretende chegar. É uma crítica valorativa? Você pretende valorar a obra de arte de acordo com esse critério? Ou quer apenas compreendê-la mais profundamente? Segundo, o seu estudo visa mais a obra de arte individual, ou você pretende que as várias conclusões que você obtenha do estudo dessas várias obras possam se encadear numa explicação histórica ou sociológica?
Aluno: Professor, o senhor conhece a obra Meditações sobre os vinte e dois arcanos maiores do Tarô*, de autor desconhecido, com apresentação do cardeal Hans Urs von Balthazar? Se conhece, poderia falar algo da obra?*
Esse livro tem muita coisa maravilhosa. O simples fato de se dar uma interpretação cristã aos vinte e dois arcanos maiores do Tarô já é uma grande novidade*.* Mas o autor é influenciado demais por Kant, e isso é um problema. É uma crítica que poderia se fazer, até certo ponto, ao próprio Hans Urs von Balthazar. Pessoalmente, penso que Kant atrapalha tudo. Onde quer que se entre com problemas kantianos, se cria dificuldades que, no fundo, são desnecessárias. Inclusive, o autor do livro faz explicitamente uma defesa de Kant, defesa que é possível, admissível, mas que não corresponde à verdade histórica. É preciso lê-lo como se lê René Guénon, como algo que nos enriquece muito, mas que não é um guia seguro da realidade.
Aluno: O senhor disse na aula 102 que hoje temos mais experiência de auto-observação do que se poderia ter no tempo de Descartes, em razão do grande desenvolvimento da narrativa de ficção, citando, por exemplo, os romances de Proust e Joyce. Essa afirmação se refere também a gêneros literários do passado, a Sto. Agostinho e Shakespeare? Li quase tudo de Shakespeare e a minha impressão é de que a sondagem da alma humana em suas peças parece a luz de um relâmpago que corta o céu escuro, enquanto o acesso de Dostoievsky à alma é mais detalhado pelo tempo prolongado de expressão.
É claro que, quando digo que temos mais experiência de auto-observação, estou me referindo a um fato histórico simplesmente. Temos mais material à nossa disposição, o que não quer dizer que qualitativamente a nossa auto-observação será necessariamente melhor que a de um Shakespeare. Temos uma maior riqueza de meios, o que quer dizer que temos uma coleção maior de perguntas e de perspectivas, de pontos de vista desde os quais podemos olhar nós mesmos. E temos mais material de observação. Mas isso não fará de cada um de nós um Shakespeare. Mais experiência significa apenas mais fatos, não mais compreensão necessariamente. Ao contrário. Vemos, por exemplo, que a psicologia do século XX comete grandes enganos por privilegiar demais um determinado ponto de vista, por ter, por assim dizer, um objeto formal motivo demasiado limitado. Se tomarmos a obra inteira do Dr. Freud, veremos que ela é toda baseada numa única pergunta: como as relações do ser humano com seu pai e com sua mãe, consideradas desde o ponto de vista instintual, influenciam o restante de sua vida? A pergunta é limitadíssima. Ele não leva em conta, absolutamente, o fator genético, o fator hereditário ou o fator cultural e lingüístico, que depois outros psicanalistas como Franz Alexander vão desenvolver de modo tão brilhante. Ele não leva em conta o material cultural, acumulado pela história, que vai formar o imaginário do indivíduo, fator levado em conta por Jung. São inúmeras as perguntas que Freud não fez. É claro que não podemos acusar o indivíduo de não responder às perguntas que ele não fez, mas podemos entender que a pergunta feita é demasiado limitada, e o alcance da resposta também será limitado.
Aluno: Acreditar que só o eu pensante existe e que o resto do mundo pode ser posto em dúvida é o que se chama solipcismo?
É, exatamente.
Aluno: Estou muito interessado na fenomenologia de Husserl e de seus continuadores. Contudo, só tenho encontrado textos sobre a fenomenologia, e gostaria mesmo é de vê-la em ação. Qual estudo ou texto fenomenológico você pode me indicar?
A obra de Husserl é imensa, imensa e humanamente inabarcável, porque Husserl sabia taquigrafia, e ele pensava por escrito. Temos registro de quase todas as idéias filosóficas que ele teve ao longo da vida. É um material que até hoje não acabou de ser publicado. Não posso garantir que a minha visão da fenomenologia corresponda à totalidade da coisa, mas é uma visão funcional, e acreditoque três livros são fundamentais para se entender a fenomenologia. Em primeiro lugar, As investigações lógicas, onde Husserl fez essa série de investigações lógicas antes de ter definido claramente qual era o método da fenomenologia. No entanto, a inspiração fundamental já está dada nesse livro, que é a idéia de uma lógica pura, ou seja, que é distinta, por um lado, do pensamento humano em geral, a lógica distinta da psicologia, [01:30] e, por outro lado, a lógica é distinta do uso prático que se faz dela nas ciências. Eram essas duas que ele procurava no começo de suas investigações. A expressão formal e acabada do método está no livro Idéias para uma fenomenologia pura e filosofia fenomenológica, que é o livro mais difícil de Edmund Husserl, é um horror você ler esse livro, justamente por causa desta coisa de Husserl, pois ele anotava seus pensamentos um a um. É um negócio de partir cabelo em quatro, de uma minúcia que é como acompanhar uma ação humana em câmera lenta para apanhar os detalhes. Até você se adaptar ao ritmo dele, leva um tempo. E finalmente deve-se ler o livro Crise das Ciências Européias, que é onde Husserl tira conclusões filosóficas, históricas e culturais de maior alcance, e, embora seja a culminação da obra dele, é o livro mais fácil de ler, mais bem escrito. Husserl nunca se preocupou com escrever de uma maneira literariamente adequada, agradável, comunicativa; o que ele queria era anotar os pensamentos para não perdê-los. Só quem tem muito interesse nessas questões é que consegue lê-los. Existe também o livro Meditações Cartesianas, que é transcrição duma conferência que Husserl fez em Paris e que é um resumo do método fenomenológico. Pela ordem você tem: As investigações lógicas, As Idéias para uma fenomenologia pura, depois Meditações Cartesianas, e, por fim, A Crise das ciências européias. Não que você tenha de ler nesta ordem. Se quiser ler A crise das ciências européias desde logo, vai ter mais facilidade. Não sei como andam as traduções desses livros. Até o momento em que eu estava no Brasil não havia uma tradução brasileira ou portuguesa de A Crise das ciências européias. Havia uma tradução francesa de que eu não gostava muito e uma italiana maravilhosa, uma edição cuidada pelo Enzo Paci, que é um gigante, um homem de alta capacidade.
Então é isso. Por hoje é só. Até a semana que vem. Muito obrigado.
Transcrição e Revisão: Emanuel Franchetti Silva e Luís Henrique Ribas - Instituto Olavo de Carvalho - Curitiba