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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 80

23 de outubro de 2010

Boa noite a todos e sejam bem vindos.

Hoje eu queria começar com algumas dicas sobre a leitura de textos filosóficos. Em primeiro lugar, não existe um gênero literário fixo no qual as doutrinas filosóficas sejam expostas, praticamente todos os gêneros foram usados. Alguns gêneros se tornaram célebres como os diálogos de Platão, a Suma Teológica e, mais recentemente, os tratados construídos em modo de demonstração geométrica, como a Ética de Spinoza; também se utilizaram muito o ensaio, as teses universitárias e assim por diante. Existe uma multiplicidade de linguagens, o que não permite que sejam todas lidas da mesma maneira, cada uma requer certa abordagem. Porém, se você tomar a produção filosófica dos últimos séculos é possível encontrar alguns traços comuns.

Em primeiro lugar, o filósofo se dirige eminentemente aos seus pares, um círculo acadêmico universitário. Ele utiliza uma linguagem que deve ser aceita por esse meio e, no qual, esse deve se reconhecer. Um traço preeminente desta linguagem é justamente o caráter de obra coletiva, onde a experiência pessoal da qual surgiram as doutrinas é completamente escamoteada e só se vê o produto intelectual acabado. Raramente temos a oportunidade, como no caso de René Descartes, de ter à disposição uma narrativa das experiências originárias, de onde nasceram, depois, suas doutrinas. Quando temos esse depoimento -- que no caso de Descartes é um depoimento bastante misterioso e enigmático -- entendemos que, a partir dessas experiências, diferentes doutrinas poderiam ter se originado. A experiência vem sob a forma de fatos do mundo exterior que naturalmente têm aquela multilateralidade de significados que é próprio do fato concreto, ou então decorre de alguma experiência interior que naturalmente vem em forma compactamente simbólica sem que se possa extrair dali uma doutrina por pura dedução. No caso de Descartes, vemos que, daqueles famosos sonhos que determinaram depois a sua carreira, poderiam ter se originado muitas doutrinas diferentes conforme a interpretação que o sujeito desse à sua própria experiência.

Hoje em dia, no caso das teses filosóficas acadêmicas não temos nada disso. Simplesmente não sabemos da onde as pessoas tiraram as suas idéias. Elas procuram dar a impressão de que tudo ali se trava no domínio das puras idéias, das puras doutrinas, que se dialogam entre si e nascem umas das outras como se fosse um processo do tipo genética-textual. Um texto cruza com outro e nasce um terceiro e assim por diante. Raramente temos acesso à experiência originária de onde aquilo tudo saiu. No entanto, sabemos que essas experiências existiram e que as idéias filosóficas são uma tradução de experiências humanas reais -- sempre são. Então, embora a linguagem na qual essas doutrinas chegam a nós antes encubram essas experiências que as revelem, sabemos que elas estão ali. E pior, sabemos que sem o recurso a essas experiências não temos o mais mínimo meio de averiguar a veracidade ou falsidade dessas idéias. Se o teste de tudo é sempre a experiência, então temos que saber da onde o sujeito tirou suas idéias para que possamos compreender o verdadeiro sentido delas.

Como a linguagem acadêmica não permite isso, o que temos de fazer é complementar a leitura com a imaginação. Nunca podemos tomar o texto que chega a nós como sendo a expressão cabal do seu próprio conteúdo. Ele é, em parte, uma expressão do conteúdo, mas é, em parte, uma ocultação dele. Sempre é assim. Não esqueçam que essa linguagem filosófica -- a linguagem acadêmica -- não nasce com o ser humano, não é uma forma, por assim dizer, espontânea e natural de expressão. Muito provavelmente o cidadão que escreveu a tese universitária, fala numa linguagem completamente diferente em sua vida cotidiana e, freqüentemente, o que existe de mais pessoal no indivíduo não aparece nos textos, então, a linguagem acadêmica chega ao indivíduo por meio da aquisição de um papel social, papel de membro da comunidade acadêmica. A aquisição desse papel não é coisa fácil, espontânea, e freqüentemente exige do individuo adaptações que modificam muito a sua superfície visível, a superfície socialmente acessível, coisa muito diferente da sua personalidade real. Os textos de Louis Althusser, por exemplo, são todos baseados na linguagem acadêmica, marxista -- enormemente complexa e abstrata -- e você não tem a menor idéia do drama que o sujeito vivia e que o levou no fim das contas a matar a própria mulher e estourar os próprios miolos.

O que chega através da leitura é a voz de um papel social e não da pessoa inteira. O papel social existe e é parte da pessoa, mas é como uma entidade abstrata que está falando para você e não uma pessoa concreta. Ora, como as entidades abstratas não falam sabemos que toda esta montagem é uma encenação. As regras dessa encenação são conhecidas pelas pessoas que participam do meio, e que sabem desempenhar seus papéis correspondentes. Quando um filósofo acadêmico responde a outro num debate, por exemplo, ele o faz segundo as regras da linguagem acadêmica. Cabe a pergunta: será que a pura voz de um papel social enuncia experiências que possam ser reproduzidas por nós? Um papel social não tem experiência. Quem tem experiência é o sujeito concreto no qual se unificam os vários papéis que ele desempenha em vários momentos.

Michel Foucault tinha um papel no Collège de France e outro nos clubes de sadomasoquismo que freqüentava aqui na América. E exercia os dois ao mesmo tempo. Por trás deles -- o praticante de sadomasoquismo e o professor do Collège de France -- havia uma pessoa real que continha esses dois lados e muitos outros. É a esta pessoa real que temos que recorrer para saber quais foram as experiências efetivas que geraram as idéias do fulano. Se não temos acesso à essas experiências, não podemos refazê-las interiormente e nesse caso não se pode de maneira alguma chegar até o ponto em que a veracidade ou a inveracidade do que ele está dizendo apareça diante de nós, como uma experiência pessoal nossa. Não considero o linguajar utilizado hoje em dia no mundo acadêmico de modo algum adequado à busca da verdade. É adequada ao exercício de um papel social que é compartilhado por muitas pessoas e que pode dar a impressão de concordância ou discordância coletiva. Dificilmente se vê em tudo isto a presença de uma intuição efetiva que, por outro lado, a leitura dos poetas e romancistas nos dá de maneira tão evidente.

Um romancista, por exemplo, não pode de maneira alguma escrever um romance se não colocar nada da experiência imaginativa que vivenciou, por que o próprio romance é uma experiência imaginativa. A pessoa do romancista está presente ali; é uma pessoa real na complexidade de todo o seu imaginário, de suas emoções, das suas experiências, etc. Na arte da literatura é muito mais difícil o sujeito se esconder. Pelo contrário, quando ele começa a se esconder muito, então o produto que chega à mão do leitor, ao nosso conhecimento, é um produto de segunda ou terceira mão, uma elaboração intelectual de experiência. Como esta não aparece diretamente ali, a narrativa perde vigor, interesse e soa falsa. O mesmo acontece em poesia, até quando a experiência originária é de ordem puramente verbal -- como acontecia muitas vezes, por exemplo, com Rimbaud ou Mallarmé. Essa experiência tem que estar colocada ali e estar evidente, aliás, a literatura consiste exatamente nisso. Toda a arte literária consiste na cristalização verbal de certas experiências muito particulares e muito específicas.

Podemos dizer que é mais fácil averiguar a autenticidade de certas experiências [00:10] na literatura do que na filosofia. É claro que esta diferença contribui muito para o artificialismo do debate filosófico. Como, em geral, os leitores não estão informados deste fator e o próprio ensino não chama a atenção para esta diferença, o modo de se ler os textos filosóficos acaba se adaptando a essa distribuição de papéis sociais e para se ler e discutir um texto filosófico o que você faz? Veste a camiseta de um participante do debate e entra na distribuição dos papéis sociais. Resultado: tudo o que se pode compreender e discutir do texto estará sempre na base superficial, na escala puramente verbal e não terá nada a ver com a sua experiência pessoal e real. Tudo isto é um convite permanente à paralaxe cognitiva. Você está circulando dentro de uma esfera de proposições e argumentos que devem ser tratados como se fossem coisas-em-si, sem nenhum recurso à experiência, às coisas, aos fatos, às intuições, aos sentimentos dos quais tudo aquilo brotou.

É claro que isto, na maior parte dos casos, é um jogo não só inútil como prejudicial. Pode se transformar em um vício tão incurável que nada da experiência pessoal do indivíduo possa mais ser transposto nessa linguagem. Então você está conversando o tempo todo com papéis sociais.

Isso significa que a maneira de ler um Platão e uma tese universitária moderna é completamente diferente, por que no primeiro caso as experiências estão ali expostas quando Platão narra aqueles encontros com Sócrates, nos Diálogos, etc. Não é que ele esteja necessariamente reproduzindo os fatos como aconteceram. No entanto, é a reprodução da imagem que ele realmente tinha desses encontros e diálogos. Aqueles personagens não precisam necessariamente corresponder à sua realidade história, mas sim à vivência efetiva que Platão tinha deles ou, pelo menos, corresponde ao modo como ele os imaginava. Esses personagens nunca são puras alegorias de idéias abstratas, eles têm certa presença humana, têm paixões, desejos, temores, etc., e tudo isso aparece nos Diálogos -- às vezes sob forma até de caricatura, onde alguns traços e hábitos daqueles indivíduos se tornam, então, o aspecto predominante neles e eles encarnam esses traços ali no diálogo. Por exemplo: Alcebíades era uma espécie de imagem da jeunesse dorée, das pessoas maravilhosas da juventude ateniense, ou seja, os indivíduos que eram candidatos a membros proeminentes da classe política e assim por diante. Pausânias representa o tipo do ricaço corrupto, pedófilo, etc.São pessoas que não são definidas somente pelas suas idéias, mas pela sua conduta real, pelo seus sentimentos e desejos, como seres humanos reais, ainda que apareçam simplificados nos Diálogos.

Nos diálogos platônicos, as idéias e doutrinas não aparecem como coisas prontas, mas como uma espécie de decantação da experiência real dos vários indivíduos. A experiência de Sócrates é diferente da experiência de Alcebíades, de Pausânias, etc. Ele pensa diferente deles porque é diferente, viveu outra vida. Podemos dizer que, enquanto eles estavam curtindo as delícias da vida na classe dominante ateniense, Sócrates teve a experiência da guerra, passou por várias mudanças políticas que o levaram a uma decepção profunda com a classe dominante, justamente aquela com a qual os indivíduos estão iludidos por que pertencem a ela. Existe substância humana nos Diálogos.

Quando lemos os escritos de Aristóteles não temos isso pelo simples fato de que os escritos são rascunhos de aula, não temos idéia de como Aristóteles desenvolvia essas idéias em classe, não há como se ter a menor idéia, não temos como concebê-las. Porém, a partir de um mesmo rascunho, ele poderia ter dado muitos desenvolvimentos diferentes. Sabemos, também, que as pessoas que freqüentavam o Liceu Aristotélico eram próximas ao pessoal da Academia Platônica e se sentiam participantes da mesma atmosfera humana. Nunca podemos esquecer que os escritos de Aristóteles não são escritos, mas sementes de aulas. Nesses escritos, a referência à experiência direta está sempre presente porque o próprio Aristóteles insiste que o processo de formação das idéias e dos conceitos começa com a experiência direta; assim é sempre possível, por trás dos conceitos abstratos que Aristóteles está expondo, remontarmos até alguma experiência direta à qual ele está se referindo. Embora a linguagem dele não seja tão direta e tão testemunhal quanto à de Platão, a presença do elemento de experiência humana está ali evidente e pode ser reconstituído a qualquer momento.

Quando se lê as teses acadêmicas modernas é quase impossível remontar a qualquer experiência direta, porque a coisa está muito bem encoberta por causa da adaptação da linguagem do indivíduo aos códigos, à linguagem acadêmica a qual ele tem que ceder para se tornar aceitável pelo meio. Não obstante, é sempre possível através de um esforço de imaginação você tentar sondar algo da experiência: qual é a substância humana do indivíduo? Quem é ele realmente? O que ele viu, sentiu? O que ele quer? O que há por trás de todo esse linguajar acadêmico?

Em primeiro lugar, é preciso descontar aqueles elementos que são puramente coletivos e convencionais na linguagem, cujo caráter imitativo, às vezes salta aos olhos de uma maneira absolutamente flagrante. Vê-se que certas expressões, certos giros de linguagem, foram de fato impostos ao indivíduo pelo seu orientador acadêmico de modo a fazer do aluno um produto igual a ele mesmo; e assim vai-se passando esta camisa de força, de geração em geração, criando todo um contexto lingüístico no qual o apelo à experiência se torna extremamente problemático ou, pelo menos, muito difícil. No entanto, é somente este apelo que pode nos informar alguma coisa da veracidade e do valor do que esses indivíduos estão dizendo. É claro que, tão logo você tenha conseguido apreender o sentido verbal imediato do que se está lendo, você deve tentar por um esforço de imaginação completar o conteúdo do texto com as experiências humanas necessárias para o indivíduo chegar àquelas conclusões. De onde ele tirou aquilo?

Assim como ao ler um poema, do qual se tira muitas idéias abstratas gerais - que podem servir ou como interpretações do poema, ou como interpretações da realidade, à luz do poema - na leitura desses textos acadêmicos você fará exatamente o contrário. Vai partir de uma idéia pronta e tentar sondar a sua elaboração real. Quando se fala em "elaboração real", não estou tratando da cadeia lógica que levou o indivíduo àquelas idéias. Raramente se chega a qualquer idéia por meio de uma dedução lógica, que é uma forma que você dá a posteriori às suas idéias para validá-las, para torná-las críveis a um meio social que está treinado na linguagem da demonstração lógica, ou na linguagem filosófica em geral. O fato é que, quando nós tentamos ir um pouco além do que o texto está oferecendo, vemos que, se é difícil descobrir quais foram as experiências efetivas que historicamente levaram um indivíduo a esta ou aquela conclusão, não é difícil perceber quais são os limites do imaginário que está ali vertido, porque certas idéias excluem a possibilidade que o indivíduo tenha imaginado isto ou aquilo. Um texto acadêmico lhe dá, de certo modo, não o conteúdo do imaginário, mas os limites dele. Digamos que você esteja lendo Karl Marx, O Capital, ou A Ideologia Alemã ou outros livros assim. Você percebe que ele está falando de classes sociais e essas são compostas de indivíduos reais, os quais -- ele insiste - entram em relações sociais efetivas. Um contrato de trabalho, por exemplo, que define os direitos e deveres [00:20] recíprocos, não é uma coisa travada entre idéias, e sim entre indivíduos reais, que vão colocar em jogo, por um lado, o seu tempo de trabalho, a sua força de trabalho, a sua rotina diária, vão gastar as próprias vidas numa determinada ocupação; e outro grupo, que vai ceder a eles, em troca disso, uma parte do seu patrimônio, que por sua vez não saiu do nada, custou trabalho para ele mesmo ou a seus antepassados ou a qualquer outra pessoa. Ele está falando de seres humanos reais, porém, veja que, quando ele trata dos capitalistas, confessa que está partindo não de uma imagem dos capitalistas reais, mas de uma abstração. Ele compõe um modelo de capitalista e reduz o capitalista à sua função de capitalista.

O capitalista é o indivíduo que se dedica a certas atividades visando ao lucro. Isto não explica, porém, porque um capitalista faz uma estrada de ferro, o outro uma fábrica de sabonetes, outro abre um banco, outro uma firma de construção e assim por diante. O capitalista de Karl Marx é um capitalista abstrato. Ele só considera do capitalista aquilo que todos eles têm em comum sob o aspecto econômico, nem mesmo o que têm em comum sob outros aspectos. Um capitalista tal como Karl Marx o descreve jamais existiu: não tem um único capitalista cuja única atividade no mundo seja a busca do lucro, e não há nenhuma pessoa no mundo que não busque o lucro sob alguma forma. O lucro é apenas a tradução econômica do resultado de um esforço qualquer. Quem quer que faça o que quer que seja busca que o resultado compense o investimento de energia. Uma dona de casa que faz comida espera que o produto de seu esforço seja uma coisa que valha a pena ser consumida por sua família e por ela mesma. Se ao fim de seus esforços culinários o resultado não é comestível, então houve evidentemente um prejuízo. Toda e qualquer ação humana é baseada em uma idéia do resultado vantajoso, nunca do resultado prejudicial. Quando a ação é voltada a um resultado prejudicial é porque houve alguma coisa errada, ou porque houve um erro de cálculo, o indivíduo buscava uma vantagem e obteve um prejuízo e assim por diante. De maneira que a noção de lucro é demasiado genérica e não basta para definir o capitalista. Esse traço -- a busca do lucro -- é comum entre o capitalista e outros, a diferença do capitalista é que ele busca o lucro especificamente financeiro e nós buscamos não só esse, mas outros tipos de lucros. Mas um momento: o capitalista, enquanto ser humano concreto, busca apenas o lucro financeiro? É apenas dinheiro o que ele quer? Ou ele precisa de outras coisas, como todo mundo também precisa?

O puro lucro financeiro satisfaria o capitalista se ele não pudesse tirar dali outro tipo de vantagens, por exemplo, uma vida mais confortável para a sua família, uma vestuário que o tornasse mais elegante, ou qualquer outra coisa assim? A pura busca do lucro financeiro só define o capitalista esquematicamente, define o capitalista como classe. Porém, não existe nenhuma empresa que seja administrada pela "classe capitalista", sempre tem que haver um indivíduo concreto e este tem que ter uma série de outros traços que o definam. Se nós reduzirmos o capitalista à noção do lucro financeiro e o trabalhador à noção do indivíduo que vende o seu tempo de trabalho, nós podemos perguntar qual é o imaginário, qual é a noção concreta, qual a experiência real da qual Karl Marx tirou esta imagem do capitalista e, também, do trabalhador? Quando nós vemos biograficamente que Karl Marx teve uma experiência muito reduzida dessas duas classes -- ele praticamente não conviveu com capitalistas e nem com trabalhadores, nem por uma semana, a não ser seu amigo Friedrich Engels, o único capitalista com quem conviveu, no qual certamente ele não podia ver a encarnação do capitalista típico, já que Engels trabalhava, em princípio contra sua própria classe -- nós entendemos que Marx tem toda razão quando diz que está raciocinando, não a partir de fatos mas a partir de abstrações. Só que não sabemos de onde ele tirou essas abstrações.

Se eu tivesse que formar uma imagem do capitalista teria que explicá-lo não somente pela sua característica econômica geral, que ele compartilha com os demais membros da sua classe, mas teria que explicar sua diferença específica: por que é que esse indivíduo se decidiu a investir o seu dinheiro em produção agrícola e aquele na indústria de sapatos, e aquele outro na indústria de automóveis, e assim por diante.

Um capitalista com quem convivi algum tempo foi o meu patrão no começo da vida. Ele tinha uma indústria metalúrgica de lâminas e eu nunca ouvi aquele indivíduo falar nada a respeito de lucro., Ele só falava a respeito do produto. Também o ouvi explicar a técnica de vendas, como orientar os vendedores, como se dirigir aos clientes. No caso, era venda industrial, eram todos vendedores técnicos, que não lidavam com o público em geral, mas sim com técnicos que conheciam o produto e eram capazes de ter um diálogo técnico com ele, ou seja, aquele indivíduo pensava muito mais em metal e na transformação do metal do que em dinheiro. Se o puro lucro financeiro fosse, de fato, a única ocupação seria altamente recomendável que aquele indivíduo mudasse de ramo, porque eu me lembro que ele concorria com poderosas indústrias estrangeiras que podiam fabricar mil vezes mais produto que ele e que a preocupação dele, como se tratava de vendas técnicas, era fazer um produto tecnicamente melhor do que o outro, embora não pudesse produzir tanto, ele tentava ganhar na base da vantagem técnica. É claro que o resultado financeiro disso deveria ser um lucro, mas seria esse o único resultado? Se viesse somente o lucro, aquilo seria satisfatório para ele? Parece-me que não, porque o indivíduo era um engenheiro, um técnico, e tinha todo o orgulho do seu trabalho técnico e para ele isto talvez fosse até mais importante do que o lucro, quer dizer, ele ser reconhecido como um técnico capaz de resolver certos problemas daquela indústria era um elemento importantíssimo para ele, isso representava: prestígio, poder, respeitabilidade, a sua segurança psicológica, e assim por diante. Era um complexo de coisas.

Imagino, então, um sujeito que esteja investindo em agricultura. Uma coisa é você ficar na cidade e investir em um agronegócio lá no Mato Grosso e nunca ir lá, então a sua relação com o negócio é, de fato, puramente financeira. Outra coisa é você estar lá e ter que pegar a mão na massa: você terá de compreender qual é o ciclo vital dos elementos que está plantando, quais são as sementes melhores, qual é a época, como se faz a colheita, quais são os equipamentos melhores, quais são as qualificações das pessoas que trabalham nisso, etc. Mesmo que você trabalhe somente na esfera financeira, que você seja um banqueiro, o número de elementos psicológicos, políticos, sociológicos, mercadológicos, que você terá de levar em conta, é demasiado complexo. Eu não creio que uma descrição eficiente do modo de existência da classe capitalista possa ser baseado somente no esquema da busca do lucro. Você precisaria levar muito mais coisas em conta.

Como Karl Marx conseguiu fazer abstração de tudo isso? Ele não precisou fazer abstração. Ele não conhecia nada disso. No imaginário dele, a figura do capitalista se resume ao esquema chamado: lucro. Basta isso para se ver que todo o restante da descrição que ele fará do sistema capitalista é como se fosse uma regra do jogo, abstrata, onde só entram em conta duas coisas, a mecânica do lucro de um lado e a venda do tempo de trabalho pelo trabalhador, do outro. Quando existiu um capitalismo assim? Nunca. É claro que isso precisa estar presente para o capitalismo funcionar, mas só isto não basta para fazê-lo, ou seja, é um capitalismo abstrato definido tão somente pelos elementos matemáticos de um jogo entre o capital e [00:30] o trabalho. Não é de espantar que, com base nesse puro esquema abstrato, ele tenha feito previsões quanto ao desenvolvimento da sociedade capitalista; previsões que deram completamente errado. Aconteceu tudo exatamente ao contrário do que ele disse. Ele previa, por exemplo, um empobrecimento progressivo da classe proletária, quando nós vimos que a classe proletária se tornou uma espécie de elite dos pobres em toda a Europa, conquistando uma posição privilegiada, e na medida em que tinha uma posição privilegiada, perdia totalmente o seu alegado potencial revolucionário que era o centro não só da visão que Karl Marx tinha da história político-social, mas o centro da própria estratégia comunista e quando se precisou fazer uma revolução comunista de verdade, não foi possível apoia-la no proletariado. Foi necessário apoia-la numa elite de intelectuais que falavam em nome de um proletariado inexistente e que uma vez no poder tratou de formar esse proletariado exatamente como, quase cem anos depois, será dito no livro do Ernesto Laclau, Hegemonia e Estratégia Socialista, onde ele afirma que a vanguarda revolucionária não fala em nome dos interesses de uma classe existente, mas, ao contrário, ela gera essa classe mediante o poder do discurso, invertendo em cem por centro, em cento e oitenta graus, não só a descrição que Karl Marx faz da sociedade capitalista e da sua evolução histórica, mas também a visão que Marx tinha da própria estratégia da revolução socialista.

Estamos diante de um caso de uma experiência humana estritamente limitada, paupérrima, da qual o indivíduo tenta espremer como um limão seco, que ele espreme muito para tirar as últimas gotas inexistentes. Em suma, entendemos que tudo aquilo é uma simples invenção. E é uma coisa de um artificialismo absolutamente sufocante. No entanto, o que acontece quando as pessoas lêem esse material? Elas não podem se contentar só com aquele esquema que Marx lhes deu. Elas vão preencher este esquema com as suas próprias imaginações e, naturalmente, o esquema capital- trabalho é compatível com uma infinidade de narrativas imaginárias diferentes. Você pode preencher aquilo com mil elementos. Quando Marx fala da alienação do trabalho, por exemplo. Você pega a sua energia vital, seu tempo - o tempo é a substância da vida humana -- e o vende, então você está alienando, passando para outra pessoa a sua própria existência. A palavra alienação quando lida pode evocar na cabeça do cidadão mil e uma situações diferentes. Você pode fazer uma analogia entre a alienação e o processo da transferência que se dá durante uma psicanálise; transferência quer dizer que o seu psicanalista começa a desempenhar algumas funções que seriam do seu ego. O ego é o bicho que vai fazer a mediação entre o id, as paixões profundas, e o superego, as inibições morais. Você tem as duas forças, uma pressionando de baixo outra pressionando de cima, e o ego tem que resolver o conflito ali no meio. Como você não consegue resolver o conflito o que faz em seguida? Você se aliena, passa aquela função que seria do seu ego para o psicanalista. Então pronto, temos aí uma analogia baseada nessa palavra: alienação. E assim por diante.

Quando analisamos a obra de Georg Lukács, o filósofo húngaro, e vemos como o esquema da alienação foi ali ampliado até se tornar um esquema descritivo geral da existência humana, nós entendemos que Georg Lukács está preenchendo com a sua própria experiência imaginária de grande leitor da literatura o esquema abstrato que Marx lhe forneceu. Vemos que um esquema baseado numa experiência muito pobre, transformada pela sua própria pobreza em conceito abstrato genérico, pode justamente pela sua pobreza ser preenchida pelas inúmeras riquezas imaginárias dos seus ouvintes e este mecanismo que estou lhes descrevendo basta para explica toda a história da evolução do pensamento marxista. Por que cada leitor preencheu aquilo com seus próprios conteúdos, então, é evidente que, quando um sujeito como Laclau -- cujo livro foi lançado em 1985, cento e quarenta anos depois de ter aparecido o Manifesto Comunista e centro e dez anos depois de ter aparecido o primeiro volume de O Capital -- diz que o que produz a história é o discurso, ou seja, o discurso cria a classe que retroativamente o legitima, trata-se do contrário do que prega marxismo, porque este diz que a história nasce do conflito efetivo e real entre interesses econômicos antagônicos, do capitalismo e do proletariado. Este choque de interesses reais geral, segundo ele, gera todas as idéias que entram em jogo no curso do conflito. Cento e tantos anos depois aparece um sujeito dizendo que não existe entrechoque nenhum de interesses reais, é tudo uma função do discurso, a fala humana cria toda essa impressão. Parece-me que isto é o oposto do marxismo, no entanto, o Laclau fala desde dentro de uma tradição que é marxista e ele acredita que é marxista. Não espanta que essa tradição seja constituída de uma sucessão de idéias que tem pouco ou nada a ver com a sua origem nos escritos de Karl Marx e freqüentemente é antagônica a ela. É claro que é uma coisa paradoxal; sempre que eles negam Karl Marx dizem que o estão confirmando, por quê? Porque como a substância de experiência que está na origem é muito pobre e se tem somente o esquema abstrato, esse esquema é fácil de ser transportado analogicamente para milhões de outras experiências completamente diferentes.

Você não pode fazer o mesmo com Platão. Como o substrato de experiência humana que embasa a origem das idéias de Platão está exposto nos escritos -- você tem ali a experiência e as idéias foram dela deduzidas -- o próprio Platão o está convidando a conferir as idéias dele pela experiência, que você pode refazer imaginativamente, ou até realmente, e pode dizer se as conclusões dele são verdadeiras ou falsas. Tanto que Platão capricha muito mais na narrativa dos diálogos que na exposição das suas conclusões finais. Freqüentemente as conclusões dele são tentativas experimentais, ele não tem certeza do que está dizendo. Por exemplo, no Timeu, que é uma descrição da estrutura do Cosmos, ele está hesitando o tempo todo e não sabe se aquilo é verdade ou uma ficção. Está dizendo que aquilo ali foi o que ele concluiu, mas seria possível tirar outras conclusões. Você tem a conclusão final abstrata, a experiência originária, que lhes deu a inspiração e a trajetória de uma coisa à outra. O trajeto evidentemente pode ser corrigido, mas o leitor de Platão não está livre para interpretar aquilo de qualquer maneira, ou para fazer a analogia que ele bem entenda. Quando se analisa o famoso Mito da Caverna, por exemplo, ele não criou aquilo do nada. Platão viu que um sujeito chamado Sócrates tinha de certo modo feito uma experiência de introspecção, sondando a origem das suas próprias idéias e valores, e tinha vindo desse fundo com uma série de novidades que podiam parecer inverossímeis àqueles que estavam ouvindo, então quem era esse homem da caverna? Era o próprio Sócrates, não uma coisa inventada. A interpretação do Mito da Caverna está de certo modo delimitada pela experiência que lhe deu origem e as conclusões metafísica, gnosiológicas, etc., que Platão tira do mito são verificáveis e corrigíveis por esta experiência.

Mesmo quando não concordamos com as conclusões finais de Platão, devemos algo a ele, porque ele nos ensinou a caminhar desde a experiência, real ou imaginativa, até as conclusões filosóficas por meio da técnica que ele chama dialética, sabendo que esta técnica pode falhar no caminho e levar a conclusões que o próprio Platão não pode nos impor com uma certeza. No caso de Karl Marx -- como nós não sabemos qual foi [00:40] a experiência originária, ela não está presente ali, e se Karl Marx a expusesse ele estaria automaticamente exposto ao ridículo, porque ele não conhecia nem capitalistas muito menos trabalhadores, ele nunca esteve numa fábrica na vida dele -- nós temos somente o esquema abstrato final, que não sabemos de onde saiu, e, por isto mesmo, podemos preenche-lo com o conteúdo que quisermos. Toda a interpretação de Karl Marx que se diga marxista é, na verdade, uma interpretação projetiva. Os indivíduos estão projetando as suas próprias experiências numa fórmula vazia que admite ser preenchida com qualquer experiência que se queira, inclusive a que seja mais contrária à proposta marxista, como por exemplo, esta do Laclau. Um indivíduo afirma que a história nasce da luta de classes, do conflito entre interesses materiais antagônicos, e o outro diz exatamente o contrário, que tudo nasce do discurso e que até o conflito material é fingido a partir do discurso. Mesmo quando a experiência desmente Karl Marx ela pode ser exposta nos termos dele e parecer que você está dizendo a mesma coisa que ele.

Veja que a simples análise do texto de Karl Marx não nos permite chegar a essa conclusão, mas uma vez conhecido o texto você pode sondar: qual é a experiência humana real da qual isto saiu? E só fazendo isto é que depois se percebe que as sucessivas interpretações de Marx não são interpretações de sua obra, mas sim invenções posteriores que guardam com o esquema marxista originário apenas uma analogia, uma síntese de semelhanças e diferenças. Praticamente todo intérprete de Karl Marx é marxista sob certo aspecto, e antimarxista sob outro aspecto. Forma-se, então, uma falsa tradição na qual, vale tudo. E evidentemente este caráter projetivo das interpretações não pode se reconhecer como tal. Está, de certo modo, proibido. O indivíduo tem que preencher aquilo de conteúdo dizendo que está raciocinando dentro do esquema marxista e basta isto para explicar o senso de continuidade e unidade que existe nesta tradição que é feita da sua própria negação contínua, e de seu próprio desmentido contínuo.

Como todos os indivíduos que criam essas interpretações nunca estão seguros se estão raciocinando dentro do campo marxista ou desde fora, isto faz com que se apeguem uns aos outros para criar uma espécie de irmandade; uma espécie de conspiração de enganos. De certo modo, a tradição marxista vive do seu próprio desmentido contínuo. É claro que estamos diante do fenômeno de teratologia intelectual. A tradição marxista neste sentido não coincide, não parece, com nenhuma outra tradição filosófica ao longo dos tempos. Por exemplo, nós podemos falar de uma tradição platônica que reaparece sempre que você vê - seja na própria filosofia ou na literatura, nas artes, etc. - a aspiração de subir desde este mundo da mutação contínua e da contínua corrupção e geração para um outro mundo de estabilidade e permanência. Onde quer que você veja isto saberá que está dentro da tradição platônica, por quê? Porque esta é a experiência originária de Sócrates. A tradição platônica é uma tradição efetiva, por mais que as pessoas divirjam entre si elas concordam no essencial. No caso da tradição marxista, porém, ela é feita de indivíduos que discordam no essencial e que somente têm entre um e outro a continuidade de uma cumplicidade estratégica -- são membros do partido ou colaboram com o partido -- e que, por outro lado, só estão unidos uns aos outros, no que diz respeito ao conteúdo das suas idéias, por um vínculo analógico, que pode ser, inclusive, de analogia inversa. Toda discussão séria da tradição marxista é impossível nos termos dela própria. Não se pode discutir com pessoas que dizem A e não-A ao mesmo tempo. Não se pode discutir com uma tradição que é feita do seu próprio desmentido. Porque o que quer que se diga já está desmentido de antemão. É como a opinião da presidente Dilma Rousseff, que é favorável e contra o aborto ao mesmo tempo. Você não pode discutir com ela porque se a acusar de ser abortista, ela diz que não é, e se você reclama que ela não dá suficientemente apoio ao aborto, ela diz que ao contrário, que ela já deu apoio, então não se tem como discutir.

O uso dessa linguagem dupla, que na verdade é múltipla, impede qualquer enfrentamento intelectual sério com a tradição marxista, à qual ganha, então, uma consistência sociológica, de número de membros, de solidariedade dos seus participantes, na mesma medida em que a sua consistência intelectual se desfaz e se esfarela dia a dia. Qualquer coisa que se diga pode se inserir dentro da tradição marxista, mesmo as mais antagônicas ao pensamento de Karl Marx. Porque, além da analogia, você tem a participação no grupo: todos os teóricos marxistas, de uma maneira ou de outra, são ou membros do partido comunista ou simpatizantes ou colaboradores, etc., há uma solidariedade social. Toda ela está baseada não na adesão às mesmas idéias, mas na mera analogia entre milhões de imaginações diferentes e um esquema abstrato dado no começo. Eu afirmo: o marxismo não possa ser discutido nos seus próprios termos. Todas as tentativas que liberais e conservadores fizeram para discutir o marxismo foram perdidas, porque tão logo eles demonstraram que um determinado aspecto do marxismo é falho ou falso em relação a realidade objetiva, aparecia uma outra versão do marxismo que dizia o contrário.

O mesmo acontece com a Teoria da Evolução. Qual é a experiência originária da qual nasceu a Teoria da Evolução? Foi certo grupo de observações feitas por Charles Darwin durante suas viagens, que eram de uma pobreza imensa -- embora não fossem pobres em si mesmas - em relação às pretensões universalmente explicativas da teoria. O próprio Darwin reconhecia que os registros fósseis que tinha eram muito pobres para provar o que estava dizendo. Sendo assim, as versões subsequentes da Teoria da Evolução podem ser contrárias ou antagônicas ao pensamento de Charles Darwin e ainda assim elas se dirão "darwinistas", ou que constituem a Teoria da Evolução e assim por diante. Não há como discutir. Se você provou, por exemplo, que não existe o negócio da sobrevivência do mais apto, aparece outro que vai explicar o mesmo esquema analógico por outros motivos completamente diferentes. E vai dizer que o que você contestou foi uma versão anterior da Teoria da Evolução, mas agora ela afirma isso assim e assim. E se isto também for contestado aparecerá outra versão e depois outra e mais outra. Então é impossível discutir essas teorias por meio de seu conteúdo. O que se pode fazer é contar a história delas, e mostrar que elas se compõem de agregados analógicos que nada tem nada a ver com a tese inicial e o que conferem a essas teorias um significado tão enormemente elástico que elas podem querer dizer qualquer coisa. Você encontra evolucionista que, no começo, afirma que tudo acontece de acordo com uma lei férrea da evolução natural; mais tarde aparecerão outros que vão dizer que tudo é uma sucessão de acasos. Parece-me que essas teorias são antagônicas. Se tudo acontece de acordo com uma lei, é uma coisa, se tudo acontece por acaso, é outra coisa completamente diferente, mas eles dirão que é a mesma teoria. Como é possível discutir com a teoria que diz sim e não? Não dá para discutir. O que se pode fazer é contar a história, descrever o processo cultural da formação desses blocos ideológicos e mostrar justamente que a discussão é impossível e que não se tratam realmente de teorias, mas de agregados analógicos que preenchem de conteúdos imaginários - os mais variados possíveis - um esquema inicial, que, por isso mesmo, não prova nenhum compromisso com a experiência que os originou. Em Darwin, o conjunto de fatos que colecionados por ele não prova de jeito nenhum a teoria proposta. Apesar sugere, mas pode sugerir outras coisas também. Isso não quer dizer que a teoria em si esteja errada. Simplesmente indica que a teoria não tem vínculo com a experiência originária, então ela não pode ser conferida pela experiência e qualquer massa de experiência que se agregue posteriormente a ela o faz mediante esquemas intelectuais que são antagônicos à própria formulação original da teoria, como, por exemplo, passando da idéia da necessidade natural incoercível à idéia da livre combinação aleatória de fatores.

[00:50] Não é necessário dizer que a quase totalidade das teorias, idéias, doutrinas, correntes de pensamento que tomaram posse do mundo moderno são assim. Não é possível discutir com nenhuma, nós estamos aqui em face de um conjunto patológico de evoluções intelectuais que não admite ser colocadas na mesa e discutidas, porque podem mudar de identidade quantas vezes queiram.

No caso do próprio René Descartes, quando se observa os sonhos que ele teve na juventude e que para ele determinaram o rumo de toda sua vida intelectual posterior, percebe-se que aqueles três sonhos, no fundo, nada têm a ver com as conclusões que ele tirou deles. Eles poderiam ser interpretados num sentido completamente diferente. Quando ele diz, por exemplo, que um espírito mau o está levando para a capela do colégio de Laflèche para ele rezar. Um espírito do mal vai levar a pessoa para rezar na capela? E depois vem um espírito de luz e revela para ele uma coisa completamente diferente. Por que supor que o espírito mau que aparece no sonho é efetivamente um espírito mau? E não que o próprio sonho foi inspirado por um espírito mau? Uma análise real da experiência colocaria imediatamente Descartes nessa dúvida. Quem foi enganado pelo espírito mau? O personagem do sonho ou a pessoa do sonhador? Se eu tivesse um sonho desses, essa seria a primeira coisa que perguntaria. Se eu quero compreender a minha experiência, questiono: de onde veio este sonho? Jamais tomaria o sonho como um ponto de partida, como um momento inaugural como de fato Descartes toma. A compreensão que ele teve da sua própria experiência foi muito deficiente. Ele não sondou a natureza da experiência, mas a tomou como uma revelação e neste momento teve a idéia mais maligna de todos os tempos, que é a de um princípio explicativo universal. Ninguém antes dele tinha pensado nisso.

Se procurarmos em Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Duns Scott, etc., nenhum deles disse que tinham um princípio, uma regra que explica tudo e o resto basta se deduzir daqui. Esta idéia se impregnou de tal maneira na cabeça das pessoas que praticamente cada filósofo que apareceu desde então tentou achar um princípio explicativo universal. No Século XX, esta idéia recebe ainda uma segunda modulação mais perversa: o princípio explicativo universal é uma coisa oculta que ninguém percebeu até agora e que eu sou o primeirão a ver a luz e revelar aquilo para as pessoas. Esse entendimento aparece no próprio Karl Marx, quando ele afirma: toda a história é no fundo a história da luta de classes. Tudo o mais que sucedeu na história, conflitos religiosos, escolas de pensamento, estilos artísticos, códigos morais, etc., foi tudo um vestido de idéias que estava encobrindo a verdadeira realidade do processo à qual consiste em luta de classes e nada mais. Quando o Dr. Freud disse: é tudo um conflito instintivo do id com o superego, então, é o desejo sexual que se defronta com as barreiras sociais, morais e civilizacionais e desse conflito advém toda a história humana; ninguém tinha percebido até agora e isto estava totalmente inconsciente e eu, Sigmund Freud, destampei a latrina e agora vocês podem ver tudo. Então -- este negócio da lei íntima condutora de todo o processo, o segredo íntimo, ou de todo o universo, ou de toda vida humana, desde Descartes até hoje -- o número de fulanos que descobriram o princípio único é impressionante! Porém, todos esses princípios únicos são diferentes. É claro que todos eles têm algo a ver com a realidade, mas nenhum deles é um princípio único explicativo.

No caso de Descartes o caso se agrava ainda mais porque ele supõe a substituição dos objetos reais da experiência pelos seus modelos matemáticos respectivos. Leibniz objetava a isto que as qualidades matemáticas, ou matematizáveis, de um ente não são suficientes para fazer dele um ente, ou seja, além de ter propriedades matemáticas ele tem que existir e ser alguma coisa. Esta "alguma coisa" não é definível matematicamente e muito menos a sua existência pode ser definida matematicamente. Para que algo tenha propriedades matemáticas é necessário que ele seja algo e que exista; e dentre as inúmeras determinações da sua existência estão algumas propriedades matemáticas ou matematizáveis, em segunda instância. A própria dificuldade que se tem de matematizar certas observações mostra que esses caracteres matemáticos não são fundamentais para a existência daquele ente.

O que acontece? De acordo com toda a filosofia antiga, desde Platão até a entrada em cena de René Descartes, todo mundo acreditava que o mundo é a criação do espírito divino, que todas as coisas têm de algum modo a marca do divino nelas, em graus diferentes. Estes delimitam também os graus de saber possíveis a respeito das várias criaturas e, sobretudo, o exercício da inteligência humana possível mediante duas coisas simultâneas: por um lado, uma assistência da providência divina à inteligência humana - a providência divina sustenta a inteligência humana. Mas ela o faz só internamente, agindo dentro do seu cérebro e tornando você mais inteligente? É claro que não. Por outro lado, ela também ajuda você mediante todos os objetos e todos os seres que compõem a criação. Cada um deles tem uma forma inteligível. Não é somente a inteligência que é inspirada por Deus, é a inteligência e o inteligível. Se não houvesse o que inteligir, não adiantaria ser o sujeito mais esperto do mundo. E se os objetos da natureza fossem ininteligíveis também não adiantaria nada ser inteligente, porque não se inteligiria coisíssima nenhuma. A ação divina que sustenta o conhecimento humano é dupla. Ela por um lado dá aos objetos formas inteligíveis -- de maneira que você pode olhar essas coisas e saber o que elas são -- e, por outro lado, infunde na nossa mente a capacidade de apreender essas formas, distinguindo-as da presença material dos objetos. Quando você vê um vegetal e uma pedra, percebe imediatamente a forma inteligível que dá a esses entes uma diferente modalidade de existência, uma diferente modalidade de presença para você. O simples fato de que um vegetal talvez seja comestível e a pedra não já nos dá uma informação preciosa sobre a forma inteligível. Esta informação que torna um tomate comestível sem o mesmo atributo à pedra não está na simples presença material dela e do vegetal, porque é uma qualidade comum a todas as pedras e a todos os vegetais. O que se está captando no vegetal e na pedra é o potencial de ação e paixão de cada um deles, ou seja, que ações estes entes podem fazer e sofrer e quais não podem. São propriedades que se deduzem da forma inteligível. Se estas não existem, a nossa inteligência iria operar sobre o que? A partir do momento em que as formas inteligíveis desaparecem e sobram somente propriedades matematizáveis dos entes, a ação divina só pode operar sobre a inteligência humana em si.

Existe, então, fora de nós um conjunto de meros objetos e formas matemáticas que em si mesmas não nos dizem o que os objetos são, e existe dentro de nós uma força miraculosa que produz em nós a certeza absoluta da nossa existência, a certeza da existência de Deus através [1:00] do infinito e através da noção de infinito a certeza de que os objetos do mundo exterior existem realmente, mas é uma certeza intelectual deduzida das propriedades do eu e das propriedades de Deus, ou seja, você só consegue admitir que uma pedra exista e que uma pedra é uma pedra, porque você sabe que pensa, logo existe, sabe que Deus fundamenta a sua inteligência e sabe que Deus é bom e não ia enganá-lo com uma série de objetos fictícios em torno. Portanto, os objetos do mundo exterior devem de fato existir e ser alguma coisa. Para se entender aquilo que qualquer analfabeto entende na primeira, que as coisas existem e constituem algo, foi preciso fazer todo este trajeto e fundamentar tudo na inteligência humana. Esta se torna, portanto, o elemento fundante e Deus é a garantia desse elemento e a conexão que existe entre nós e os objetos se torna uma ligação puramente intelectual e deduzida, em vez de ser percebida nas próprias formas das coisas. Para se saber que um coelho é um coelho você precisa saber que você pensa, logo existe, que Deus garante seu pensamento, que Deus colocou o coelho lá e não pode ter botado para lhe enganar, então podemos acreditar que um coelho é um coelho. É tão artificial que daí nós perguntamos: de que experiência originária isso pode ter surgido? E Vemos que Descartes nos ajudou a responder essa pergunta dizendo que a experiência originária foram aqueles três sonhos que ele teve, mas o que ele fez com ela? Ele a examinou, aprofundou o conteúdo e o significado delas? Não. Ele as tomou como ponto de partida, ele as tomou como uma revelação dogmática, que na verdade elas não são de maneira alguma, por que as revelações dogmáticas podem ter uma riqueza e uma multiplicidade de sentidos, mas não podem ter sentido incoerente.

Deus não pode nos proibir e mandar fazer a mesma coisa ao mesmo tempo. Esses sonhos, quando examinados, já revelam um fermento de ambiguidade, porém Descartes em nenhum momento a percebe. Em vez de examinar e aprofundar sua própria experiência, ele se colocou dentro dela, como se ele fosse um personagem do sonho. O René Descartes que passa a existir a partir desse momento não é o mesmo que sonhou, mas sim aquele que foi sonhado. Daí o caráter fictício de toda a filosofia de Descartes, do qual, de certo modo, ele está consciente o tempo todo. Também não podemos esquecer que Descartes leu muito pouco. Ele praticamente não lia livros. Só se preocupou com que os outros pensavam durante certo momento quando eles -- como Thomas Hobbes, Mersenne e outros -- apresentaram objeções à suas Meditações de Filosofia Primeira e ele as respondeu. A lateralidade variada de perspectivas que existe no meio cultural e que nos serve como suporte e apoio - para que nós consigamos enxergar os objetos dentro de uma rede de perspectivas que fazem com que eles tenham na nossa representação intelectual a mesma multilateralidade e a riqueza que elas têm em sua presença objetiva - isto tudo está ausente em Descartes.

Podemos dizer: tudo o que René Descartes fez foi tomar um sonho como se fosse uma revelação e criar uma estrutura de justificação daquilo que ele viu em sonho. Ora, é evidente que a idéia de substituir os entes reais pelos seus modelos matemáticos apresenta uma vantagem técnica, porque permite que se manipulem industrialmente ou tecnicamente esses objetos, os transformando em outras coisas, porém - como eu escrevi em O Jardim das Aflições - quando você pega uma árvore, serra e a transforma numa cadeira, ela não pode mais voltar a ser árvore, não vai ter mais as propriedades da árvore, mas somente as propriedades da matéria, a madeira, que agora adquiriu a forma de cadeira. Transformar um objeto em outra coisa não é conhece-lo -- se você o transformou numa cadeira, agora você pode conhecer a cadeira, mas não a árvore. E se a cadeira ficar velha e você queimá-la na lareira, você conhecerá o calor, mas não a cadeira, e assim por diante. A transformação dos objetos, embora tenha uma utilidade prática imediata, não é um modo de conhecer, é um modo de manipular a realidade. Quando vemos no Século XIX os filósofos pragmatistas como William James, Pierce e outros dizerem que a verdade de uma proposição está naquilo que nós pretendemos fazer com ela, percebemos que a transformação do "conhecer" em "modificar" se impregnou profundamente na cultura ao ponto de que, nesta, a idéia mesma de conhecimento desapareceu.

Hoje em dia, quando entendemos algo a mais do domínio sobre a natureza, é possível entender o que existe de ambíguo e perigoso em tudo isso. Primeiro, quando se cria um avanço técnico qualquer, a maior ilusão que se pode ter é a de que a humanidade conseguiu um domínio técnico sobre a natureza. Não! Alguns indivíduos é que conseguiram um domínio técnico sobre determinado processo e, na mesma medida, eles têm um domínio técnico sobre as outras pessoas. Então, esta passagem, esta transição, do conhecimento dos objetos da natureza, para o conhecimento dos seus esquemas matemáticos, tem uma série de implicações sociológicas, políticas, etc., que podem ser temíveis. Atualmente, as elites econômicas que têm a investigação científica sob seu comando, que financiam -- portanto, orientam - o sentido da investigação científica, pensam, por exemplo, em produzir condutas coletivas por meio da manipulação genética. Eles não estão interessados em conhecer o ser humano, mas transformá-los em outra coisa. Alguns chamam isso de super-humanismo. Peter Sloterdijk (filósofo alemão) é um adepto do super-humanismo. Para ele, nós vamos criar pessoas que tenham um QI 320, que possam viver 340 anos, que sejam todos campeões de esportes, etc.. É evidente que nunca mais saberemos como eram os homens de antigamente, ou seja, se trata realmente uma substituição do conhecimento pela manipulação. E passado certo ponto não há mais como voltar. Você fará uma mágica, mas essa mágica vai lhe envolverá de tal maneira que não será mais possível saber como se entrou nela. O conhecimento do processo se torna proibitivo, é preciso viver do esquecimento da situação anterior, porque você a substitui de tal maneira por uma situação nova que a antiga se tornou inimaginável ou impensável. Naturalmente, o conhecimento do passado também sofre esta mutação. Você não vai mais investigar o passado para saber o que aconteceu, mas apenas que você quer fazer com ele. Toda a história passada se transforma num instrumento de manipulação para o uso dos políticos presentes. É um vasto processo de esquecimento. O esquecimento contribui para o acréscimo do poder daqueles que têm a "pesquisa científica" sob seu comando.

A idéia do domínio sobre a natureza inspirou muito René Descartes, como também Bacon, ainda mais explicitamente. Em nenhum momento esses indivíduos parecem perceber declaradamente de que não é o poder da humanidade sobre a natureza que aumenta, mas o poder de certos grupos e indivíduos sobre a matéria e sobre os demais seres humanos. Que este processo fosse, ao mesmo tempo, identificado com o advento da democracia, dos direitos humanos e de uma liberdade maior para todos é um dos enganos mais monstruosos da história humana, porque evidente não há aumento nenhum da liberdade, mas sim do controle. Nas sociedades democráticas de hoje em dia, nos EUA, o governo tem meios de ação sobre os indivíduos que os maiores tiranos da antiguidade jamais puderam imaginar. Nada impede que neste momento haja um cara do FBI a três quadras de distância ouvindo tudo que estamos dizendo aqui. Quando Júlio Cesar ou Atila imaginaram poder ouvir à distância conversas particulares para controlar a conduta de cada um? A possibilidade de criar condutas coletivas mediante a inoculação de certas substâncias no alimento, praticada no século XX, espantaria Julio César, que nunca aspirou a ter um poder tão grande assim. Quando eu era criança, todo mundo fazia aplicações de flúor nos dentes para não ter cáries, mas aquilo não impedia cárie alguma, você tinha tanta cárie quanto os outros. O flúor tinha sido testado nas prisões da União Soviética [1:10] e induzia as pessoas a uma conduta mais passiva e pacífica, e diminuía o número de rebeliões nas prisões. Por isso mesmo o flúor foi espalhado pelas multidões. É claro que é um acinte, uma ofensa. É claro que a existência da democracia política não significa nada em face de um meio de controle tão profundo e tão eficiente quando esse e outros muitos que se desenvolveram na década de 1950.

A utopia do controle humano sobre a natureza desemboca no controle da humanidade inteira por meia dúzia de pessoas. E isto é o que as pessoas chamam de democracia e que o velho Benedetto Croce chamava de História da Liberdade. Não é a História da Liberdade, não! A história é a História do Controle. Onde a liberdade sobrevive apenas graças às eventuais falhas do controle. Quando eles deixam uma brecha, a gente entra por aquele buraquinho e estoura o controle, mas isto está ficando cada vez mais difícil.

Voltando ao início, a única maneira de compreender as teses filosóficas é tentar, por um esforço de imaginação, apreender o imaginário e a experiência real que estão por trás delas. Se você discute as idéias apenas como tais, não está compreendendo nada. Está apenas pegando combinações de palavras e compreendendo no mesmo sentido em que um computador compreenderia um texto. Você pode apreender a estrutura interna do argumento, seu desenvolvimento, mas não é capaz de apreender o seu significado humano e histórico, e, portanto, o verdadeiro efeito que aquilo vai ter sobre a sociedade, a cultura, etc. Não se está fazendo realmente uma interpretação, não se está aprofundando a compreensão do texto, mas apenas jogando um jogo, entrando em suas regras no desempenho de um papel social. Isto é tudo que se requer de você nas universidades, mas isto é o oposto da compreensão dos textos filosóficos.

[pausa]

Aluno: Na medida em que vamos estudando, a nossa percepção da miséria moral vigente na vida pública do Brasil vai se ampliando e, na mesma proporção, aumenta nossa irritabilidade com as atitudes que vemos adotadas pelas pessoas nessa esfera, e aqui friso que não me refiro às atitudes das pessoas nas suas vidas privadas, como o senhor constantemente ressalta. Uma forma de que me utilizo para me acalmar quando estou diante de tanta safadeza, canalhice e criminalidade são pensar que Deus está ciente de tudo que ocorre e da sua onisciência nada escapa e que não me compete julgar as atitudes morais dessas pessoas; e, assim sendo, devo me concentrar no que eu tenho que fazer e entregar o resto à Deus mentalmente (...) O senhor tem alguma dica para como nos acalmar diante de tamanhas coisas erradas na vida pública que vamos percebendo na medida em que vamos estudando?

Olavo: Tenho uma dica sim e é uma coisa fundamental.

Estas situações são as melhores para você se fortalecer e se tornar, cada vez mais, independente da opinião e do julgamento dessas pessoas. Este período nosso de estudos é o período no qual cada um deve adquirir e tentar encontrar em si mesmo os fundamentos das suas atitudes vitais, e aprender a se desligar de grupos sociais malignos, daninhos e aprender a desprezar a opinião dessas pessoas. Um dia vocês terão uma função na coletividade brasileira, publicarão livros, escreverão artigos, darão aulas, farão conferências, etc.; de alguma maneira tudo o que vocês estão aprendendo aqui vai fomentar a sua atividade criadora e vocês terão a presença. Pessoas que adquirem a possibilidade dessa presença e dessa atuação pública quando ainda não estão maduras e fortes suficientes são facilmente corruptíveis, enganadas, lisonjeáveis, chantageáveis... É isso que eu não quero que aconteça para vocês. Por isso mesmo, é ótimo você ter que ver esta porcariada toda, todos os dias, e não poder fazer nada. Isto vai matar em você qualquer ilusão que se tenha quanto a essas pessoas e grupos e quanto à sociedade brasileira. E um dia você vai poder levantar a sua cabeça diante de tudo isto de modo a falar com autoridade. Se você quer espernear todo dia -- espernear é uma coisa que qualquer um pode fazer, até um bebê no bercinho esperneia e reclama contra o que está acontecendo -- é preciso uma atitude pública firme, falar com autoridade. Mas tapar a boca desses desgraçados requer certo treinamento; e deste treinamento faz parte isto que você e todos os outros alunos estão sofrendo agora. Você tem que engolir a porcaria dia após dia. É a melhor disciplina para você aprender a desprezar essas pessoas, e nada esperar do julgamento delas, e o dia em que você abrir a boca para falar pra elas você não vai querer saber a opinião delas. Você vai falar e dizer: cala a boca, burro, fica quietinho no seu canto. O maior problema do Brasil hoje é o excesso de opinadores sem autoridade, sem consistência, nem mesmo humana para falar, e que são levados aos mais altos postos, seja do mundo universitário, da vida cultural, da vida artística e da política; ostentando toda a sua baixeza, toda a sua vileza, toda sua falta de caráter, de consistência, toda a sua vacuidade. Nós temos que acabar com isso. Nós temos que ocupar esse espaço -- não politicamente, nós não somos um movimento político. Temos que dar um exemplo de vida intelectual mais consistente e para isto você tem que aprender a desprezar o julgamento deles. Por exemplo, teve outra pessoa que perguntou: nós devemos nos afastar da vida universitária, sair da universidade?

Depende. Em primeiro lugar, se você estiver numa universidade nunca fique lá com o espírito de "ai, eu vou ficar bonzinho, vou ficar quietinho e vou subir dentro da hierarquia e, daí, quando eu estiver lá em cima vou fazer alguma coisa." Ninguém aguenta fazer uma coisa dessas e se você tenta fazer isso, se estraga pelo caminho. Vai aprender toda a técnica da lisonja, da adaptação ao espírito do grupo e vai esquecer o principal. Tem duas maneiras de você sobreviver e progredir dentro do ambiente universitário: a primeira é ficar lá dentro e abrir espaço com os cotovelos, jamais respeitar quem não tem merecimento, não tentar obter a simpatia dessas pessoas, mas obter o respeito e até o temor delas. Se você tem um professor metido que não sabe nada, o humilhe cinco ou seis vezes e ele lhe dará dez até o fim do curso. Eu sei que isto funciona, porque esse pessoal não vale nada, são todos covardes e só agem direito quando são intimidados, então não hesite -- não é contestar os caras, nem discutir -- não hesite em humilhá-los, mostrar sua vacuidade, mostrar autoridade perante o sujeito. Quando se tem certeza do que está falando - conhecimento sobre o assunto - tape a boca do desgraçado. A sua função ali dentro é fazer valer os valores da vida intelectual autêntica e desmascarar continuamente a vigarice. Se o cara está acima de você, melhor ainda. Quanto maior o sujeito, maior o tombo. Não respeite, não obedeça, não tente ganhar a simpatia. Aja corretamente, sem um desrespeito maligno, mas colocando o indivíduo no seu devido lugar; fale com autoridade, com firmeza, ponha o cara no seu lugar. Esta é a primeira forma de ficar lá dentro. A segunda seria praticar a ocupação de espaços, mas você não pode fazê-lo sozinho. Esta é a grande ilusão [1:20] de quem pensa: "não, eu vou ficar quietinho, vou ocupar um lugar lá dentro...", é uma bobagem, uma ilusão. O pessoal comunista faz isso, mas faz em grupo. Eles entram com trinta, quarenta, cem, cento e vinte e ocupam o espaço. Agora você quer fazer isso sozinho? Quer subir sozinho numa hierarquia corrupta e lá no meio tentar manipular o conjunto? Isso é uma bobagem. Você não tem que usar os instrumentos deles, nem tem que achar que vai tomar conta e aprender a estrutura de como funciona e que vai manipulá-la por dentro. Existem certas estruturas que não podem ser usadas para outras coisas senão para aquilo que servem. É necessário fazer com que a sua presença lá dentro já seja a quebra dessa estrutura desde o início e se você puder fazer isso em grupo, com dez ou quinze amigos, melhor ainda. O indivíduo que mostrar conhecimento e autoridade desde o começo toma conta da universidade mesmo que seja aluno do primeiro ano. Então nunca tenham medo, nunca ceda m. Agora se você decide sair da universidade, acho que só deve fazê-lo se tiver outra perspectiva, não de estudo, pois a perspectiva de estudo você tem aqui, mas de trabalho. Afinal de contas a carreira de professor universitário não é grande coisa, é? Você pode ganhar mais do que um professor universitário tendo um posto de gasolina, ou tendo um caminhão. Um caminhoneiro ganha mais que um professor universitário, então pra que você vai ficar lá só para ter um título que é um documento que um ignorante recebeu de outro ignorante? Como aqueles que assinaram o Manifesto dos Filósofos, que não são filósofos de maneira nenhuma. Filósofo pra eles é o sujeito que não tem a menor idéia de filosofia, mas que tem um papel assinado por outro que não tem a menor idéia. Então nós não podemos participar dessa porcaria, mas não quer dizer que devemos fugir. E nem ter a ilusão de nos infiltrar e dominar a máquina por dentro, isso é uma besteira! Essa máquina não pode ser dominada, tem que ser totalmente modificada, totalmente quebrada, e ser substituída por outra coisa, e isto só se pode fazer em grupo. Se você tiver um grupo de trinta colegas que queiram fazer isso, bom "nós vamos entrar nessa universidade, vamos ficar aqui e dominar esta porcaria. Vamos cortar as cabeças aqui, uma por uma." E tem que fazer a coisa de tal modo que esses camaradas fiquem inibidos, que tenham medo de você. Como se faz isso? Mostrando que você conhece a coisa cem vezes mais do que ele. Porém, não provoque discussão, não se trata de discutir, trata-se de mostrar a superioridade do conhecimento em face da ignorância e isto você só pode fazer quando tem bastante conhecimento, até lá tem que aguentar quieto e desenvolver na sua pessoa o desprezo por este meio social e a sua capacidade de ficar sozinho ali no meio. Quer dizer, esta sua experiência é para fortalecê-lo. Veja, a sociedade brasileira é constituída de milhões de pessoas que estão buscando segurança e proteção, o que é uma coisa absolutamente utópica. A busca da segurança numa sociedade como a brasileira é coisa de maluco, você não tem sequer a segurança de andar na rua e não levar um tiro, então, você não tem que buscar a segurança, tem que buscar a força. Tem que ficar capacitado a reagir. Essa situação degradante o é para os outros, mas para você ela pode ser aquilo justamente que vai lhe levantar.

Aluno: No vídeo do Seminário de Filosofia, no diálogo entre o senhor e o teólogo Carlos Josaphat, num determinado trecho, você aborda o fato de que a maioria os jovens quando se diz rebelde está, na verdade, se voltando contra a autoridade mais fraca, os pais, ao mesmo tempo em que se sujeitam a autoridade mais forte, que no contexto da afirmação é a pressão do grupo social, é o que está ali no artigo "Imbecil Juvenil". Meu questionamento é justamente como lidar com essa delicada interação entre as gerações, sobretudo entre pais e filhos, especialmente quando o jovem não está se opondo aos mais velhos em razão de rebeldia juvenil sentimentalista, ou de mera conformação às pressões de seus pares, mas por razões justas. Apenas para fins de ilustração, tenho um conhecido que estudando e aderindo à tradição católica teve de ver em 2006 seu pai fazer campanha para o Lula. Como manter o dever de respeito aos pais nessas circunstâncias em que você observa o encolhimento da pessoa mais velha ante o diálogo sincero e a vontade de conhecer? Isso para não mencionar o apelo moralista do mais velho à sua razão simplesmente por ser mais velho ou bem sucedido.

Olavo: Bom, em geral as pessoas não precisam nem se dar tão bem assim para achar que têm razão. Esse caso já tem uma solução bíblica. Está na história de Abraão. Ele diz para o pai, "olha, você é meu pai, eu lhe respeito, adoro você, mas eu não posso fazer do jeito que você está me mandando. Então o que eu faço? Eu vou embora." E mantenha uma distância, uma distância respeitosa, e de vez em quando vai lá e visita o pai, leva um presentinho, conversa sobre outras coisas e pula fora. Se o sujeito disser: "mas daí como eu vou sobreviver?" Se você não tem condição de se sustentar a si mesmo, e se você não é capaz de adquirir esta sustentação, então você não tem cancha para discutir com seu pai. Então você tem que validar as suas idéias mediante o seu valor e a sua consistência pessoal. Sustentar-se a si mesmo é obrigação estrita de todo ser humano e todo aquele que não se sustenta a si mesmo é sustentado por outro. Então este é o primeiro dos princípios morais na sociedade humana. Não primeiro na ordem moral, mas na ordem social é uma coisa básica. Todos têm que carregar o seu próprio peso e ajudar a carregar o daqueles que não tem capacidade para isso, um bebê, um doente, etc. Se eu não posso arcar com minha própria pessoa no contexto social, que direito tenho eu de criticar o outro? Não tenho direito nenhum. Torne-se capaz de viver sem a ajuda de seu pai e mantenha distância dele. Não o desrespeite jamais, não brigue, não discuta e entenda que se você está nessa situação humilhante de ser sustentado por ele e ter que vê-lo fazer coisas das quais discorda, isso é muito bom para você aprender a ser humilde. Entender que o direito de opinar, o direito de julgar as condutas alheias não vem com o simples nascimento, ele custa alguma coisa. E a primeira coisa que ele custa é você tornar-se um cidadão de pleno direito. O que é isso? É um cidadão capaz de sustentar a si mesmo e de não ser um peso para os outros. Eu, quando era moleque, tinha um amigo cujo pai tinha ficado doente, estava totalmente incapacitado, e o moleque com treze anos de idade montou um negócio. Ele tinha uma fábrica de pastas -- dessas pastas de plástico de botar papel -- e era uma fábrica pequena, tinha cinco empregados, mas ele era o capitalista, o gerente e tudo, e sustentava a família com aquilo. Eu ficava besta de ver aquele negócio. Tinha outro também, cujo pai morreu e ele tinha a mãe doente e o irmão pequeno. E ele era um freelancer fazendo revisão de livros. Ele não tinha onde cair morto, e morava longe, e às vezes não tinha um lugar para trabalhar. Saía da escola com aquele bolo de papel para fazer revisão e às vezes ficava desesperado: "onde que eu vou ficar?" Eu me lembro que uma vez eu o encontrei na rua, ele falou: "pô, eu tenho que entregar isso aqui e não tenho onde trabalhar..." E eu dei uma idéia: "vamos para a discoteca municipal, a gente se fecha dentro da cabina, manda tocar uma música, baixa o volume da música, e você fica fazendo lá suas revisões." E ficamos lá cinco horas na discoteca municipal fazendo revisão de livros. Eu vi essas pessoas. Não era o meu próprio caso, eu não tinha esse problema naquela época, eu não precisava me sustentar a mim mesmo, mas eu admirava muito os meninos que fizeram a própria independência. Eu fui fazê-la entre os dezessete e os dezoito anos, nessa época eu tinha quatorze, quinze. Então, não tem um jeito de você fugir do trabalho e ainda querer ter a sua opinião respeitada. É natural isto, não é injusto. A condição de membro de uma sociedade adulta é você carregar-se a si mesmo, é você arcar com sua própria despesa. Isso é um dever moral. Não é uma coisa secundária, externa, não podemos ter essa ilusão de que "nossa vida intelectual é tão maravilhosa, estamos pensando em coisas tão elevadas que nós não podemos trabalhar." Leia a vida de Goethe. Ele tem toda uma ética do trabalho: você tem que fazer o seu trabalho e fazê-lo bem feito, mesmo que seja o trabalho mais humilde e até humilhante. Isto vai lhe dar mais consistência intelectual do que ficar o tempo todo estudando, lendo coisas maravilhosas, enquanto depende financeiramente de outra pessoa. Vejam vocês que estão no Paraná, veja a Luciane Amato, ela sempre carregou o mundo nas costas, sempre teve que pagar suas próprias despesas e, no entanto, fez tudo o que fez. Se você tiver que trabalhar oito, nove, dez horas por dia e lhe sobrar somente uma hora para você estudar, mas tiver a consciência tranqüila de ser um cidadão que cumpre com seu dever e paga suas despesas é muito melhor. Essa única hora vai render mais do que oito ou nove horas do filho do sujeito rico que não tenha nada para fazer e tem o tempo todo para estudar. Eu vejo na minha geração, quando o camarada não tinha que fazer nada, a família sustentava, dava tudo, o sujeito não precisava fazer nada, podia comprar quantos livros quisesse. O eles fizeram com tudo isso? Não fizeram nada, não saiu um que prestasse ali. No começo da minha juventude, eu não tinha muito tempo para estudar, eu comecei a trabalhar com dezesseis anos, então, justamente por isso tinha que dar um diferencial qualitativo para aqueles poucos momentos de estudo. Então, faça a mesma coisa. Não brigue com seu pai, não crie problema em família, aguente tudo. Aguentar quieto situações que você não pode mudar é uma disciplina excelente. Porque você sabe o seguinte: quando você tiver os meios de ação não fará aquilo [1:30], fará outra coisa. Quando chegar lá vai estar preparado. Justamente porque aguentou quieto a situação deprimente. Então é assim, o bom cabrito não berra. Se você não pode fazer nada, não faça nada, senta e espera. E esta espera vai fortalecê-lo.

Aluno: Eu e mais alguns colegas do Seminário de Filosofia estamos querendo estabelecer um grupo de discussão na área de literatura. Fizemos uma reunião via Skype sem, no entanto, chegar a uma visão clara de qual seria a forma que o grupo deveria tomar. Uma das possibilidades consideradas foi tomarmos alguma obra de nossa predileção, uma de cada vez, e estudarmos o fundo de experiência ali embutido, com a divisão de tarefas entre os membros do grupo. Outra possibilidade seria um estudo dos gêneros literários. Se fôssemos dos tipos humanos dos personagens, quer dizer, dos mais baixos para os mais elevados, isso nos permitiria logo passar uma vista na literatura brasileira. Há também outra possibilidade que seria o estudo da história da literatura ocidental, talvez se priorizando a compreensão das formas estilísticas mais valiosas.

Olavo: Você tem que seguir as seguintes linhas: A leitura das grandes obras de literatura tem que ser um costume, tem que ser um hábito, tem que estar sempre lendo. Se não tem mais nada o que fazer pega um romance, uma peça de teatro, um livro de poemas e vai lendo. É a experiência acumulada, mesmo que você não esteja fazendo nenhum estudo sistemático daquilo, aquilo é simplesmente ampliação do imaginário. Isso tem que ficar fazendo sempre. Eu, às vezes, passo um tempo, passo dois anos sem ler literatura de ficção e, de repente, dá um faniquito e começo a ler tudo de novo. Eu sinto que está faltando. Então, agora, por exemplo, estou me atualizando com esses escritores americanos e ingleses dos últimos trinta, quarenta anos e estou descobrindo coisas maravilhosas. Isso tem que ser prática constante, mas isto só não basta para fazer um grupo de estudos de literatura. Tem que fazer isto, o exame aprofundado desse ponto de vista mesmo que você falou, quer dizer, investigar o fundo de experiência humana que tem ali, mas, ao mesmo tempo, o estudo da história da literatura é absolutamente indispensável. Tem a história dos estilos, das épocas, tem que saber tudo isso aí justamente para você, quando se deparar com uma grande obra, ver que ela não se explica pelo estilo de época nem coisa nenhuma, tem ali um elemento à mais que é irredutível. Eu sugiro que vocês leiam a História da Literatura Ocidental, do Carpeaux. Foi assim que eu comecei. Eu li a História da Literatura Ocidental do Carpeaux e fui marcando ali todos os autores que eram mais importantes e seus livros, falei: "eu vou ler essa porcaria toda até o fim da minha vida". Estou cumprindo o programa até hoje. Esta semana mesmo comprei um livro que eu vi citado no Otto Maria Carpeaux cinqüenta anos atrás o livro da Sigrid Undset, escritora da Noruega, são uns romances épicos, então eu vi aquilo e me lembrei que estava na minha lista do tempo que eu lera o Carpeaux, que estou cumprindo até hoje. São livros e mais livros que não acabam -- coisa para você ler para o resto da sua vida. Ao mesmo tempo você deve fazer um estudo das discussões teóricas. Deve pegar os grandes críticos e teóricos da literatura, que não são muitos na verdade; o Northrop Frye, Matthew Arnold. Se quiser uma lista eu dou depois. Estar na constante reflexão crítica. Na língua portuguesa você tem excelentes teóricos, como Fidelino de Figueiredo, Adolfo Casais Monteiro, o próprio Álvaro Lins, tem muita coisa boa aí. A reflexão crítica sobre a literatura é extremamente importante, para a formação do filósofo; ele tem que se alimentar de boa literatura o tempo todo e, ao mesmo tempo, ter a reflexão crítica. Pergunta: o que é isso? Como se faz isto? Não só pela aquisição da técnica literária, mas como um aprofundamento na experiência humana -- isso aí você tem que fazer de qualquer maneira. Então são esses três pilares: a constante leitura das obras, a reflexão crítica e a aquisição do conhecimento da história da literatura. Vai por essas três vias ao mesmo tempo e vai dar certo no fim.

Aluno: O senhor utiliza da técnica astrocaracteriológica para analisar as intenções do filósofo em seu texto?

Olavo: Jamais. Jamais. Primeiro por que nós não temos certezas dos dados astrológicos desses indivíduos, na maior parte dos casos; em segundo lugar porque o texto deve dizer por si qual é a experiência a que ele remete. Quer dizer, não se trata nem mesmo de estudar o texto e a biografia do camarada. A biografia é um elemento posterior que pode ajudar. O importante é você tentar puxar do próprio texto a experiência humana que está ali subentendida. Se você não pode, na maior parte dos casos, descobrir positivamente qual é a experiência, você pode, pelo menos, descobrir quais são os limites do imaginário do indivíduo e, portanto, o que ele não está enxergando e deveria enxergar por ser inerente ao assunto do qual ele está tratando.

Aluno: O senhor poderia fazer um breve comentário sobre o filósofo R. G. Collingwood e seus estudos sobre arte e estética?

Olavo: Não posso, porque o livro do Collingwood está na minha estante há trinta anos e eu ainda não li. Não aconteceu. Porque, em geral, eu só leio coisa que é pertinente ao que eu estou estudando no momento, não coincidiu, nunca chegou o momento dele. Quando ler, eu comento.

Aluno: Quando o senhor diz que Marx deixou esquemas de abstração para serem preenchidos pelo imaginário de quem tem contato com sua teoria, pode-se pensar que Marx fez isso de caso pensado?

Olavo: Não, de jeito nenhum. Ele fez porque era a única coisa que podia fazer. Foi o mesmo que fez René Descartes. Porque você tem que acreditar que o primeiro impacto imaginário de uma experiência real, ou imaginária, lhe dê uma revelação sobre a natureza das coisas? Eu me lembro que aos quinze anos de idade eu descobri a Lei dos Três Estados de Augusto Comte. Só que eu não sabia que se chamava Lei dos Três Estados, que tinham sido inventadas pelo Augusto Comte, e que estavam erradas, mas naquele momento me pareceu a revelação divina. "Olha só, a história tem três etapas!" O que eu sabia de história, que era um quase nada, se articulava facilmente dentro dessa série de três. Então acreditei que era uma iluminação. Karl Marx fez a mesma coisa, ele acreditou imediatamente na primeira sacada que teve sobre a mecânica do capitalismo, ao invés de aprofundar a experiência. René Descartes fez a mesma coisa, teve aquele sonho, acreditou no sonho. É claro que eles não fazem isso de caso pensado, mas, ao mesmo tempo, são responsáveis pelo que fizeram. Porque têm a obrigação de aprofundar e analisar sua experiência em vez de fazer dela um molde para a experiência de todos os outros. Essa coisa totalitária você observa em praticamente todos os filósofos modernos, cada um tem uma experiência, tem um impacto, e nunca corrigem aquilo. Ele acredita naquilo, tira dali um princípio universal e quer que todo mundo siga aquele negócio. Kant quando teve a intuição das formas a priori, a mesmíssima coisa. Ah, se você teve uma bela intuição, ótimo, espera um pouco que você vai ver que ela está errada. Aprofunde, examine criticamente, confira com a experiência dos outros. Dizia São Tomás de Aquino: a verdade é filha do tempo. Você tem que absorver a experiência humana das outras pessoas e aprender a se enriquecer com aquilo, ao invés de achar que só porque você teve uma bela idéia aos quinze anos de idade você superou tudo. A posição de Descartes é evidentemente assim: "ah, tudo que veio antes não interessa. O começo da história c'est moi." É claro que isso é uma presunção idiota e quem quer que raciocine assim chega a produzir assim uma infinidade de problemas que ele não pode resolver. Você vê que praticamente todas as discussões idiotas que houve a partir de René Descartes nascem desse sonho que ele teve. A escola cartesiana que acabou por dominar a Europa não se dominou a si própria. Apareceram no dia seguinte cinqüenta correntes cartesianas em total conflito umas com as outras. Aquilo não podia ter coerência nenhuma. Na mesma medida que expande a sua influência se multiplicam suas dissidências internas indefinidamente.

Aluno: Na obra As Origens da França Contemporânea*, Hyppollite Taine observa a existência de um terreno apropriado para a germinação da semente revolucionária,* l'espirit classic*, e a necessidade de um órgão para a programação de suas doutrinas, a arte da fala, eloquência aplicada aos assuntos mais sérios, o talento do esclarecer. Qual a linguagem que desempenha hoje esse papel na propagação da mentalidade revolucionária?*

Olavo: Hoje não há uma linguagem específica. A linguagem revolucionária se impregnou em toda a cultura contemporânea e é muito difícil sair dela. Eu acho que esse é um dos grandes problemas para as pessoas que se consideram conservadoras, cristãs, etc.; não só criar outra linguagem, mas impugnar essa linguagem revolucionária. Veja, nunca houve ninguém, antes da minha pessoa, que dissesse o seguinte: a mentalidade revolucionária tem que ser erradicada cem por cento. Não é fazer uma revolução contra ela, não é fazer outra revolução. Não é criar outro tipo de sociedade. É impugnar na base qualquer tentativa de inventar uma sociedade. Outro dia alguém me mandou uma pergunta: "apareceu um partido teocrático com uma proposta de uma sociedade cristã, o que o senhor acha?" Eu não sei qual o conteúdo da proposta, mas se é uma proposta eu já estou contra. Uma sociedade, qualquer sociedade, resulta de milhares ou milhões de correntes de ação que ninguém pode coordenar, sobre as quais ninguém pode ter o comando. Resulta da infinita criatividade de milhões de pessoas que você nem mesmo conhece. Se a sociedade foi inventada por você, ela já não presta. Esta idéia de inventar uma sociedade e implantá-la é a base da mentalidade revolucionária. Se você diz que inventou uma sociedade cristã, você é tão revolucionário como os outros. O que a doutrina cristã pode lhe fazer, é lhe dar uma baliza negativa sobre os limites das propostas sociais. E não dar um modelo positivo [1:40] de sociedade. Eu acho que a noção mesma de sociedade cristã já está impugnada no momento em que Cristo diz: dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. A sociedade nunca vai ser cristã, a sociedade não pode ser salva, vocês têm que entender isso. O que é salvo é a alma dos indivíduos, mesmo dentro da pior sociedade do mundo, às vezes acontece que a sociedades piores, produzem pessoas melhores. Eu me lembro que no tempo da Ditadura as pessoas eram melhores, veio a democracia todo mundo se corrompeu. Durante o regime soviético ou o nazista, quantas belas personalidades não apareceram? Gente sincera, mentalidades heróicas. Depois vem a democracia e hoje na Alemanha só tem boiola, coisa horrorosa. Uma vez houve uma senhora aqui que disse: "essa sociedade é boa demais para as pessoas." O problema aqui nos EUA é esse. Você nasce carregadinho de direitos, carregadinho de todos os meios de ação possível, todo mundo lhe paparica, diz que você é legal, então você se estraga. Eu divido as pessoas em dois tipos (não é uma doutrina filosófica, é apenas pragmática): as pessoas que melhoram quando você lhes faz o bem e as que pioram quando você lhes faz o bem. Por isso você deve fazer o bem para todo mundo, porque quem não presta se releva no instante seguinte. Agora se você tratar as pessoas mal, você nunca vai saber se elas são boas ou más. Trata todo mundo bem, seja generoso com todo mundo, seja tolerante com todo mundo e, na primeira vez que o indivíduo se revelar, você avisa: você tem três chances, na terceira eu lhe ponho pra fora. Daí é muito simples. Eu sugiro, aqui, que nosso esforço deva ser o de erradicar a mentalidade revolucionária e a linguagem revolucionária, dentro de nós mesmos em primeiro lugar. A nossa ação sobre a sociedade humana deve ser uma ação crítica, analítica e corretiva. Nunca uma ação propositiva. Não estamos propondo nada, nós temos uma proposta para nós. Qual é a nossa proposta? É a definição daquilo que nós vamos fazer. Nós não vamos fazer tudo, só vamos fazer uma coisa: tentar elevar o nível da vida intelectual do Brasil. Só isso. Você tem uma proposta para a saúde? Não. Você tem uma proposta para a economia? Não. Você tem uma proposta para a educação? Não. Você tem uma proposta para a segurança pública? Não. Em suma, nós não temos proposta a não ser para nós mesmos. E esta, já é suficientemente difícil, é um projeto grandioso que vai requerer a dedicação de todos, porque se trata de criar não uma ou duas pessoas, mas uma nova geração. Isto é dificílimo de fazer. Se nós conseguirmos fazer isso, nossa vida estará justificada. Nossa tarefa estará cumprida. Para que temos que inventar uma nova sociedade? Então, sempre que aparecer pessoas inventando novas sociedades a gente tem que ir lá e desmoralizar o sujeito. Até o dia, distante, em que essas idéias serão totalmente erradicadas. E que qualquer pessoa que venha com uma proposta revolucionária seja colocada no hospício imediatamente. "Ah, e o que vai vir depois? Qual é a forma de sociedade que vai vir depois?" Não tenho a menor idéia. Eu sei o seguinte: tem milhões de pessoas trabalhando, agindo, criando e a nova sociedade resultará imprevisivelmente desse conjunto. Eu não acredito, por exemplo, na teoria do Hayek da origem espontânea das sociedades. Não, infelizmente elas não são espontâneas, infelizmente existe um fenômeno da disparidade de poder entre os seres humanos e essa disparidade de poder tem crescido. Se você observar ao longo do tempo, você verá que entre a idéia do Benedetto Croce, da história como história da liberdade, e a idéia do Bertrand de Jouvenel, que a história é a história do crescimento do poder, é o segundo que tem razão. É isto que está acontecendo realmente. Isso quer dizer que o que existe é uma restrição, cada vez maior e cada vez mais tecnicamente otimizada, à criatividade das pessoas e à formação espontânea da sociedade. Então o que nós temos que fazer? Temos que tentar quebrar as pernas desses fatores controladores. Nós não precisamos de uma sociedade administrada, precisamos de menos administração. Nós não precisamos de planos maravilhosos, precisamos de menos planos. Porque, sobretudo, esses indivíduos que fazem planos de longo prazo nunca estarão vivos para a gente cobrar deles. Como é que nós podemos jogar hoje na cara de Karl Marx: olha aí o que você fez? Ele não está mais aqui. Então, a idéia de que os projetos políticos devem ser de curo prazo é inerente à democracia moderna, quer dizer, você vai ficar no poder por quatro ou cinco, parece que na França são oito anos -- no máximo oito anos -- então você tem que fazer as coisas nesse prazo, se não fez nós lhe botamos de lá para fora. E se você fez tudo errado, tem que fazer de tal maneira que o governo seguinte possa desfazer tudo aquilo e tentar outra coisa. A sociedade tem o direito de aprender com tentativa e erro. Quem vem com os planos de longo prazo, os planos abrangentes, tira de nós o direito de aprender por tentativa e erro. Sobretudo quando esses planos não estão esclarecidos e não são discutidos em público. Como, por exemplo, os planos do partido que governa o Brasil. Ele tem programa de governo para mostrar para as pessoas e tem um plano secreto que só é discutido internamente; e é esse que está sendo executado. O outro é só para fins de propaganda. Então, veja, você está envolvido em um projeto de longo prazo que você desconhece. O simples fato do PT ser membro do Foro de São Paulo, a macro organização política, que tem seus próprios planos aos quais os planos do PT estão submetidos. Se você não conhece os planos do Foro de São Paulo, você não entende os do PT. E os planos do Foro de São Paulo não são conhecidos por ninguém no Brasil. Então, o que está sendo implantado é um plano secreto de longo prazo, incompreensível para a maioria da população. Como é que você vai chamar isso de democracia? Você não pode ter plano de longo prazo, tem que ter um plano de governo de quatro anos e olhe lá. O que eu estou fazendo é somente levar a sério um dos elementos fundamentais da democracia moderna. Não digo que a democracia seja o melhor dos regimes possíveis, mas é o que nós temos e não está tão desconfortável assim. Por exemplo, eu acho uma delícia poder falar mal do Lula, falar mal do Obama, não vai me acontecer nada, eu acho uma delícia e acho que todo mundo tem que ter esse direito. Eu gostaria que todo mundo desfrutasse desse prazer de poder xingar os governantes. Não tenho nenhuma justificativa profunda de filosofia política para isso, isso é apenas um gosto que eu tenho e que eu gostaria que os outros também desfrutassem desse prazer. Então, por isso que eu gosto da democracia. Não tenho nenhum argumento para oferecer em favor dela. Eu tenho o argumento de que ela existe e ela está funcionando e que eu não sou capaz de pensar uma coisa melhor. Eu só me limito a levar a sério a proposta democrática e entender as suas consequências, suas exigências internas. Uma dessas exigências é que não haja planos de longo prazo. Isso me parece tão óbvio. Se o período de governo é quatro, cinco ou oito anos - o que seja - então tem que ter planos só para estes anos sem o direito de encaixar este plano nominal num outro plano de longo prazo que permanece secreto. Eliminar os planos de longo prazo é eliminar a mentalidade revolucionária. E ninguém aqui vai fazer uma sociedade, você vai fazer o que conseguir fazer o que é da sua conta e já fez muito. Nós temos que nos opor à mentalidade revolucionária não no seu conteúdo apenas, mas na sua forma. A descrição que eu fiz da mentalidade revolucionária é toda baseada na forma mentis e não no conteúdo da proposta. Mudar o conteúdo da proposta, mas continuar dentro da mesma lógica é criar uma variante do vírus. Você está combatendo um vírus e o que você faz? Cria uma subespécie do vírus que vai se multiplicar mais ainda. Então não vem com essa história de sociedade cristã para cima de mim. A sociedade jamais será cristã, nós é que devemos ser cristãos. A sociedade tem que estar repleta de cristãos, de modo que, de uma maneira ou de outra, o cristianismo prevaleça, mas não como fórmula de sociedade, ele permaneça como critério de julgamento, critério das atitudes perante as situações concretas.

Aluno: Está difícil acompanhar o seu curso, acho que o curso foi feito para gente jovem. Os problemas que aparecem no dia a dia tornam impossível acompanhar o curso e fazer os exercícios. Eu fiz agora quarenta e oito anos e a quantidade de problemas me impede de acompanhar o curso, acompanho alguns vídeos e algumas aulas. Parei na aula quatorze.

Olavo: Assista à aula quinze! Quem está com pressa? Não tem nenhum motivo para ter pressa, nem para ficar agoniado. O que é acompanhar o curso? Acompanhar o curso é acompanhar a aula que você está assistindo. Você não precisa fazer no mesmo ritmo dos outros. Não esquente a sua cabeça mesmo! Vai da aula quatorze pra aula quinze... Devagar também é pressa. Não se preocupe com isso não.

Aluno: O filme Tropa de Elite 2 mostra exatamente essa situação que o senhor disse. O Coronel Nascimento entra no Sistema de Segurança Pública do Rio de Janeiro com a ilusão de modifica-lo estando lá dentro, mas acaba sendo usado pelo sistema.

Olavo: É isto. Se for para você implodir o sistema, você terá de começar a implodi-lo desde o primeiro dia. Agora o establishment militar não é o lugar adequado para se fazer isto. Mas a universidade é. Por quê? Uma instituição militar é inteirinha baseada na obediência e não na livre discussão. Existe livre discussão dentro do establishment militar, dentro de um órgão que se chama Estado Maior. O Estado Maior é onde você tem toda a liberdade de criticar, onde todas as idéias são admitidas, etc., mas o Estado Maior discute as coisas e passa para o comandante, o comandante faz a sua escolha e a partir dali o Estado Maior mesmo tem que obedecer, mesmo que não concorde. É a base do establishment militar, portando, ali não é o lugar para você fazer bagunça. Mas a universidade é. Eu fico espantado de ver como a idéia de hierarquia e disciplina se impregnou na universidade brasileira como se fosse um colégio [1:50] interno. É incrível, a autoridade que hoje em dia os orientadores de tese têm sobre seus orientandos, e o professor tem sobre seus alunos. É um negócio impressionante. Para quem viu como era a universidade em outras épocas e vê isso acontecendo hoje, seria melhor transformar tudo em colégio interno. Um professor não tem o direito de dizer para você: "não, você não pode citar tal livro." Isso não existe! Ele pode tentar fazer isso e fazer uma pressão, mas é um blefe. Por exemplo, se você vê que seu professor, ou os seus professores estão te obrigando a mentir na sua tese processe-os. Eles não têm autoridade para fazer isso. É fraude. Em primeiro lugar, você usa um instrumento da intimidação justa, quer dizer, "olha, eu sei mais do que você e, por um favor, por uma generosidade minha, estou consentido que você seja orientador da minha tese só por um motivo burocrático e não por um direito inerente que você possua, então você se dê por muito honrado de assinar a minha tese e, por favor, dê palpite quando você revelar mais conhecimento que eu; se você tem mais conhecimento que eu, você é meu professor, se eu tenho mais conhecimento sou eu o seu professor e momentaneamente estamos com posições trocadas." Mas em nenhuma universidade é admissível que fatores burocráticos e hierárquicos se sobreponham ao valor do conhecimento. Isto é a negação mesma da definição de universidade. Então, o que é universidade? Universitas Litterarum et Scientiarum é o universo das letras e das ciências, e também o universo dos professores e alunos. Não é um exército, não é um colégio interno, não é uma ordem monástica, não é uma organização hierárquica de jeito nenhum. Numa universidade o elemento hierárquico tem que ser mínimo, isto é pela própria natureza das coisas, porque ela é feita para fomentar a investigação, a discussão e o progresso do conhecimento. Se não atende a suas finalidades não merece existir. Então entre lá dentro com a mentalidade correta e obrigue os camaradas a praticarem aquilo que define a missão da universidade.

Aluno: Um pensador aliado dos fatos da experiência não produzirá uma teoria de grandes experiências a serem reconstruídas, mas seria então precisamente essa pobreza e este distanciamento da realidade o que a faria apta a congregar os mais distintos antagonismos?

Olavo: Precisamente. É isto mesmo. É justamente a pobreza de conteúdo de experiência e, portanto, o caráter esquemático da idéia inicial que permite que aquilo seja interpretado das maneiras mais antagônicas, porque o único padrão de unidade, entre as várias interpretações, será de tipo analógico, ou seja, não vai haver uma coerência doutrinal, não vai haver aquele mínimo de continuidade lógica que é preciso haver para você poder falar de um progresso do conhecimento, quer dizer, que partindo de uma hipótese inicial você vai investigando outras coisas e vai agregando. Isto numa coisa como o marxismo é impossível, porque os elementos agregados são os mais antagônicos possíveis e não formam um conjunto. O "conjunto", a "unidade", do pensamento marxista, é uma unidade organizacional -- a existência do partido comunista ou dos partidos comunistas --, é uma unidade de tipo mafioso também -- o interesse comum -- e é a unidade meramente imaginária de um conjunto de analogias. E isto é permitido justamente por causa da pobreza de experiência que está colocado ali, a qual não permite ser conferida pela experiência. Se ela não permite ser conferida pela experiência, então qualquer experiência vale, porque qualquer experiência nem a confirma nem a desmente. Apenas vai criando aquela massa confusa de analogias na qual o contrário acaba por ser o mesmo. E daí as pessoas ainda vão dizer que isso é dialético, quando isto não é dialético, é mera confusão. A dialética é justamente consiste em você, através dos pensamentos opostos, descobrir a linha comum. Agora você agregar contradições à teoria não é dialética de maneira alguma.

Aluno: Você tem conhecimento de possessão demoníaca em crianças? É possível isso?

Olavo: sim. É claro que é possível. Leia o livro do Malachi Martin, que se chama Hostage to the Devil: The Possession and Exorcism of Five Living Americans. E também os livros do padre Gabriele Amorth, não sabem se ele está vivo ainda, mas foi o principal exorcista do Vaticano por muitos anos.

Aluno: Qual seria a solução no caso da possessão em crianças? Um exorcista?

Olavo: O padre Gabriele Amorth descreve nos seus livros uma situação catastrófica da existência de cada vez menos exorcistas. Depois do Concílio Vaticano II foi baixada lá uma série de normas para o exorcismo -- normas que foram inventadas por pessoas que nunca fizeram nem viram um exorcismo, não tem a menor idéia do que seja. É o amadorismo presunçoso que, interessado em outras coisas, começa a baixar norma de maneira que o ignorante passa a determinar o que o sábio tem que fazer. Então, não é fácil você achar um exorcista dentro da Igreja Católica. Leia os livros do padre Amorth e veja as discussões que prosseguiram depois dos livros e você terá idéia de como está a situação do exorcismo hoje e terá ali um guiamento melhor para você encontrar um exorcista capacitado.

Aluno: Como você concebe a idolatria dos santos católicos? Sem querer adentrar e julgar os fatos milagrosos ocorridos através desses iluminados, quando a própria Bíblia a condena. E essa história de se orar direto ao Filho de Deus sem intermediários?

Olavo: Você nunca pediu para ninguém rezar por você? O apelo aos santos não é um apelo para que eles façam isto ou aquilo, mas um apelo para que eles orem por nós. Se nós somos almas imortais, os santos também são e o que eles estão fazendo no Paraíso? Estão rezando constantemente, estão orando constantemente. E pedimos que orem por nós em função de seus méritos. Quantas vezes uma pessoa não é salva pelos méritos do outro? Porque você reza por uma pessoa? Digamos que um parente seu que está doente e você está orando por ele, ele vai sarar por causas dos méritos dela? Não, por causa dos seus méritos de estar rezando por ela. Então esta passagem, essa transmissão de méritos entre os cristãos é coisa mais velha que andar para frente. E não é porque os santos morreram que saíram desta corrente, ainda estão nela. Muitas vezes quando a pessoa ora, sobretudo pessoas sem instrução, ela pode usar uma linguagem na qual ela pede para o santo fazer isto ou aquilo, mas é claro que esta linguagem não é literal, é metonímica. O santo não vai fazer coisíssima nenhuma, ele vai é orar por você. Veja que no meu programa True Outspeak, eu peço a intercessão da Virgem Maria e do Padre Pio de Pietrelcina para que roguem a Deus. Por quê? Porque eu sei que a prece deles tem mais mérito que a minha e que Deus se não vai me dar uma coisa por mérito meu, ele pode me dar por um mérito de terceiro. E na ordem dos méritos, as pessoas santas têm mais méritos evidentemente.

Aluno: Isso nada tem a ver com idolatria?

Olavo: Não, isso não tem que ver com idolatria, nem com culto. O culto dos santos consiste apenas em reconhecer que eles têm mais méritos que nós. E que a prece deles às vezes funciona mais que a nossa. Então, quando o pessoal protestante vai à Igreja e fala: "pastor, estou com um problema assim e assim, estão querendo me bater, querem me botar na cadeia, estou sem dinheiro, estou doente, ore por mim." Eles fazem isso a toda hora. Então porque nós não podemos pedir para a Virgem Maria e para o Padre Pio de Pieltrecina? Que diferença faz? O Santo Padre Pio está mais vivo do que todos eles. Se você pegar todos os pastores da igreja evangélica do Brasil, o Padre Pio está mais vivo do que eles. E tem mais mérito que todos juntos e mais méritos do que todos os padres reunidos também. Então nós estamos pedindo a ele. Veja, a função do santo é a função de intercessão. O que é intercessão? Ele vai orar por você. Ele não vai fazer nada, não tem idolatria nenhuma, não tem culto nenhum, você não está pedindo para ele fazer nada. E, vamos dizer, isto é uma confusão que o pessoal evangélico sempre faz. Eu não estou reclamando das igrejas evangélicas. Eu digo, faça do seu jeito e espero que dê certo. Quando você ora espero que Deus lhe atenda. E eu oro do meu jeito e espero que Deus me atenda. E a gente tem que orar para que Deus atenda às orações dos outros, inclusive evangélicos, evidente. E eles também têm que orar para que Deus atenda às nossas. Porque não é por ser católico que a gente vai ter mais mérito, às vezes tem muito protestante que tem muito mais mérito que nós. Então, vai ser muito engraçado você chegar lá no Céu: "olha, você está aqui porque o pastor lá rezou por você." Pode acontecer isso, nada impede. Por exemplo, quantos padres católicos podem se gabar de ter perante Deus os méritos que o pastor Richard Wurmbrand teve? Com todo o bem que fez e com tudo o que sofreu em nome do bem? Então esta é a intercessão. Esteja lá o pastor Wurmbrand onde estiver, espero que ele reze por mim também. Então é simplesmente isso.

Aluno: Gostaria de saber sua opinião sobre o novo livro do Merval Pereira, O Lulismo no Poder*.*

Olavo: Eu não li o livro, mas eu conheço bem o Merval Pereira. Ele vive de escrever em 2010 o que eu escrevi em 2001, 2002 e [2:00] 2003. Quando aquilo já se tornou público, todo mundo já sabe, então agora ele diz as mesmas coisas. Eu não preciso ler o livro do Merval Pereira, que eu já o escrevi, antecipadamente.

Aluno: Quando ele estava no O Globo*.*

O Merval Pereira foi o meu chefe lá no O Globo. E na época que eu comecei a falar de Foro de São Paulo, o sujeito ficava na moita total. Então tudo aquilo era como o Paulo Bering falou na televisão, "garanta o seu emprego, que eu garanto a minha dignidade." O Merval Pereira está lá no emprego ainda. Eu perdi meu emprego no O Globo, mas para mim foi uma maravilha, porque quando eu perdi aquilo, foi aí que eu comecei a fazer o Seminário de Filosofia. Antes não dava, porque estava toda hora preocupado com O Globo, quando me liberei dele me livrei das preocupações e comecei a viver. Foi como no livro do Dale Carnegie, Como evitar preocupações e começar a viver. Perca seu emprego no O Globo e isso fará muito bem para a sua saúde.

Aluno: A teologia da história, que é vista a partir do nexo entre o tempo e a eternidade, poderia ser idêntica à filosofia política pelo elo entre a existência histórica e a consciência de imortalidade no indivíduo singular? Quer dizer, se eu percebo que eu sou e que também me realizo como pessoa na sociedade, mas que também o meu eu transcende essa mesma comunidade política, posso admitir que o fundamento de mim mesmo está para além de minha existência histórica, mas que para os outros se passa o mesmo (...).

Olavo: Aí é que está o problema. O fato de que você, por ser uma alma imortal, transcende infinitamente não só a existência da sua sociedade histórica, mas a de toda a história humana, não quer dizer que você é tão importante assim, porque com os outros se passa a mesma coisa. Cada um de nós tem essa dupla face temporal e eterna. O esquecimento da dimensão eterna faz o que? Faz com que a sociedade humana se torne o extremo limite do horizonte do pensável. Isto é o que Antônio Gramsci chamava a completa terrestrialização do pensamento. Então você vai criar uma redoma, um mundinho falso e trata-lo como se ele fosse o universo inteiro. É claro que esta é a base de todas as políticas totalitárias do mundo. Como é que um sujeito pode aderir a uma coisa como o comunismo, como o nazismo, se ele lembrar que é uma alma imortal e que ele tem um destino celeste ou infernal? Você acha que Himmler quando assinava um decreto mandando não sei quantos judeus para o campo de concentração ele pensava assim: "o que Deus vai pensar de mim? Como eu vou me explicar lá em cima quando chegar?" É claro que não pensava uma coisa dessas. Ao contrário, eles inverteram -- porque os nazistas não eram ateus, mas eram gnósticos -- pois acreditavam que, construindo uma sociedade assim ou assado ou destruindo tudo, estavam cumprindo uma grande missão histórica. Você era a ação do deus espiritual que está destruindo a obra do demiurgo mau que criou esse mundo. Então, por isso mesmo, eles não se incomodavam se tudo que eles estavam fazendo saísse errado. A destruição total da Alemanha estava nos planos de Hitler -- ou nós fazemos uma sociedade assim e assim, ou dominamos tudo, ou nós nos ferramos completamente; as duas coisas servem, porque as duas servem ao propósito gnóstico. Você acha que algum desses caras pensava em prestar satisfações a Deus? Não. Ele achava que o deus que criou o mundo era mau e que ele tinha é que destruir essa obra. Quer dizer que uma perspectiva totalmente errada sobre a eternidade determinou a filosofia política. Pelo lado comunista, a mesma coisa. A negação da transcendência encerra os seres humanos dentro do mundo histórico e faz com que o futuro hipotético da história adquira o estatuto e as dimensões do juízo final. É o famoso tribunal da história. Não existe tribunal da história. Tribunal da história é constituído de mentira. O presidente do tribunal da história deve ser algum Fidel Castro, um Papa Doc, um Idi Amin. Não é pouco o se vê de injustiça histórica consagrada ao longo de séculos. Ás vezes se passa dez séculos e as pessoas ainda estão mentindo com aquilo, quem pode dizer assim com sã consciência como Fidel Castro: "a história me absolverá"? É claro, é fácil a história absolvê-lo, ele deu propina para os historiadores e eles o absolveram. Aliás, é exatamente isso que o partido comunista faz. Alimenta milhares de historiadores para manter mentira e daí diz que a história é que os absolveu. A história é o reino do engano, o reino do engodo. Então, não é ali que você vai ver claramente a ação de Deus, ali você vê a ação de Deus e do diabo tudo misturado e o ser humano no meio tentando, mais ou menos, se orientar. Então, você tem razão, a teologia da história é um elemento fundamental para a filosofia política. Ela não se identifica com a filosofia política. A filosofia política trata de outras coisas, mas ele tem que ter como fundo, uma teologia da história, se não você vai tratar dos assuntos dentro da escala temporal errada. Por exemplo, como é que os camaradas que estudam o poder se esquecem do elemento que é o poder profético, que é o poder mais duradouro e mais eficaz do mundo? Por quê? Porque o pessoal está pensando apenas em termos de história terrestre, ou de história local, e não consegue enxergar os processos de longo prazo. A filosofia política aí se torna o culto de ilusões e de mentirinhas bobas.

Transcrição: Instituto Olavo de Carvalho-Curitiba

Revisão: Fernando José da Silva