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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 88

18 de dezembro de 2010

Boa noite, sejam bem vindos! Eu queria primeiro agradecer todas as mensagens pela recuperação da minha saúde, já estou em forma de novo. Tivemos aqui uma pneumonia quando a temperatura aqui chegou a dez graus abaixo de zero; e eu advirto os que vierem para cá --- por que brasileiro não acredita em frio, acha que frio é aquilo que ele sente --- O Xavier Zubiri diz que os animais vivem na estimulidade: eles só sentem o estímulo corporal, só percebem aquilo que chega ao seu corpo; mas o ser humano tem a noção da realidade. Portanto, o frio não é só aquilo que ele sente, o frio é algo que é frio! Mas eu acho que os brasileiros não chegaram a este grau de evolução ainda, eles acham que o frio é só aquilo que eles sentem. Eu mesmo sou um pouco vítima disso, eu não estou sentindo o frio, eu acho que não está frio... E daí o frio me informa da sua existência sob a forma de uma pneumonia.

Tem vários assuntos para esta aula de hoje que de certo modo nós temos que atualizar, e que foram de algum modo saltados nas aulas. Eu deveria ter falado disto muito antes, mas infelizmente só me ocorreu agora. Muitas das dificuldades que o pessoal do Brasil encontra para avançar nestes estudos, elas não vem da falta de cultura superior, mas de deficiências no aprendizado elementar, as quais não podem ser superadas mediante a aquisição de cultura superior. Por exemplo, se o indivíduo tem uma deficiência de leitura, não adianta ele ler Goethe e Shakespeare, isto não melhora em nada [a situação]. O aprendizado elementar não pode ser saltado de maneira alguma. E o fato é que todas as pessoas que têm menos de cinqüenta anos aí no Brasil foram educadas por este método sintético, então encontram algumas deficiências de leitura que não estão no nível da significação, mas no nível auditivo, na distinção entre fonemas. As pessoas pensam realmente que a linguagem é composta de palavras, mas não: ela é composta de fonemas, e estes fonemas formam um sistema entre si; este sistema não tem, por assim dizer, sentido nenhum, é apenas uma articulação de sons; mas é com base nisto que mais tarde se construirá a articulação do sentido, ainda com a intermediação da grafia.

Quando o professor Luiz Faria esteve aqui ele deu amplas explicações sobre por que a coisa é assim. O ouvido humano tem capacidade de aprender facilmente milhões de fonemas até uma certa idade e quanto mais fonemas ele é capaz de aprender nos primeiros anos, mais flexível será o seu aprendizado da língua mais tarde. Infelizmente as pessoas falam pouco com crianças. Eu até lhes contei a história daquele brasileirinho que eu encontrei durante um recenseamento escolar que aos oito anos de idade não tinha nome ainda. Eu [estava] lá preenchendo a ficha [e perguntei]: "E esse aqui como é que chama?" "Não, esse aí não tem nome não". "Mas o que é isso aí, é minhoca, tatu bola? Isso aí é um cidadão brasileiro, tem que ter um nome!". Então se o sujeito não tinha nome, praticamente ninguém falava nada com ele. Então assim fica difícil.

Se além de haver esta pobreza de informação fônica nos primeiros anos, quando o sujeito vai estudar ela ainda vai por este método sintético de Piaget, Vigotsky e outros, aí que a coisa fica realmente difícil. Estão achando que estão saltando uma etapa do aprendizado, mas esta etapa não se salta. É mais ou menos como o sujeito querer aprender a andar de bicicleta antes de ter aprendido a andar com as duas pernas. Esta deficiência fica para sempre e se traduz pela quase total incapacidade que a maioria das pessoas têm hoje, isto incluindo as mais cultas e inteligentes, mais capazes, de escrever com a ortografia correta. Por que a ortografia não é senão a tradução escrita, em sinais gráficos, de distinções que você pega entre os sons. Se você não pega as distinções entre os sons você não vai aprender a ortografia correta jamais. Por que o problema não é apenas da correspondência entre um som e um grafismo, é da diferença entre os vários sons. Em algumas línguas esta correspondência é bastante problemática. No inglês é terrivelmente problemática. Primeiro, as distinções entre sons aqui são muito mais sutis que nas línguas latinas, tem coisas quase inaudíveis. [Como resultado,] você vê que os erros de ortografia aqui nos Estados Unidos são muito comuns, e a pessoa tem que continuar aprendendo ortografia pelo resto da vida dela. Nós [, que falamos] em português somos brindados com um sistema de diferenciações muito nítido, muito claro. As sílabas portuguesas são bem separadinhas umas das outras. Portanto não há uma dificuldade insuperável. Mas se o aprendizado no começo não preparou o terreno pra isso, a pessoa vai ficar com aquela dificuldade de distinção de som pelo resto da vida. Por mais que ela estude, por mais que ela leia. Ela pode estar estudando aí Aristóteles, Kant, etc., isto não vai corrigir tão fácil.

Por isso mesmo que eu já vi algumas teses universitárias, que o pessoal me manda, às vezes [com] coisas altamente requintadas de filosofia e um erro de ortografia em cada linha. E onde tem erro de ortografia fatalmente você vai ter erros de sintaxe também. Você tem um material que às vezes está altamente elaborado do ponto de vista lógico, mas não tem uma elaboração equivalente do ponto de vista gramatical, o que significa que não vão se tornar produto de cultura superior. Se o sujeito escreve uma tese que está cheia de boas idéias, está bem pensada, bem articuladinha, mas não está corretamente escrita e adequadamente escrita, então aquilo vai ser sempre uma demonstração de força pessoal. Quer dizer, ele mostrou que ele é capaz de fazer, mas ele não fez ainda. Os produtos de cultura superior se caracterizam sobretudo pela forma acabada. Eles tem uma forma que é estabilizada e se incorpora então na cultura superior. Se não tem a forma então é como se fosse uma estátua que você fez em barro, mas o barro não seca, então aquilo toda hora perde a forma. Se não tem forma, se tem apenas "conteúdo", conteúdo significa uma intenção que está indo em direção a uma forma, mas ainda não chegou lá. Mais ainda: a única coisa que sobra de fato das grandes obras da cultura é a forma, por que o "conteúdo" é comum a toda a humanidade. Tudo aquilo que Shakespeare escreveu está mais ou menos na alma de cada um. A única diferença é que Shakespeare conseguiu apreender aquilo como uma forma --- não só apreender, mas conseguiu registrar de algum modo. É como se esses conteúdos estivessem constantemente fluindo por todas as mentes, mas de uma maneira muito rápida e inapreensível, de maneira que o sujeito percebe a coisa e no instante seguinte já esqueceu.

Certamente a diferença de nível de consciência nas pessoas não está na diferença de sensitividade. A nossa sensitividade é mais ou menos igual. A diferença está exatamente na capacidade de retenção, e portanto na capacidade de criar uma forma com aquilo. Esta é a única diferença. Isso é uma coisa que eu tenho observado: muitas pessoas me escrevem dizendo: "Puxa, você disse exatamente aquilo que eu queria dizer e não conseguia". Só que no Brasil isso significa o seguinte: que você não tem mérito nenhum, o mérito é de quem percebeu sem conseguir dizer. O cara que disse, ele está ali apenas como uma espécie de boneco de ventríloquo... quando, justamente, você conseguir dizer o que os outros também estão percebendo[, mas sem conseguir dizer,] é o único mérito literário que existe. Exatamente o único. A única diferença entre Shakespeare e eu é que ele conseguiu dizer umas coisas que eu também pensei, mas eu não consegui dizer. Eu pensei por uma fração de segundos, não me tornei proprietário daquilo. Até a expressão [0:10] "criação literária" é um termo um pouco exagerado. Não existe propriamente uma criação, mas um registro; existe uma retenção e um registro. E na diferente capacidade de retenção e registro reside a diferença entre o Seu Zé Mané e Shakespeare ou Camões. Também não se trata do conteúdo: os conteúdos que nós percebemos são mais ou menos os mesmos. Nós temos as mesmas sensações, as mesmas emoções. Todo mundo percebe a mesma coisa, mas um percebe por uma fração de segundo, e o outro retém. É uma questão também de fixação da atenção. Porém, se a base fônica não está perfeita, se o indivíduo não tem as distinções e a retenção das distinções entre milhares de fonemas diferentes, então ele também não vai ter, no grau seguinte, as distinções entre as várias percepções.

É mais ou menos assim, se você não tem a distinção entre as cores elementares, você não vai poder, quando aprender pintura, combiná-las direito. As cores e a fabricação das tintas não tem absolutamente nada a ver com a qualidade da pintura, mas se você não domina esta distinção puramente material, as distinções mais sutis depois, que dizem respeito à forma também vão lhe escapar. Vocês já viram os quadros do pintor Maurice Utrillo (1883-1955)? É um sujeito que praticamente só usava a cor branca, só que na cor branca dele tinha tantas e tantas diferenças que parece que tinha uma paleta inteira! Coisas que normalmente escapariam ao cidadão comum. Agora, se ele próprio não fosse capaz de perceber estas diferenças entre várias qualidades do branco, como ele poderia usar a tinta para fazer isto? Primeiro ele teve que aprender a diferença entre cores. A cor é como se fosse um negócio chapado, várias cores. Se você pegar uma escala de cores, nada está representado ali, você só tem a cor chapada. Você perceber estas várias distinções não fará de você um grande pintor, mas sem elas você também não será pintor nenhum...

Muitas vezes, eu ouvia [alguém] reclamar --- no meu tempo em que a gente não aprendia pelo método sintético ainda: aprendia letra por letra, sílaba por sílaba e ia montando o sistema gradativamente --- e algumas pessoas reclamavam que as regras da gramática eram arbitrárias, e exigiam então uma explicação lógica das regras da gramática; mas as regras da gramática não tem nenhum motivo para ser lógicas, assim como as distinções entre as cores na fabricação de tintas não tem por que atender a regras estéticas da pintura. É um segundo sistema de regras que vai se implantar sobre o primeiro, e vai fazer dele a sua matéria. As regras da gramática são em primeiríssimo lugar regras de combinação de sons. E Dante explicava que a gramática se refere à construção material da linguagem e essa construção material consiste evidentemente em fonemas que depois podem ser subdivididos em grafismos e em cima disso se constrói então a rede de significações. Você exigir que as regras da gramática sejam "lógicas" é a mesma coisa que você exigir que a paleta de cores atenda às regras da estética pictórica, que não tem nada a ver com a história.

Isto significa que o sistema dos sons tem simplesmente que ser decorado. Não há mais nada a entender nele. Assim como as diferenças entre cores, o que o pintor tem que fazer? Ele tem que decorar as diferenças. Não há mais nada que ele possa fazer. Ele não tem que entender aquilo, aliás, não há o que entender. O entendimento entra depois. A gente observa, por exemplo, que as pessoas ficam espantadas com o sucesso dos chineses em todos os ramos das ciências, das artes, etc. Um dos motivos disso é que o sujeito, em chinês, para pedir mamadeira para a mamãe ele precisa já ter aprendido cinco mil fonemas, para ele poder começar a falar. Para uma criança pequena cinco mil fonemas é brincadeira. A hora mesmo de aprender a decorar os cinco mil fonemas é na primeira infância. Quando o chinês nasce, ele já recebe esse poderoso auxílio à sua inteligência: quanto mais fonemas você decorar melhor. Esse negócio de decorar... não esqueça o seguinte: Leibniz dizia que o sujeito que tivesse visto mais figurinhas, mesmo que fosse de coisas totalmente imaginárias, e que conseguisse retê-las na memória seria o mais inteligente, porque ele teria aí os elementos para ele combinar depois e construir as significações que ele quisesse. Esta aquisição de elementos, se ela é deficiente, ela vai limitar sempre as suas possibilidades.

Como nós podemos corrigir isso na vida adulta? Uma das maneiras é você ler textos em voz alta, procurando ser o mais claro possível. Decorar poemas e tomar ditados. Não se sintam humilhados de eu chegar para vocês --- tem pessoas aí que são doutoras, PhDs --- e dizer: "Ah, agora você vai tomar um ditado". Este aprendizado é extremamente importante, por que ele é como se fosse a base física da inteligência, e o ser humano de fato não tem a capacidade de apreender nada de imaterial a não ser através dos seus equivalentes, dos seus símbolos materiais.

Veja que uma das coisas miraculosas que acontece no mundo das letras é o fato de que na poesia você tenha uma música dos sons, e em cima desta música você possa construir uma outra música invisível, inaudível, dos significados, e que as duas tenham uma correspondência entre si. Isto só acontece na alta poesia. Isto significa que o sistema dos sons, os fonemas, ele em si mesmo não faz sentido nenhum, e não tem música nenhuma. Mas quando você os combina, você cria uma música. Esta música em princípio não tem nada a ver com o significado do que você vai dizer, mas a poesia justamente consegue criar esta ponte entre o aspecto puramente material da língua e a camada de significações. Por que isto acontece? Eu não sei. Isto é um milagre de algum modo. Também não podemos esquecer o seguinte, que este sistema sintético de ensino da linguagem, todo ele deriva, em última análise, do Ferdinand de Saussure, o fundador da lingüística. E ao fundar a lingüística ele partiu de certas distinções que eram meramente operacionais, e que evidentemente não captam o fenômeno da linguagem na sua inteireza concreta. Quando aquilo que Saussure descreve como sendo o fenômeno da língua não é o fenômeno da língua propriamente dito, mas é o fenômeno da língua tal como será estudado pela lingüística. Ou seja, a lingüística tem o seu campo de interesse e o seu corpo de critérios e em seguida ela recorta e compõe o seu objeto em vista do seu método. É o método que determina o objeto e não ao contrário. Você verá que não existe no Ferdinand de Saussure nem a mais mínima meditação sobre a natureza da linguagem, sobre a origem da linguagem, sobre o valor da linguagem, etc. A linguagem e a língua de que fala o Saussure são o que? São o objeto da lingüística, não são a língua que nós falamos, o fenômeno real da língua com toda a sua amplitude histórica, social, espiritual, etc. [0:20] Um dia eu vi no Brasil um livro que se chamava o seguinte: Ensino da língua com base na lingüística e não na gramática. Eu não li o livro, mas só pelo título eu fiquei horrorizado, saí correndo e vim parar aqui na Virgínia. Por quê? A língua de que fala a lingüística não é a língua real, ela é um modelo que é como se fosse o método da lingüística projetado sobre o mundo exterior [que] produz um determinado objeto que é imaginário. A língua tomada apenas como sistema de significações. A língua é milhões de coisas. Na verdade ela é um fenômeno dos mais complexos e mais ricos que existe no universo e ela não pode se identificar com o objeto de nenhuma ciência em particular, muito menos com o da lingüística. Por exemplo, se você tentar explicar qual é o mistério do casamento de som e sentido nos sonetos de Shakespeare. Tente estudar isto pela lingüística de Saussure e você nunca vai chegar. Tente explicar as propriedades mágicas da linguagem, por exemplo, a cura pela palavra, que é um fenômeno conhecido desde a antiguidade. O Hipócrates já mencionava isto, Hipócrates, Galeno, todos eles conheciam isto. Como vamos explicar, pela lingüística de Saussure, partindo da arbitrariedade do signo, o fenômeno da cura pela linguagem? E todos os fenômenos de magia associados à linguagem? Tudo isto é a linguagem tal como ela existe realmente. Agora, a "linguagem" e a "língua" da lingüística são outra coisa. São este mesmo fenômeno recortado para poder servir a um certo tipo de observação e classificação sistemática. Recentemente eu estive lendo um livro de um sociólogo americano, um homem de grande gênio chamado James C. Scott, e o livro estuda alguns fracassos monumentais de planos estatais de construir uma sociedade melhor, ou de criar algo benéfico para os seres humanos. Entre esses casos, evidentemente, estão a coletivização da agricultura na Rússia, o grande salto para frente do Mao Tse-Tung, e a construção de Brasília. Entre os exemplos de fracassos monumentais do planejamento está lá Brasília como uma espécie de primor, por que Brasília foi construída para ser a cidade que expressava a sociedade perfeita e a primeira coisa que ela fez foi criar um círculo de favelas em volta. Um dia eu conversando com um amigo meu que é diplomata ele disse: "Uma das coisas que eles esqueceram quando classificaram todos os bairros, os quarteirões de acordo com as funções que iam ser desempenhadas no Estado pelos seus moradores, eles esqueceram as prostitutas. Vários daqueles apartamentos funcionais, que teoricamente seriam para diretores de departamento, etc., foram ocupados por prostitutas de alto gabarito. Só isso já desfigurou todo o plano. Que planejamento social, que sociedade humana existe sem prostituta? Nunca existiu nenhuma que eu saiba. E sobretudo, se você está construindo para uma clientela de altos funcionários, que tem dinheiro estatal sobrando, é lógico que uma parcela desse dinheiro será gasta nas diversões públicas e privadas --- sobretudo nas mais privadas que existe. Tanto é assim que criaram um bordel em Londres chamado Brasília. [Uma] brasileira montou lá um bordel de grande sucesso chamado Brasília. Por aí você vê como a realidade foi parar longe do planejamento estatal. O James Scott pergunta qual é a origem, como se formaram esses grandes desastres. Isso não quer dizer que o planejamento estatal de tudo deu errado, mas sobretudo os que dão mais errado são os mais abrangentes e os mais perfeitos. Você veja que no caso de Brasília, eu tenho em casa um livro, são dois engenheiros russos, que se chama A cidade comunista ideal. Quando você lê o livro você vê que é igualzinho [a] Brasília. O Scott se pergunta quais são as condições que tornam possíveis esses grandes desastres. Vocês já irão ver o que isso tem a ver com o aprendizado da linguagem.

A primeira dessas condições é o seguinte: até o século XVIII os governos conheciam muito pouco as suas próprias nações e não sabiam nem quantos habitantes tinha o país, quanto se produzia, não sabiam nada. Então quando se forma a administração estatal, os rudimentos da administração estatal moderna, a primeira preocupação é tornar --- é expressão dele ---, tornar a sociedade "legível" para o administrador estatal. Quer dizer, fazer daquele caos, daquela massa humana um algo que fosse inteligível para o governante, de modo que ele pudesse entender e, portanto, pudesse tomar decisões que fossem pertinentes. Aí começa então as estatísticas, o recenseamento, esta coisa toda. No caso da França o pioneiro disso foi Luís XIV. [Ele] criou uma vasta administração estatal, que então necessita ter as informações sobre tudo o que está se passando na sociedade. Mas ainda assim o controle que o governo tinha disso era uma coisa muito vaga. Até o tempo da Revolução Francesa, ninguém sabia o número de impostos que havia na França. Era tantos impostos, tinha imposto federal, provincial, municipal, distrital, cada um com critério diferente, medido de maneira diferente. Cada cidade e até cada bairro, tinha o seu sistema fiscal completamente diferente. Os nomes dos impostos são os mais extravagantes possíveis. E em cima estava o governo federal administrando este caos. A partir daí, os cientistas e técnicos contratados pelo governo para isso, começam a criar sistemas de classificação que permitam então dar à sociedade humana uma forma que fosse inteligível para o governante.

Só que é o seguinte: esta classificação começou a ser feita não em função da realidade da vida social como tal, mas em função dos interesses práticos administrativos do Estado. Quer dizer que só entravam nas estatísticas oficiais os aspectos que pareciam ao governo interessante para ele e não aqueles que fossem relevantes para a sociedade. Por exemplo, todo o patrimônio florestal da França foi classificado em termos de metragem das tábuas, por que se tinha em vista somente dois usos das árvores, ou era para construção ou era para combustível. Só isso interessava para o governo, por que era aí que iria entrar a taxação. Acontece que uma árvore tem milhões de outros usos possíveis, que são economicamente relevantes e são socialmente relevantes, mas que não entravam na estatística oficial. Por exemplo, a utilização possível das folhas como alimento para os animais, ou para a fabricação de remédios, ou a utilização das cascas para fazer o teto das casas, e assim por diante. O Scott então cita um verbete de uma enciclopédia, que dá a lista das utilizações de uma só árvore, que é o álamo [ou olmo], e é uma infinidade de coisas. Tudo isso era então ignorado. O sistema classificatório que os governos usam para descrever a sociedade humana refletem a estrutura do aparato fiscal e não a estrutura da sociedade. Mas acontece o seguinte: como este conjunto de dados não serve só para informação, mas é também base das decisões do governo, estas decisões por sua vez vão gerar outras realidades que modificarão a estrutura social real. [0:30] Por exemplo, quando se cria a plantação sistemática de árvores para a indústria madeireira ou para servir de combustível. Então se criam aquelas fileiras de árvores, todas classificadinhas, todas do mesmo tipo, plantadas em linha reta. Estas árvores modificam brutalmente o sistema ecológico inteiro. Então aí você já tem uma espécie de segunda realidade que se sobrepôs à primeira e, em parte, aquele mundo ideal concebido pela administração estatal se torna real de algum modo.

Porém, se antes disso, o caos social já era ininteligível, esses dados o tornam ainda mais ininteligível. Curiosamente, James Scott observa que esta vontade organizadora do Estado Moderno se expressa menos na organização real da sociedade existente do que na construção de certos símbolos visíveis de ordem, que se expressam, por exemplo, num urbanismo fundado na simetria. Nos desenhos, por exemplo, nos jardins de Versailles, que são todos organizados geometricamente, e na criação de cidades que tem toda uma forma geométrica, uma simetria. E pergunta ele: o que a simetria no espaço tem a ver com a organização da sociedade? Absolutamente nada. Mas, no entanto, até hoje você pode ter o espaço disposto geometricamente e ali você tem um caos social. Por exemplo, estes conjuntos habitacionais, todos rigorosamente geométricos e simétricos criados pela Bauhaus, que se espalharam pelos Estados Unidos, pelo Brasil, etc., todos nós sabemos que estes conjuntos habitacionais são abrigos de traficantes, de viciados, de prostitutas, etc. Ali você tem o caos social completo, e mais ainda, o fato de que nestes conjuntos uma parte dos serviços sejam coletivos, cria uma espécie de promiscuidade entre os habitantes. Mais ainda, como estas coisas são construídas com uma certa economia de material, você não tem o isolamento suficiente entre um apartamento e outro, então você ouve os vizinhos brigando, ouve os gemidos do casal na cama, e assim por diante. Isso tudo vai criando uma modificação mental que foi uma verdadeira sementeira de delinqüência, confusão, vícios, etc.

Portanto, este geometrismo e simetrismo das construções, ele virou como um símbolo substitutivo da ordem, embora ele gerasse exatamente o contrário, que é o caos. E Brasília é um exemplo característico disso: tudo em Brasília é simétrico e "visualmente" arrumadinho. Mas o que está acontecendo dentro dos apartamentos? Por exemplo, o comércio ilícito de apartamentos funcionais? Qualquer indivíduo que conhecesse a sociedade brasileira e conhecesse a classe política brasileira, deveria saber que isso ia acontecer. Só que não existem esses conceitos no urbanismo. A ciência do urbanismo só vê o que é do seu interesse, o resto é para o sociólogo, para os psicólogos sociais, etc. A criação desta administração central racionalizada é a primeira das condições para que haja um grande desastre de planejamento social. Claro que também possibilita o sucesso em alguns casos. Então diz o Scott: a primeira condição para o desastre é a legibilidade da sociedade nos termos que interessam à administração estatal. Em segundo lugar, é preciso que a isto se acrescente uma ideologia modernista. Ele, até para distinguir entre várias camadas, vários graus de ideologia, ele chama ideologia alto-modernista, quer dizer, é o modernismo extremado, que acredita então na possibilidade de você criar cidades ideais a partir da modificação do movimento físico, a partir da implantação de leis, etc., é a segunda condição. Terceira condição, é necessário que exista um Estado autoritário que tenha força para impor estas modificações, por que senão elas serão dissolvidas. Numa democracia você pode discutir a coisa infindavelmente e os planos vão por água abaixo. Quer dizer, surgem tantas objeções e tantas confusões, que não dá para implantar a reforma. Então, precisa de um Estado autoritário. E a quarta condição é uma sociedade cultural e psicologicamente debilitada que seja incapaz de reagir ao planejamento estatal. Quando junta estas quatro coisas, então você tem aí a promessa do grande fracasso do planejamento estatal.

No século XX, com a idéia da engenharia social, praticamente se dissemina a crença de que vários grupos humanos estão habilitados a reformar sociedades inteiras, sem consultar a sociedade. A hipótese de consultar a sociedade já se tornou remotíssima, por que a própria existência da sociedade como fenômeno concreto já desapareceu sob a grade de conceitos classificatórios, usados pela administração estatal. Por um lado existe a sociedade real, mas ela é inapreensível: só sobra aquilo que está no recenseamento e pode ser quantificado. Então esses dados quantificados constituem o que é a sociedade vista pelo Estado, em vista do interesse da administração. E esse interesse se traduz sobretudo na simplificação, evidentemente. Se você tiver uma diversificação de critérios, não há possibilidade de planejamento central. Por exemplo, se você tiver uma autonomia provincial ou municipal muito pronunciada, você terá uma diversificação. Cada cidade faz uma lei diferente, então como é que você vai fazer um planejamento central? A idéia mesma de planejamento estatal vem junto com a idéia mesma de unificar e simplificar. Você unifica e simplifica os critérios, mas você não modificou a sociedade ainda: a sociedade continua diversificada e confusa como antes. A introdução aí do planejamento estatal entra como mais um elemento complicador do conjunto! Isso quer dizer que, na prática, quanto mais unificado, racionalizado e organizado está o planejamento, mais confusão você vai gerar. Em outras circunstâncias, onde você não consegue um planejamento central eficiente, é por que existe uma diversidade local, e existem condições para uma discussão democrática das propostas. Esta discussão, por sua vez, pode ser enviesada por outros planos de engenharia social que cruzam com os objetivos nominais do Estado.

Eu vou dar um exemplo. Nos Estados Unidos no governo do [George H. W.] Bush e, depois, [no governo do Bill] Clinton, eles estavam tentando introduzir um sistema de testes para avaliar a produtividade das escolas e o aproveitamento dos estudantes. Então seria um teste nacional, seria aplicado uniformemente em todas as regiões e cidades. Isso suscitou tantas objeções e tantas confusões que até hoje não foi possível introduzir o teste. Como no Brasil, nos temos o ENEM, [mas] não existe o ENEM americano, não foi possível implantá-lo, devido ao numero de objeções. Entre estas objeções, vejam vocês, as mais terrificantes vieram da parte de grupos interessados em implantar o vocabulário politicamente correto. Ou seja, também é, como se diz, um plano de [0:40] engenharia social que visa modificar a sociedade de acordo com certas pautas, que são as que aquele grupo escolheu. Tem um livro de uma senhora chamada Diane Ravitch em que ela conta esta história, ela foi subsecretária de educação durante um tempo, trabalhou nesse projeto e ficou quase alucinada com o número de objeções que surgiam na escolha dos textos para os testes. Os textos foram escolhidos assim: textos populares, nenhum clássico da literatura, coisa de razoável inteligibilidade para as crianças da quarta série, quarto ano. Tinha um texto sobre o Monte Rushmore, onde tem aquelas quatro estátuas dos presidentes, e o texto estava muito didático, historicamente certo. Mas daí numa das editoras de testes que estavam concorrendo nesse caso --- cada editora tinha uma comissão encarregada de fiscalizar o que pudesse haver de viés ou de preconceito nos textos, e eram inúmeras as comissões --- aconteceu que tinha um índio navajo, e os navajos não gostavam daquelas estátuas porque foram construídas num território que era deles, e aquilo para eles parecia mortalmente ofensivo. Então o texto foi tirado. Tinha outro texto que falava sobre a vida nas montanhas, etc., então o texto foi considerado discriminatório contra as pessoas que viviam fora daquela região. Tinha outro texto sobre um rapaz cego que se tornou um alpinista famoso, então o texto também foi vetado por que era discriminatório contra as pessoas visualmente incapacitadas. Ou seja, o fato de você elogiar um indivíduo por ele se tornar um alpinista apesar de cego, foi considerado discriminatório por que estava insinuando que a pessoa que não vê tem alguma desvantagem em relação àquela que vê, então isto é altamente discriminatório!

Ela dá uma coleção impressionante desse negócio, você lê aquilo e diz: "Mas isto é um hospício, evidentemente!". Veja que o projeto do teste era o de introduzir uma ordem estatal na educação federal, na educação do país inteiro. Claro que houve objeções de outro tipo também, objeções conservadoras, no sentido de que não seria lícito o governo federal controlar a educação. Quer dizer, as cidades, as regiões, tem o direito de educar as crianças do jeito que elas bem entenderem. No Brasil seria quase impossível surgir este tipo de discussão. Em primeiro lugar por que ninguém está interessado em educar criança nenhuma, todo mundo querendo empurrar isso para o governo federal. Agora, os Estados Unidos tem uma longa tradição de educação local. Se você comparar, por exemplo, a educação nos Estados Unidos e no México, no México a educação sempre foi estatal desde o século XIX, e foi um desastre completo, ao passo que aqui só se criou um ministério da educação no governo Carter. Mesmo assim esse ministério não tem poder regulatório sobre toda a educação, até hoje não tem. A educação deixada por conta da sociedade, quer dizer, por conta das escolas, dos sindicatos, das fábricas, cada um criava a escola do jeito que bem entendia, funcionou muito melhor do que a educação estatal. Mas quando tentaram implantar o teste, este projeto de intervenção planejada na sociedade, cruzou e entrou em choque com outro projeto, que é o projeto do politicamente correto. Também é um projeto de engenharia social, e está empacado até hoje o teste --- feliz ou infelizmente, até hoje não pode ser implantado.

O James Scott diz que uma das quatro condições é a existência de uma ideologia dominante, de tipo alto-modernista. Ou seja, uma ideologia utópica, que acredite na possibilidade da criação de uma sociedade mais perfeita, a partir da ação política organizada. E ele diz que esta ideologia se legitima com o discurso científico, mas que em si mesma ela não tem nada a ver com a ciência. Mas foi justamente aí que a coisa me chamou a atenção: se isto tem algo a ver com a ciência ou não, é algo que escapa do assunto que o Scott está estudando. Ele está estudando do ponto de vista sociológico, ele não é um historiador das ciências. Mas, eu até já mencionei isso aqui em outras aulas, você veja que é característico de toda a ciência modelar o seu objeto segundo os seus métodos, e não segundo a "natureza" destes mesmos objetos. Evidentemente, qualquer ente do mundo real pode ser visto sob uma multiplicidade de ângulos, não sendo possível deduzir um a partir dos outros. É a convergência desses ângulos num objeto que determina o caráter de objeto concreto, de ente real existente.

Por exemplo, se você pega um cachorro, um cachorro tem um valor afetivo para o seu dono, tem um valor econômico para o criador do cachorro, tem uma atuação social na medida em que ele pode sair, fazer cocô no jardim do vizinho, pode morder uma pessoa na rua, etc., então ele tem que ser objeto de uma série de regulações sociais. Ele tem um aspecto anatômico, aspecto fisiológico, aspecto embriológico, por exemplo, a gestação do cachorro é dessa maneira, que é diferente da gestação do camelo, e assim por diante. Todos esses aspectos são absolutamente inconexos, não é possível você estabelecer nenhuma correlação entre a embriologia do cachorro e o fato dele ter se tornado um animal doméstico e um objeto de afeição do seu dono. No entanto, o cachorro que nasceu por aqueles processos embriológicos é o mesmo cachorro que tem um dono e que é objeto da afeição do dono. Existe alguma ciência que seja capaz de articular estes dois aspectos? Não. Portanto, a ciência vai ter que escolher um aspecto e estudar o bicho sob aquele aspecto. Isso quer dizer que a mesma noção simplificadora e unificadora que existe na administração estatal existe na ciência também. E uma coisa seria impossível sem a outra. Isso quer dizer que a ideologia alto-modernista não é tão pouco científica quanto James Scott a pretende. Ela não é uma tentativa de apenas legitimar um raciocínio estatal, um raciocínio baseado no interesse estatal, mediante o uso de uma linguagem científica ou de pretextos científicos. Algo do espírito da ciência se traduz nessa mesma idéia do planejamento estatal e vice-versa.

Veja que a partir da formação da ciência moderna, o predomínio dos aspectos matemáticos sobre os outros aspectos da realidade, e portanto a exclusão do aspecto essencialista ou substancialista, a exclusão da pergunta "quid?" --- o que é? --- faz com que todos os objetos da ciência sejam eminentemente objetos da ação tecnológica em cima deles. Ou seja, toda a ciência moderna, a partir de Galileu e Newton, não nos diz mais o que uma coisa é, mas somente o que se pode fazer com ela. Isso quer dizer que a idéia do planejamento estatal centralizado, racionalizado e organizado já estava embutida na própria concepção [0:50] da ciência moderna. Claro, ciência que cria possibilidades de ação absolutamente extraordinárias, porém todas estas ações, todas elas, padecem do mesmo problema de que padece o planejamento estatal: é que todos estes enfoques enxergam o mundo à luz de um interesse ativo que o ser humano tem em transformar estas coisas em tais ou quais outras, e não à luz da pergunta pelo conhecimento da coisa. A exclusão da pergunta "quid?" é, de fato, a exclusão do conhecimento.

Entre as várias ações que você pode cometer com relação a um objeto qualquer, está a de perguntar o que ele é e a de querer compreendê-lo. Por exemplo, eu posso olhar para uma vaca e perguntar: "Mas o que é isso?". Então podemos ter aquela atitude de estranheza, de curiosidade, que segundo Aristóteles, é o início do conhecimento, e da qual surge a pergunta: "Quid est?" O que é? Claro que eu também posso vender a vaca, eu posso ordenhar a vaca, eu posso matar a vaca, comer a carne, usar o couro para fazer um casaco, e assim por diante. Eu posso fazer muitas coisas com qualquer objeto, e somente uma dessas coisas consiste em perguntar o que é. E se as outras atitudes são legítimas, esta também tem que ser. Só que curiosamente o surgimento da ciência moderna vem junto com a exclusão e às vezes a proibição da pergunta "quid est?". Então nós criamos um abismo entre ciência e ontologia. Ou você conhece o objeto desde o ponto da ciência, desta ciência, ou daquela, ou daquela outra, ou você levanta a pergunta ontológica. Não é de estranhar, portanto, que longe de nos fazer avançar no conhecimento da constituição da realidade, a ciência contribuísse muito mais para a criação de uma segunda, de uma terceira, e de uma quarta realidade, ao ponto de que a simples atitude natural de curiosidade que gera a pergunta O que é?, ter-se tornado uma coisa estranha aos meios científicos. É uma pergunta que fica reservada às faculdades de filosofia? Não, mas as faculdades de filosofia também tem o mesmo problema, elas também são afetadas pelo progresso da ciência, da tecnologia, e freqüentemente induzem a uma atitude de desejar servir ao avanço das ciências. Então surge a concepção, por exemplo, do Bertrand Russell, da filosofia como síntese, enciclopédia das ciências.

Mas note bem. Se você somar tudo o que todas as ciências sabem sobre um objeto, você não vai obter um único objeto concreto, porque todos os enfoques científicos são apenas a transposição racional estruturada de um certo interesse humano em cima daquele objeto, e não do interesse cognitivo propriamente dito. Isso quer dizer que os objetos da ciência não são os objetos da realidade, eles já são uma segunda camada. Também surge, diante do fracasso da idéia da enciclopédia das ciências, surge a idéia da filosofia como pura análise do discurso científico. É uma redução da filosofia à lógica. Isto não afeta o ensino da filosofia em toda parte, mas aqui nos Estados Unidos influenciou bastante, ao ponto de que a filosofia, no seu sentido tradicional, continua sendo mais representada pelos filósofos europeus enquanto a oeste e a leste havia o predomínio da filosofia analítica no mundo anglo-saxônico, e da filosofia marxista no bloco soviético. Mais ainda, a este recorte interesseiro do mundo pelas várias ciências, o marxismo opunha uma tentativa de reunificação e de reconquista do concreto a partir da dimensão histórica. Isso quer dizer que você encontra muito boas críticas de ordem marxista à filosofia analítica, e a esta redução das filosofias a instrumentos da ciência, o que seria uma concepção tecnocrática da filosofia. Há muito boas críticas marxistas a isto, e apelos marxistas ao conhecimento do que eles chamam "o concreto", mas o concreto para eles é a dimensão histórica, sobretudo a dimensão histórica que você obtêm a partir do estudo do conflito entre os meios de produção e a estrutura legal e administrativa do mundo da produção. Então, diz Marx, os meios de produção vão se desenvolvendo pelo próprio desenvolvimento da técnica, e eles crescem e entram em conflito com o sistema de produção. Ou seja, os meios de produção crescem e permitem um salto qualitativo, um crescimento econômico que o sistema de produção, por sua vez, abafa e reprime. Daí surge um conflito, surge uma revolução e, no conflito entre os meios de produção e o sistema de produção, os meios de produção ganham. Isto é o que para Marx é "o concreto": trata-se somente da relação entre o que ele chama "infra-estrutura", que é a economia, e a "super-estrutura" que é a legislação, a cultura, etc. Isto também não é concreto, evidentemente. O objeto da filosofia marxista da história é tão seletivo quanto o de qualquer outra ciência. Qual de nós pode dizer que nós vivemos eminentemente num mundo definido pelos meios de produção e pelo sistema de produção que os administra? Indiretamente todos nós participamos disto, todo mundo tem algo a ver com a produção, mas isso não quer dizer que isso seja o centro da vida dele.

Por exemplo, um bebê recém-nascido não tem nenhuma função no universo da produção. Até ele chegar lá, ele precisa ter crescido um bocado. Ele vai ter apenas a função de consumidor durante algum tempo. Seria difícil você estabelecer alguma relação entre a psicologia do bebê e os meios de produção. Você vê que existe toda uma realidade básica, de natureza fisio-psicológica que está fora desta concepção. O que se tem é um sistema de seletividade abstratista marxista contra outro sistema de seletividade abstratista da filosofia analítica neopositivista, etc. E na filosofia européia ainda continua o senso da busca da realidade concreta, que foi a inspiração fundamental da filosofia durante muito tempo. E todas as discussões que se travam lá são evidentemente em função disso. Mas mesmo aí, você vê que o fenômeno "ciência" continua sendo um pilar da cosmovisão. Hoje em dia a intervenção do Estado na sociedade, baseado no conjunto das ciências, é tão vasta e tão profunda, [1:00] que praticamente todos nós já vivemos dentro de uma segunda realidade criada por esta intervenção, e freqüentemente não conseguimos rastrear [um caminho de volta,] para ver como eram as coisas antes desta intervenção. Mais ainda, a mudança social acelerada que é provocada, seja espontaneamente, digamos pelo desenvolvimento dos meios de produção, etc., seja artificialmente, pela intervenção dos planejadores estatais, quanto mais rápida ela é, mais rapidamente ela se incorpora no senso comum como se ela fosse a própria natureza das coisas e a condição permanente da existência do ser humano, criando uma espécie de alienação obrigatória em relação ao passado. Quer dizer, as pessoas não sabem mais como era a situação antes e qual foi o trajeto que elas percorreram para chegar onde estão.

Isso significa que você voltar a um enfoque filosófico que é a pergunta originária sobre o ser, sobre a natureza da realidade, etc., vai se tornando cada vez mais difícil. E quando acontece um fenômeno como esse que eu mencionei no início, uma reforma educacional que determina que as pessoas tem que aprender a ler assim e assado, isto modula e determina a capacidade lingüística e raciocinante de gerações e gerações de pessoas, e aí evidentemente se torna muito mais difícil você rastrear a série de modificações que determinou a sua situação atual e conseguir pensar outras alternativas, porque o próprio instrumento lingüístico para você pensar alternativas lhe foi sonegado! Isto quer dizer que o desafio intelectual de praticar filosofia nessas condições é um desafio monstruoso! Veja que praticamente no universo da cultura superior tal como é transmitido pelas universidades, não existe um lugar para a pergunta "quid est?". Claro que ainda se pode fazer esta pergunta dentro de determinados departamentos onde, se você tiver um professor que está interessado nisto, ele pode até levantar a pergunta para os seus alunos. Mas esta pergunta não será incorporada no edifício geral da alta cultura, ela permanecerá sempre como uma exceção, por mais que as pessoas considerem aquilo interessante. Por exemplo, todo mundo sabe que o filósofo alemão Martin Heidegger fazia a pergunta pela natureza do ser. Isso quer dizer que essa pergunta tal como modulada pela filosofia de Heidegger ela não está totalmente ausente.

Mas aí vem a pergunta: você está estudando a natureza do ser ou você está estudando a filosofia de Martin Heidegger? A filosofia de Martin Heidegger é suficientemente rica, variada e atraente para manter a sua atenção ali fixada anos a fio, sem que nem por um momento você faça a própria pergunta fundamental que a inspirou. Heidegger também se incumbiu de escrever as coisas de maneira tão complicada que a simples decifração da escrita dele se torna um segundo objeto de atenção. Quando Heidegger acusa toda a filosofia ocidental, desde Platão e Aristóteles, de haver esquecido a pergunta sobre o ser, ele está historicamente errado. Porém, de certo modo a própria existência da filosofia dele comprova que algo disso aconteceu. A pergunta sobre o ser desapareceu, não da tradição filosófica ocidental inteira, mas desapareceu da cultura moderna, da qual o próprio Heidegger é um representante e crítico. Mais ainda, uma coisa é você fazer essa pergunta pela natureza do ser como um ser humano real, e outra coisa é você fazê-la como estudante de filosofia da faculdade tal. Neste último caso ela aparece como elemento disciplinar dentro de uma grade curricular que exige passar por aquela questão, de tal modo que você não precisa ter nenhum interesse pessoal na pergunta. Isso quer dizer que o próprio ensino da filosofia, por sua vez, ele se transforma num amortecedor entre você e as perguntas filosóficas fundamentais. Não existe nenhuma solução geral para isto, mas existe uma solução, é claro, na escala pessoal. E é justamente essa que eu venho tentando passar para vocês, que é o de permanentemente trazer de volta estas perguntas filosóficas fundamentais à sua dimensão de ser humano concreto e existente. Ou seja, você tratar estas perguntas como se fossem seus problemas pessoais, por que foi assim que Sócrates e Platão trataram. Isso não quer dizer que todos os filósofos em seguida tenham se esquecido, porém, a presença mesmo do elemento ciência, a partir de uma certa data da história, encobre esta pergunta e desvia o foco de atenção do filósofo para os objetos da ciência, que por sua vez, criam outros problemas mais difíceis.

Por exemplo, se você já não sabe dizer o que é uma vaca, muito menos você saberá dizer o que é uma partícula subatômica. Para você fazer a pergunta sobre a partícula subatômica, você precisa ter estudado um bocado de física, e estes conhecimentos de física que você terá que adquirir, não tem nada que ver com a natureza da partícula subatômica. Aliás, eles pressupõem a ignorância desta natureza, e a redução da partícula subatômica como elemento operacional dentro de uma grade técnica, que lhe permitirá, por exemplo, operar todo o sistema de medições, toda a matemática requerida para isso, todos os aparelhos necessários para estudar esta coisa, etc. Ou seja, o número de focos de atração que desviam das perguntas fundamentais é enorme hoje. Eu tenho a impressão, não tenho certeza, mas eu tenho a impressão de que o desenvolvimento da investigação científica e da discussão científica, por um lado, e o interesse pelas perguntas fundamentais, por outro, está chegando a um ponto de ruptura. E se isso acontecer, é o fim da racionalidade humana. Se não for possível mais você articular a visão científica da realidade com as perguntas fundamentais, então se torna impossível filosofar sobre a ciência, e também impossível praticar uma ciência que tenha algo a ver com a realidade no seu sentido originário. Dito de outro modo, os objetos da ciência terão coberto a área toda, e não sobrará espaço para uma visão originária. Se isso acontecer, também significa que todos os produtos da alta cultura, desde o início da história humana, até o advento da ciência moderna, se tornarão absolutamente incompreensíveis. Você não vai mais saber do que Homero está falando, do que Sófocles ou Eurípedes estão falando, do que Lao-Tsé está falando e assim por diante.

Tentativas de colar estes dois aspectos, mediante o apelo a tradições orientais não faltaram. Mas pergunto eu: o que as tradições orientais tem a ver com isso? Nenhuma dessas tradições orientais se desenvolveu para responder a esta pergunta: [elas] se desenvolveram em vista de outros interesses completamente diferentes. Eles entram aí como se fosse uma cola [1:10] que você traz de fora para tentar emendar dois pedaços que você mesmo separou e não sabe mais como juntar. Mas certamente as tradições orientais não foram feitas para juntar estes dois pedaços. Elas também refletem, a seu próprio modo, o mesmo conflito do concreto e abstrato de que nós estamos falando aqui. Por exemplo, quando nós observamos toda esta tradição hinduísta, que vai então descrever a realização espiritual humana como uma dissolução do eu histórico humano, numa realidade universal, ou seja, você vai ser reabsorvido no Brahman, eu me pergunto se isto não é a mesma perspectiva abstratista da ciência moderna levada às suas últimas conseqüências. Aqueles dentre vocês que leram René Guénon --- embora eu nunca tenha recomendado a leitura de René Guénon para ninguém muita gente leu: O simples fato de eu tê-lo colocado na lista dos meus gurus, os sujeitos com quem eu aprendi alguma coisa, já pareceu como uma recomendação embora não seja de maneira alguma... por que eu acho que para ler com certo proveito René Guénon é preciso ter um conhecimento anterior, inclusive da cultura francesa. O Guénon não é, ele se apresenta como se fosse um puro representante de uma tradição oriental, mas quando você vê os elementos de cultura francesa que determinam o modus pensandi, e até o estilo dele, são muitíssimos importantes. Se você não ler um bocado de René Descartes você nunca vai entender o Guénon --- [voltando,] se você ler, por exemplo, René Guénon, você vê que ele faz uma crítica da civilização ocidental e do cristianismo por haver perdido a perspectiva da realização metafísica e haver parado no nível da salvação. Ele diz que o máximo que se conhece aqui é a salvação, mas para além da salvação existe um outro negócio que é a realização metafísica, que é a sua transformação no Brahman, na realidade universal suprema.

Eu durante muito tempo deixei esta questão entre parênteses, sem deixar de prestar atenção nela, mas sem cobrar de mim uma solução, até que de repente uma coisa me apareceu como máxima obviedade: Veja, a inteligência universal, o logos divino, sempre existiu, e evidentemente ele é a fonte de qualquer possibilidade de consciência. É a macroconsciência universal, divina, que sabe tudo, e que consegue então criar focos de consciência. Esses focos de consciência, eles são um elemento intelectual ou o elemento racional que está presente em todo ser humano. Mas enquanto tal esse elemento racional é igual em todo mundo. A razão é a mesma para todos, ela visa à mesma universalidade. Em princípio é isso aí --- é claro que historicamente você vai ver uma diversificação mas isso não vem ao caso --- e nós podemos perguntar o seguinte: se nós queremos conhecer a Deus, nós não temos outro instrumento para conhecermos a Deus senão nós mesmos. A nossa existência e a finalidade, meta e razão da nossa existência é a via para o conhecimento de Deus. Então, perguntar "quem é Deus?", ou "como conhecer a Deus?", é a mesma coisa que você perguntar "por que eu existo?". Certamente é mais fácil você conhecer a Deus pela via do seu próprio ser do que pela via do ser de um elefante, ou de uma árvore, ou de uma montanha. Por que você precisaria primeiro se converter nesses entes, para depois você fazer a pergunta a partir deles. Quando nós vemos estas observações feitas em estado de parada cardíaca, em que não há atividade nem cardíaca nem cerebral e que, no entanto, o indivíduo permanece consciente, nós não temos nenhuma garantia de que esses estados conscientes sobrevivam eternamente. Nós só sabemos que a duração deles não está determinada pela duração do nosso corpo. Isso é batata, é líquido e certo. Nós vemos que em todos estes casos existe uma sobrevivência não só da consciência, na consciência no sentido da intencionalidade de Husserl, quer dizer, um foco de luz capaz de iluminar as coisas e conhecê-las, mas existe uma sobrevivência da autoconsciência biográfica e temporal. Ou seja, o indivíduo nesse estado, ele se lembra da sua vida e ele se conhece como individualidade distinta. Ele não se dissolve em uma inteligência universal, ele não se transforma no Brahman. Ora, se fosse para todos se recolherem de novo no Brahma, perdendo a sua individualidade, sua memória, sua consciência de individualidade, então é evidente que a totalidade do universo seria de uma gratuidade fora do comum, por que seria o caso de você perguntar: por que Deus criou tudo se era para depois ele engolir tudo de novo e voltar tudo ao stato quo ante?

Ou seja, esta perspectiva hinduísta nos deixa, em última análise, diante da percepção de uma absurdidade monstruosa. Ou seja, se a individualidade humana, no sentido histórico, não tem ela mesma uma finalidade eterna, então a simples noção de uma finalidade se desfaz. Veja que na perspectiva cristã a existência das almas individuais é a coisa mais importante do universo, por que elas foram feitas não só para amar a Deus, mas para se amar umas às outras. Isto quer dizer que o amor divino diversificado em pessoas humanas não pode ser extinto, não pode desaparecer, e voltar tudo a uma indiferenciação primária dentro da inteligência universal. Ou seja, Deus não fez as almas humanas para extingui-las e para reabsorvê-las, mas as fez para toda a eternidade. Ou seja, não há uma perspectiva superior à da salvação. Isto é empulhação. Aliás, até aqui tem uma pergunta pertinente a isto. Eu vou fazer um intervalo agora e retomo depois o mesmo assunto com base na pergunta.

Vamos recomeçar aqui.

Aluno: Se a consciência não é determinada, e se além disso ela é reflexo das ações de um eu, um eu que sobrevive e é causa, então cada eu é centro motriz independente do primeiro motor que é mencionado por Aristóteles.

Olavo: Bom, [1:20] o conceito do primeiro motor evidentemente não abrange toda a concepção de um Deus criador. A concepção do primeiro motor supõe uma linha de causas que vêm desde a primeira até a última sendo tudo movido pela primeira. No entanto, a concepção da criação, sobretudo a criação do ser humano, não pode ser resolvida inteiramente a partir daí. Na aula passada eu estava dizendo que, com relação ao tempo, existem três possibilidades: existe aquilo que é eterno, não tem começo nem fim; existe aquilo que é temporal, tem um começo e tem um fim; e existe um terceiro tipo de coisa que é exatamente o ser humano, que é alma imortal, que tem começo mas não tem fim. Por esta simples razão, você vê que o eu de fato é um centro motriz que é criado, mas não determinado pela primeira causa. Quer dizer, em parte o ser humano participa da liberdade divina, e este é um mistério da criação: nós não temos explicação para isto mas nós verificamos que as coisas de fato são assim. Eu acho que não dá para ir além deste ponto hoje. Vamos ver outras perguntas aqui.

Aluno: Estar submetido a um meio hostil e opressor como o ambiente brasileiro atual pode ser benéfico ao indivíduo? Certo. Então todas as pessoas submetidas a este ambiente hostil e opressor são fortalecidas? Não, certo? Então que elementos devem estar presentes no sujeito para que ele se fortaleça nesse ambiente? Consciência? Estar consciente do que se passa? Ideais superiores?

Aluno: Em primeiro lugar, nenhum ambiente pode dominar o indivíduo sob todos os aspectos. Isto equivaleria a decretar a própria inexistência do indivíduo e a sua própria redução a um mero paciente inerme das ações do meio, e isso é impossível. Por mais indefeso, por mais burro que seja o indivíduo, ele alguma coisa ainda é. O próprio impulso de subsistência do eu impele a uma certa resistência. Porém, isto varia de acordo com os elementos que esse indivíduo tenha recebido da cultura e que venham do antagonismo interno que a cultura tenha consigo. Nenhum ambiente é inteiramente coerente. Não é possível o ambiente exercer uma influência unívoca sobre você, sempre num sentido. Todas essas influências elas vêm tingidas de ambigüidades e no meio desses interstícios surge a possibilidade de uma resistência. A própria influência opressiva ela pede a resistência de algum modo, ela vem tingida de contradição e de absurdidade. É impossível que todos os indivíduos sejam afetados uniformemente. Desde logo, você não pode conceber nem mesmo a pressão totalitária como uma coisa uniformemente presente. Quer dizer, a resistência não vem só do indivíduo, ela vem das próprias contradições internas do sistema opressor. Então certamente alguns indivíduos serão, vamos dizer, despertados por estas contradições. E justamente é aí mesmo que a nossa ação pode entrar da maneira mais eficiente para nós mesmos.

Não esqueçam aquilo que dizia Goethe. Ele dizia: "O talento se fortalece na solidão, mas o caráter se fortalece na agitação do mundo". Se você pegar o destino de um jovem estudante americano e um jovem estudante brasileiro, ele tem muito mais possibilidade de desenvolver o seu talento, o ensino é muito melhor, ele tem acesso a mais informações, ele está mais liberado de outras pressões e necessidades do que o brasileiro. Mas, ao contrário, o desenvolvimento do talento não supõe nenhum desenvolvimento do caráter, e você vê que as pessoas aqui nos Estados Unidos elas demoram muito a amadurecer, tendem a ficar dependentes por muito tempo, e ao mesmo tempo que são dependentes, também são muito confiantes nos seus direitos e gostam de ocupar um espaço maior do que a sua substância humana permite. Aqui todo mundo tem opiniões sobre tudo, e opinam com veemência, com força, mas não são capazes de sustentar as suas posições na prática. Ao passo que num ambiente mais opressivo, ou o caráter se desenvolve ou você é logo liqüidado e jogado para escanteio.

De certo modo, sob o ponto de vista do fortalecimento da vontade e do caráter, é melhor estar num meio mais hostil. E se for para escolher um dos dois, eu acho que o caráter predomina de algum modo, porque inclusive o desenvolvimento do talento vai depender dele. Qual é o elemento que diferencia? Esse elemento que diferencia é um negócio inapreensível chamado vontade, mas a vontade recebe igualmente os dois estímulos ao mesmo tempo: você recebe o estímulo da conformidade e o estímulo da divergência, por que isso já vem no próprio tecido da influência social. Nesse sentido não existe o totalitarismo perfeito. Você veja que foi mais fácil extinguir a religião cristã no ocidente, com toda a democracia e desenvolvimento, etc., do que na Rússia com toda a opressão. Quer dizer que o ambiente europeu e americano convidava a uma acomodação entre a Igreja e o mundo moderno, ao passo que na Rússia, na União Soviética, havia a opressão aberta, ostensiva, e não havia como você negociar com o inimigo.

Aluno: Se os hindus acreditam em carma, como a alma poderia se dissolver?

Olavo: É justamente pela eliminação do carma. É apenas o carma que prende, que ata você aos estados inferiores da existência. Na medida em que você queima esse carma, você está libertado e retorna à unidade primordial. Pois é justamente isto que eu estou dizendo que não acontece. Você veja que o conceito hindu pressupõe uma noção cíclica de vários universos que são criados e nos quais, vamos dizer, a divindade se traduz em duas figuras que é um dragão e um matador de dragão, mas ela é a mesma. O dragão é aquilo que cria e reabsorve e o matador de dragão é aquilo que assegura a subsistência dos entes individuais. Mais ou menos como Shiva e Vishnu. Quer dizer, existe uma entidade que cria e destrói, e outra entidade que mantém, e tudo se desenrola no jogo destas duas forças que se repetem infindavelmente. A simples idéia da repetição infinita já mostra que não há sentido algum exceto no nível da universalidade primordial. Quer dizer, não se pode nem falar de criação, [mas sim de] uma emanação [que] está irremediavelmente condenada: seria a mesma coisa que as almas que vivem na terra, vivem um pouquinho mais, e depois são reabsorvidas. Então tem uma segunda morte. A segunda morte, do ponto de vista cristão, é considerado o inferno, que não é uma extinção. A existência de um destino eterno da alma, é um ponto central que escapa completamente à doutrina hindu.

Tem uma pergunta aqui.

Aluno: O que o senhor chama de "eu substancial" é o que os hindus chamam de Atman ou tem alguma (...)

[1:30] Olavo: Não, o que eu falo o eu substancial é o eu humano individual. Ele foi criado de uma vez para sempre. E se não fosse assim não haveria nenhuma justificação racional para a existência do mundo criado. Você vê que a concepção hindu, em última análise, termina no absurdo.

Aluno: (...) Seria então, no caso, o Atman, não?

Olavo: O que encarna para nós não é o Atman; o logos divino que está presente em nós, que é a força que sustenta a nossa inteligência e consciência, não é ele que sobrevive, é a alma. Não é só a inteligência divina. Senão seria a mesma coisa que dizer: "Você pára de existir e a inteligência divina volta para onde veio".

Aluno: (...) Então esta inteligência divina é um componente da alma, mas ao mesmo tempo ela não é mais Deus, ou ela vai voltar para ele?

Olavo: Ela não vai voltar para ele. Ela não é um componente, ela é uma força que está agindo em nós desde Deus. É a ação do Espírito Santo que sustenta a sua inteligência, mas o Espírito Santo não deixou de ser ele mesmo para se transformar em você, ele está formando a alma para que a alma exista eternamente. Ele tem duas modalidades de existência: uma corporal --- para que serve esta existência corporal? Serve para que você tenha uma vida, para que você tenha uma biografia, tenha uma memória e tenha uma consciência de individualidade, a qual não será extinta. E é somente a partir daí que se pode desenvolver o amor entre os seres humanos. É como se dissesse que Deus diversifica o seu amor criando criaturas eternas que se amarão para sempre. Não tem medida comum ou acordo entre isso aí e a doutrina hindu. Chega um ponto em que você vai escolher: ou é o amor eterno, ou é a simples dissolução. Isso quer dizer que a criação não foi uma decisão irrevogável, não é uma aliança eterna, ela é revogável. Isso é a mesma coisa que dizer que a palavra de Deus não vale, só vale durante um tempo. Isso aí me aparece auto-contraditório com a eternidade de Deus.

Hoje eu estou meio cansado, eu já me recuperei mais ou menos da doença, mas eu não quero abusar. Então eu vou deixar as outras perguntas para a semana que vem, se vocês não se incomodam. Ah, eu queria lembrar uma coisa a vocês. O compromisso de transcrever as aulas continua valendo. Todas as aulas tem que ser transcritas. Todo este material tem que se transformar em escrito. Não só para vocês mesmos, para circular entre vocês para vocês recordarem a coisa, mas passar aos alunos que vierem depois, e eventualmente para ser publicado. O grupo de transcrição das aulas do seminário está com carência de voluntários. Nós precisamos de mais gente trabalhando nisso. Então, por favor, vocês entrem no grupo seguinte: http://groups.google.com/group/cursodefilosofia . Entre em contato com a Mariana Belmonte que é a pessoa que está articulando aí esses vários grupos de transcritores. Isso aí é urgente e necessário, inclusive pelos motivos com os quais eu comecei esta aula. O próprio exercício de transcrição, o exercício de corrigir transcrição, é muito importante para isto. Então, até a semana que vem e muito obrigado. Ah, evidentemente no dia 25 não temos aula. Então a próxima aula será no dia 1 de Janeiro? Então ficamos duas semanas sem aula? Que esculhambação. Então a próxima aula será no dia?... Então voltamos no dia 8. Então Feliz Natal para todos, Feliz Ano Novo, e até o ano que vem.

Transcrição: Pe. Emilson José Bento -- Instituto Olavo de Carvalho-Curitiba

Revisão: Ronald Pinheiro