Skip to content

Latest commit

 

History

History
249 lines (127 loc) · 68.2 KB

COF124.md

File metadata and controls

249 lines (127 loc) · 68.2 KB

Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 124

1º de outubro de 2011

Hoje retomaremos a leitura da segunda meditação das Meditações, de Descartes. Paramos no parágrafo oito.

"8. Mas também pode ocorrer que essas mesmas coisas, que suponho não existirem, já que me são desconhecidas, não sejam efetivamente diferentes de mim, que eu conheço? Nada sei a respeito; não o discuto atualmente, não posso dar meu juízo senão a coisas que me são conhecidas: reconheci que eu era, e procuro o que sou, eu que reconheci ser. Ora, é muito certo que essa noção e conhecimento de mim mesmo, assim precisamente tomada, não depende em nada das coisas cuja existência não me é ainda conhecida;"

Aqui temos um problema temível, porque se nada sei de mim que dependa das coisas que eu não conheça, e se tudo o que sei de mim é o meu pensamento, e se o pensamento, por sua vez, inclui --- segundo ele --- o sentimento, que não pode se dar sem o corpo, então o corpo não pode ser totalmente desconhecido, mas faz parte do conhecimento imediato que Descartes tem de si mesmo.

Descartes estabelece uma divisão muito rígida entre a consciência que o "eu" tem de si mesmo no instante do "penso, logo existo" e todos os demais conhecimentos humanos. Todavia alguns desses conhecimentos se reintroduzem sub-repticiamente no pensamento --- na consciência que o "eu" tem de si mesmo --- através de dois elementos que são, segundo ele, partes, aspectos e funções do pensamento, como é o caso do sentir e do imaginar. Há aqui uma falha de auto-observação. Descartes não está muito seguro do que observa em si mesmo. Quando ele fala da consciência de si, uma coisa é a consciência atomística do cogito, ergo sum, o "penso, logo existo" --- e essa ideia é verdadeira apenas no instante em que ele a pensa --- e outra coisa é a consciência que ele tem do seu "eu" ou da sua consciência como constituída de todas as funções do pensamento, incluindo o sentir e o imaginar. Ele desliza de um desses sentidos ao outro.

Porém, a noção do cogito não é obtida por auto-observação. Ela é um conceito puramente abstrato e universal. Qualquer pessoa, no momento em que pensa que existe, existe porque está pensando naquele momento. Descartes retirou esse argumento da fala do personagem Sósia da peça O Anfitrião, de Plauto. Dessa imagem, ele desliza para outra imagem do "eu": a do "eu" efetivamente pensante, do "eu" que pensa outras coisas além do "penso, logo existo". Da simples consciência do "penso, logo existo" não seria possível deduzir a existência de um "eu" mais completo, de um "eu" substancial, sem que nesse "eu" fossem reintroduzidas as funções todas do pensamento, incluindo o imaginar e o sentir.

Mas afinal de que Descartes está falando? Está falando de si mesmo enquanto ser humano concreto, existente, que pensa e, portanto, imagina, que quer, não quer, decide, não decide, duvida, responde, sente? Ou está falando daquele mero "eu" atomístico que só tem um pensamento: o "penso, logo existo"?

Esses dois "eus" não são o mesmo. O "eu" do cogito é apenas uma função, um momento do "eu" real, e se somente esse "eu" atomístico existisse, o próprio cogito seria impossível, pois "penso, logo existo" é um raciocínio que ocorre no tempo. Primeiro, percebo que penso e depois que existo por causa disso, e então conecto as duas coisas com uma conjunção. Se isso transcorre no tempo, a percepção da existência do "eu" por si mesmo não pode ser atomística e instantânea. Apenas o "eu" real e concreto pode existir no tempo. Aquele "eu" que somente tem consciência de si no instante em que pensa que existe, num instante sem duração, não é o "eu" concreto humano, mas apenas uma ideia. É um argumento que o "eu" concreto inventa para demonstrar que existe.

Porém, ele não poderia fazer isso sem que fosse dotado de todas as funções do pensamento, como por exemplo a memória, o sentimento, a imaginação e a vontade. Esse é mais um motivo que tenho para acreditar que essa aparente narração de experiências interiores não é autêntica, mas se trata de uma sequência de argumentos --- um procedimento retórico --- para tornar verossímil a tese que Descartes quer transmitir. Tal procedimento é autêntico enquanto argumento retórico, mas falso enquanto narrativa.

"...nem, por conseguinte, e com mais razão, de nenhuma daquelas que são fingidas e inventadas pela imaginação. E mesmo esses termos fingir e imaginar advertem-me de meu erro; pois eu fingiria efetivamente se imaginasse ser alguma coisa, posto que imaginar nada mais é do que contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal."

Isso quer dizer que não é pela imaginação que ele tem o conhecimento de si mesmo. Entretanto, não significa que ele possa conhecer algo de si mesmo sem a imaginação. Se ele diz que o imaginar é apenas conceber na mente uma figura corporal e se, ao mesmo tempo, diz que o sentir não se dá sem o corpo e faz parte do pensar, é evidente que o ato de imaginar a si mesmo pela sua figura corporal é inerente ao próprio pensamento. Assim, não há escapatória.

"Ora, sei já certamente que eu sou, e que, ao mesmo tempo, pode ocorrer que todas essas imagens e, em geral, todas as coisas que se relacionam à natureza do corpo sejam apenas sonhos ou quimeras."

Ainda que ele estivesse totalmente enganado quanto à natureza do corpo, não quer dizer que estaria enganado quanto à existência do corpo. Saber o que o corpo é, qual a sua natureza, do que ele se compõe, é uma coisa. Outra coisa é simplesmente saber que o corpo existe. Da existência do corpo não há como escapar, porque ele mesmo acabou de colocar o sentir entre as funções do pensamento e de basear toda a certeza no conhecimento que o pensamento tem de si mesmo.

Assim, de que pensamento ele está falando? Só da frase "penso, logo existo" ou do pensamento como função real que ele está exercendo? Aquele pensamento atomístico não poderia escrever as Meditações. Esse é um caso de paralaxe cognitiva, pois [00:10] o fato de o indivíduo dizer algo prova que aquilo que ele está dizendo não é verdadeiro. É como no caso do paradoxo do mentiroso: "eu só digo mentiras". Se ele diz isso agora, ou isso é uma mentira e o resto não é, ou isso é verdade e, portanto, alguma verdade ele diz. Se Descartes pode redigir as Meditações é porque efetivamente o pensamento não se compõe somente daquele instante atomístico do cogito, mas de um complexo de funções que abrange o sentir e o imaginar, e não pode existir sem eles.

Como já assinalei no texto Descartes e a psicologia da dúvida, Descartes comete nas Meditações um grave erro de observação. Às vezes, quando pensa que está observando a si mesmo como um indivíduo concreto, está apenas raciocinando com base num conceito: o cogito. E outras vezes ele está falando do conceito e pensa que está falando de si mesmo como pessoa concreta.

"Em seguimento disso, vejo claramente que teria tão pouca razão ao dizer: excitarei minha imaginação para conhecer mais distintamente o que sou, como se dissesse: estou atualmente acordado e percebo algo de real e de verdadeiro; mas, visto que não o percebo ainda assaz nitidamente, dormiria intencionalmente a fim de que meus sonhos mo representassem com maior verdade e evidência. E, assim, reconheço certamente que nada, de tudo que posso compreender por meio da imaginação, pertence a este conhecimento que tenho de mim mesmo e que é necessário lembrar e desviar o espírito dessa maneira de conceber a fim de que ele próprio possa reconhecer muito distintamente sua natureza."

Mas ele não acabou de imaginar a hipótese do deus maligno --- do gênio mal --- que o engana? Como poderia fazer isso sem imaginação? O pensamento por si, a mera capacidade dedutiva e lógica, não pode inventar uma hipótese sabendo que ela é irreal. A função de criar hipóteses é evidentemente função do imaginar. Ela não pode vir nem da percepção, nem da memória, nem do puro pensamento dedutivo. Se Descartes diz que nada do que imagina faz parte do que ele conhece e tudo isso tem de ser excluído porque é imaginário, automaticamente a hipótese do gênio maligno tem de ser excluída, já que ela é pura imaginação. Ela não poderia servir em nada para a argumentação que ele está fazendo. Há, portanto, confusão entre ordem narrativa e ordem dedutiva ou analítica.

"9. Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente."

Porém, se tudo o que ele imagina deve ser considerado falso e se a única certeza que existe é aquela do instante atomístico do cogito, como ele pode saber que imagina e sente? Esses são dados de experiência, e ele acabou de negar toda experiência possível. De novo, estamos numa tensão entre o conceito abstrato do "eu" pensante e o "eu" real que se observa e narra o que se passou.

"Certamente não é pouco se todas essas coisas pertencem à minha natureza. Mas por que não lhe pertenceriam? Não sou eu próprio esse mesmo que duvida de quase tudo, que, no entanto, entende e concebe certas coisas, que assegura e afirma que somente tais coisas são verdadeiras, que nega todas as demais, que quer e deseja conhecê-las mais, que não quer ser enganado, que imagina muitas coisas, mesmo mau grado seu, e que sente também muitas como que por intermédio dos órgãos do corpo? Haverá algo em tudo isso que não seja tão verdadeiro quanto é certo que sou e que existo, mesmo se dormisse sempre e ainda quando aquele que me deu a existência se servisse sempre de todas as suas forças para enganar-me? Haverá, também, algum desses atributos que possa ser distinguido de meu pensamento, ou que se possa dizer que existe separado de mim mesmo? Pois é por si tão evidente que sou eu quem duvida, quem entende e quem deseja que não é necessário nada acrescentar aqui para explicá-lo. E tenho também certamente o poder de imaginar; pois, ainda que possa ocorrer (como supus anteriormente) que as coisas que imagino não sejam verdadeiras, este poder de imaginar não deixa, no entanto, de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento."

O que ele está querendo dizer é que todas as coisas que são imaginadas fazem parte do pensamento, podem ser criadas pelo pensamento e, portanto, não há nenhuma prova de que elas existam independentemente dele. No entanto, se elas não existem independentemente do pensamento, por que uma delas, que é o sentimento, só pode ser exercida através do corpo e não do próprio pensamento? Se o pensamento precisa de um algo mais, que é o corpo, para poder sentir, então não tem sentido dizer que o sentimento é produzido somente pelo próprio pensamento.

Primeiro, Descartes separa pensamento e corpo --- ele tem certeza sobre seu pensamento, mas não sobre o corpo ---, porém, linhas depois diz que o sentimento faz parte do pensamento e que o sentimento não pode operar sem o corpo. Ou o corpo é um produto do pensamento ou o pensamento não pode operar sem ele. Se o corpo é pura ficção inventada pelo pensamento, o pensamento não pode depender dele para absolutamente nada. Mas Descartes disse anteriormente que o pensamento depende do corpo. Mas que corpo seria esse? Um corpo que eu mesmo inventei e sem o qual meu pensamento não pode operar? Ou, ao contrário, ele é apenas uma ficção criada pelo meu pensamento, que não depende dele para absolutamente nada?

Quando um filósofo hábil como Descartes comete uma contradição dessas é porque está escondendo algo. Esse é um erro primário demais para que possamos admitir que tenha acontecido por mera distração ou que seja um simples erro de lógica. Penso que a causa profunda desse erro é o desejo que Descartes tem de apresentar uma sequência de argumentos filosóficos --- um procedimento persuasivo --- como se fosse a narração de experiências reais. É uma coisa forçada e naturalmente tem de dar errado em algum ponto.

"Enfim, sou o mesmo que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos dos sentidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-me-ão que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim seja; todavia, ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto, tomado assim precisamente, nada é senão pensar."

Se o sentir não é nada mais do que o pensar, então ele só pode depender do próprio pensar e não de uma coisa externa chamada corpo, que já foi isolada do pensamento conforme vimos em parágrafos anteriores.

"Donde, começo a conhecer o que sou, com um pouco mais de luz e de distinção do que anteriormente."

A mim parece-me o contrário. Parece que nesse caso há uma segunda confusão porque a distinção entre corpo e pensamento está em vigor em um momento e no momento seguinte é negada taxativamente. Esse não é um erro de lógica que acontece uma única vez. É uma oscilação que aparece repetidas vezes. Desde o parágrafo 7 ele dizia que não podia sentir sem o corpo. Depois disse ser uma coisa que pensa, cuja existência não depende de nenhuma outra. Como isso pode ser possível se ele acabou de dizer que o pensar inclui o sentir, o qual depende do corpo?

"10. Mas não me posso impedir de crer que as coisas corpóreas, cujas imagens se formam pelo meu pensamento, e que se apresentam aos sentidos, sejam mais distintamente conhecidas do que essa não sei que parte de mim mesmo que não se apresenta à imaginação: embora, com efeito, seja uma coisa bastante estranha que coisas que considero duvidosas e distantes sejam mais claras e mais facilmente conhecidas por mim do que aquelas que são verdadeiramente certas e que pertencem à minha própria natureza."

Por quê? Mais adiante ele vai argumentar que conhecemos mais facilmente o nosso pensamento do que as coisas, quando Aristóteles já advertia, dois mil anos antes [00:20], que a ordem do conhecer é inversa à ordem do ser, isto é, que aquilo que é mais essencial --- que mais propriamente define uma coisa --- é a última coisa que conhecemos. Não podemos perceber a essência de nada se não tivemos primeiro a percepção da mera presença sensível daquilo. É possível notarmos algo sem sabermos o que a coisa é, mas não é possível saber o que tal coisa é sem termos notado nada dela.

"Mas vejo bem o que seja: meu espírito apraz-se em extraviar-se e não pode ainda conter-se nos justos limites da verdade. Soltemos-lhe, pois, ainda uma vez, as rédeas a fim de que, vindo, em seguida, a libertar-se delas suave e oportunamente, possamos mais facilmente dominá-lo e conduzi-lo."

"11. Comecemos pela consideração das coisas mais comuns e que acreditamos compreender mais distintamente, a saber, os corpos que tocamos e que vemos. Não pretendo falar dos corpos em geral, pois essas noções gerais são ordinariamente mais confusas, porém de qualquer corpo em particular."

Essas noções gerais seriam justamente a forma, a quantidade, a medida etc., que são propriedades que estão presentes em todos os corpos. Descartes disse há pouco que essas propriedades são mais simples e fáceis de conhecer, e agora diz que devemos abandonar essas qualidades e nos concentrarmos naquilo que é mais simples, ou seja, um corpo em particular. Afinal de contas, o que é mais fácil e o que é mais difícil? Apreender a forma, a quantidade, o número, o movimento em geral ou apreender um objeto sensível em particular? Do que ele está falando?

"Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia; ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores em que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste."

"12. Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele restava de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batamos, nenhum som produzirá. A mesma cera permanece após essa modificação? Cumpre confessar que permanece: e ninguém o pode negar. O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se apresentam ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição encontram-se mudadas e, no entanto, a cera permanece."

Esse problema também já havia sido resolvido por Aristóteles dois mil anos antes de Descartes. O que Aristóteles entende pela forma substancial de uma coisa não é, evidentemente, a sua aparência sensível, mas algo como o que hoje chamaríamos um algoritmo, ou seja, um padrão de modificações possíveis. Todas as modificações que um corpo sensível atravessa ao longo de sua existência não desmentem a sua substância, mas são a mera expressão temporal das propriedades inerentes a essa substância, a começar pelo poder de crescer. Se virem uma foto de mim como bebê e uma foto de mim agora, dirão que não pode ser a mesma pessoa. Eu também posso ter essa impressão, mas estou enganado. Sei que sou o mesmo, que não se reduz à forma sensível, mas que não pode ser apreendido sem ela. É justamente por isso que se chama de "forma inteligível". Da aparência sensível do objeto --- explicava Aristóteles --- apreendemos, por assim dizer, a lei de constituição íntima dele, que preservará a sua identidade ao longo de todas as suas manifestações. Caso contrário, teríamos, toda vez que o objeto se modifica um pouco, de dizer que ele é um outro objeto. A vaca parada e depois dando leite não seria a mesma vaca! Cada vez que tirássemos leite, seria de uma vaca diferente.

Esse é um paradoxo que apareceu muitas vezes ao longo da história do pensamento e me faz lembrar do livro de David Bohm, A Inteireza e a Ordem Implícita, onde ele diz que toda nossa linguagem está viciada porque dá às coisas nomes estáticos, quando na verdade deveria designar tudo no gerúndio. Não há um ser, há apenas um "sendo". Não há uma tartaruga, há apenas um "tartarugando" e assim por diante. É claro que isso é uma estupidez, pois o nome de um ente não designa nem sua forma estática nem suas transformações, mas justamente a fórmula da sua constituição que atravessa intacta e imune todas as suas transformações, de modo que a tartaruga parada ou andando continua a ser tartaruga e a vaca dando ou não dando leite continua a ser vaca. Quando contei isso para meu amigo Jô Brito, que mora na Índia, ele me disse que em sânscrito a palavra vaca significa "um animal que se move lentamente"; designa-se a vaca por uma de suas propriedades que não é estática, mas dinâmica, pois a vaca não pode andar e ficar parada ao mesmo tempo.

Contudo, segundo Descartes, as mudanças de aparência das coisas sensíveis mostram que só conhecemos como essência permanente delas a extensão e nada mais. Todavia, se conhecemos apenas a extensão, as coisas não poderiam aumentar de tamanho.

"Talvez fosse como penso atualmente, a saber, que a cera não era nem essa doçura do mel, nem esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me aparecia sob certas formas e que agora se faz notar sob outras. Mas o que será, falando precisamente, o que imagino quando a concebo dessa maneira? Consideremo-lo atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que resta. Certamente nada permanece senão algo de extenso, flexível e mutável."

Ou seja, todas as propriedades da cera mudam, e a essência --- aquilo que da cera permanece --- é algo de extenso, isto é, o fato de que ela ocupa um lugar no espaço. No entanto, foi justamente quanto a esse ponto que, mais tarde, Leibniz fez críticas a Descartes, dizendo que apenas com a extensão não é possível obter um ser de verdade.

Vejamos: a cera ocupa um lugar no espaço. O palácio de Versalhes também ocupa um lugar no espaço. Portanto, se a distinção entre as coisas fosse apenas ocupar um lugar no espaço, essas duas coisas seriam indiscerníveis. Mas acontece --- dizia Leibniz --- que, além de ter extensão, as coisas tem de "ser" alguma coisa. E essa "alguma coisa" que as coisas são é sua forma substancial, que apreendemos através dos sentidos, mas que não se resumem aos sinais sensíveis que a coisa está emitindo neste momento, mas à sua capacidade de ir transmitindo sempre novas informações sensíveis que mudam no decorrer do tempo, mas que não se confundem com as propriedades sensíveis e temporais de uma outra coisa. Por exemplo, a cera pode amolecer, perder o cheiro, perder o gosto, mas não pode sair voando, ao passo que um passarinho que está parado, pousado no galho, pode sair voando, e nem por isso deixou de ser o mesmo passarinho. Ou seja, o que permanece não pode ser somente a extensão.

Esse aqui é um dos grandes lances da história do pensamento, quando a forma de utilizar o dom humano da abstração muda de função, muda de sentido, inaugurando todo um novo modo de conhecer que faz abstração e esquece o que é a natureza das coisas, o que é a sua forma substancial, e se apega exclusivamente às suas propriedades extensas e mensuráveis, que não bastam para dar a coisa nenhuma sua realidade.

O que Descartes está dizendo aqui --- que abstrai todos os elementos mutáveis e só o que sobra é a extensão --- é manifestamente falso, pois a extensão também muda. Ele mesmo acabou de dizer que a cera mudou de tamanho. [00:30] Quando você a derrete, ela aumenta de extensão: suas moléculas se separam e ela passa a ocupar mais lugar no espaço. Ora, se só o que sobra do ser, abstraídas suas propriedades mutáveis, é a extensão, a extensão não poderia mudar. Mas, se ao abstrairmos tudo o que é mutável deixando apenas a extensão, vemos que a extensão também muda, é preciso remover também a extensão. Isso é uma confusão que já está parecendo com a de Maquiavel. Onde estão as ideias claras e distintas de que Descartes fala? Ele está tentando expressar alguma coisa, isso percebemos. Ele está sinceramente empenhado em descobrir a verdade por trás das aparências. Entretanto, quanto mais penetramos na trama de sua investigação, mais confusa a coisa fica, justamente no momento em que ele diz que as coisas estão ficando claras. O que é isso? Um auto-engano, uma falha de auto-observação. Descartes diz que as coisas estão ficando mais claras simplesmente porque estão ficando mais abstratas. Porém, abstração não quer dizer clareza necessariamente.

"Certamente nada permanece senão algo de extenso, flexível e mutável. Ora, o que é isto: flexível e mutável? Não estou imaginando que esta cera, sendo redonda, é capaz de se tornar quadrada e de passar do quadrado a uma figura triangular? Certamente não, não é isso, posto que a concebo capaz de reconhecer uma infinidade de modificações similares e eu não poderia, no entanto, percorrer essa infinidade com a minha imaginação e, por conseguinte, essa concepção que tenho da cera não se realiza através da minha faculdade de imaginar."

Aqui há um problema. Descartes está dizendo que não podemos imaginar de antemão todas as transformações possíveis que a cera pode atravessar e, por isso mesmo --- diz ele --- não é através da imaginação que conhecemos a cera. Mas não conhecê-la através da imaginação não quer dizer que possamos fazer isso sem imaginação.

O fato de que não possamos conhecer de antemão todas as modificações possíveis de um corpo advém de uma regra também já estabelecida por Aristóteles de que não existe o infinito quantitativo em ato. É possível conceber o infinito em ato em Deus, mas não quantitativamente. O infinito só pode ser concebido como potência e não como ato. Não pode ser concebido como uma coisa que estamos vendo agora. Mas é simplesmente isso que Descartes está dizendo.

Então, não poder conceber a cera em todas as suas modificações possíveis, uma a uma, não reflete uma limitação da imaginação, mas do conhecimento humano em geral e dos próprios objetos, que não podem num mesmo instante mostrar todas as modificações futuras possíveis. Ou seja, não somos apenas nós que não podemos imaginar ou conhecer todas as modificações possíveis da cera, mas é também a cera que não pode apresentá-las todas ao mesmo tempo. A cera não pode estar sólida e líquida ao mesmo tempo, não pode estar fria e quente ao mesmo tempo, não pode ter gosto e ser insossa ao mesmo tempo, e assim por diante. Assim, essas supostas limitações do nosso conhecimento imaginário do objeto estão no próprio objeto também. Portanto, se não podemos conceber as modificações futuras possíveis do objeto só pela imaginação, também não podemos conhecê-las sem a imaginação. Esse simples pensamento que Descartes expõe requer a imaginação, pois ele está falando de modificações pelas quais a cera não passou ainda e que só existem no pensamento dele, que neste momento está exercendo precisamente a função da imaginação. Não é através da imaginação que conhecemos o objeto, mas também não é sem ela.

"13. E, agora, que é essa extensão? Não será ela igualmente desconhecida, já que na cera que se funde ela aumenta e fica ainda maior quando está inteiramente fundida e muito mais ainda quando o calor aumenta? E eu não conceberia claramente e segundo a verdade o que é a cera, se não pensasse que é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que jamais imaginei. É preciso, pois, que eu concorde que não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera e que somente meu entendimento é quem o concebe; (...)"

Não é assim. Trata-se do entendimento operando sobre a imaginação e não operando em si mesmo. Como o próprio entendimento pode conceber por si variações formais sem imaginá-las? O fato de que não podemos imaginá-las todas nada diz contra a função da imaginação, porque é uma limitação que está não só na imaginação mas também no objeto. Como o puro entendimento poderia conceber uma coisa dessas? O puro entendimento não pode inventar coisas. A função dele é somente entender. Mas ele não pode entender o que não lhe foi apresentado nem pelos sentidos, nem pela imaginação, nem pela memória, nem por coisa nenhuma.

"(...) digo este pedaço de cera em particular, pois para a cera em geral é ainda mais evidente."

Não é mais evidente. Descartes está dizendo que é somente o entendimento que concebe a ideia das variações possíveis da cera, sem a imaginação, e que se isso é verdade com relação a esse pedaço de cera em particular, mais verdadeiro ainda seria para todas as ceras possíveis. O que quer dizer esse "possíveis"? O entendimento não pode conceber variações possíveis de um objeto sensível. O entendimento não capta objetos sensíveis, mas apenas o que ele mesmo pensou. Ele só capta conceitos. Se não há o apoio dos sentidos e da imaginação, nada se pode fazer, muito menos conceber variações possíveis.

"Ora, qual é esta cera que não pode ser concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a mesma que vejo, que toco, que imagino e a mesma que conhecia desde o começo. Mas o que é de notar é que a sua percepção, ou a ação pela qual ela é percebida, não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi, embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito, que pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta como é presentemente, conforme minha atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela e das quais é composta."

Mas quem disse que está clara e distinta presentemente? Não vejo como uma pura inspeção do espírito poderia imaginar variações da forma de uma cera ou de qualquer outro objeto sem o auxílio da imaginação. Afinal, o que é a mudança da forma de uma cera? É uma modificação sensível. Não podemos conceber modificações sensíveis de maneira totalmente insensível. Por exemplo, se a cera está dura, posso imaginar que está mole, mas não posso imaginar sem a imaginação. Então, isso não pode ser somente uma inspeção do espírito.

"14. Entretanto, eu não poderia espantar-me demasiado ao considerar o quanto meu espírito tem de fraqueza e de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois, ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras detêm-me, todavia, e sou quase enganado pelos termos da linguagem comum; (...)"

Ele não está sendo enganado pelos termos da linguagem comum. Ele está sendo enganado pela sua memória. É a narrativa que está sendo falseada. Onde Descartes fez uma operação de imaginação, ele diz que foi uma mera inspeção do espírito, o que é materialmente impossível. Não se pode dizer que ele esteja mentindo ou que esteja errado. Esse não é um erro de lógica nem uma mentira, mas simplesmente uma infidelidade do narrador à memória dos acontecimentos. Se ele estivesse realmente narrando com fidedignidade o que se passou, diria: "eu imaginei isso e dessa imaginação meu espírito fez abstração da forma inteligível por baixo da forma sensível, e então entendi que há outras modificações possíveis. Mas fiz isso com base no que tinha imaginado: imaginei duas ou três modificações sensíveis e imediatamente entendi --- pelo entendimento --- que é possível haver outras modificações que estão fora do alcance dos meus sentidos no momento e também da minha própria imaginação. É um trabalho conjunto e inseparável de imaginação e entendimento".

É como nos explica Aristóteles: primeiro temos a percepção sensível. Da percepção sensível conservamos na memória --- que para Aristóteles é a mesma coisa que imaginação --- a forma esquemática sensível e dessa abstraímos a forma inteligível que define o objeto. Portanto, essas várias funções --- sentidos, imaginação e entendimento --- não podem funcionar separadamente. [00:40] O entendimento deixado a si mesmo só pode lidar com formas muito gerais e abstratas e não pode lidar nem com formas matemáticas; ele só pode conceber raciocínios hipotéticos como, por exemplo, as formas do silogismo "se A = B e B = C, então A =C". Todavia, o entendimento não pode pensar isso nem mesmo com letras, pois as letras implicam um sinal sensível. Isso quer dizer que toda essa operação é um encadeamento de funções, é uma escalada do processo abstrativo que começa com os sentidos e culmina na inteligência. Entretanto, se Descartes pensa em jogar a inteligência contra as demais funções, colocando-as em dúvida e paralisando-as, ele só pode fazer isso como hipótese e não de verdade, como conta que está fazendo. Ele pode concebê-lo como hipótese, mas não pode dizer que realmente o fez e pensou. É impossível!

"(...) e sou quase enganado pelos termos da linguagem comum; pois nós dizemos que vemos a mesma cera, se no-la apresentam, e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor ou a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela visão dos olhos, e não pela tão-só inspeção do espírito, se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas?"

Isso é um arrebatamento extremo da imaginação! Garanto que ele jamais viu bonecos de mola andando pelas ruas! Isso só pode surgir da imaginação. Ele está dizendo o seguinte: "Eu vejo chapéus e casacos que se movem e imagino que são homens". Entretanto, trata-se do contrário: ele vê homens que se movem e imagina que são bonecos de mola. Ou seja, a narrativa está radicalmente invertida. Se ele dissesse que tinha passado a vida vendo bonecos de mola e que cada vez que os via imaginava que fossem homens, o raciocínio estaria certo. Porém, o que ele está dizendo é uma inversão da experiência real. O que ele está chamando de experiência é imaginação e o que chama de imaginação é experiência.

"Mas julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos."

Ou seja, é o poder do espírito que afirma para ele que aqueles homens que está vendo são homens. Ele não viu de fato os homens. Trata-se de uma operação posterior do espírito que afirma que são homens. Bom, é evidente que sem o poder do espírito você não perceberia que são homens. Se você fosse completamente idiota, se não tivesse inteligência, não perceberia que são homens. Todavia, o poder do espírito não pode por si fazer isso sem os sentidos e a imaginção, caso contrário não estaria vendo nada. Além disso, esse poder do espírito afirma para ele que são homens no momento em que ele contrasta isso com a hipótese de serem bonecos de mola. Mas onde existem esses bonecos de mola? No espírito? Não, o espírito não inventa bonetos de mola. É a imaginação que inventa. Isso quer dizer que a imaginação está presente nos dois casos, e o espírito distingue entre a imaginação verdadeira e a certa.

"15. Um homem que procura elevar seu conhecimento para além do comum deve envergonhar-se de aproveitar ocasiões para duvidar das formas e dos termos do falar do vulgo; prefiro passar adiante e considerar se eu concebia com maior evidência e perfeição o que era a cera, quando a percebi inicialmente e acreditei conhecê-la por meio dos sentidos exteriores, ou ao menos por meio do senso comum, como o chamam, isto é, por meio do poder imaginativo, do que a concebo presentemente, após haver examinado mais exatamente o que ela é e de que maneira pode ser conhecida. Por certo, seria ridículo colocar isso em dúvida."

Quando ele conhecia melhor a cera? Num primeiro momento em que a via e a conhecia por meio dos sentidos do senso comum? Ou agora que entendeu que é simplesmente o poder do espírito que identifica o que é a cera e a identifica como um objeto puramente extenso?

"Pois que havia nessa primeira percepção que fosse distinto e evidente e que não pudesse cair da mesma maneira sob os sentidos do menor dos animais?"

Que os animais vejam a mesma coisa que eu, não é um argumento contra a veracidade do que eu vejo. Por exemplo, se atiro um osso para o cachorro pegar, suponho que o cachorro vá pegar o mesmo osso que joguei. Portanto, ele está vendo a mesma coisa que eu. Entretanto, se eu jogasse um osso e o cachorro pegasse uma outra coisa qualquer, então eu não estaria seguro de que vimos a mesma coisa. Do mesmo modo, quando faço carinho no cachorro e ele abana o rabo, estabelece-se ali uma comunicação: estamos vendo a mesma coisa e compartilhando a mesma experiência. Isso não é um argumento contra a veracidade dessa experiência, mas justamente o contrário. Se até os animais estão vendo a mesma coisa que eu, por que eu deveria supor que estou enganado?

Vejam o tamanho do problema que está colocado aqui. Ele sabe que os animais vêem a mesma coisa que ele. Isso significa que se ele pode pôr em dúvida todas as suas percepções, pode pôr em dúvida também as percepções de todos os animais. Para isso, os animais teriam de ser apenas figuras imaginárias que o pensamento dele criou, mas essas figuras imaginárias têm, por sua vez, o poder de ter percepções reais, que também são imaginárias. Ou seja, eu criei os animais e também todas as suas percepções de tal modo que eles pensem estar no mesmo mundo que eu. Eu sou um verdadeiro demiurgo: criei o universo inteiro repleto de animais e de percepções que esses animais têm! A hipótese é tão absurda que tem de ser rejeitada imediatamente. Ele tem de confessar que não inventou nada. Ele não inventou um cachorro... nem sequer uma pulga!

Quando esmago uma pulga, qual pulga é esmagada? A mesma que esmaguei! Aí se estabeleceu também uma comunicação. Mas Descartes pensa a hipótese de que ele inventou a pulga, inventou que ela se sentiu esmagada e inventou todas as sensações subjetivas que as pulgas têm ao sentirem-se esmagadas. Ou seja, ele não inventou somente a forma externa dos objetos, mas tudo o que se passa dentro do sistema nervoso deles! Portanto, a hipótese da dúvida metódica eletrocuta-se no mesmo instante em que é formulada.

Por que, para chegar a uma certeza, temos de usar um método tão tortuoso e impossível, que já está condenado de antemão? Porque Descartes sabe que o método já está condenado de antemão e quer provar que Deus existe, que o mundo existe etc. Para isso, ele usa esse artifício hiperbólico da dúvida metódica em que não acredita nem por um instante! Tudo isso não passa da chamada "demonstração por absurdo". Mas por que ele não diz que está fazendo uma demonstração por absurdo? Por que expõe isso como uma narrativa, como se houvesse realmente pensando em tudo isso e ficado em dúvida durante dias, quando é impossível pensar em qualquer dessas coisas sem desmenti-las no mesmo ato, sem ter mesmo de esperar até o dia seguinte? A camuflagem de uma argumentação sob o formato de narração é que causa todos esses problemas.

"Mas quando distingo a cera de suas formas exteriores e, como se a tivesse despido de suas vestimentas, considero-a inteiramente nua, é certo que, embora se possa ainda encontrar algum erro em meu juízo, não a posso conceber dessa forma sem um espírito humano."

Era isso que, de outro modo, dizia Aristóteles: que só o espírito humano concebe a forma substancial. Mas conceber a forma substancial é uma coisa e reconhecê-la no mesmo objeto sensível é outra. O ser humano concebe a ideia da forma substancial separadamente dos objetos sensíveis. Os animais não fazem isso, mas reconhecem a forma substancial quando o mesmo objeto se apresenta. [00:50] Se o cachorro está com um osso na boca e eu tiro o osso e o mostro de novo, ele sabe que é o mesmo osso.

Claro que o cachorro pode se enganar, assim como nós também podemos nos enganar. Por exemplo, lembro-me que quando trabalhava no jornal, havia uma dupla de gêmeos desenhistas: Paulo e Chico Caruso. A época era muito ruim e os dois tinham somente um emprego: às vezes era um que ia ao trabalho, às vezes era outro, e nunca sabíamos. Eram dois irmãos com um emprego só. Chamávamos de Paulo quando o Chico e vice-versa. Era um engano, mas eram dois indivíduos fisicamente separados no espaço, porém indistintos na sua forma exterior. Isso pode acontecer.

Esse engano prova que eu não sou capaz de apreender formas substanciais? Claro que não. Apenas tive a dificuldade de aplicar a forma substancial ao ente sensível que está se apresentando naquele momento.

"16. Mas enfim, que direi desse espírito, isto é, de mim mesmo? Pois até aqui não admiti em mim nada além de um espírito."

Nada além de um espírito? O que é o espírito? É a coisa que pensa. O que é o pensar? Pensar é duvidar, é querer, é imaginar, é sentir etc., o que não se pode fazer sem o corpo. A tentativa de reduzir o "eu" cognoscente a puro espírito já está fracassada de antemão. Nenhum de nós pode dizer que é puro espírito. Eu posso me conceber como tal se fizer abstração das funções corporais às quais meu espírito está ligado e sem as quais não pode funcionar. Mas isso, conforme diziam os escolásticos, é uma separação mental e não uma separação real.

Os escolásticos distinguiam da seguinte forma: (a) há uma distinção real-real. Por exemplo, aqui temos um cachorro e ali uma casa. Eles são distintos mentalmente e na realidade; (b) há uma distinção real-mental. Por exemplo, a separação entre nome e sobrenome. Quando você diz "Olavo de Carvalho", está designando o indivíduo como tal e como membro de uma família. Não é a mesma coisa. Portanto, a distinção é real, embora não seja real fisicamente. Não são dois indivíduos, mas dois aspectos do mesmo indivíduo; (c) Finalmente temos a distinção puramente mental. Por exemplo, a distinção entre um quadrado e suas propriedades geométricas. Eles não podem estar separados nem por um único minuto. Só é possível pensá-los separadamente. Sabemos que uma propriedade do quadrado é que o mesmo dividido na diagonal forma dois triângulos isósceles. Mas onde está essa propriedade? Está no próprio quadrado. Ele não é separável dessa propriedade nem por um minuto.

A separação que Descartes está fazendo entre o espírito humano e tudo o mais é puramente mental. Isso não corresponde nem à separação que a teologia faz entre o corpo e a alma, porque a alma abrange todo o mundo dos sentimentos, imaginações etc. Notem que ninguém disse que a alma subsiste por si mesma sem o corpo. Quando você morre, sua alma subsiste em Deus, e não por si mesma. Não é que ela sozinha, num espaço vazio e sem nada externo que a determine, continue existindo eternamente. Você passa de uma forma de existência que se apóia num conjunto de determinações externas a outra forma de existência que se apóia em outro sistema de determinações externas, que você chama de céu, o mundo do espírito, ou a mente de Deus. É por isso que a síntese de alma e corpo --- a união de alma e corpo --- é chamada de "união substancial". Não são duas substâncias, mas uma substância só, que é a sua individualidade, que existe sob forma corporal durante esta vida e passa para um outro sistema, um outro quadro de referência, após a sua morte, mas que não pode subsistir sem esse quadro de referência ou sem esse sistema de determinações.

"Que declararei, digo, de mim, que pareço conceber com tanta nitidez e distinção este pedaço de cera? Não me conheço a mim mesmo não só com muito mais verdade e certeza, mas também com muito maior distinção e nitidez?"

No instante em que ele separou a alma do corpo ele tem uma noção do que é espírito, mas isso não quer dizer que ele se conheça com maior nitidez. Ele só conhece um conceito, que chama de espírito humano, e não a si mesmo, pois ele não é espírito humano no sentido que está dizendo. Ele é alma humana no corpo e com todas as funções do corpo: isto é o que ele realmente é.

O "eu" pensante não pode, nos próprios termos do que Descartes explica, ter essa autonomia que ele está querendo afirmar. O método da dúvida, como disse, é somente uma demonstração por absurdo. Todavia, a autonomia do "eu" pensante não é um artifício demonstrativo e retórico: é uma tese que ele afirma e que não faz parte do procedimento crítico-dubitativo. Já é uma tese final. Segundo ele, o espírito humano independe de tudo o mais --- mais adiante, diz que só depende de Deus ---.

Mas o espírito humano depende de Deus diretamente? Se minha conexão com Deus é direta e independente de tudo o mais, para que Deus teve de criar todo o universo e me colocar lá dentro? A ligação do homem com Deus não é tão direta como ele diz, mas isso veremos mais tarde. No procedimento crítico e analítico utilizado por Descartes já estão embutidas, de algum modo, as teses que ele pretende afirmar categoricamente mais tarde.

"Pois, se julgo que a cera é ou existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida segue-se bem mais evidentemente que eu próprio sou, ou que existo pelo fato de eu a ver. Pois pode acontecer que aquilo que eu vejo não seja, de fato, cera; pode também dar-se que eu não tenha olhos para ver coisa alguma; mas não pode ocorrer, quando vejo ou (coisa que não mais distingo) quando penso ver, que eu, que penso, não seja alguma coisa."

O que ele faz aqui é afirmar de outra maneira o "penso, logo existo". O conteúdo daquilo que penso é duvidoso, mas se estou pensando, posso duvidar do objeto sobre o qual penso, mas não posso duvidar de que estou pensando. Mas voltamos à pergunta: o que é o pensar? É sentir, é imaginar --- o que não se pode fazer sem o corpo ---. Se não posso duvidar que penso, não posso duvidar que tenho um corpo. Descartes, no entanto, após separar completamente o espírito do corpo, precisa reintroduzir a certeza do conhecimento por meio de um artifício a que chama "Deus". É Deus que garante o conteúdo dos meus pensamentos. Deus, contudo, garante o conteúdo dos meus pensamentos ou garante o universo exterior inteiro? Garante o universo exterior através do meu pensamento ou garante o meu pensamento através do universo exterior? Esse é o problema que surgirá mais tarde.

"Do mesmo modo, se julgo que a cera existe, pelo fato de que a toco, seguir-se-á ainda a mesma coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo porque minha imaginação disso me persuade, ou por qualquer outra causa que seja, concluirei sempre a mesma coisa. E o que notei aqui a respeito da cera pode aplicar-se a todas as outras coisas que me são exteriores e que se encontram fora de mim."

Ou seja, tudo o que penso a respeito do que quer que seja é duvidoso, a não ser o fato de que eu estou pensando. Porém, como o pensar, por sua vez, implica funções que não existem sem o corpo, está afirmada a existência do corpo. Mas o que é o corpo? É apenas extensão? Não pode ser. Tem de ser um algo mais, porque eu "sinto". O sentir não faz parte da definição de extensão --- uma bola de chumbo tem extensão e nada sente ---. A afirmação da existência do pensamento afirma também a existência do corpo não só como objeto extenso, mas como objeto capaz de sentir --- objeto sensiente, como se diz.

[1:00] Como podemos ver, o homem das ideias claras e distintas parece ser uma das mentes mais confusas de todos os tempos. Muitos intérpretes não o percebem pelo fato de que tomam a expressão da doutrina separadamente do problema do gênero literário, um erro que nem todos cometem. Tenho a impressão, porém, de que esses detalhes da narrativa nunca foram estudados com essa minúcia, pois, do contrário, o mito da clareza cartesiana teria acabado há muito tempo.

Na verdade, o que dá a impressão de clareza e distinção é o fato de que ao trocar as formas substanciais da velha filosofia aristotélico-escolástica pela pura extensão, isto é, apenas pelas qualidades matematizáveis, tudo se torna mais claro; mas o objeto de que se fala já não é o mesmo de antes. Houve uma troca de objeto e já não se está falando de objetos do mundo real, mas de uma certa qualidade considerada abstrativamente que, naturalmente, coincidirá com os objetos do mundo real nos pontos em que a categoria da quantidade é pertinente ao mundo real.

É claro também que essa mutação facilita enormemente a manipulação técnica dos objetos do mundo sensível. É próprio da racionalidade técnica não somente procurar as vias matemáticas, mas a mais extrema simplificação, como no exemplo que dei, em que, ao se fazer uma estrada, sempre se prefere fazê-la em linha reta, embora na natureza não se encontre jamais um único caminho reto.

Existe uma espécie de imposição de uma grade geométrica sobre a natureza que a torna mais manipulável, mas isso não quer dizer que você a conheça realmente. Quando se leva a orientação matematizante às suas últimas consequências, como acontece na mecânica quântica, chega-se a paradoxos absolutamente inexplicáveis. O que começou como uma apologia da clareza termina como a constatação de um mistério. É justamente disso que o professor Wolfgang Smith trata no livro sobre o enigma quântico, para o qual só encontra uma solução voltando à teoria das formas substanciais de Santo Tomás de Aquino, o que já propunha Leibniz em seu discurso de metafísica, como veremos mais tarde.

Mas aconteceu que, infelizmente, a influência de Descartes e Newton se espalhou avassaladoramente por toda a Europa, ao passo que os escritos de Leibniz só começaram a ser lidos com a devida atenção no século XX. Nesses escritos pode-se ver que Leibniz estava pelo menos dois séculos adiantado em relação à ciência mecanicista que predominava na época. Até hoje seus escritos não foram editados em sua forma completa. É um autor que, embora tenha sido uma das mentes mais organizadas do universo, era, literariamente falando, como Mário Ferreira dos Santos, que deixou seus escritos numa desordem formidável, com a vantagem de que pelo menos em seu caso eram escritos e não meras transcrições de gravações, como no caso de Mário.

Leibniz também era escritor tão bom e claro quanto Descartes --- mais claro e mais elegante até ---. Porém, seus escritos compõem-se, em grande parte, de cartas e rascunhos redigidos entre uma viagem e outra durante suas missões de diplomata, a sua profissão, de modo que, até hoje, não é fácil o acesso a eles. É um pensamento organizado por trás de uma obra muito fragmentária. Tal não é o caso de Descartes, cujo pensamento pode ser conhecido suficientemente lendo alguns poucos escritos --- as Meditações Metafísicas, o Discurso do Método, o Tratado sobre as Paixões e as Regras para a Direção do Engenho ---. Sua obra filosófica é apenas um núcleo. O resto são estudos científicos que já não têm a mínima importância, com a exceção dos estudos de geometria --- a geometria cartesiana ainda é usada e tem vitalidade ---. O resto de sua obra científica foi completamente superada, o que não é o caso de Leibniz. Por exemplo, quando se opera um computador usa-se a matemática Leibniziana. Leibniz fez descobertas importantes em praticamente todos os setores da ciência e até hoje é muito difícil avaliar o que ainda tem vitalidade e o que a perdeu. Não se tem ainda uma avaliação completa de sua obra. Leibniz já estava na pista de coisas como a mecânica quântica no começo do século XVIII.

Aluno: Existe um equivalente da imaginação mediadora --- imaginatio mediatrix --- em escala social?(...)

Olavo: Sim, evidentemente. Todas as funções que existem na mente humana também são desempenhadas na interação humana e, embora não se possa falar em um imaginário social como entidade substantiva, ele existe como função e é descritível. Pode-se fazer um repertório das imagens e símbolos que são eficazes para uma certa comunidade num dado momento e até descobrir por trás deles uma certa ordem, estrutura ou sistema. Também é possível descrever diacronicamente, relatando a história dos símbolos tal como entram no imaginário social ou quando perdem vigência e já não dizem nada para as pessoas, deixando de ser símbolos e passando a ser apenas metáforas, figuras de linguagem. Eles perdem aquela eficácia de símbolos propriamente ditos que, para seu usuário habitual, parece por vezes algo mais real que o próprio mundo dos sentidos. É possível fazer um repertório dos símbolos vigentes, por exemplo, na cultura yoruba, na cultura dos índios do Xingu no século XIX, na cultura de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, na cultura do país inteiro. É possível fazê-lo e as pessoas de fato o fazem. Esse é um dos setores mais ricos e promissores das ciências sociais.

Aluno: (...) Os jogos, brincadeiras e piadas seriam a parte cotidiana desse equivalente e as artes sua parte elaborada?(...)

Olavo: Sem sombra de dúvida, é exatamente assim. Procurei há algum tempo um estudo sistemático sobre as piadas, que creio ser um elemento fundamental para a formação da mentalidade, e encontrei um cidadão americano judeu chamado Gershon Legman, que é considerado o James Joyce do folclore, tamanha a riqueza de sua obra. Escreveu dois volumes de setecentas páginas cada um sobre as piadas, que ainda não li, mas que pretendo ainda estudar.

Aluno: (...) Seria assim o controle do discurso, além da proibição de perceber "o que as coisas são", a arma para exterminar o que resta da imaginação mediadora no cotidiano da sociedade?(...)

Olavo: Não se pode liquidar a imaginação mediadora, mas pervertê-la ou empobrecê-la --- eliminá-la é absolutamente impossível ---, e certamente isso se faz através do "controle do discurso". Todos vemos isso acontecer. Quando se criam inibições e prevenções em uma pessoa, aquilo que você percebe cria instantaneamente em você o temor de ser mal compreendido, de ser julgado negativamente pelos outros; então você inibe e faz de conta que não percebe. É muito difícil para o cidadão comum manter um mundo mental reservado e puramente íntimo. A capacidade para a intimidade marca as inteligências superiores; a mentalidade do cidadão comum é coletiva, pelo menos idealmente: ele quer sentir igual a todos e não quer ter um domínio separado que o faça sentir-se diferente, porque isso o aterroriza. [1:10] A mediocridade e burrice coletivas são em grande parte causadas pelo medo.

Todas as sociedades criam um sistema de inibições e repressões íntimas para que as pessoas não pensem ou desejem certas coisas. Isso é normal e faz parte de todas as culturas. Uma cultura que seja desprovida de um sistema de inibições é absolutamente impensável. Do mesmo modo, a eliminação da exclusão social é impossível, pois sempre alguém será excluído por alguma razão. Eu mesmo tenho sido excluído de vários meios e compreendo perfeitamente que isso aconteça, pois, afinal de contas, alguém tem de ser excluído e por que não haveria de ser eu? O que tenho de especial para que não possa ser excluído? Se comunidades inteiras foram excluídas, por que isso não pode acontecer comigo? Só espero que isso não dure para sempre.

Esses mecanismos de repressão, intimidação e exclusão fazem parte das culturas, mas observa-se nisso uma certa funcionalidade. Esse sistema serve a determinadas finalidades e permite o funcionamento normal da sociedade através da preservação de um sentimento de unidade --- aquela comunidade de espírito de que já falava Santo Agostinho.

Porém, o que está acontecendo hoje em dia é a introdução muito rápida de novos códigos e de novos sistemas de repressão e de inibição que não sabemos para que servem e nem que tipo de espírito comunitário podem gerar. Minha esposa contou-me sobre um programa de Jô Soares a que ela assistiu, em que foi entrevistado nosso já velho conhecido Paulo Ghiraldelli, e ele contava que já tinha relações sexuais com sua mulher quando ela tinha dezesseis anos --- ele tinha mantido em segredo ---. Um dia apareceu a polícia e fez uma queixa contra ele, porém a promotora ou juíza, amiga dele, falsificou os documentos da moça para dar a ela dezoitos anos. Todo mundo na plateia, com exceção de uma pessoa, achou aquilo lindo.

O critério moral subjacente a esse fato é o de que, se é pelo prazer sexual, tudo é permitido. O sujeito pode cometer dois crimes e todo mundo acha lindo. Talvez as pessoas não reagissem tão positivamente se o sujeito falsificasse documentos para ganhar algum dinheiro, mas se tornou lindo pelo fato de que era para desfrutar de um prazer sexual.

Sabemos que fantasias sexuais estão sendo hoje mais valorizadas pelos novos códigos morais do que a consciência religiosa. O fato de alguém gostar de certas coisas na cama, no banheiro, em baixo da ponte, ou sabe-se lá onde, é considerado uma coisa sacrossanta que não pode ser criticada, mas a religião pode ser criticada, condenada, aviltada etc. Há aí uma escolha moral em que o desejo do prazer é colocado acima de todas as demais considerações morais, culturais, políticas, sócio-econômicas etc.

O que será de uma comunidade baseada nesses valores? Qual é a funcionalidade disso no conjunto? É um caso para estudar. Sou capaz de imaginar vagamente as consequências disso, mas não tenho elementos para fazer uma descrição científica, mesmo porque tudo isso está ainda no começo. Podemos por meio da imaginação usar o método weberiano de exagerar o traço, isolando-o dos demais traços, supondo que a nova moral do prazer sacrossanto se torne a regra fundamental. Assim sendo, quaisquer objeções contra outras formas de prazer terão de cair mais cedo ou mais tarde, inclusive objeções contra a pedofilia, o sadomasoquismo, contra qualquer bestialidade etc.

Jamais houve na história humana uma sociedade baseada no princípio do prazer, como dizia o Dr. Freud. Em todas tem de haver o predomínio do princípio da realidade. Entretanto, o que se está tentando criar no Brasil é uma sociedade baseada no princípio do prazer. Se querem isso realmente, ou se é apenas uma fantasia, ou se estão naquela zona intermediária onde não querem decidir se aquilo é uma fantasia ou realidade, não se pode ainda afirmar. De qualquer forma, qualquer que seja a situação, isso já assinala um estado de coisas mais ou menos psicótico.

Isso é o que caracteriza a fase que estamos vivendo, um pouco por toda parte do mundo, mas de maneira mais extremada no Brasil, por ter sempre sido --- Meira Penna fez boa análise a respeito --- uma sociedade lúdica, em que o aspecto do divertimento e do prazer ocupa um espaço maior do que em outras sociedades. Porém, a tendência atual de radicalizar, de levar às últimas consequências e de fazer com que o prazer de uns tenha de ser motivo de temor e de perseguição de outros é um caso inédito na História. Nem no tempo dos césares isso era feito. Os césares praticavam isso, mas não era lei. Quando via um sujeito bonitinho, Calígula mandava capá-lo para transformá-lo em sua esposa, mas não tinha uma lei dizendo que as pessoas tinham de fazer isso --- era uma exceção ---, e isso não queria dizer que o comportamento do imperador fosse socialmente aprovado, mas somente socialmente aguentado, por ter ele a polícia ou o exército a seu favor e ninguém poder reagir. Mas que as pessoas gostassem disso? Ora, você gostaria disso? Você está andando pela rua e o homem manda capar você? Ninguém pode gostar de uma porcaria dessas. Não era lei, era apenas costume de um indivíduo ou grupo de indivíduos, mas hoje se pretende impor não somente o direito a essas coisas como também a impossibilidade de criticá-las por qualquer meio que seja. É um experimento inédito na história do mundo.

Voltando a radicalizar pelo método do exagero weberiano, imaginemos que, após a imposição desses novos valores, a pedofilia seja liberada. Ela não pode ser simplesmente liberada. Se for liberada, tem de, em seguida, ser legitimada socialmente como um valor e, consequentemente, críticas a ela serão também consideradas atitudes discriminatórias, hate speech etc. Isso significa que o direito que um indivíduo tem de se apropriar do corpo de uma criança --- de doze, de cinco, de seis, de sete anos --- como seu objeto de prazer será uma conduta que também terá de ser consagrada pela lei e defendida por instrumentos jurídicos contra qualquer crítica, que será considerada discriminatória. E isso está para acontecer.

Claro que todos esses processos são às vezes detidos ou abortados no meio do caminho por algum fator, seja por resistência popular, por impossibilidade intrínseca ou por dificuldades técnicas que surjam. Por exemplo, existindo o casamento gay, quais seriam os critérios do divórcio gay? Na impossibilidade de definir deveres conjugais recíprocos, as queixas de ordem sexual não poderiam jamais ser motivo para divórcio. E qual seria também o conceito de adultério gay?

Essas são dificuldades técnicas que fatalmente surgirão com o tempo e que poderão ser atenuadas na base da desconversa, porque hoje em dia as pessoas já fazem leis escritas com figuras de linguagem, podendo ter a interpretação que se queira. A própria racionalidade do sistema jurídico está sendo apagada. Ela já não existe mais. As leis são apenas imposições de interesses do governo ou de grupos de pressão. A lei e o arbítrio deixaram de ser coisas distintas, e tudo isso são consequências sociais do processo de que estamos falando aqui.

Já citei em artigo que, daqui a alguns anos, será proibido perceber a diferença entre uma mulher e um homem vestido de mulher. Certamente perceberemos claramente a diferença, mas não poderemos expressar nossa percepção porque será considerada ofensiva. Quando introduziram a permissão para o homossexualismo ostensivo no meio militar americano, ignoraram o fato de que a separação de alojamentos de homens e de mulheres foi criada para impedir que pessoas que se desejam sexualmente de maneira muito intensa estejam à noite deitadas no mesmo alojamento. Porém, se um soldado homossexual tem esse direito --- de dormir no mesmo alojamento com pessoas pelas quais tem desejo ---, por que as mulheres também não têm? Isso seria uma discriminação contra as mulheres, pois os homossexuais têm acesso direto a seus objetos de desejo, ao passo que as mulheres estão separadas dos seus por um muro. É um problema que fatalmente surgirá. Talvez não surja de imediato, mas não se pode disfarçar que isso aconteça. Às vezes esses tipos de problemas surgem e dão lugar a uma tensão permanente que não se expressa verbalmente e que vai mais ou menos para o inconsciente social, ou seja, todos estão se sentindo mal por causa daquilo, mas não chega a ser uma expressão verbal. As mulheres americanas, no entanto, sabem exigir seus direitos. [1:20] Dificilmente deixarão de reclamar esse direito mais cedo ou mais tarde, pois se um gay pode dormir no mesmo alojamento com o namorado, por que que elas não podem dormir com os delas no alojamento militar?

Tudo isso é uma situação de enorme confusão, que só pode ser administrada mediante a mentira e a manipulação. Não pode haver mais administração estatal baseada em direitos e deveres claros, explícitos e em um sistema legal racional. É necessário usar permanentemente a desconversa e a manipulação.

Portanto, é um novo tipo de sociedade que está surgindo diante de nós, na base dessa proibição de perceber. Creio que esse é um dos temas mais importantes para entender o que está acontecendo, embora chegue um ponto em que não é possível entender mais, onde simplesmente não há o que entender, em que a situação entra mesmo no domínio da psicopatologia.

Aluno: (...) Se a resposta a essa pergunta for "sim", quais são suas implicações imediatas?(...)

Olavo: É isso que estou dizendo. Algumas implicações são imediatas, outras são mediatas, a mais longo prazo. Há também as implicações reais, a percepção dessas implicações e a transmutação dessas percepções em movimentos e reivindicações sociais explícitas, que não são a mesma coisa.

Aluno: (...) Também seria esse --- usando uma expressão do próprio professor --- "um mal do qual o Ocidente talvez jamais poderá se recuperar"?

Olavo: Talvez. Mas não quer dizer que a humanidade não poderá se recuperar, porque quando esse processo chegar à sua perfeição --- se é possível conceber a perfeição do caos ---, a sociedade estará totalmente indefesa e será dominada pelo Islam com a maior facilidade, na base da "cuspida" ou do "grito". Imagine uma população inteiramente orientada pela ideia do caráter sacrossanto dos prazeres e intimidada para não ferir as fantasias sexuais de quem quer que seja. Como essa população vai defender-se de um ingresso avassalador do Islam no Ocidente? Não tem defesa. Chega um Aiatolá no meio da massa gaysista, dá dois gritos e todo mundo vai obedecer. Vão ficar todos aterrorizados... como, aliás, já ficam.

O temor das elites ocidentais de magoar muçulmanos não se dá por um bom sentimento que tenham com relação a eles, mas é "medo" simplesmente. Eles sabem que os muçulmanos não estão a fim de dialogar nem de transigir. Os muçulmanos fazem uma exigência e se não lhes obedecem cortam cabeças, explodem casas. Embora os muçulmanos sejam minoria no Ocidente, são uma minoria ativa e composta de gente muito combativa. Onde haverá gente combativa do outro lado? Quem morrerá pelo direito ao prazer? Pense bem, é uma coisa contraditória, que me lembra um filme do Woody Allen onde o condenam à morte e ele diz: "Mas isso será um tremendo atraso para a minha vida sexual".

Você pode morrer por valores que são superiores à vida, mas por valores que decorrem da vida, como por exemplo o prazer, não tem sentido morrer. Por exemplo, você pode arriscar a vida por uma certa quantia de dinheiro, mas somente se espera ficar vivo para poder gastá-lo ou pelo menos para poder transferi-lo a seus descendentes. Mas quantas pessoas morrerão pelo direito ao prazer em face do desafio do Islam? Acho que ninguém o fará e estamos vendo que realmente é assim, ou seja, que todos recuam. Isso pode ser o fim da civilização Ocidental e a islamização do mundo.

Aluno: Em relação ao advento do cristianismo o senhor diz que o entendimento da vinda do Cristo só foi possível devido à filosofia grega que o precedia. Logo, pode-se colocar o surgimento da filosofia em Sócrates, Platão e Aristóteles como uma forma de ação divina pré-planejada por Deus?

Olavo: Já pensei nisso. Existem certas escolas esotéricas islâmicas que consideram Platão e Aristóteles como profetas. Talvez não estejam tão erradas assim, pois quando foi necessário recorrer a Platão e Aristóteles para estruturar a teologia católica, a filosofia grega entrou não como acréscimo externo, mas como uma força estruturante que dá ordem interna àquilo. Isso seria impossível se não houvesse uma espécie de harmonia pré-estabelecida. Quando os teóricos escolásticos descobriram as obras de Aristóteles ficaram maravilhados, pois era aquilo de que estavam precisando para botar ordem nas coisas.

Não podemos esquecer que a teologia católica não surgiu como uma doutrina organizada desde o início. Pelo contrário, as primeiras gerações estavam simplesmente transmitindo a seu público algo que se chama "Evangelho", ou seja, "uma boa notícia". Estavam contando uma história: aconteceu assim e assado, o Filho de Deus veio e fez isso e aquilo, prometeu a salvação. E o que é isso? É uma doutrina? Não, isso é uma história, uma narrativa. A narrativa, no entanto, suscitava perguntas que podiam tomar forma de objeções até mesmo hostis. Então, os primeiros cristãos viam-se obrigados a fornecer razões de credibilidade, que começaram a ser oferecidas esporadicamente e de maneira avulsa, mas não formavam uma doutrina. Podia até haver explicações contraditórias, e muitas mesmo eram inválidas, mas funcionavam na ocasião para esse ou aquele público. Chegou um momento em que o número dessas explicações, justificações e argumentações era tanto que precisavam colocar alguma ordem. Foi em vista disso que surgiram as sumas, que não seriam possíveis sem as técnicas criadas por Platão e Aristóteles.

Esse é um dado muito importante. Quando digo que o cristianismo não é uma doutrina, mas uma sucessão de fatos, era para ser a coisa mais óbvia do mundo. O cristianismo só se estrutura como doutrina muito tardiamente. É claro que essa transformação, naquela altura, já era absolutamente necessária, porque a Igreja já era a influência dominante entre os intelectuais que, por sua natureza, não se contentavam em ouvir uma história e achá-la linda, mas queriam saber o porquê e começaram a fazer perguntas. Algumas perguntas podiam ser até cretinas, mas alguma resposta tinha de haver. E se as respostas não conferissem entre si era melhor não ter dado nenhuma, porque as duas respostas se anulariam uma à outra e colocariam você em uma situação difícil.

A necessidade de estruturar e de organizar é tardia. No que diz respeito à teologia moral, por exemplo, a primeira coisa realmente organizada foi feita por Santo Afonso de Ligório no século XVIII. Tem coisas em que as pessoas não pensam. A ideia de dogma só surge no Concílio de Trento, mas insistem em dizer que o cristianismo é uma religião dogmática. O cristianismo começa a ser uma religião dogmática a partir do Concílio de Trento. Antes havia uma enorme variedade de opiniões que coincidiam vagamente no todo. Porém, a ideia de separar o que é mera doutrina do que é dogma só surge no Concílio de Trento, muito tardiamente.

Creio que isso, de alguma maneira, se não responde, pelo menos deixa insinuado uma possibilidade de resposta. Não sei se o advento de Platão e Aristóteles foi pré-planejado, mas pelo menos foi providencial.

Transcritores: Emanuel Franchetti Silva, Filipe Zomkowski, Guilherme Zomkowski e Eduardo Zomkowski -- Instituto Olavo de Carvalho

Revisão: Fabiano Rollim