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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 72

29 de agosto de 2010

Eu queria começar aqui com algumas considerações sobre a sociedade brasileira baseadas num livro do Aleksandr Zinoviev que, além de romancista, além dos romances que escreveu, como As Alturas Abissais1 e outros, escreveu uma série de livros importantíssimos de sociologia do comunismo, dentre os quais The Reality of Communism2. Há um trecho ali que me parece bastante útil para o esclarecimento da presente situação na sociedade brasileira. Eu vou ler aqui alguns pedacinhos, mas primeiro tem de explicar do quê que ele está falando. Ele começa explicando que as várias sociedades que existem tem de, ao mesmo tempo, criar um espaço na natureza, criar um espaço terrestre, e explorar os recursos ali existentes, e tem de conviver com outras sociedades. Mas ao mesmo tempo, dentro da sociedade, existem os grupos menores dentro dos quais as pessoas convivem. Então se você tomar o conjunto das pessoas com quem você tem alguma ligação direta, ou mais ou menos direta, isso é o que ele chama uma comuna. E ele diz que para as comunas, o objeto natural, o objeto imediato de convivência não é a sociedade como um todo, nem muito menos as outras sociedades existentes, e nem muito menos o ambiente físico terrestre, mas sim as outras comunas. Ele diz que dentro dessas comunas, na relação entre as pessoas e na relação entre as várias comunas --- ele está falando de toda e qualquer sociedade, não especificamente da sociedade comunista --- há uma série de regras práticas que visam à defesa do indivíduo dentro da comuna e defesa da comuna em face das outras e há série de regras práticas que são ou mais ou menos universais e que nada tem a ver com as leis gerais da comunidade, e nem muito menos com os princípios que mantem as comunidades coesas e que mantem a unidade social. São regras que visam exclusivamente à defesa da posição do indivíduo da comuna em face dos outros indivíduos e das outras comunas e que visam, evidentemente, a obter para cada um a melhor posição possível. Essas regras como elas são alheias às normas sociais gerais elas podem até entrar em contradição com elas, mas são regras perfeitamente identificáveis, das quais ele cita algumas: (a) Arriscar o mínimo para ganhar o máximo. Bom, essa é uma regra que todo mundo segue, até mesmo as pessoas de mais alta moralidade; todos sempre estão fazendo isso. (b) Minimize a responsabilidade pessoal e maximize as possibilidades de distinção do estatuto social. Isso aqui não há nada de mau nem de maquiavélico nisso, isso são simplesmente reações naturais para a autodefesa do indivíduo. (c) Minimize a sua dependência em relação aos outros e maximize a dependência dos outros em relação a você. E assim por diante. Isto aí você vai ver que mesmo as pessoas de conduta moral mais elevada fazem isso o tempo todo porque é uma questão de sobrevivência. E ele diz que a civilização se constrói, em grande parte, na base de que a sociedade cria princípios e regras que controlam e mantem as regras comunais dentro do limite do tolerável. Porém, quando esses princípios gerais que estruturam a sociedade --- como por exemplo, a religião, a moral, as leis, etc. --- começam a falhar ou se dissolvem, ou quando elas não têm indivíduos, não tem representantes que as façam valer, então as regras comunais se tornam o princípio geral da sociedade, elas deixam de ser regras comunais e extravasam para a sociedade inteira. Então, aí o que acontece é o seguinte, para dar um exemplo:

"(...) a função de patrão, de chefe ou de gerente é socialmente melhor do que a posição do empregado. Isto é óbvio para todas as pessoas normais. Portanto, essa função não deve ser preenchida por pessoas cheias de ideais bondosos ou por mártires. É uma posição para pessoas que lutam ferrenhamente, e quanto mais alta a posição delas, mais intensa será a luta."

Entre os vários chefes, os vários patrões, há uma concorrência e também há uma concorrência dele com os seus próprios subordinados para ele manter a posição. Isso é um exemplo de convivência no nível comunal. Ele diz que:

"Quando as instituições da sociedade maior não existem ou quando estão fracamente desenvolvidas ou quando estão num estado de dissolução, então as forças da comunalidade vão conquistar uma grande força e determinar a fisionomia do país e, realmente, o caráter das instituições nominalmente designadas para proteger as pessoas dos efeitos dessas mesmas regras comunais. O que se desenvolverá então é um tipo de sociedade no qual florescerão a hipocrisia, a violência, a corrupção, a má administração, a irresponsabilidade, a chantagem, a desonestidade, a vagabundagem, a desinformação, o engodo, e um sistema de cabides de empregos para a priviliguentsia (usando a palavra intelligentsia, tem a privilliguentsia). A esse respeito aparece então, uma valoração pervertida do valor dos próprios indivíduos na sua luta pela auto-afirmação: nulidades serão exaltadas e personalidades significativas serão rebaixadas. Cidadãos moralmente superiores serão submetidos à perseguição e os indivíduos mais talentosos e ativos serão rebaixados ao nível dos medíocres e incompetentes. Mais ainda, não são necessariamente as autoridades que fazem isso: os colegas, os amigos, os vizinhos, os companheiros de trabalho fazem tudo que podem para impedir um homem talentoso de revelar a sua individualidade ou um homem ativo de ascender na sociedade. Essa tendência assume um caráter de massa e invade todos os aspectos da vida e em parte alguma isso acontece tanto quando nas esferas criativa e administrativa. Essa ameaça começa a prevalecer e afeta o estado psicológico das pessoas. O tédio e a depressão reinam e as pessoas constantemente esperam o pior. A sociedade desse tipo está condenada à estagnação e à decadência crônica se ela não encontra, dentro de si, forças que possam se opor a essa tendência."

Daí termina o capítulo, com a frase: "Mais ainda, essa situação pode durar séculos."

Eu acho que isso aqui é uma descrição perfeita do estado da sociedade brasileira. Porque as regras que ele chama comunais ou comunitárias, como se queira, elas são universais, sem elas o cidadão simplesmente não pode sobreviver. Agora, as regras mais complexas que integram grandes sociedades, elas tem de fazer, evidentemente, que as várias comunidades convivam de uma maneira mais ou menos harmônica, então é preciso limitar a luta comunal ou comunitária, a concorrência dentro da comunidade e a concorrência entre as várias comunidades. Então essas regras práticas que são quase instintivas --- quando ele diz, por exemplo, "limitar a sua responsabilidade pessoal ao mínimo e aumentar a responsabilidade dos outros", isso é quase um reflexo --- mesmo pessoas de muito bom coração e muito boa moralidade não podem deixar de fazer isto. Se fizerem o contrário, [00:10] elas estão destruídas socialmente de maneira quase automática. Então, todos nós, o tempo todo, estamos pulando fora da responsabilidade até o ponto em que podemos. Agora, a diferença é que alguns vão pular sempre e outros vão manter isso dentro do tolerável, conforme as regras maiores que integram a sociedade como um todo. Mas quando essas regras começam a falhar, ou quando elas são fracas, ou quando o processo civilizacional está num estágio, ou muito rudimentar ou de decadência, então as regras comunais se tornam as únicas regras existentes. Então isso quer dizer que aqueles princípios de decência, de moralidade com que as pessoas podiam estar acostumadas numa outra fase, simplesmente não existem, as pessoas não são capazes de entender mais isso, porque obedecer à regra comunal é uma simples questão de sobrevivência. Mais ainda: o meio terrestre dentro do qual existe a sociedade, está longínquo para a maior parte das pessoas, a maior parte das pessoas não tem o menor contato com isto. Quantas pessoas dentro do Brasil, por exemplo, trabalham com agricultura e tem de contar com as estações do ano, com as tempestades, com a seca, é um número ínfimo de pessoas. Os outros estão demasiado distantes disso. Então, o ambiente no qual eles vivem é o ambiente das várias comunas, e não é sequer a sociedade como um todo. Muitas pessoas não têm a menor idéia da sociedade como um todo. Se você entrar numa escola brasileira, por exemplo, e fizer algumas perguntas sobre a ordem social brasileira, sobre as leis do Brasil, elas ignoram completamente. Só o que elas conhecem é a regra comunal.

Por exemplo, (isso você pode observar em qualquer repartição pública brasileira), o que vigora não é a lei, o que vigora é a ordem que o chefe deu, porque o funcionário não conhece a lei. A lei é demasiada longínqua e abstrata, mas a palavra do chefe vale. Então se a lei diz que você tem determinado direito, mas o chefe da repartição mandou não atender você, o funcionário não vai atender, então o que vai vigorar é a lei comunal e não a lei maior, o código civil, etc. Vocês podem perceber que no Brasil já está assim. Sinais disso nós já observamos aqui nos EUA. Vinte anos atrás isto não existia, mas agora você já observa sinais desta efusão comunal, onde a autoridade do pequeno grupo vale mais do que os princípios que estruturam a sociedade inteira. No Brasil sempre existiu essa tendência. O Brasil teve algumas épocas onde houve um esforço civilizacional que evidentemente correspondia a um estágio maior de integração social, integração entre as várias comunas e o desenvolvimento de uma consciência da sociedade como um todo. A gente pode marcar estes períodos da seguinte maneira: (a) a Guerra do Paraguai foi um deles. Nós podemos dizer que é o primeiro momento em que existe uma tomada de consciência nacional e que as pessoas se sentem pertencentes a uma sociedade maior e sabem mais ou menos o que estão fazendo dentro dela. Mas isso logo passou. Você vai ver outro período desses durante o (b) Governo Getúlio Vargas, com a industrialização, o progresso econômico, etc. Outro você vê em parte durante o (c) Governo Juscelino Kubitschek, com a construção de Brasília, e outro durante o (d) Regime Militar, principalmente na gestão Médici, também motivado pelo progresso econômico. Então as pessoas se sentiam participantes de uma história nacional nestes momentos. Do ponto de vista cultural, nós podemos dizer que houve alguns momentos em que pareceu se formar uma alta cultura nacional, ainda no tempo do Império, ou seja, final do século XIX, quando você tinha uma elite de alto nível: Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, etc. Depois também na década de 1930, quando aparecem em cena figuras como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, e outras pessoas; então começa, entre os intelectuais, a criação de uma imagem de Brasil que podia se propagar entre as outras classes e criar um sentimento de nacionalidade. É claro que sentimento de nacionalidade é apenas uma forma específica de integração da sociedade. Nem pode haver integração da sociedade sem isto, mas, de qualquer modo, é um dado importante. E, hoje em dia, isso tudo desapareceu. Você não tem absolutamente nada. Então, é claro que hoje em dia, a quase totalidade dos cidadãos ignora as leis, principalmente porque as leis são muitas e são muito confusas, existe um processo de apoteose legisferante: só os artigos que regulam o orçamento nacional são em número de 5.500, até onde é contado. Ora, quem é que conhece 5.500 leis, quem é que pode decorar uma coisa desta? Isso aí é só o orçamento nacional. Agora se você pegar, por exemplo, a legislação tributária do Brasil, empilhar todos os livros de legislação tributária que tem novas leis, vai lotar aí o Instituto Olavo de Carvalho, não vai caber nenhum de vocês aí dentro. Então, justamente por causa disto, existe uma espécie de caos legal da cabeça das pessoas, então isso quer dizer que a lei passa a ser um elemento distante e abstrato para o cidadão. Então ele se apega a quê? À norma comunal, evidentemente, à autoridade imediata da qual cada um depende para a sua sobrevivência. Então, nesta situação é que aparecem fatos de ordem esdrúxula que assinalam a total falta de critério para o julgamento do que quer que seja. Quando você vê as pessoas discutindo, tão preocupadas com a corrupção e não discutem os 50.000 homicídios por ano que acontece no Brasil, então você cria evidentemente uma inversão moral, e o gozado é que o próprio tom moralizante das campanhas contra a corrupção denota a sua total falta de moralidade! Como é que eu posso me preocupar mais com um vereador que pegou um dinheiro no caixa do que com pessoas que estão aí matando milhares de brasileiros por ano? A vida humana se torna menos importante do que um dinheiro que nem sequer pertence ao cidadão, quer dizer, o horror que o camarada tem de quem desviou um dinheiro público é maior do que o que ele sente quando um desses bandidos mata uma família inteira. Então é claro que se trata de almas corrompidas, para as quais o dinheiro é tudo. O dinheiro adquire um atrativo simbólico tão forte, que o dinheiro não precisa nem ser do próprio cidadão. A simples idéia do roubo, do desvio, da corrupção, o faz espumar de indignação, ao passo que a matança generalizada de pessoas não causa maior escândalo e é aceita como se fosse parte da rotina, quer dizer, tem essa violência rotinizada e quanto mais isso se prolonga, menos as pessoas se preocupam com isso e menos elas se sentem ofendidas ou indignadas com esse estado de coisas. O próprio tom moralizante dos discursos revela uma corrupção profunda da alma. Os acusadores da corrupção são talvez ainda mais corruptos do que aqueles que simplesmente desviam o dinheiro, porque eles estão corrompendo o próprio sistema de pesos e medidas. Mas, dentro da esfera comunal, como diria o Zinoviev, a violência homicida não é um problema, porque você não convive com homicidas. Então o homicídio e a violência são coisas distantes. Mas os problemas ligados a dinheiro e à ascensão e queda social são problemas imediatos. Então é evidente que este fenômeno brasileiro denota justamente o que está falando o Zinoviev: o predomínio das regras comunais sobre as regras sociais.

Por isso aí se vê que o estado de degradação a que chegou o [00:20] Brasil é muitíssimo grave e não há nem uma só corrente social preocupada com isto. Quando você vê algum sinal de que alguém está preocupado, indignado com isso, é sempre uma coisa isolada, ou então é colocado dentro de um contexto falso. Por exemplo, outro dia eu vi um fenômeno extraordinário, só poderia acontecer no Brasil. Pegaram um candidato militar, chamado Capitão Almeida e ele está apelando ao voto dos militares e usando toda a linguagem moralizante de combate à corrupção, etc. Mas acontece que o Capitão Almeida pertence ao PT! Então você vê que o próprio partido que está no poder, e é o partido do mensalão, lança então um candidato para parasitar a linguagem de velhos militares que estão indignados com a corrupção. Note que ele está explorando a fraqueza desses próprios grupos. Eu recebo muitas mensagens de grupos militares aqui e eu vejo que sempre eles voltam à mesma tônica: "Corrupção, dinheiro público", e a mentalidade do "petróleo é nosso". "Estão roubando nosso território, a cobiça internacional quer pegar a Amazônia", é sempre aquela mesma coisa. Dos 50.000 homicídios ninguém fala. Então você vê que este pessoal que evidentemente não é esquerdista, não é comunista, não é petista, tem essa fraqueza intrínseca, eles também têm uma mentalidade corrompida, onde o valor financeiro, o valor do território está infinitamente acima da dignidade da vida humana. Então, por isto mesmo, eles são ludibriáveis. No entanto, as Forças Armadas ainda são o lugar onde tem menos corrupção, tem menos bandalheira no Brasil e, de acordo com as pesquisas, ainda são a entidade mais respeitada, mais respeitada até do que a Igreja Católica. Então se até na entidade mais respeitada a corrupção da alma já chegou a esse ponto, onde ela pode facilmente ser enganada pelo próprio corrupto, pelo próprio ladrão que lança um candidato para se aproveitar da linguagem da moralidade ofendida e tentar carrear os votos dessas pessoas indignadas para o próprio partido oficial que promoveu a maior onda de corrupção da história brasileira --- talvez da história humana --- então é porque o nível de consciência chegou no mais baixo possível e as regras comunais são realmente as únicas que valem. Inclusive muitos destes protestos você vê que são de natureza puramente corporativista, sobretudo os protestos militares. "A honra das Forças Armadas, o orçamento das Forças Armadas", isso é o protesto de uma comunidade se defendendo contra as outras comunidades, visando sempre jogar a culpa para o outro, assumir o mínimo de responsabilidade e jogar o máximo de responsabilidade para a mão dos outros. É neste ambiente que vocês estão entrando, e prestem bastante atenção: sem a restauração da alta cultura, não é possível haver normas sociais, não é possível haver integração da sociedade, não é possível haver absolutamente nada. Por exemplo, o que é uma Constituição? Já na análise do Hans Kelsen, que embora tenha falhas, neste ponto nunca foi contestado, toda Constituição é uma pirâmide: ele coloca um princípio no topo e o resto deriva daquilo ou é fundamentado naquilo de alguma maneira. E as leis singulares que vêm nos Códigos --- Civil, Penal, de Processo Penal, de Processo Civil, regulamentos, etc. --- em princípio, têm de ser todas coerentes com aquilo. Essa noção já se perdeu completamente no Brasil. Para se saber se uma coisa é constitucional ou não no Brasil, é preciso ser um gênio! A simples consciência de que as leis têm que ser coerentes entre si, já desapareceu. Eu já assinalei que, quando querem fazer essas leis que privilegiam os gays --- em São Paulo, por exemplo, e essa lei não foi nem feita pelo PT, por esquerdistas, foi feita pelo Alckmin, quando era governador --- se entra um travesti numa igreja ou numa sinagoga, ele não pode ser posto de lá para fora. Quer dizer que se um travesti for tomar a comunhão como foi feito aqui nos EUA por um grupo de palhaços que se vestiam de freiras, o padre não pode recusar a comunhão, embora ele saiba que está sendo objeto de uma gozação sinistra, embora saiba que isso é evidentemente um ultraje à dignidade da Igreja, ao culto que ele está oficiando. Por outro lado, existe uma lei que proíbe o ultraje a culto. Você não pode fazer troça, fazer gozação com uma pessoa por causa da religião dela, e nesse caso está havendo obviamente a troça. Então olha, os caras vão promulgar uma lei mas tem outra lei que contradiz essa! Você pensa que alguém é sensível a isso no Brasil? Pouco importa, eles podem lançar inúmeras leis contraditórias, e que são contraditórias, não apenas com outras leis, mas na sua própria redação. Então se acontecer de um travesti ser expulso da igreja, ele vai evidentemente querer que o padre ou o rabino sejam multados. E o padre e o rabino, por sua vez, podem processar o travesti pelo crime de ultraje a culto. Então você vai ter essa situação absolutamente louca, paranóica. Isso no Brasil só não chega a acontecer porque uma das forças envolvidas recua: o pessoal da Igreja recua, e não faz nada. Mas se resolvessem defender os seus direitos, haveria o apelo simultâneo a duas leis contraditórias. O fato é que os legisladores mesmo... quanto nós pagamos para esses camaradas em Brasília criarem novas leis? Eles ganham um dinheirão, têm condições de trabalho as melhores possíveis. E são ao mesmo tempo capazes de redigir essas leis contraditórias com a mais total irresponsabilidade. Porque a idéia mesma de lei é distante para eles mesmos. A lei não é mais um princípio que se destina a ordenar a sociedade: Ela é um simples pretexto para defender certos grupos em certos momentos, todas as leis que se fazem no Brasil são oportunísticas. Elas visam a um objetivo político determinado e às vezes visam a servir-se apenas de pretextos ou às vezes tem apenas uma função simbólica de agradar a determinados grupos. E o que determina mesmo a conduta destes senhores legisladores são as regras comunais nas quais eles vivem. A concorrência que eles tem com os seus pares, o desejo de subir na vida, etc.

Você tem uma sociedade imensa com quase 200 milhões de habitantes, onde toda a conduta das pessoas é regrada por essas leis comunais não-escritas que visam apenas a assegurar a cada um o melhor pedaço que ele possa obter do patrimônio da sociedade e a melhor posição que ele possa obter dentro da sociedade. Então, é claro que você falar em controlar o banditismo numa situação desta é absolutamente ridículo. Diz aí o seu Lula da Silva, quando ele promulgou essa nova lei no Código da Defesa Nacional, "Ah, agora estamos equipados para combater o banditismo, etc."... Isso é tudo conversa mole, ele diz que quer combater o banditismo desde a primeira eleição em que ele venceu em 2002. Não fez absolutamente nada ao longo de 8 anos, e não vai fazer no último mês, evidentemente. E se fizer, a sua sucessora pode facilmente desfazer. Então a expressão "combater o banditismo no Brasil", não é séria. O banditismo vai crescer, vai continuar crescendo. Algumas iniciativas locais que possam melhorar a situação aqui ou ali não fazem a menor diferença. Um bandido para de operar num estado, vai para um outro estado, a coisa continua toda igual, e a matança vai continuar aumentando.

Então, é neste ambiente em que vocês estão entrando e vocês vão ter de pensar muito bem como é que vocês vão orientar as suas vidas, as suas carreiras intelectuais para que o seu trabalho possa surtir algum efeito. Ou pelo menos, para que toda essa energia positiva que vocês representam não se disperse, não seja apenas mais um aborto, mais um desperdício de esforços vãos. Esse é um tema que vocês devem continuamente debater entre vocês mesmos. Daqui a 3 ou 4 anos vocês vão começar a dar aulas, escrever livros, ter uma atuação pública, e se essas coisas não forem muito bem articuladas umas com as outras, tudo vai se perder. E eu acho que, sem nenhum exagero, esse grupo que está assistindo às minhas aulas é o único no qual as regras, princípios e valores que podem dar uma unidade à sociedade têm alguma existência real. Vocês conhecem alguns princípios de moralidade sem o qual um país não pode ir para a frente, vocês são sensíveis a uma escala de valores que para os demais cidadãos nem sequer existe, então, de certo modo, vocês têm a fórmula do que é preciso fazer. Se não a tem totalmente clara agora, terão mais dia menos dia. Então pensem bem, porque eu vejo através da internet, através de mensagens que chegam a mim, inúmeros esforços intelectuais totalmente perdidos. O sujeito começa bem mas 6 meses depois começa a dizer besteira, porque a regra comunal lhe subiu à cabeça, então não é capaz mais de julgar as coisas em função de valores superiores e começa a julgar então em função das regrinhas de defesa pessoal da comunidade. Isso acontece com uma facilidade impressionante.

Feita esta advertência, vamos passar ao assunto do dia que está nesta apostila que eu passei para vocês com o título de "Dois Métodos". Eu vou ler este texto e colocar aqui alguns acréscimos orais que depois, talvez, eu integre no texto. Esse texto foi escrito, em primeiro lugar, para vocês, para esse seminário, mas pode ser que eu o publique em algum lugar. Eu não o considero pronto, ainda pode haver algum acréscimo e na verdade este tema poderia crescer indefinidamente e constituir até um livro por si mesmo.

"O que se entende como 'rigor', nos meios intelectuais gerados pela Faculdade de Filosofia da USP, em geral não passa de afetação de frieza superior sob a desculpa de escrúpulos filológicos."

Esta palavra "rigor" aflora constantemente à boca dos professores da USP, numa constante insistência de que os alunos devem ter "rigor" na interpretação dos textos filosóficos, "rigor" na sua argumentação, etc. Essa palavra aparece como um fetiche, se repete como um fetiche.

"Mas às vezes a expressão vem com algum significado. Nesta e melhor das hipóteses, designa a aplicação, com ou sem acréscimos desconstrucionistas e marxistas, do método de análise estrutural de textos criado por Martial Guéroult no seu estudo clássico Descartes selon l'Ordre des Raisons3 --- um livro que aliás admiro tanto quanto os guéroultianos da USP."

Era uma época em que estavam vindo muito professores franceses para constituir a USP, eu não sei qual deles introduziu na USP este livro, mas ele foi adotado ali como uma espécie de modelo de como se lê um livro de filosofia. Na verdade, é um livro admirável, eu acho que raros filósofos tiveram a sorte de ter um leitor tão atento quanto Martial Guéroult, especialmente na sua análise das Meditações de Filosofia Primeira de René Descartes.

"O método inspira-se num conselho de Victor Delbos --- 'Cuidado com aqueles jogos de reflexão que, a pretexto de descobrir a significação profunda de uma filosofia, começam por negligenciar a sua significação exata'."

Às vezes nem todo filósofo é um grande leitor de filosofia. Muitas vezes os filósofos interpretam mal os seus colegas porque lêem os seus textos apenas como pretexto para expor as suas próprias idéias. Na verdade o confronto com as idéias alheias é um dos elementos motores fundamentais da filosofia. Benedetto Croce dizia que para você entender um filósofo, você precisaria saber com quem ele está polemizando. Então, muitas vezes um filósofo lê um livro de um outro filósofo superficialmente e pega ali duas ou três idéias que servem para ele apenas como antimodelo. Eu mesmo confesso que já fiz isso: livros que eu nem li completamente, mas de repente eu via lá uma frase e dizia: "Mas isso é uma besteira tremenda, isso aqui não pode ficar assim." e então eu me dedicava a construir um arrazoado contra aquele ponto. No entanto, eu sempre tive a preocupação de assinalar que isto não implicava nenhuma rejeição da filosofia integral do sujeito, mas apenas a uma sua idéia isolada que, inclusive, podia ser que ele tivesse corrigido ou atenuado em outro ponto da sua obra. Mas, em todo caso, às vezes essas opiniões que os filósofos lançam sobre as obras de outros filósofos se impregnam na história das idéias e o segundo filósofo fica conhecido sobretudo através do que um outro disse dele. Uma das obras mais incríveis do século XX é aquela que Martin Heidegger escreveu sobre Nietzsche. São 4 volumes e, em certo momento, isso é maravilhoso, só que tem o seguinte: tudo aquilo lá não tem nada de Nietzsche. São coisas que Martin Heidegger inventou e, em seguida, tentou enxergar aquilo dentro da obra do Nietzsche. Ele enxerga toda uma metafísica organizadíssima no Nietzsche, coisa que não existe absolutamente. Mas fica provado que também dá para ler o Nietzsche com aqueles olhos. Se você quiser enxergar aquilo no Nietzsche, você enxerga, mas você não vai poder provar aquilo pelos textos. Mas como se diz: Si non è vero, è ben trovato. É uma metafísica muito interessante, mas só que jamais saberemos se aquilo é do Nietzsche ou do Martin Heidegger. São Tomás de Aquino, nas suas interpretações de Aristóteles, às vezes vai parar longe de Aristóteles, pensando que é Aristóteles quem acha isto ou aquilo, mas quem acha é ele mesmo. Então ele está atribuindo aquilo a Aristóteles. Mais tarde, leituras mais atentas a partir dos originais gregos, que São Tomás de Aquino não conhecia, mostraram que a idéia mesma de Aristóteles não era exatamente aquela. Então isso quer dizer que um grande filósofo não é necessariamente um grande estudioso da filosofia de outro filósofo, o que não invalida evidentemente o valor da sua própria filosofia. E é mais ou menos disto que está falando Victor Delbos: Um sujeito que está lendo mais ou menos fragmentariamente o livro de um outro e tem lá umas percepções que podem ser geniais, mas que não correspondem ao sentido do texto que ele está comentando. Às vezes vale como idéia própria, mas não como interpretação da idéia do outro. Então, ele adverte contra isto: você busca a significação profunda, acredita que aprendeu a significação profunda, mas você negligenciou a significação exata.

"Para honrar essa precaução, Guéroult parte de três pressupostos: (1) a filosofia de um filósofo está nos textos que ele escreveu; (2) nesses textos a forma lógica interna, [00:40] a ordem da demonstração ou, como chama Guéroult, o esquema de validação, é tão importante quanto as teses explícitas que o filósofo nos legou; às vezes é até mais"

Até vamos mencionar isso mais adiante, ele está ecoando um conselho do velho Hegel, que dizia que uma idéia filosófica nada significa se amputada do caminho que a ela conduz. Esse caminho, quer dizer, você tem uma argumentação explícita ou implícita, argumentação que pode corresponder ou não à ordem do texto. É disso que o Guéroult está falando. Você tem de conhecer a ordem das razões: para saber se tal tese ou tal outra, o que ela significa, não basta entender o seu significado imediato, o seu significado literal, mas é preciso saber o que está por trás dela, o que a fundamenta, qual é o princípio de validação que está ali.

"(3) a estrutura lógica da demonstração nem sempre coincide com a ordem linear do texto, mas deve ser recomposta a partir dela.

Os pressupostos 2 e 3 são óbvios e universalmente aplicáveis. O pressuposto número 1 é que é problema. Embora valha, até certo ponto ao menos, para a obra de alguns pensadores, como o próprio Descartes, Kant e Bergson (este último chegou a afirmar que seus escritos traziam a expressão completa da sua doutrina, sem que restasse nada a acrescentar), seria no mínimo temerário aplicá-lo a outros filósofos, cujos escritos, fragmentários ou de ocasião, nem expressam uma doutrina completa nem o fazem necessariamente segundo a melhor 'ordem das razões'. O exemplo clássico é Platão, cujo ensinamento principal foi transmitido oralmente a seus discípulos, sem aparecer nos seus escritos senão sob a forma de alusões sibilinas."

Você pode analisar os textos de Platão por anos a fio, pode fazer o estudo estrutural o mais elegante, o mais sofisticado que você queira, mas com isso você não vai adivinhar o ensinamento oral de Platão porque ele não está ali. Só tem duas coisas que você pode fazer: você pode recompô-lo conjecturalmente, como fez o nosso Mário Ferreira dos Santos, sobretudo no livro Pitágoras e o Tema do Número4 e no livro O um e o múltiplo em Platão5, onde ele, partindo da idéia de que Platão era um pitagórico, expressou certas idéias que, se Platão não pensou, deveria ter pensado, ou seja, eram coerentes com aquilo que ele estava fazendo. O outro método é você tentar recolher todos os documentos e depoimentos de terceiros que foram deixados a respeito do ensinamento oral de Platão e tentar recompor aquilo mais ou menos como fez o Giovanni Reale, nesse livro maravilhoso, Por uma Nova Interpretação de Platão6. Em todo o caso, se há de reconhecer que, mesmo neste caso, aquilo que foi recomposto a partir de vários fragmentos colhidos aqui e ali por depoimentos de terceiros, não pode ser submetido a uma análise estrutural, porque não constitui texto nenhum. Ao contrário, é você que está dando uma estrutura aqui. "Fulano disse que ouviu Platão dizer tal coisa, Beltrano diz que ouviu Platão dizer tal outra coisa". Você é que vai criar um elo aqui, então você não pode fazer uma análise estrutural mas você pode fazer uma construção, que foi exatamente o que fez o Giovanni Reale.

"Que fazer com Aristóteles, cujos escritos são apenas rascunhos de aula, muitas vezes sem ordem identificável, e cuja obra principal, a Metafísica, é uma coletânea de textos independentes, de épocas diversas, montada tempos depois da morte do autor por um estudioso que jamais foi aluno dele nem o conheceu pessoalmente?"

Então como é que você vai fazer uma análise estrutural daquilo que não tem estrutura nenhuma e que você não sabe sequer se a estrutura não foi inventada por um outro depois? Então, a aplicação desse método do Guéroult é problemática. Tanto que, entre os leitores e admiradores dele, é comum a idéia de que a aplicação deste método ao Descartes, como ele fez neste livro, deu muito mais certo do que a aplicação do mesmo método a outros filósofos que ele estudou depois como Fichte, ou Leibniz, ou principalmente Espinoza. Os livros dele sobre esses autores são de muito valor mas nenhum deles é um clássico como Descartes selon l'Ordre des Raisons. Por que isto? Porque os textos escritos de Descartes foram planejados segundo uma ordem que favorece a análise estrutural: Descartes começou, em primeiro lugar, por distinguir o que seria o que ele chamava exposições analíticas e o que chamava de exposições sintéticas. As exposições analíticas seguem a ordem do conhecer, quer dizer, como é que você vai tomando conhecimento disto ou daquilo. As exposições sintéticas trazem, então, a ordem do ser, como é a realidade tal como Descartes a vê. Então As Meditações e o Discurso sobre o Método são exposições analíticas. O livro que se chama Os princípios da filosofia é uma exposição sintética. Depois de ter feito a parte metafísica da sua obra nesses livros, Descartes então dedica uma série de livros a pontos específicos que são mais ligados à descrição do mundo como [ele o percebia;] a começar pelo livro que se chama Tratado do Mundo e também os vários livros sobre a óptica, geometria, as paixões da alma, etc. São vários temas, temas específicos de ciência. E notem bem: Descartes dizia que a parte metafísica tinha pouquíssima importância, só tinha uma importância introdutória. O que ele queria mesmo era "pegar a mão na massa" e chegar nas questões que tenham relação à ciências naturais e práticas.

Como Descartes estruturou o seu pensamento desta maneira e depois compôs a sua obra escrita de uma maneira que era coerente com a estrutura do próprio pensamento, com as subdivisões internas do seu pensamento, então essa obra favorece a análise estrutural, porque ela mesma está muito bem estruturada. E é isso o que explica o sucesso do Guéroult neste livro Descartes segundo a ordem das razões7, sucesso que ele não pôde repetir em outros livros. O livro dele sobre o Malebranche eu não li. É possível que seja tão bom quanto este do Descartes porque a filosofia de Malebranche também é organizada mais ou menos nesse sentido. Mas o livro sobre Leibniz é mais um livro sobre Leibniz, mais um entre muitos livros sobre Leibniz, não deixou uma marca como [Descartes selon l'Ordre des Raisons,] e o livro sobre Espinoza também não.

"O próprio Leibniz, uma das mentes mais organizadas que o mundo já conheceu, não deixou nenhuma exposição sistemática da sua doutrina, que tem de ser recomposta de cartas, rascunhos e escritos de ocasião -- donde muitos intérpretes serem levados a enxergar na sua obra antes um 'ecletismo' do que uma filosofia organizada."

O que é um grande erro. Em Leibniz está tudo muito bem organizado, só que isso não aparece nos textos. Os textos, ao contrário, são todos textos de ocasião. Leibniz pensava de maneira sistemática, integrada e organizada, mas ele escrevia apenas quando havia uma provocação exterior para que fizesse isso. Ele era em parte uma mente polêmica e ele precisava de um antimodelo, de uma provocação exterior, como, por exemplo, nos Novos Ensaios sobre o Conhecimento Humano8, ele pega o coitado do Locke e vai lá, com muita educação, mas vai demolindo tudo o que o Locke disse. Outros escritos são escritos de ocasião, porque Leibniz não era professor universitário, Leibniz era um diplomata, vivia viajando, era um homem muito ocupado e ele estudava à noite e escrevia as coisas geralmente com muita pressa. Mesmo assim, o volume do que ele escreveu é monstruoso, só que é tudo assim: aqui ele deixou um rascunho, ali ele deixou uma carta, ali tem um treco que ele falou. É mais um caso como Platão, você não pode fazer uma análise estrutural, você tem de fazer uma estruturação. Quando você começa a proceder a essa estruturação, aí o pensamento de Leibniz começa a mostrar a sua unidade e a sua tremenda organização interna, que é exatamente o caso do nosso Mário Ferreira dos Santos. O Mário é até um terceiro caso, porque a estrutura da obra escrita é muito boa. O que está ruim é o texto mesmo. É possível você fazer uma análise estrutural guéroultiana dele, se você corrigir os textos e tirar as suas absurdidades internas, [00:50] porque a ordem dos livros que ele planejou acompanha rigorosamente a estrutura da filosofia tal como ele a concebeu, é exatamente como no caso de Descartes. Já o mesmo você jamais poderá dizer do Olavo de Carvalho porque, embora eu nem assegure que o meu pensamento seja muito organizado e integrado --- eu faço o possível para que o seja, mas não posso garantir que atingi algum resultado --- mas a minha produção escrita e oral é absolutamente caótica, então não tem como submeter a uma análise estrutural guéroultiana tudo o que eu fiz, tem de fazer como com Leibniz, uma estruturação.

"Que pode a análise estrutural de textos fazer, nesses casos, senão nos fornecer, ainda que cada uma bem esclarecida nos seus detalhes internos, as peças isoladas de um quebra-cabeças?"

Por exemplo: no caso do Leibniz, se você pega o livro que ele escreveu sobre o Locke, o livro que ele escreveu sobre a Teodicéia, os tratados científicos dele, e faz uma análise guéroultiana de cada um, isto aí não te dá a conexão desses livros com os demais. Então vai estar tudo muito bem esclarecido, mas são peças soltas de um quebra-cabeças.

"Os professores da Rua Maria Antônia (me refiro à antiga sede do curso de filosofia da USP) serviram-se do termo "rigor", durante décadas, como instrumento para erguer uma distinção hierárquica entre a filosofia profissional que alegavam praticar e a 'filosofia literária' de quem ali fosse desprezado como mero beletrista ou pensador de fim de semana."

Note-se que eles consideravam beletrista ou pensador de fim de semana praticamente todos os demais filósofos brasileiros que não estivessem na USP.

"Mas, ao mesmo tempo, e de maneira involuntariamente cômica, a dedicação obsessiva ao estudo dos 'textos', sem muito trato direto com os problemas filosóficos substantivos, reduzia a atividade filosofante da USP a um ramo especializado da filologia e dos estudos literários."

Inclusive isso é uma criação da USP. É o filósofo especializado em outro filósofo. Às vezes chegam para mim e falam: "Ah, você é filósofo, você é especializado em quê? Em Kant? Em Nietzsche?" E eu digo: "Olha, por enquanto eu estou especializado na minha filosofia, na dos outros eu sou apenas um amador, na minha eu sou um profissional. Então o filósofo que é especialista em outro filósofo é uma criação dessa circunstância muito peculiar uspiana.

"Um dos mais célebres porta-vozes da entidade, o professor José Arthur Gianotti, chegou a definir a filosofia como 'um trabalho com textos', enquanto outros procuravam justificar o fracasso da USP em produzir ao longo de cinco décadas um só filósofo digno desse nome com a desculpa esfarrapada de que ali foram treinados, pelo menos, excelentes filólogos e historiadores da filosofia. O fato é que nenhuma obra notável de filologia ou de história da filosofia nasceu jamais do Departamento de Filosofia da USP; mesmo os estudos monográficos sobre as obras deste ou daquele filósofo que ali se produziram, com a possível exceção do Ensaio sobre a Moral de Descartes, de Lívio Teixeira9 --- que é um clássico! Para os estudiosos de Descartes é um livro indispensável --- não deixaram a mais leve marca na história intelectual da humanidade.

Ao contrário do que reza a superstição uspiana, a filosofia, é claro, não tem como finalidade essencial a produção de textos. O número de grandes obras filosóficas que foram montadas por terceiros com base em notas de aulas, em gravações transcritas ou até em table talks mostra isso da maneira mais patente. Não há obras literárias compostas assim (...)"

Procure um drama, uma peça de teatro, um romance, um poema épico composto assim. Quer dizer que chegou um outro sujeito e pegou vários pedaços inconexos e montou uma grande obra com isso. Isso simplesmente não existe! Uma obra literária pressupõe a execução coerente de um projeto integral que expressa uma visão única que o escritor teve.

"Não há obras literárias compostas assim porque em literatura o escrito é a meta --- o objeto formal terminativo, diriam os escolásticos --- da atividade do escritor. Em filosofia, (...)"

Em filosofia, por exemplo, qual é a meta, o que que o filósofo está procurando? Escrever livros de filosofia? É claro que não! Se não seria impossível haver um filósofo sem livros como Sócrates. Mais ainda, esses fenômenos de filósofos que, ainda [que] tendo escrito alguma coisa, deixaram muito mais coisas simplesmente registradas em notas de aulas de seus alunos. A própria Considerações sobre a História da Filosofia10 de Hegel, que são 3 volumes enormes, foi totalmente composta por terceiros, pelo que os alunos ouviram em aula. Ou Edmund Husserl, que está saindo livro atrás de livro, às vezes inteiramente redigido por uma pessoa a partir de suas notas de aula e do que ele ouviu Husserl falar. Então, se o objeto final fosse produzir um livro, não poderia ser assim; então não é o livro. O objeto formal da filosofia é o quê? Uma filosofia. A filosofia vai se compor de certas intuições de base e, como diria o Martial Guéroult, dum esquema de validação. O esquema de validação, por sua vez, não precisa coincidir com a ordem interna do texto. Ele pode estar solto em vários textos e composto de elementos heterogêneos e totalmente desnivelado, mas ele tem de estar lá de algum modo.

"Em filosofia, o fundamental é a descoberta, a teoria, a intuição filosófica obtida, da qual o escrito será apenas o documento mais fiel ou menos fiel.

Mais ainda: se em literatura o texto vale por si, sem necessidade do apelo à biografia do autor ou a qualquer dado 'externo' (a não ser por alguma contingência de ordem filológica), é precisamente porque a perfeição formal que é da essência mesma da obra literária lhe dá um caráter de totalidade acabada, sem o qual ela não poderia ser objeto de contemplação estética..."

Um livro, um romance, um poema é como se fosse uma estátua que você pode contemplar e que tem, portanto, uma forma acabada. Mesmo que a obra seja deixada interminada, o restante dela está implícito ali. Esta idéia da perfeição formal da obra escrita é inerente ao processo literário, ainda que o autor não consiga chegar a realizar a obra formalmente perfeita com a qual ele contava.

"... e justamente a contemplação estética, por ser isso e não relatório científico, não visa a descobrir um utópico 'significado exato', mas sim muitos significados possíveis, todos eles misteriosamente compatíveis com a unidade da forma estética que os contém. Pela sua própria unidade formal, a obra de arte é um símbolo, e o símbolo não é a cristalização final de um 'significado exato', e sim, como bem disse Suzanne K. Langer, 'uma matriz de intelecções'."

Muitas intelecções possíveis, e é por isso que você pode encontrar mil interpretações diferentes de Shakespeare, todas elas, de algum modo, pertinentes, porque a obra de arte literária não afirma isto ou aquilo sobre a realidade, ela constrói um símbolo, e este símbolo, evidentemente, se aplica a muitas situações diferentes. Por exemplo: cada um de nós, assistindo Hamlet ou Rei Lear, automaticamente faz analogias com situações da vida que ele mesmo vivenciou, e daí surge a nossa visão pessoal daquela obra de arte. Essa visão é inteiramente válida. E assim como o vizinho vai ter outra, e não se vai chegar a uma interpretação final de Shakespeare porque não há essa interpretação final. Se ele quisesse uma interpretação final ele teria de fazer uma filosofia e não uma peça de teatro ou um poema.

"Um escrito filosófico, ao contrário, tem um significado exato mas não pode encerrá-lo nos seus próprios limites formais porque é quase sempre a expressão de conclusões provisórias obtidas no curso de uma investigação que, em princípio, deve prosseguir até o último dia da vida do autor."

Às vezes acontece do sujeito ter chegado a certas conclusões e conseguir expressá-las bem e não mexer mais naquilo. Mas isso pode acontecer, não tem de acontecer necessariamente. Na obra de arte literária, ao contrário, uma vez que o sujeito publicou o livro, não tem sentido ele ficar modificando aquilo de novo. O que que ele faz: ele publica um romance, depois ele publica outro. Ele tem a obrigação de nos entregar uma forma acabada. E o filósofo? Não tem obrigação nenhuma porque ele está investigando certas questões e nada [1:00] impede que, amanhã ou depois, ele chegue a conclusões que complementem, modifiquem ou até impugnem as suas primeiras conclusões. Veja[, por exemplo,] o caso do Schelling. A filosofia de Schelling teve 4 começos. Ele começou uma vez, não deu muito certo. De novo, de novo e de novo. Até hoje não se sabe exatamente como interpretar essas mudanças. Você pode, por exemplo, dizer: "Bem, só tomaremos como filosofia de Schelling a sua forma final, as conclusões finais." Você pode até fazer isso, mas historicamente você não vai entender como ele chegou àquelas sem passar pelas anteriores. Então, a filosofia final de Schelling que é o que ele põe no livro A filosofia da revelação11 e A filosofia da mitologia12 são muito diferentes daquilo que ele dizia no tempo em que ele escrevia O ensaio sobre a liberdade humana13. Mas existe um trajeto de uma coisa a outra. E se é verdade aquilo que dizia Hegel, que --- prestem atenção --- uma afirmação filosófica não significa nada se amputada do caminho que a ela levou, essa expressão "caminho" pode ser compreendida em dois sentidos: de um lado existe a fundamentação lógica que leva àquela conclusão, porém, do outro lado, existe a formação histórica, biográfica daquele pensamento. E as duas coisas, vamos dizer, uma não dispensa a outra e a outra não dispensa a uma. Então, isso quer dizer que o do filósofo não é exigível uma exposição final, porque, simplesmente, às vezes ele não tem a conclusão final. Por exemplo, como eu já falei para vocês, a filosofia de Aristóteles termina com um enigma: "Tudo o que existe, existe sobre a forma de substância individual" e, por outro lado ele diz, "só existe conhecimento do genérico, do geral." Aí temos um problema. Não sabemos se Aristóteles disse ou não algo mais a respeito. Nós não temos a obra publicada de Aristóteles. Então, a filosofia de Aristóteles, que é, por outro lado, maravilhosamente organizada, é uma filosofia em aberto, que permite que você a prossiga neste ou naquele sentido. Eu mesmo, quando estava estudando a Teoria dos Quatro Discursos, vi que a filosofia de Aristóteles, de certo modo, convida ao seu prosseguimento. Porque ele diz as coisas de uma maneira tão sintética, tão compacta, e os escritos de Aristóteles, as notas de aula dele são tão difíceis de ler --- justamente porque elas se destinavam a ser desenvolvidas em aula --- que é impossível você resistir à tentação de pensar "como é que ele desenvolveu isso?" Porque as notas dele não se esclarecem a si mesmas. Então você vê que ele anotou esse ou aquele ponto e pretendia dizer mais coisas. E foi justamente assim que eu cheguei à Teoria dos Quatro Discursos. Depois que eu cheguei eu vi que se Aristóteles não chegou a expor essas conclusões em aula estas estavam na cabeça dele ou deveriam estar, porque isso aqui é o prosseguimento natural e imediato do que ele diz. Então, neste caso, isto não dispensa você de fazer a análise estrutural como faz o Guéroult, mas a análise estrutural não resolve o problema. Depois disto você precisa fazer algo mais.

"Forma acabada e significado em aberto são a definição mesma da obra de arte."

A obra de arte literária tem, necessariamente, [uma forma acabada.] O escritor visa uma forma acabada mas ele mesmo não pode prever, nem muito menos controlar, os vários significados que serão extraídos disso. O filósofo, ao contrário, visa chegar a uma significação exata. Mas nem sempre consegue. Na maior parte dos casos não consegue. Então o texto filosófico está inacabado, não no seu significado, o seu significado é idealmente exato, acabado. Mas na verdade isso não acontece. O significado termina ficando em aberto porque nenhum filósofo se livra totalmente da ambiguidade, nenhum filósofo se livra da incompletude das suas idéias, nenhum filósofo é capaz de abarcar todos os problemas e contradições que as suas próprias idéias sugerem. Então o significado da obra de arte literária é declaradamente, propositadamente aberto. O significado da obra do texto filosófico é aberto, mas a contragosto. É aberto porque sim, isso acontece empiricamente.

"Um texto filosófico é sempre uma obra inacabada, aberta. Nunca se pode compreendê-lo adequadamente sem o apelo aos escritos antecedentes e subseqüentes, às declarações orais e, na maior parte dos casos, a outros dados da vida do filósofo. Isso é assim porque esses elementos 'externos' revelam muito da interpretação --- e sobretudo do 'peso' existencial e moral --- que o próprio filósofo dava aos seus escritos."

Ou seja, quando você lê determinada afirmação filosófica e pela análise de texto você recompôs o caminho lógico que leva até esta conclusão e que a fundamenta, isto significa que você conhece o pensamento daquele filósofo a respeito? Não, porque falta um detalhe que não está no escrito, [que] é: qual a importância que ele dava a isso? Por exemplo, Descartes nos adverte, textualmente, que ele não dá muita importância aos seus escritos de metafísica, que eles são apenas uma propedêutica, se destinam a fundamentar o mundo da ciência e ele quer chegar a uma concepção científica e integral do cosmos. Então sabemos que se alguma na metafísica de Descartes estiver errada, ele mesmo não deu muita importância a isso porque ele estava ali de passagem para chegar no que verdadeiramente interessava. E é incrível que o próprio Descartes recomenda que os seus escritos de metafísica não sejam examinados com muita atenção, ou seja: Descartes recomenda que não se faça com ele o que o Guéroult fez aqui, justamente porque são apenas escritos introdutórios. O que ele quer dizer, que esses escritos não tem importância nenhuma? Não, é claro que tem importância, mas a importância deles é subordinada aos escritos científicos que vem em seguida. Então entendemos, por exemplo, que o livro As paixões da alma, que é um tratado de psicologia e de moral, tem mais importância para Descartes do que as Meditações de Filosofia Primeira, ou O discurso do método, ou mesmo Os princípios da Filosofia. Então é assim que eles devem ser entendidos porque, no caso, Descartes teve a gentileza de nos informar isso. Dos estudantes de Descartes, quantos leram O tratado do mundo? Pouquíssimos. As paixões da alma muita gente leu. Mas para cada leitor do livro d´As paixões da alma, existem mil leitores d´As Meditações Metafísicas e mil leitores d´O discurso sobre o método. Então isso quer dizer que não estão lendo com a devida hierarquia de importância que o próprio Descartes recomendava e isso, evidentemente, será causa de inumeráveis interpretações errôneas ou não muito adequadas. Então eu estou falando do peso existencial e moral, para não falar do peso intelectual que o próprio filósofo dava a cada parte dos seus escritos.

"Quando sabemos, por exemplo, que Sócrates aceitou com bom ânimo a condenação à morte, alegando que ia para um mundo melhor, compreendemos que sua crença na imortalidade da alma era para valer, e não apenas uma especulação filosófica;"

Então, você vê que isso ajuda muito a compreender o pensamento de Sócrates, porque das várias idéias que Sócrates explicou aqui ou ali, tinha uma na qual ele baseou a decisão mais importante da sua vida. Então isso para ele tinha um peso.

"quando sabemos que Leibniz desempenhou grandes esforços pessoais para reunificar católicos e protestantes, entendemos que tudo o que ele disse sobre a harmonia universal não era só uma idéia, mas algo de mortalmente sério, talvez a inspiração última de toda a sua filosofia."

E digo "talvez", porque existem muitas discussões a esse respeito. Aquela obra de Leibniz nem terminou de ser publicada até hoje. Do século XVIII até hoje ainda tem escritos aparecendo. Então uns dizem o seguinte: que tudo o que Leibniz expôs decorre da lógica que ele inventou. Outros dizem que decorre da física que ele inventou. E outros dizem ainda que decorre da [1:10] teologia que ele inventou. Por este detalhe biográfico, eu tendo a achar que é da teologia, não dos outros dois elementos. Então você vê que um dado puramente biográfico que não está nos textos pode modular a interpretação que você faz do conjunto de uma filosofia. Ora, o que você diria de um romance que não pode ser perfeitamente entendido sem que se saiba o que aconteceu ao autor? Você jogaria pela janela! Você espera que um romance ou uma peça de teatro te digam algo por si mesmo, sem que você saiba nada da vida do autor. Se ela não consegue criar essa espécie de mundo autônomo no qual você submerge durante o tempo da leitura, ou durante o tempo em que você assiste o espetáculo, então é uma obra de arte falhada, fica faltando algo. Em princípio, o sentido imediato --- não digo os sentidos mais profundos que você investigar depois --- mas o sentido imediato, sem o qual o sentido mais profundo não poderia ser investigado, tem de estar todo presente na primeira exibição da obra. E na filosofia a coisa já não é assim. Se ao terminar de ler um livro de filosofia, você ainda não sabe direito o que um filósofo pensa sobre isso ou aquilo, isso não é objeção contra o livro, porque ele não é obrigado a colocar tudo num livro só, e não é obrigado a dizer tudo o que ele sabe e não é obrigado a saber tudo. A filosofia é um trajeto existencial em busca de um determinado objetivo que eu chamo a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa.

Aluno: Então significa que a morte de um filósofo é também o final da sua obra? É este o significado daquele necrológio que fizemos, o que a maioria dos filósofos queria ser?

Olavo: Quer dizer que a morte de um filósofo é um elemento importante para a interpretação da sua obra, no fim das coisas é isso que ele está perguntando. Às vezes é. Em muitos casos é, como por exemplo no caso da morte de Sócrates. Ou a morte de Nietzsche, que é exatamente uma espécie de antiexemplo. Quer dizer que o homem que durante toda a sua vida falou que os fortes devem humilhar os fracos e devem humilhá-los e devem pisar em cima, etc, ele morre num acesso de compaixão por um burro, que é uma criatura indefesa que estava sendo morta a pauladas por um carroceiro. Ele se abraça no burro e começa a chorar, como se fosse uma compaixão que estivesse retida, reprimida por anos, de repente explode e mostra que muito do que Nietzsche disse não era tão sério assim.

"Mas, quando temos diante de nós a foto de Nietzsche atrelado numa carroça, sob as ordens de Lou Salomé que empunha um chicote, compreendemos que tudo o que ele escreveu sobre a inferioridade das mulheres --- e expressamente quanto à necessidade de tratá-las a chicotadas --- era apenas bravata ou compensação neurótica, ou então uma piada, não uma tese moral para ser levada a sério."

Então nós não podemos dizer que da moral de Nietzsche faz parte esta inferioridade das mulheres. Ele escreveu sobre isso, mas não quer dizer que ele acreditasse nisso. Então aqueles trechos podem ter um sentido irônico. Nós só vamos saber isso se nós fizermos a análise de texto mais meticulosa que nós pudermos e compararmos com os elementos da vida do Nietzsche que esclarecem isso ou não. Eu acredito que, quando o conjunto de uma filosofia não pode ser compreendido de maneira alguma sem a biografia do filósofo, então nós não estamos exatamente na presença de um filósofo. Estamos na presença de um poeta, um escritor, alguém assim que se pode ser interpretado de mil maneiras e eu acho que é exatamente o caso de Nietzsche. Eu não vejo como reduzir os escritos de Nietzsche a uma filosofia. Já contei para vocês que o grande estudioso de Nietzsche, Eugen Fink, que foi muito tempo secretário de Edmund Husserl, fez um exame aprofundado da filosofia de Nietzsche, tentando obter ali um sistema filosófico, obteve cinco totalmente diferentes entre si. Filósofos como Nietzsche ou como Maquiavel, que são enigmas para sempre, a posição deles dentro da filosofia é muito ambígua.

"Se uma filosofia não é mera coleção de idéias soltas e sim um esforço de interpretação coerente dos conhecimentos disponíveis, então não há como escapar da pergunta quanto à ordem hierárquica das idéias de um filósofo; e se na vida real a importância relativa que ele mesmo dava a uma de suas idéias é diferente daquela que se depreende do puro texto, a realidade deve prevalecer sobre o texto."

Porque, se você está falando: "O pensamento do seu Fulano". O pensamento do seu Fulano é não apenas aquilo que ele pensou, mas aquilo [em] que ele realmente acreditava, [no] que ele assumia a responsabilidade pelo que ele estava falando. E, se o indivíduo escreve uma coisa pela qual não assume responsabilidade alguma, ou assume uma responsabilidade apenas relativa, então é claro que ele está colocando para você um problema de interpretação dos mais espinhosos. E eu acho que quando Maquiavel diz aquela sentença terrível --- porque eu ficava anos lendo Maquiavel, tentando entender aquilo --- de repente aparece Maquiavel e disse: "Eu nunca digo a verdade sobre o que eu penso. E se eu encontro uma verdade, eu trato logo de disfarçá-la."14 E agora? Tudo isso é o paradoxo do mentiroso! Ele está dizendo a verdade sobre ele mesmo, sobre as suas mentiras, ou ele está mentindo novamente? A resposta é: Jamais saberemos! A interpretação daquilo é ambígua, então você não pode chegar a uma certeza científica sobre o [seu] significado exato. Ora, essa declaração que ele fez, não consta das obras de Maquiavel, está numa carta que ele escreveu para um amigo dele. É um elemento biográfico. E em nenhum dos livros ele diz: "Olha, não leve a sério este livro porque eu estou mentindo." Ele escreve como se estivesse dizendo coisas que ele acredita mesmo! Daí numa carta a seu Fulano, ele diz: "Olha, é tudo mentira." E agora, o que fazer? "Ah, vamos esquecer o elemento biográfico e nos ater ao texto", como faria o Martial Guéroult... Aí não se chega a nada mesmo!

"Por exemplo, Martial Guéroult dedica tão meticulosa atenção à ordem interna das Meditações de Descartes, que se esquece de perguntar qual o gênero literário do livro."

Quem me chamou a atenção para o fato de que as Meditações eram uma autobiografia interior foi o Julián Marías. Ele menciona isso em algum lugar. E depois que ele avisou --- é sempre assim, não é? --- eu atinei: "Claro que é assim! Oh raios, quem é que não sabe?" Ninguém sabia isso, sabemos agora que ele avisou. É óbvio que é isso aí. Porque Descartes disse que vai contar as experiências interiores pelas quais passou. Então o que é isso? Uma autobiografia espiritual e não um tratado de metafísica. Pode ter um tratado de metafísica lá dentro, mas a forma global é de uma autobiografia interior.

"(Martial Guéroult) Acaba lendo como puro tratado de metafísica aquilo que é, declaradamente, uma autobiografia espiritual. Resultado: no meio de tantas descobertas maravilhosas que faz sobre a filosofia de Descartes, continua tratando a idéia do 'gênio mau' como se fosse apenas 'um artifício' (sic)."

A idéia do "gênio mau" entra nas Meditações lá para adiante, quando ele já resolveu o problema do cogito, e já está firmemente ancorado na certeza de que o ego tem da sua própria existência, e daí ele coloca o problema: "agora que eu descobri a certeza interna do ego, como é que eu vou pular para fora do ego e descobrir a realidade do mundo exterior?" Então, ele faz a hipótese do "gênio mau". O "gênio mau" teria inventado todo um mundo fictício, como no filme Matrix15, só para enganar o coitado do Descartes. É claro que essa é uma hipótese hiperbólica. Eu sei que o próprio filme Matrix --- eu não assisti o filme inteiro, eu não consegui. Porque [ali,] se o sujeito te mostra uma banana, ele diz: "Olha, isso aqui tem forma de banana, parece uma banana, tem gosto de banana, tem consistência de banana, tem a composição química da banana, nasce numa bananeira, mas é falsificado." Ora, mas se essa falsificação é igualzinha à realidade, então não é falsificação, é a realidade! [1:20] O sujeito plantou uma bananeira e extraiu uma banana com a finalidade de me enganar, me fazer crer que era uma banana. Ora, a falsificação total é inconcebível: toda falsificação é parcial por definição, mas Descartes inventa a hipótese do "gênio mau" e escapa dela, mediante o apelo a Deus. "Deus é bom e não faria isso comigo". Então é claro que ali mesmo ele dá uma demonstração da existência de Deus, e a partir dela ele fundamenta a existência do conhecimento do mundo exterior. Mas Guéroult afirma textualmente que a idéia do gênio mau é um artifício. Quer dizer, um artifício lógico, é um artifício pedagógico, é um artifício retórico, para tornar mais compreensível e mais aceitável a certeza que o ego tem de si mesmo, e a certeza do conhecimento que Descartes tem do mundo exterior mediante a certeza que ele tem de Deus.

"No texto das Meditações, a idéia do 'gênio mau' é precisamente isso, mas será o mesmo na concepção do mundo do homem René Descartes?"

Ou seja, não haveria uma diferença de peso entre a importância que uma idéia tem num texto e a mesma idéia tem na cabeça do cidadão que escreveu?

"Lendo as Meditações como narrativa autobiográfica, não percorremos os seus passos como meras etapas de uma demonstração --- de um "processo de validação", diria Guéroult --- mas como experiências interiores reais, que podem ser refeitas imaginativamente pelo leitor, com a condição de que este se entregue a elas com um espírito, como direi, 'stanislavskiano' de identificação com o autor."

Aí eu tenho que dar um detalhe autobiográfico. No tempo em que eu li As Meditações Metafísicas, foi mais ou menos na época em que eu estudei teatro durante alguns meses, com Eugênio Kusnet, que nos ensinava o método Stanislavski, que era o de identificação profunda com o personagem. Então você lia o texto da peça e você tinha que procurar na sua --- era um termo técnico --- "memória afetiva" experiências análogas àquela que o personagem vivia. Às vezes, você não tinha a experiência parecida então você tinha de procurar um análogo. E, no instante de você representar o personagem --- eu nunca aprendi isto, eu fui o pior aluno de teatro que o Eugênio Kusnet jamais teve; quando eu informei a ele que eu estava ali apenas por cultura geral, sem nenhuma pretensão de me tornar um ator, ele não escondeu o alívio... Então, na "memória afetiva" você encontrava elementos que tinham de ser análogos e na hora da representação você ia dizer as palavras do personagem, tal como estavam no texto, mas pensando nas suas próprias emoções, tal como você as recordava. Elas não precisavam ser idênticas, bastavam ser análogas, mesmo que a diferença de proporção fosse imensa. O próprio Stanislavski conta uma coisa maravilhosa, que ele tinha de representar um sujeito que ia tentar se suicidar, mas na hora H ele desistia. Stanislavski nunca tinha tentado se suicidar, então como ele iria representar um suicídio falhado, se ele nem sequer tentara o suicídio? Então ele se lembrou que (naquela época não tinha quente, no tempo da Revolução Russa), então ele lembrou que na hora em que ele ia tomar banho, ele ia tocar na torneira e daí ele se acovardava e voltava atrás. Então na hora de representar aquele suicídio falhado, ele se lembrava dele tentando tomar banho de manhã e desistindo. É claro que isso é apenas uma analogia remotíssima, mas no teatro funciona. Eu mesmo vi o Eugênio Kusnet, que foi aluno direto do próprio Stanislavski, representar vários papéis e era uma coisa impressionante, parecia que você conhecia aquela pessoa. E foi justamente nessa época que eu comecei a ler as Meditações de Descartes eu li, então, stanislavskianamente, então eu vou refazer as experiências interiores, só que aqui não basta o análogo, você precisa de uma coisa bem parecida.

"Quando tentei essa experiência, mais de três décadas atrás, cheguei a uma constatação deprimente: a 'dúvida universal' proposta pelo filósofo era psicologicamente impossível, qualquer esforço de realizá-la era bloqueado a meio caminho, não pela resistência do ego cogitans que afirma sua própria existência (isto só vem muito depois), mas pela simples razão de que não se pode duvidar de uma só coisa sem afirmar, simultaneamente, muitas outras. Não posso, por exemplo, negar a existência de Deus sem admitir que ouvi falar dela, (...)"

Se eu ignoro tudo a respeito da existência de Deus, eu não posso duvidar da existência de Deus, ou da existência de qualquer outra coisa. Então você tem de saber do que você está falando e isso pressupõe alguma experiência anterior na qual você confia para poder formular a dúvida. E eu, por mais que tentasse, sempre que eu via que eu duvidava de alguma coisa, eu estava afirmando outra e pensava: "Será que só eu que sou burro, será que só Descartes conseguia fazer isto?" Depois de muitas tentativas, eu descobri que isto realmente não existe. Isto é uma hipérbole, é uma figura de linguagem. Ele não fez realmente essa experiência, ele não passou por dúvida metódica coisíssima nenhuma! Ele usou isto como recurso de exposição para dar uma validade lógica à sua idéia. Então é por isto, no fim das contas, que embora Descartes afirme que está contando sua vida, ou seja, que aquele livro é uma autobiografia espiritual, as pessoas acabam lendo não como uma autobiografia espiritual mas sim como um tratado de metafísica, porque é uma falsa autobiografia espiritual e um verdadeiro tratado de metafísica.

"Não posso duvidar dos dados dos meus sentidos sem distingui-los dos meus pensamentos abstratos, o que supõe toda uma epistemologia implícita como base da pergunta mesma."

Você não pode duvidar dos seus pensamentos e da sua memória ao mesmo tempo, porque para duvidar deles, você precisa recordá-los. Então não existe dúvida metódica e muito menos dúvida universal, isso é absolutamente impossível. Só existe dúvida específica. E você tem a dúvida justamente porque você tem certeza de uma série de outras coisas.

"A 'dúvida universal', não podendo ser vivenciada na realidade, (...)"

Agora, pergunto eu, eu li muita coisa sobre Descartes, eu li muito Descartes, eu li muita coisa e nunca vi um sujeito que tentasse fazer esta experiência. Todo mundo se ateve ao texto e à filosofia e à argumentação, etc, mas Descartes insiste que isto não é uma argumentação, mas que é um relato de coisas que ele efetivamente viveu. É mentira! Se ele diz isso, porque não tentar levá-lo a sério e tentar fazer a experiência? Então, por exemplo, quando no diálogo Menon Sócrates interroga o escravo e descobre que o escravo tem inúmeros conhecimentos de geometria implícitos, esta é uma experiência que nós podemos fazer. Você analisando idéias que você tem no dia-a-dia você acaba percebendo que existe uma série de pressupostos lógicos, epistemológicos e científicos que estão ali implícitos, nos quais você nunca pensou e que talvez nunca tenham chegado ao seu conhecimento, mas que estão presentes de alguma maneira. Ou seja, você sabe mais do que você sabe que sabe. Isto é uma experiência factível, eu fiz inúmeras vezes, e vocês podem fazer também. Mas esta experiência da "dúvida universal", esta duvido que você possa fazer.

"A 'dúvida universal', não podendo ser vivenciada na realidade, tinha de ser compreendida, ela sim, como um artifício pedagógico ou retórico concebido por Descartes para expressar --- e ao mesmo tempo encobrir --- uma experiência interior muito diferente dela."

Ou essa invenção saiu do nada, ou ele então está expressando sob este termo, "dúvida universal", alguma coisa que não chega a ser dúvida universal, mas que pode ser simbolizada por essa expressão.

"Essa experiência oculta, como vim a compreender depois, só podia ser precisamente a do 'gênio mau', (...)"

Ou seja, não é possível você ter em sã consciência a experiência da dúvida universal, mas você [1:30] pode ter a experiência de um terror pânico, de estar enganado sobre tudo, isto não é dúvida universal, isto é apenas a emoção correspondente. Se você tem medo do "gênio mau", você acredita que ele existe, então isso não é dúvida universal, essa experiência do "gênio mau" pode existir.

"(...) que Descartes vivenciara em sonhos no ano de 1619, muito antes de redigir seu primeiro projeto filosófico, as Regras (Regras para a direção da inteligência, Regras para direção do engenho, de 1628, que é onde começa a análise de Martial Guéroult). Os sonhos mostram a consciência do filósofo ameaçada de extinção pela interferência de uma força demoníaca. Podemos interpretar isso psiquiatricamente como temor da loucura, ou teologicamente, como antevisão ameaçadora da 'segunda morte', a morte da alma. Nos dois casos, a extinção da consciência traz automaticamente a invalidação de todos os seus conteúdos, a privação total de conhecimento."

Mas a privação total de conhecimento não é dúvida metódica, para ter dúvida metódica é preciso conhecer alguma coisa. Mas este medo de perder totalmente a consciência pode ser simplesmente medo da morte, mas mais caracteristicamente eu acho que é medo da segunda morte, o medo de que vá morrer a própria alma, não se identifica com o medo da morte corporal. Você pode encarar a morte corporal sem que isto lhe traga o medo da perda total da consciência. Você pode conceber a sua própria morte de alguma maneira.

"Nos dois casos a extinção da consciência traz automaticamente a invalidação de todos os seus conteúdos e a privação total de conhecimento. Com toda a evidência, a 'dúvida universal' era uma tradução" (tradução simbólica) "desse temor em linguagem epistemológica, com a diferença de que o temor pode ser vivenciado na realidade, e a 'dúvida universal' não pode. Resultado: o que Guéroult enxergara como 'um artifício' era na realidade a inspiração originária das Meditações, o que ele vira como cerne da demonstração era apenas um artifício." (Ou seja, o "gênio mau" não era um artifício, mas a dúvida metódica era.) "Descartes havia trocado uma experiência real por uma hipérbole literária, continuando a raciocinar a partir desta como se fosse experiência real. Esse lance decisivo passa-nos totalmente impercebido se nos atemos ao exame da doutrina filosófica --- para não dizer do puro texto --- enquanto tal, abstraindo de suas raízes existenciais. Uma filosofia, considerada no texto que a veicula, pode ser vista como um edifício teorético impessoal, mas isto também não passa de figura de linguagem: esse edifício não se ergueu sozinho, do nada, por um fiat originário, mas nasceu das experiências vivenciadas por um indivíduo humano real, um 'hombre de carne y hueso', como insistia Miguel de Unamuno.(...)"

Miguel de Unamuno enfatiza que a compreensão de uma filosofia é a compreensão que você tem de um indivíduo humano.

"Deslocada dessa base, torna-se um objeto de contemplação, um fetiche no altar da religião acadêmica."

Ou seja, é uma coisa que não existe realmente. Vou pegar uma teoria, tal como está exposta aqui neste livro, e vou considerá-la em si mesma. Você pode fazer isso para fins de estudo, mas você sabe que o objeto que você está estudando não é real, ele é apenas virtual.

"Podemos, é claro, isolar o texto, tratando-o como totalidade autônoma, mas então o vemos como obra de arte literária e não como expressão de uma busca filosófica in fieri." Quer dizer, que está continuando. "Nesse caso, o texto filosófico se torna para nós um símbolo, com significado em aberto, e aí já não faz sentido falar de 'significado exato'."

Se você isolar completamente o texto dos seus antecedentes, subseqüentes, dos dados biográficos, do contexto cultural, etc. então você o está lendo como se fosse uma forma, portanto uma obra de arte literária, portanto um símbolo; e se é um símbolo ele possui tantos significados quanto você queira e daí não faz mais sentido buscar um significado exato.

"Outro dia, discutindo com um cristão que era, ao mesmo tempo, estudioso e admirador de Wittgenstein," aqueles que acompanham o fórum do Seminário de Filosofia devem se lembrar disso, "ouvi dele que o Tractatus Logico-Philosophicus demolia as pretensões científicas da modernidade mas deixava intactas a filosofia grega e a cristã. Objetei, aparentemente em vão, que a meta de Wittgenstein não fora a restauração dessas filosofias, mas a dissolução da modernidade em algo ainda pior, o reino da arbitrariedade a que se dá o nome de 'pós-moderno'. Prova disso era que após o Tractatus ele se dedicara a demolir toda e qualquer presunção de conhecimento objetivo --- e não somente a moderna --- mediante sua teoria dos 'jogos de linguagem'. Dando por implícito que as filosofias grega e cristã eram também puros 'jogos de linguagem', (...)" (Já que todas as filosofias, tudo o que se diz, são apenas jogos de linguagem, não se vê porque Platão e Aristóteles deveriam conseguir fazer algo melhor do que jogos de linguagem.) "Dando por implícito que as filosofias grega e cristã eram também puros 'jogos de linguagem', ele as deu por sepultadas junto com todas as outras, dispensando-se de enfrentá-las no próprio terreno delas."

Uma vez que você aceite que elas são jogos de linguagem, não é preciso discutir com elas. Nem é preciso, nem é possível, porque você vai opor um jogo de linguagem a outro jogo de linguagem. Isto não invalida logicamente as filosofias gregas e cristãs, mas simplesmente abole qualquer importância que elas possam ter.

"Ao fazer assim, imitou o procedimento geral da modernidade, que não condenou as filosofias anteriores mediante um confronto honesto com elas, mas mediante um deslocamento oportunístico do eixo da discussão."

Se você observar tudo o que se passou entre os séculos XVI e XVIII, você perceberá que não houve um efetivo enfrentamento com as filosofias escolásticas, mas houve, em parte, a imitação delas. Descartes imita muito os procedimentos de exposição escolásticos, mas ele não está expondo filosofia escolástica, ele está expondo outra coisa. Em parte alguma é possível vê-lo examinando os textos da filosofia escolástica, que ele não obstante conhecia, ao ponto de poder imitá-los, às vezes, com perfeição extrema; [em certos momentos] tem-se a impressão que é um escolástico que está falando. O que ele fez? Ele não discutiu com eles, mas propôs uma nova base totalmente diferente. A filosofia escolástica partia do realismo aristotélico: existe um mundo objetivo, nós podemos conhecê-lo, etc. E Descartes parte de uma coisa totalmente diferente que é o ego. O ego passa a ser a base de tudo. Nenhum escolástico havia pensado nisso e isso não contestava os escolásticos, isso era apenas diferente deles. Na medida em que você propõe algo totalmente diferente, você desloca o eixo da discussão, e já não se fala mais nisso.

Wittgenstein faz a mesma coisa, ele não contesta as filosofias, ele apenas as trata como "jogos de linguagem". Então já não tem sentido discutir se elas tem razão ou não, se elas correspondem ao mundo objetivo ou não.

"Quanto à possibilidade de uma interpretação cristã da filosofia de Wittgenstein, ela já havia sido estrangulada no berço pela tese 6.432 do Tractatus: 'Deus não se manifesta no mundo.' É a negação formal da Encarnação. E pouco adianta dizer que logo em seguida Wittgenstein condena suas próprias afirmações como contra-sensos, pois é desses mesmos contra-sensos que ele tira a conclusão final do Tractatus,"

[Esta conclusão final] do Tractatus [é a seguinte:] daquilo que não se pode falar se deve calar, ou seja, ou você faz afirmações objetivas sobre fatos atomísticos, fatos isolados, ou então você fica quieto. Ele está tirando conclusões de proposições anteriores, as quais, ao mesmo tempo, ele diz que são contra-sensos.

"Pois é desses mesmos contra-sensos que ele tira a conclusão final do Tractatus, condenando ao silêncio universal tudo o que não sejam proposições sobre 'fatos atômicos' (no sentido de 'atomísticos'). Na continuação da sua obra," (Quer dizer, no que chama Blue Book, Brown book, etc. e outros livros que ele escreveu.) "até mesmo essas proposições se vêem reduzidas a 'jogos de linguagem'."

Quer dizer, as proposições atomísticas das ciências são apenas um jogo de linguagem, entre muitos outros, e não podem ter uma pretensão de veracidade objetiva maior do que qualquer outro jogo de linguagem.

"Quando tomamos conhecimento de que Wittgenstein se entregou a exercícios de mística budista, [1:40] ao mesmo tempo que ignorava os dados da religião cristã ao ponto de declarar (proposição 6.4311) que 'ninguém vivencia sua própria morte' --- afirmação frontalmente contraditada pelo Evangelho e por milhares de depoimentos de ressurectos," (Nós mesmos demos alguns desses depoimentos, tirados do livro de Craig Hogan.) "entendemos que estamos em face de uma alma grosseira que, partindo de uma base espiritual medíocre, pretende legislar sobre ciência e fé e condena a humanidade a optar entre entregar-se mundanamente aos 'jogos de linguagem' ou recolher-se ao silêncio búdico de um precursor da New Age."

Aqui eu ponho até uma nota dizendo:

"Não estranha que um dos mais representativos gurus da New Age, o monge budista Alan Watts, tenha encontrado em Wittgenstein as bases para a construção da sua proposta espiritual: V. Watts, The Book: On the Taboo Against Knowing Who You Are (1966; reed. Vintage Books, 1989)."

Publicado no Brasil com o título de Tabu, para o qual eu fiz o malfadado prefácio no tempo em que eu também estava muito interessado em Wittgenstein.

"As conclusões pós-modernas que outros tiraram da filosofia de Wittgenstein" (Algumas delas nós acompanhamos em La Filosofia Actual de Dardo Scavino) "não foram, portanto, acréscimos externos, muito menos deformações do seu pensamento: foram simples extensões lógicas de tomadas de posição que já estavam implícitas no próprio Tractatus, embora só se tornassem perfeitamente visíveis na obra posterior do filósofo. Nenhum texto filosófico é uma expressão perfeita do seu próprio significado.

Daí que métodos como o de Guéroult, mesmo que sejam aplicados com mestria exemplar, o que nem sempre é o caso quando outros fazem uso dele, não possam jamais ser a pedra fundamental da educação filosófica. Podem ser úteis para fins propedêuticos, mas não podem nem mesmo ser o elemento principal na simples aquisição de uma cultura filosófica, quanto menos à formação de um filósofo competente.

Por indispensável que seja a análise estrutural guéroultiana, ela tem de ser complementada pelo método de Paul Friedländer, que por trás dos documentos escritos busca a experiência viva, direta, que deu origem às intuições centrais de um filósofo e determinou o sentido dos seus esforços cognitivos."

Ou seja, nós temos que voltar ao hombre de carne y hueso e ver quais foram às experiências externas ou internas, que forneceram ao indivíduo essas intuições principais sobre as quais, posteriormente, ele construirá aquele imenso esquema de validação

"Por exemplo, em Platão, o encontro com Sócrates," (maravilhosamente narrado no livro de Paul Friedländer sobre Platão) "ou, em Sócrates, o conflito permanente com a classe política dominante e seus mestres, os sofistas. Toda a vida filosófica de Sócrates foi determinada pelo desejo de buscar, conhecer e obedecer as 'leis não escritas', a norma divina que está para além das leis da comunidade humana e desde a qual estas podem ser julgadas. Ele foi levado a essa busca pela decepção que teve com uma classe dominante desonesta, sob cujas ordens servira como soldado."

A descrição que eu fiz da sociedade brasileira, há pouco, se aplica à descrição da sociedade ateniense nesta época. Paul Friedländer, no livro dele sobre Platão, no volume 1, ele descreve como os princípios religiosos --- sob os quais tinha se erguido a fundação da sociedade ateniense --- tinham perdido qualquer vigência. As pessoas, ou não acreditavam mais naquilo, ou não entendiam mais. Então começam a aplicar, já não as regras fundantes da sociedade, mas a regra comunal, como diria Zinoviev.

Quando, por exemplo, Sócrates pergunta "O que é a justiça?" e Alcebíades responde: "Justiça é você ajudar os seus amigos e sacanear os seus inimigos". Normalmente ,dentro da concepção geral, isso seria injustiça. Porém, na escala comunal, é isso o que vale, é uma mentalidade mafiosa. Inúmeros exemplos dessa mentalidade mafiosa se encontram na história da época, e Paul Friedländer cita vários exemplos ilustres onde alguns autores (dos quais eu não me lembro exatamente o nome) chegam a dizer que a idéia do nomos --- nomos é a lei universal --- que na fundação da sociedade se via como um princípio eminentemente natural, que sai do cerne da realidade mesma, era vista agora como um princípio externo que se impunha pela força, portanto um princípio ilegítimo. E o que passa a ser legítimo então? Passa a ser legítimo agir como o príncipe do Maquiavel: é cada um por si.

Sócrates, em especial, teve uma experiência que foi determinante: ele participou de um certo golpe de estado para acabar com a corrupção lá e, em seguida, os vencedores ordenaram a ele, Sócrates, que prendesse um determinado cidadão que era membro do governo anterior. Sócrates sabia que o cidadão não havia feito absolutamente nada e disse: "eu não vou prender ninguém". Foi aí que ele percebeu que todos os governos que sucediam eram igualmente corruptos, não havia solução neste nível político. Havia a confusão geral, as grandes normas estruturadoras tinham ido embora e só sobraram as regras comunais, que são normas de simples autodefesa em interesse próprio. Então ele pergunta o que é realmente a justiça, o que é a ordem social correta, mas ele olhando para fora, examinado a ordem social, não podia ver isso. Foi isso que o colocou na busca das leis não escritas, a busca do velho nomos. Mas o nomos antes se encarnava na própria sociedade grega e agora já não se encarna mais em parte alguma.

"Quando o jovem Platão encontra Sócrates, vê nele o modelo pronto e acabado de um novo tipo de ser humano --- o filósofo --- totalmente diferente dos intelectuais até então conhecidos na sociedade grega. Tal como resumiu brilhantemente Eric Voegelin (autor que muito deve a Paul Friedländer), ante o colapso da velha ordem social baseada na ordem cósmica, o filósofo surge como o homem que, sem contar com nenhum apoio nas crenças vigentes, todas contaminadas de absurdidade em maior ou menor grau, busca um novo padrão de ordem no fundo da sua própria alma, tomada como espelho das leis eternas, transcendentes à sociedade e ao cosmos inteiro. Tudo o que Platão ensinou e escreveu é como que um longo esforço de exteriorizar em linguagem teorética aquilo que, num primeiro momento, ele viu na alma de Sócrates."

E é justamente por isso que, ao longo de praticamente toda a sua obra, Platão usa a figura de Sócrates como o porta-voz. É claro que nem tudo o que Platão coloca na boca de Sócrates, ele ouviu de Sócrates, mas Platão o faz porque foi ali que ele viu esses princípios, esses valores, essa luminosidade --- ele usa muito essa figura da "luz da alma", "luz do intelecto" --- ele viu isso em Sócrates e, por isso mesmo é que, até quando ele vai expor algo que foi ele quem descobriu, e não Sócrates, ele coloca na boca de Sócrates, porque Sócrates não disse aquilo, mas aquilo já estava presente em Sócrates.

"É o impacto dessa experiência inicial que determina o sentido inteiro da sua obra filosófica. A experiência determinante não precisa, é claro, ser um episódio da vida exterior do filósofo. Pode ser uma experiência puramente interior, de ordem emocional ou cognitiva. No caso de René Descartes, a chave encontra-se nos seus três famosos sonhos, em que se insinua pela primeira vez a figura do 'gênio mau', ameaçando destruir na base toda confiança no poder dos conhecimentos humanos. Conforme creio ter demonstrado na apostila sobre 'Consciência e estranhamento', (que está no meu site) toda a 'ordem das razões', em Descartes, é a expressão indireta de uma luta travada --- e, no fim das contas, perdida --- contra o demônio."

Por que eu digo perdida? Isso precisaria ser explicado com mais detalhes, coisa que não dá para fazer neste texto e é um assunto para outro estudo, mas para vocês terem uma idéia, eu acho que esta luta é falhada pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, quando se vê o efeito que o cartesianismo teve no mundo, esse efeito não foi previsto pelo próprio Descartes que era um homem sinceramente cristão, tanto que quando ele teve sua famosa descoberta do cogito ele havia feito uma promessa a Nossa Senhora de Loreto que subiria de joelhos a escadaria da igreja, e ele a cumpriu. Mas, no entanto, o cartesianismo dá início a um processo de descristianização avassalador. Por que isso acontece?

Acontece, em primeiro lugar, [1:50] porque é claro que o homem sozinho não pode se defender do demônio. Se existe um ataque demoníaco, você, com suas próprias forças, muito menos com seu poder raciocinante, não poderá enfrentar o demônio, que é muito mais inteligente que você. Então você terá, mais dia menos dia, que apelar a Deus. Só que Deus, como aparece em Descartes, é objeto de prova e na hora que ele coloca o problema do "gênio mau", ele imediatamente responde: "Deus é bom e Ele não poderia fazer isso comigo" e daí ele começa a colocar as provas da existência de Deus. As provas que ele dá são a própria incomensurabilidade e incompreensibilidade de Deus. Justamente porque Deus é incompreensível e inabarcável, Ele não pode ter sido um invento do próprio ego, ele tem de existir acima do próprio ego. Isso quer dizer que existe alguma conexão lógica entre o ego e Deus. Deus não aparece totalmente de fora, mas é do ego que Descartes está tirando a prova da existência de Deus -- e Deus ali aparece como objeto de prova -- mas jamais como elemento constitutivo do próprio ego. O ego tem uma autonomia cognitiva completa. Então é só para poder fundamentar o conhecimento do mundo exterior que Descartes precisa de Deus. Se vocês compararem isso com o cogito de Santo Agostinho16, vocês verão que no cogito de Santo Agostinho, tão logo se faz a descoberta da existência do ego, o ego imediatamente percebe a sua inconsistência ontológica. Diz Santo Agostinho: "eu sei que sou mas não sei por que sou". Ou seja, o ego não tem auto-suficiência nenhuma. Ele tem uma existência, mas ele não tem um fundamento ontológico próprio, então o ego não surgirá ali como elemento que conduz à prova da existência de Deus, mas ele tem de descobrir Deus no seu próprio fundamento, como fundamento da sua própria existência. É como se ele dissesse: "não é o ego que vai provar a existência de Deus, mas é Deus quem irá provar a existência do ego." Então você vê que muita água correu entre Santo Agostinho e Descartes.

A visão que Descartes tem das relações entre o ego e Deus é uma relação meramente formal, não substantiva. Por outro lado, quando ele faz o projeto da dúvida metódica, ele está tentando se salvar de um estado de incerteza --- que eu não posso dizer "dúvida universal", mas posso dizer "incerteza total" --- ele está tentando se livrar de um estado de incerteza total mediante uma argumentação lógica que fundamenta o conhecimento. Ora, quem pode tentar vencer o demônio por esses meios? O demônio irá se impressionar com seus argumentos? Não. Então ele tenta enfrentar o demônio --- ele não diz que é o demônio, ele coloca lá o "gênio mau" só como artifício, embora não seja um artifício --- ele tenta encontrar a base da certeza absoluta e ele não precisa de Deus para ter essa certeza absoluta. Essa certeza absoluta está no próprio ego. Esta primeira vitória inicial contra o demônio ele obteve. Mas tão logo obteve, ele percebe que esse ego que ele descobriu --- que tem absoluta certeza de si mesmo --- está preso dentro de si, não tem contato com o mundo exterior e precisa de um mediador para o mundo exterior e este mediador será justamente Deus. Isto quer dizer que, sem Deus, não há certeza do mundo exterior e não há certeza de mais nada, a não ser de um ego isolado e solipsístico. Ora, este ego isolado e solipsístico é justamente o mesmo que tem medo do demônio. A experiência de temor, em que ele se vê envolvido por uma força maligna, que ele relata nestes sonhos de 1619, em nenhum momento colocou em dúvida a existência atual do ego, apenas a sua validade e força. Mas quando você chega ao ego cogito, esta ameaça continua tão presente quanto antes. Embora Deus aí surja como o princípio validador dos nossos conhecimentos, é importantíssimo para René Descartes mostrar que esse princípio fundador só está na fundação dos princípios do conhecimento e, que daí para diante, todo o conhecimento que se obtenha deve ser totalmente independente da consideração de Deus. O que Descartes faz é criar um abismo entre este ego e Deus, porque Deus não aparece como princípio fundante do próprio ego: é um Deus externo cuja existência o ego prova.

É evidente que, historicamente, isto só poderia evoluir no sentido de uma ruptura entre teologia e ciência. Descartes perde, porque o ego que afirma sua própria existência, não está livre da ameaça demoníaca. Ter certeza de sua própria existência não resolve nada neste sentido. E em segundo lugar, porque a ligação que Descartes estabelece entre os conhecimentos humanos e Deus é demasiado tênue. Então é claro que esta parte cristã de Descartes pôde ser facilmente ignorada, conservando-se apenas o primado do ego. Sendo o ego a base de todos os conhecimentos, então ficamos com ele e não precisamos de Deus para mais coisa nenhuma. Mas é claro que isso precisa ser examinado à parte e eu não tenho nenhuma pretensão de ter explicado isso aqui neste texto.

[1:57:40 Intervalo - Aviso sobre a constituição do Grupo de Estudos Estratégicos e sobre o grupo para publicação dos textos de Mário Ferreira dos Santos]

Eu vou continuar aqui com esta leitura. O Douglas é um menino, ele diz: "Não, eu já tenho trinta e tantos anos" mas para quem está indo para sessenta quatro anos, qualquer cara de trinta anos é um menino, isso é óbvio. É assim: quando você é jovem, você exagera a velhice dos outros, um sujeito de quinze acha que um homem de quarenta é velho. Quando você tem sessenta, você começa a achar que o de quarenta é um mocinho. Toda vez que eu encontro com o Paulo Mercadante ele diz: "Não, mas você é jovem!" Então a idade é um negócio relativo, depende por onde você está olhando... Agora eu não sei se eu continuo com a leitura ou passo para as perguntas... Vou continuar:

"Das experiências fundantes nascem as intuições centrais que dirigem a montagem das 'doutrinas' filosóficas. Sem o retorno às experiências, as doutrinas pairam no ar como puras construções mentais, ou 'obras', no sentido literário do termo, prestando-se assim a uma multiplicidade de interpretações heterogêneas que acabam por dissolver o sentido originário das intuições centrais. Pior ainda: a 'história da filosofia', contada assim, não pode ser senão uma sucessão de 'pensamentos' que se geram uns aos outros no céu das idéias puras, sem raízes no mundo da experiência humana. Essa 'história' é uma criação ficcional que, para justificar-se, tende ela própria a transmutar-se em nova 'doutrina' filosófica."

Quer dizer você verá linhas de continuidade que na verdade são escandidas por montes de experiências reais. Quando eu comecei a usar o livro de Dardo Scavino, eu fiz esta advertência: ele está contando a história como se o processo da filosofia atual fosse exatamente esse de uma idéia que gera outra idéia, que por sua vez gera outra e assim sucessivamente. É claro que é uma arquitetura um pouco idealizada, no meio disso houve muitos acontecimentos e os filósofos não estão evidentemente reagindo apenas às idéias de seus antecessores, mas a acontecimentos da sua própria experiência.

Não obstante, este esforço narrativo ainda conserva o seu sentido, ainda que possa nos levar a algumas imprecisões. Muitas imprecisões, que foram assinaladas aí sobretudo pelo Douglas, um rapaz que estuda Wittgenstein, derivam apenas disso: nós estamos montando uma continuidade histórica que, para adquirir uma substância verdadeira, seria preciso introduzir ali todos os elementos reais. Por exemplo, no caso de Wittgenstein, muita coisa das idéias dele se desenvolve nas discussões que ele tem com Bertrand Russell [1872 -- 1970] e com Frank Raymond Leavis [1895 -- 1978] e, evidentemente, essas discussões não aparecem nos textos mas nós temos de nos reportar a elas para saber mais ou menos do que ele sabia que estava falando, sem avisar o leitor. É esse o problema que surge. Se você for exigir uma exatidão textual de um tipo de narrativa desta, você não terminará jamais e vai nos afastar do objetivo que nós estamos buscando aqui. Então, evidentemente, eu não pretendo esclarecer todos os pontos que o Douglas levanta e eu acho que a nossa visão de Wittgenstein, para os fins que nós buscamos aqui, está mais do que suficiente. Agora se quer levantar uma discussão específica sobre a filosofia de Wittgenstein como, por exemplo, numa pergunta que ele levanta agora sobre a diferença entre jogos de linguagem que tem um fundamento em uma forma de vida e outros que não têm. Do ponto de vista cognitivo, esta diferença é perfeitamente irrelevante porque ter um fundamento em numa forma de vida não quer dizer que corresponda à criação de um conhecimento objetivo que possa ser arbitrado em termos de verdade e falsidade. No fim das contas, o que sobra da filosofia de Wittgenstein é que os jogos de linguagem, de algum modo, se equivalem ou se neutralizam. Quer dizer, ele criou uma forma superior de cepticismo e, sobretudo um abismo entre os fatos atomísticos e os fatos de uma realidade espiritual inacessível. Isso quer dizer que ele consolida a noção kantiana do abismo entre conhecimento e fé, ainda que depois ele venha a negar o próprio conhecimento.

Esse problema que eu estou levantando aqui é o mesmo problema que Eric Voeglin descobriu quando estava escrevendo a história das idéias políticas e ele viu que, principalmente no caso de idéias políticas, que não estão falando somente de doutrinas, mas estão falando de ações humanas, e elas próprias às vezes são ações humanas, não poderia haver uma história das idéias, pois as idéias não saem umas de dentro da outras. Então todas as doutrinas políticas são respostas a uma situação política e não somente às doutrinas dos antecessores. Então se não entra ali a descrição da situação política cultural, não tem como fazer a história das idéias. A história se torna, então, uma criação ficcional.

"Um exemplo eloqüente é fornecido pelo próprio Guéroult: 'Há em Descartes uma idéia seminal que inspira todo o seu empreendimento e que as Regulae ad directionem ingenii expressam desde 1628: é que o saber tem limites infranqueáveis, fundados nos da nossa inteligência, mas que no interior desses limites a certeza é inteira.' É uma afirmação exata e veraz, que repetidas leituras de Descartes confirmam tanto quanto o estudo da sua biografia"

Guéroult teve a preocupação de buscar qual é o princípio fundante de tudo isso o que ele chama de "idéia seminal", quer dizer, qual é a inspiração básica de Descartes. Ele remonta então até uma das primeiras obras de Descartes que é As Regras Para a Direção do Engenho de 1628.

"Essa 'idéia seminal', porém, adquire dois sentidos bem diversos se a contemplamos tão somente como validada pela 'ordem das razões' -- ainda que o façamos com todas as precauções guéroultianas -- e se a enxertamos no tecido da experiência vivida de onde ela emergiu. No primeiro caso, temos apenas uma tese geral de epistemologia, que poderia ser proposta desde contextos muito diferentes sem nada perder da sua significação esquemática. Na verdade, essa tese, considerada em abstrato, é quase um truísmo. [2:10] Quem não sabe que a inteligência tem limites mas que eles não afetam em nada a nossa certeza de que dois mais dois são quatro? No entanto, se nos perguntamos por que Descartes assumiu o empreendimento de defender o conhecimento humano dentro de seus limites e por que decidiu fazê-lo pela estratégia radical e hiperbólica de 'duvidar de tudo', entendemos que a salvação do conhecimento ante um inimigo aparentemente invencível era para ele uma questão de vida ou morte, não apenas uma tarefa científica. O problema dos limites do conhecimento tem em Descartes uma dimensão demonológica que a pura análise estrutural do texto das Meditações de Filosofia Primeira não pode revelar, mas que transparece com bastante clareza nos três sonhos de 1619. (Quer dizer, nove anos antes da primeira obra de Descartes.) Para apreendê-la, é necessário fazer algo que vai muito além da análise de texto: é preciso refazer pessoalmente a experiência cartesiana da 'dúvida universal' e, como me aconteceu a mim, perceber no fim das contas que ela é de realização absolutamente inviável: não existe dúvida universal, há somente dúvidas específicas, e cada uma delas se ergue sobre uma montanha de certezas inabaláveis. Diante dessa constatação, o método cartesiano da dúvida muda de sentido: já não é uma precaução racional, mas um lance de retórica extremada, um hiperbolismo forçado. A máquina demonstrativa das Meditações não é um laboratório de ciência, mas um teatro do absurdo onde um ego acuado por fantasmas apela, para exorcizá-los, a gesticulações histriônicas."

A "dúvida universal" é uma gesticulação histriônica --- histriônica vem de histrião que quer dizer um ator --- Descartes finge estar fazendo uma coisa que ele não pode fazer na verdade, que ele não fez, que nunca ninguém fez e que nunca ninguém fará, que é a dúvida sistemática e universal.

"O resultado final do empreendimento é que um ego abstrato, reduzido à afirmação de sua própria existência num instante atomístico hipotético, se proclama a fonte de todas as certezas mas ao mesmo tempo não tem como saltar do seu isolamento solipsístico para o mundo exterior, que pretende conhecer, senão mediante o apelo extemporâneo à fé num Deus bondoso --- extemporâneo porque o mesmo Deus fora anteriormente excluído do jogo pela regra da dúvida metódica."

Se é para duvidar de tudo então, em primeiro lugar, a teologia que Descartes aprendeu no colégio com jesuítas fica inteiramente colocada entre parênteses. Ele quer dizer que todas as provas da existência de Deus que os jesuítas lhe ensinaram, ficam invalidadas ou ficam entre parênteses, e se tiver de haver alguma prova tem de ser uma prova complemente diferente que ele oferecerá em seguida.

"Qual a 'certeza inteira' que resta no 'interior dos limites do conhecimento'? De um lado, a certeza meramente lógica de um ego vazio; de outro, a multidão das ciências, mas garantidas, em última análise, tão somente pela fé."

Aí eu ponho uma nota importante (nota 12 do texto Dois Métodos):

"Pode-se alegar que não se trata de pura fé nem muito menos de um apelo extemporâneo, já que Descartes extrai do próprio ego cogitans as provas da existência de Deus. Mas o fato é que o Deus de Descartes só entra na história enquanto conceito pensado pelo ego (ainda que pensado negativamente, pela sua incompreensibilidade e infinitude), e não como presença fundante no coração do próprio ego, sem a qual este não existiria de maneira alguma."

Em nenhum momento Descartes se coloca o problema da falta de base do próprio ego. O ego para ele é o princípio fundante do conhecimento e ponto final. Este ego por sua vez é validado por Deus. Os conhecimentos que o ego tem são validados por Deus. Mas e o ego, de onde surgiu? É essa a torção que Descartes faz em relação à filosofia escolástica.

(continuação da nota 12) "Tenho a certeza de que, diante do que estou dizendo, Guéroult alegaria que essa separação abstrativa entre ego e Deus faz parte apenas da ordem da demonstração (ratio cognoscendi) e não da ordem do ser (ratio essendi) tal como concebida por Descartes. Mas, se nas Meditações Descartes insiste que Deus é o fundamento último da nossa certeza, (...)"

Correção: não é da nossa certeza, é das certezas nas ciências. Note bem que a certeza do ego é totalmente independente de Deus. Deus fará a ponte entre o ego e o mundo exterior, ele garantirá então os nossos conhecimentos do mundo exterior, mas para o ego não precisamos em nada de Deus. É por isso que eu digo que o ego de Descartes é um ego vazio. Porque o próprio Descartes diz "Penso, logo existo. Esta sentença é verdadeira no momento em que a penso". Mas primeiro, você não pode pensar isso em um momento: você está fazendo duas afirmações: "Penso, logo existo", portanto você está supondo que o sujeito da primeira sentença é o mesmo da segunda sentença, o sujeito do verbo pensar é o mesmo do verbo existir. Então houve, como em todo o discurso, um trânsito e este transito supõe um tempo, ainda que seja um tempo brevíssimo e supõe que este ego permaneceu durante este tempo então não existe esta coisa de "no instante em que a penso". Ninguém pode pensar uma coisa em um instante infinitesimal. Todo e qualquer ato de pensamento supõe algum transcurso de tempo. Mais ainda, Descartes não pensou isso somente uma vez, pensou várias vezes e pressupõe então que este ego continua sendo o mesmo. Então a existência temporal do ego não é colocada, não é tematizada n'As Meditações. Descartes passa sobre isso como se este problema não existisse. E, segundo, a consistência do ego, o fundamento da existência do ego também não é posto em questão em parte alguma.

(continuação da nota 12) "em parte alguma ele voltará ao assunto para falar de Deus como força fundante da existência do ego e não só do conhecimento.". Mas eu esclareço: "Este ponto deve ser objeto de um estudo em separado."

A relação entre ego, Deus e conhecimento, tal como aparece n'As Meditações de Descartes é tão problemática quanto a dúvida metódica e a dúvida sistemática.

"Sem nada contestar das conclusões de Martial Guéroult, vemos que estão certas, mas invertidas. Como bem enfatiza o próprio Guéroult, a 'ordem das razões' é sempre um processo de validação. Sim, mas validação de quê? De certas intuições de base que antecedem e orientam o próprio processo de validação. Se é este processo e não as intuições de base o que constitui o essencial de uma filosofia, a filosofia torna-se uma atividade puramente discursiva sem nenhum aporte intuitivo, sem nenhuma percepção da realidade, sem nenhuma experiência vivida. Compreende-se que o interesse disso acabe sendo puramente acadêmico, para não dizer filológico. As experiências fundantes, em contrapartida, podem ser revivenciadas imaginativamente pelo estudioso e pelo leitor, (...)"

Note bem: eu disse que podem ser, mas ao mesmo tempo eu acabei de dizer que a experiência da dúvida universal não pode ser revivenciada. Isso quer dizer que, quando uma filosofia se baseia na alegação de uma experiência, e esta experiência não pode ser revivenciada, é porque existe ali um elemento histriônico ou irônico. O sujeito está dizendo uma coisa mas o que ele está pensando mesmo é outra. Existe um encobrimento, um disfarce, e isto coloca para interpretação do texto problemas horríveis.

Vejam que no século XX, Leo Strauss viria a levantar este problema, o da camuflagem nos textos. O sujeito camufla, ou porque tem medo da autoridade, ou tem coisas que ele não pode dizer, ou porque ele sabe que o objetivo pelo qual ele está escrevendo aquilo "tem alguma treta". Então não se pode tratar ingenuamente os textos de filosofia como se fossem a tradução honesta e sincera de algo que o sujeito percebeu. E se existir alguma camuflagem, algum elemento histriônico ou irônico, não faz sentido tomar o texto como se fosse algo límpido e puro e ficar estudando-o na sua estrutura, é preciso saber onde está a mentira, o fingimento.

Esta questão do fingimento se introduz na filosofia justamente nesta época. Eu já assinalei para vocês a estranheza tremenda de um fenômeno que a Martial Guéroult passa totalmente despercebido. Descartes afirma que a parte importante da filosofia dele não é a metafísica. Metafísica é só a preparação. O que interessa é, realmente, a descrição objetiva, científica do mundo exterior. Ora, quando ele vai fazer a descrição objetiva, científica do mundo exterior na sua principal obra de ciência que é O Tratado do Mundo, ele o faz sob a forma de um relato ficcional, de maneira que, em parte alguma sabemos se Descartes acreditava mesmo no que ele estava dizendo do mundo. Por exemplo, o princípio mecanicista, de que os entes vivos são apenas máquinas, [2:20] nós não sabemos se Descartes acreditava nisso. Se havia um elemento de histrionismo, ironia ou de camuflagem aqui neste texto, esta camuflagem se tornará ainda mais patente n'O Tratado do Mundo. Então nós ficamos perante Descartes mais ou menos como ficamos perante Maquiavel. Por que eu vou discutir a filosofia de um sujeito, tal como ela está nos textos, se os textos estão camuflando alguma coisa que é o que ele realmente pensa?

Eu sei que isso é decepcionante e eu sei que muitas vezes, quando um sujeito admira um filósofo e me vê dizendo essas coisas, o sujeito fica louco da vida comigo e quer me matar. Aqui tem um cidadão que leu o meu estudo sobre Maquiavel e está "passado", traumatizado até agora. Porque a conclusão final é que Maquiavel não é sério. Não faz sentido discutir as idéias de Maquiavel se ele mesmo não acredita nelas e se ele tem outra embaixo. Eu tenho que chegar nesta que está embaixo, ver se consigo descobrir o que ele realmente pensa --- se é que ele realmente pensa alguma coisa e não está somente gozando da nossa cara.

Muitas vezes a leitura de uma filosofia pode levar a efeitos psicológicos absolutamente desastrosos, porque você está acompanhando toda uma argumentação, uma ordem das razões e, por baixo, tem uma camuflagem, tem um outro jogo. Este jogo vai entrar, não na sua consciência, mas no seu subconsciente. Eu sei por experiência que, quando a situação começa a se tornar sinistra, é por que alguém escondeu alguma coisa. Alguma coisa de muito importante. Então você já está sendo levado para aquela atmosfera de irrealidade da qual você não tem mais onde pisar, você não tem mais chão embaixo do pé e a sua mente irá disparar uma seqüência infindável de pensamentos tentando decifrar aquilo, tentando entender aquilo, só que aquilo é incompreensível. A mentira não é compreensível em si mesma. Se você compreende o sentido literal de uma mentira, isso não significa que você esteja compreendendo a situação e os objetos dos quais a mentira fala. Ao contrário, você entrou dentro de um esquema de pensamentos que está ali para te puxar fora da realidade.

É isto que eu vejo como o contraste maior entre filosofia moderna e filosofia antiga. Você vê que evidentemente Platão, nos diálogos, recorre [freqüentemente] a recursos cênicos, à ironia, diz as coisas de maneira indireta, mas você sabe onde ele está querendo chegar. A sinceridade do esforço filosófico de Platão é evidente em tudo o que ele faz, mesmo quando ele está brincando, mesmo quando Sócrates está brincando. Agora, a partir do início da modernidade, você já não sabe mais se os pensadores estão dizendo o que pensam ou se estão dizendo uma coisa totalmente diferente para produzir um resultado, por assim dizer, mágico; um resultado na esfera psicológica que é a verdadeira finalidade prática da filosofia do sujeito. Isto acontece por exemplo com [Francis] Bacon. Ele diz tanta coisa absurda, mas tanta absurdidade, mentira, contra-senso que não parece ser possível que o texto seja a verdadeira filosofia de Bacon. Ele está com treta, existe alguma coisa por baixo. Então nós temos que estudar a importância de Bacon no movimento esotérico, na fundação de sociedades secretas, etc. Daí nós mais ou menos começamos a entender onde o sujeito queria chegar e esta é a verdadeira filosofia de Francis Bacon. Isso dá muito trabalho! O método de análise estrutural de texto de Martial Guéroult é fichinha perto do que você tem de desenvolver para chegar a esse nível de compreensão.

Neste caso, não posso negar que uma enorme contribuição foi dada pelo Leo Strauss, sobretudo com seu estudo sobre Maquiavel17, onde ele mostra que Maquiavel não era aquele apóstolo da pátria italiana ou fundador das ciências, etc., mas que era um pensador demoníaco. Só que o Leo Strauss ainda não cavou suficientemente fundo. Porque elevar Maquiavel à categoria de um pensador demoníaco é de certo modo exaltá-lo, ele diz que Maquiavel pertence a categoria de uma nobreza demoníaca de muito alto grau, alto nível. E eu, quando fui vendo as mentirinhas de Maquiavel, muitas que Leo Strauss não havia percebido, eu percebi que Maquiavel não é isto. Maquiavel é uma pobre vítima do demônio, é um bobão, muito iludido consigo mesmo, com a política e, pior, ele tinha uma vaga consciência disto. É por isso que, segundo o filho dele, no final ele se arrependeu e quis se confessar antes de morrer. Também não sabemos se a confissão dele foi sincera ou não. Mas Maquiavel era um mitômano. Para encontrar um tipo verdadeiramente demoníaco é preciso encontrar um sujeito muito mais inteligente que Maquiavel. Talvez um René Descartes. Talvez esse seja o verdadeiro pensador demoníaco por trás de toda essa afetação de cristianismo. Porque se é válido dizer "pelos seus frutos os conhecereis"18, isso significa o seguinte: os efeitos históricos de uma filosofia não são totalmente atribuíveis a continuadores infiéis, mas a filosofia tem dentro de si --- sobretudo nos seus subterrâneos, na parte que não está visível, mas nas estruturas que ela subentende --- um poder psicológico monstruoso e é ali, às vezes, que está o verdadeiro sentido dos esforços. Tem certas filosofias que, quando você vai escavando e descobrindo o que não está dito, mas que está subentendido, você vê que este subentendido é majestosamente coerente com a parte explícita. E o aprofunda e quanto mais você cava mais você descobre tesouros.

Eu acho que uma dessas é a filosofia de Leibniz: quanto mais você escava, mais você vê a coerência majestosa que havia, coerência que ia muito além do que ele seria capaz de escrever em mil vidas. Em Platão você vê a mesma coisa. Mas quando você começa a escavar e você vê que tem uma armadilha escondida, então muito provavelmente, o efeito histórico que esta filosofia terá é o que está na armadilha e não o que está nas palavras explícitas. Houve muitos filósofos, no começo da modernidade, que diziam estar escrevendo com objetivos de apologética cristã: Descartes é um deles, Bacon é outro, mais tarde se verá Kant também dizendo que está defendendo o cristianismo, mas os efeitos reais foram 100% anticristãos. Quando você escava, você vê que a bomba de efeito retardado estava lá dentro.

Nós podemos perguntar qual é a significação exata da filosofia? Aquela que você obtém pela mais perfeita análise estrutural do texto, ou aquela que a estrutura majestosamente concebida do texto encobre e que se destina a ter o efeito histórico nas gerações seguintes? Eu acho que é esta que nós devemos procurar. Claro [que] a primeira existe também. Mas nós não podemos jamais nos contentar com ela. Temos que fazer toda a análise de texto como Martial Guéroult ensinou, temos que agradecer muito e falar: "você me ensinou a ler um livro de filosofia". Quem leu Martial Guéroult tem uma dívida para sempre. Porém a filosofia não se constitui só dos livros de filosofia, ela se constitui de atos reais praticados no mundo. Atos que deixam marcas e que têm efeitos às vezes por gerações e mais gerações. Então nós temos que entender também o efeito histórico: se a obra gerou tal ou qual efeito é impossível que isso seja somente por maldade de intérpretes infiéis, ou pelo zelo de discípulos incapazes. Não é possível isto.

Por exemplo, vamos sair um pouco da filosofia, quando você lê as obras de Charles Darwin, sobre a origem das espécies e você vê que isto em seguida se torna justificativa de [2:30] genocídio e você diz que: "Darwin não tem culpa disto. Isso foi obra de leitores mal intencionados". Mas quando você procura, você encontra a declaração pró-genocida. Não precisa nem procurar muito, simplesmente não se chamou a atenção para isso num primeiro momento. Mas se a filosofia de Darwin teve este efeito é porque a semente disso estava lá. Do mesmo modo Karl Marx. Quando o Grigori Zinoviev, do alto do Politburo afirma: "nós temos que dialogar com 80% da população russa, os outros 20% nós não temos que conversar, nós temos que matá-los", ele está dentro de um cálculo que já havia sido feito por Karl Marx: Se não matar pelo menos 20% não vai. Karl Marx alega que está trabalhando para um tipo de sociedade futura onde haverá paz e harmonia universal etc., ele não fala muito sobre isso, mas apenas indica o caminho. Isto é finalidade alegada, finalidade de última instância. Mas quais são as etapas a ser percorridas para chegar lá? Existe o objetivo que é declarado como o de última instância, mas no momento em que o sujeito descreve a primeira etapa a ser percorrida, esta é o objetivo. Por exemplo, eu digo que eu tenho que conquistar o poder para eu criar uma sociedade justa. Então, primeiro, eu tenho que conquistar o poder. Então este é o objetivo imediato, concreto. O segundo só passará a existir depois que o primeiro estiver cumprido. Então é isso o que interessa. O que é que você vai fazer em primeiro lugar. Porque você cumprir a etapa dois, três e quatro depende da primeira, então é a primeira que é o objetivo e não as outras. A segunda etapa é o objetivo da primeira etapa e não do plano inteiro. O plano inteiro visa realizar a primeira etapa, e depois a primeira etapa visará realizar a segunda. A segunda etapa é hipotética em relação à primeira, mas a primeira não é hipotética, a primeira é imediata. Você verá que de todas as propostas messiânicas criadas no mundo moderno (e elas são muitas), todas sempre realizaram outra coisa que não os seus objetivos últimos, mas realizaram seus objetivos primeiros. É esse que é o verdadeiro sentido delas e não o segundo.

Nas aulas sobre filosofia política, eu faço a distinção entre o que é o discurso pretextual e o que é o discurso efetivo que está ali subentendido e que às vezes está inexpresso, mas que nós podemos puxar de dentro, fazendo a articulação entre o discurso e a ação. A ação tem sua lógica própria, o discurso também tem a sua lógica própria, mas tem uma relação qualquer entre os dois. Como é que a teoria se articula na prática e a prática na teoria? É ali que está a chave do negócio. É claro que às vezes isso nos leva a conclusões que estão aparentemente muito distantes do texto originário e parece então que estamos descumprindo o conselho do Guéroult. Eu digo não, eu já passei pelo Guéroult, nós já fizemos isto, só que eu estou indo um pouco mais além. Eu não estou mais analisando o texto, eu estou analisando a filosofia como uma ação que o indivíduo exerceu sobre toda uma cultura e às vezes sobre todo o universo, pois era isso o que queria.

Quando nós analisamos obras de arte, nós podemos estudá-las isolando a obra de arte da pessoa do seu criador. Se um sujeito escreveu um poema magnífico não interessa saber se ele foi um assassino, estuprador, traficante... não interessa isso. Por quê? Porque a obra está acabada ela é um objeto autônomo, por assim dizer, e ela tem um valor próprio que não é determinado pelas ações subseqüentes ou antecedentes do seu autor. Mas é claro que nós não podemos fazer isso com uma obra filosófica. Primeiro, porque ela se insere dentro de um esforço cognitivo que prossegue. Segundo, porque o efeito de uma obra de arte é o impacto que ela tem sobre os seus leitores ou espectadores e impacto que ela não governa de maneira alguma. O poeta não tem a força de determinar a compreensão que os seus ouvintes ou leitores terão dele. Mas uma filosofia visa a empurrar as coisas em uma certa direção, visa criar um novo tipo de ciência, um novo tipo de sociedade, uma nova moral, qualquer coisa assim. Então ela não pode ser separada da totalidade do esforço que o cidadão fez.

É claro que há muitas ações do filósofo que são absolutamente indiferentes à sua filosofia, mas tem outras que não são. Por exemplo, saber que o filósofo comeu a empregada não vai interferir muito --- parece que Descartes fez isso: é irrelevante --- mas saber que ele pertenceu ou fundou uma determinada sociedade secreta é de uma importância extraordinária. Porque se há uma sociedade secreta, se há um elemento esotérico, então você tem um discurso de dois andares: um exotérico e outro esotérico. E sem articular um com o outro você não vai entender o que o sujeito está falando. No caso de Bacon isso é patente, isso é gritante. No caso de Descartes, eu não tenho nenhuma conclusão a tirar ainda, mas que existe um subtexto ali, isso existe sim. Por que eu sei disso? Porque o texto é fingido. O texto diz que ele fez uma coisa que ele não fez e esconde o que ele realmente fez. E, por outro lado, vemos os efeitos históricos disso, que foram exatamente no sentido anticristão, quando ele diz que tudo aquilo era para defender a religião católica. Então existe uma ambigüidade no resultado porque tem uma ambigüidade na origem e, sem perceber esta ambigüidade, não podemos dizer que entendemos a filosofia de Descartes, por mais que você faça análise estrutural de texto. O mesmo se aplica a Wittgenstein.

Eu sei que um indivíduo que prestou muita atenção a um texto e ficou decifrando o texto durante muito tempo, e às vezes não encaixa a coisa em seu movimento histórico, fica chocado com essas coisas que eu estou dizendo. Mas isso aqui é um outro método de estudar filosofia, um método que vai muito além deste do Guéroult. [Este] método que se inspira em Paul Friedländer, Eric Voeglin e Leo Strauss. Eu acho que o que eu estou tentando fazer aí (embora não tenha nenhuma expressão escrita ainda, eu tenho tudo apenas gravado), eu acho que o meu método é um pouco mais sádico do que o desses camaradas. Porque todos eles escreveram enquanto eram acadêmicos e eu não sou. Tem coisas que eles não podem falar e eu posso. O sujeito, pelo simples fato de ser um filósofo acadêmico, ele tende a tratar os outros filósofos, até do passado, como se fossem colegas dele.

"Para descobrir a experiência de base, a análise estrutural dos textos é apenas uma preparação de terreno. O essencial é buscar aqueles trechos em que o autor não está apenas elaborando idéias, mas tomando posição em face dos desafios da vida real, sem ter (sem ter ainda ou sem ter naquele instante) a armadura de uma construção teorética sob a qual proteger-se."

Ou seja, depois que você compreendeu a estrutura inteira do texto, você procurará alguns pontos onde você saiba que aquilo que o filósofo está dizendo não reflete apenas a construção teorética que ele fez (ou seja, o seu sistema de validação), mas uma reação efetiva diante de uma realidade que está diante dele. Esses textos sempre aparecem. Por exemplo, na narrativa da obra de Platão, [2:40] a reação dele à condenação de Sócrates. Claro que, em parte, esta reação foi determinada por tudo aquilo que ele havia aprendido com Sócrates e por toda a construção teorética que ele faz em seguida. Mas tem algo ali que vem do próprio fato imediato. Assim como em Descartes, essa coisa dos sonhos. Ele teve um sonho e ele conta aquilo. Então é uma reação a algo que aconteceu, [um fato imediato]. Às vezes nós não sabemos qual é o fato real que aconteceu, mas pelo sentido mesmo da frase, você vê que ela é uma declaração de algo que o sujeito vivenciou de fato, interiormente ou exteriormente.

"A construção teorética --- o 'processo de validação' --- pode expressar e enriquecer essa experiência originária ou, ao contrário, camuflá-la ao ponto de a tornar quase irreconhecível, mas sempre a tomará como base, pois é dela que derivam a motivação e a finalidade mesmas do esforço filosófico. A experiência, por sua vez, pode ser mais rica ou mais pobre, pode ser o sinal de uma descoberta formidável ou apenas a prova de um complexo neurótico, de uma ilusão auto-engrandecedora, de uma incapacidade de viver."

No caso de Maquiavel eu tenho certeza de que tudo o que ele escreveu expressa apenas a sua incapacidade de viver e de compreender-se a si mesmo.

"Se é nela que reside em última análise o critério de julgamento do valor educativo de uma obra filosófica --- o qual nada a tem a ver com a sua importância histórica mas deve sobrepor-se a esta na medida em que a filosofia não deve satisfações à opinião majoritária --- isso acontece por uma razão muito simples. No conjunto do que um filósofo escreve ou ensina oralmente, deve-se estabelecer uma distinção hierárquica entre aquilo em que ele acredita sinceramente e aquilo que ele inventa apenas como reforço validatório, artifício, suposição, adorno lógico ou mero divertimento intelectual. Por exemplo, não podemos supor que Platão acreditasse piamente no que escreveu sobre o continente perdido da Atlântida tanto quanto acreditava na realidade das leis eternas."

Contaram a Platão sobre a história da Atlântida e ele acreditou. Mas ele acreditava nisto tanto quanto ele acreditava nas leis eternas? É claro que não. Isso quer dizer que, se demonstrassem para ele que não existiu Atlântida nenhuma, o que isso modificaria na filosofia de Platão? Nada. Porque o mundo está cheio de platônicos fiéis, sinceros que compreendem perfeitamente bem a filosofia de Platão e a expõe sem acreditar na Atlântida. Mas se você não acreditar nas leis eternas, então platônico você não é.

"Se não captamos essa distinção, é claro que nada entendemos da sua filosofia. O critério distintivo reside na pergunta: Com quais das suas afirmações o filósofo estava existencialmente comprometido, ao ponto de tomar decisões vitais com base nelas, e quais ele enunciou sem compromisso, só para fins de desenvolvimento expositivo, de debate acadêmico, de brilho literário ou coisa assim?

Não possuindo sempre dados biográficos suficientes para responder a essa pergunta, muitas vezes temos de buscar a solução nos textos mesmos, e nestes não é difícil distinguir os pontos em que o filósofo responde a uma experiência real que ele considera importante e aqueles nos quais ele apenas especula idéias. Quando Ludwig Wittgenstein escreve que 'na morte o mundo não muda, mas cessa' (proposição 6.431 do Tractatus), que 'a morte não é um acontecimento da vida: ninguém vivencia sua própria morte' (6.4311), ou que 'o sentimento do mundo como um todo limitado é o sentimento místico', ele está obviamente registrando impressões sinceras, que calaram fundo na sua alma por ocasião de seus próprios exercícios 'místicos'."

Essas coisas não estão colocadas lá como meras teses filosóficas, ou hipóteses filosóficas. Senão ele diria: "alguns pensam que na morte o mundo não muda, mas cessa". Ele está dizendo que isso é o que ele está enxergando.

"Quando, porém, ele explica a lógica das proposições (proposição 5 e subseqüentes), está apenas erguendo uma construção intelectual, ou, como diria Guéroult, validando as suas impressões."

É preciso distinguir muito bem essas duas coisas: existe uma construção intelectual e existe a expressão imediata de uma impressão ou de uma crença séria.

"Ainda que esta parte seja mais rigorosa e racionalmente fundamentada do que aquelas impressões, é claro que as impressões motivaram a construção --- e não ao inverso --- e permaneceriam as mesmas sem ela."

Ou seja, se o indivíduo, no curso de seus exercícios supostamente místico-budistas, se o sujeito achou que perceber o mundo como uma totalidade fechada é a experiência mística ou que na morte o mundo cessa (quando cessa aquele sujeito cognoscente concreto, o mundo cessa), é claro que isso é uma impressão vivida.

"Aí temos uma distinção entre o que Wittgenstein 'acredita' e aquilo que ele apenas 'pensa'. O fato de que a parte puramente pensada atraia mais atenção dos estudiosos do que a parte substantivamente acreditada só mostra a freqüência com que o exercício acadêmico da filosofia costumar decair para um tipo de leviandade sofisticada, um sistema de defesas elegantes contra as realidades da vida.

Foi nesse gênero de filosofia que Franz Rosenzweig, encolhido numa trincheira da I Guerra Mundial, disse não ter encontrado respostas decentes para nenhuma pergunta importante.

Deve-se, é claro, ter sempre em conta a advertência de Hegel, de que uma idéia filosófica só tem sentido quando encaixada no "sistema", na ordem inteira das razões que a ela conduzem. Mas por que supor que somente valem as razões explícitas, registradas no texto, e não os motivos reais, existenciais, que levaram o filósofo a essa idéia? Se o 'sistema' é isolado da mente humana que o criou, das duas uma: ou torna-se teoria científica a ser verificada por meios experimentais, (...)"

Uma teoria científica uma vez formulada, não interessa mais quem pensou por que pensou, etc. Ela tem uma formulação definitiva e é esta formulação que permite que ela seja verificada ou impugnada experimentalmente.

"Se o 'sistema' é isolado da mente humana que o criou, das duas uma: ou torna-se teoria científica a ser verificada por meios experimentais, ou é tomado como obra literária, como símbolo. Nos dois casos perde-se o específico da filosofia, que é um esforço de coerenciação da experiência por uma consciência individual.

Revivenciando imaginativamente as experiências fundantes de cada filosofia, o estudioso adquire a chave para compreender-lhe o significado e o valor com muito mais eficiência do que poderia fazê-lo mediante mil análises estruturais de textos."

Por exemplo, o significado de um valor significa perceber que muitas vezes uma filosofia não tem valor nenhum, zero, por mais elegante que seja, por maiores efeitos históricos que tenha tido. Esta é por exemplo a minha conclusão quanto a Maquiavel: tudo o que Maquiavel escreveu não vale nada, é zero. Para a educação de um ser humano, só se deve entender aquilo como fenômeno histórico, que aconteceu, como aconteceu Átila o Huno, como aconteceu a explosão em Chernobyl, como aconteceu Hiroshima, como aconteceu o Holocausto, como aconteceu o diabo a quatro, são coisas que aconteceram e são uma verdadeira porcaria. Maquiavel também foi uma coisa que aconteceu e é uma verdadeira porcaria. É só isto. Quando você vai ver Rousseau, é a mesma coisa.

Em outros casos, você verificará que as experiências fundantes realmente são experiências fundamentais e que todo ser humano tem de ter, e que elas têm uma força educativa e formativa por si mesmas. Elas abrem o olho da sua inteligência. Neste caso você estará lidando com um filósofo de verdade. Nos outros casos não. Você está lidando com uma imitação de filosofia, às vezes, uma imitação muitíssimo elegante. O resultado dessas imitações é, às vezes, cegar as pessoas para certas realidades, às vezes para sempre, e outras vezes é exercer em nível profundo uma influência que é muito diferente daquela que está expressa nos textos e então se trata de uma manipulação histórica de longo curso, de longo tempo. Aí você está lidando quase com principados e potestades. São forças formadoras da história humana, o que não quer dizer que tenham valor intrínseco. Até o diabo é uma força formadora, e estes diabinhos também são. Note bem que eu não estou dizendo isso por tomar uma posição [2:50] moral frente a eles, não precisa tomar uma posição moral porque eles mesmos declaram o que eles estão querendo. Declaram não explicitamente, mas no tecido da conexão entre suas palavras, suas ações e seus efeitos, você percebe então onde eles estão querendo chegar e com frequência chegam, na maior parte dos casos. Eu não conheço um caso de operação deste tipo que tenha sido falhada. Sempre tem algum efeito.

Eu me lembro quando eu li o livro Comentários entre dois arcanos maiores do Tarot, em que o autor dizia que muitas vezes as filosofias tem uma força igual a uma operação de feitiçaria, de bruxaria, uma possessão demoníaca, e isto é verdade. Infelizmente, no capítulo seguinte, o autor partia para uma apologia da filosofia de Kant que eu não posso aceitar de maneira alguma.

"É claro que, para preparar a investigação ou confirmar aquilo que se descobriu quanto à experiência fundante, a análise estrutural, guéroultiana ou outra, tem uma utilidade formidável, mas essa utilidade depende de que o método seja aplicado desde o ponto de vista da experiência e não tomando o texto, materialmente, como se fosse o próprio objeto formal da investigação. No estudo da filosofia, os textos são apenas os documentos, quase sempre parciais e imperfeitos, pelos quais chegamos ao conteúdo mesmo da filosofia: as intuições fundamentais que justificam e embasam um esforço de validação, uma 'ordem das razões'. O conteúdo de uma filosofia não se constitui de proposições, de sentenças, mas dos atos cognitivos reais, vividos," (e que nós podemos reviver), "que às vezes elas expressam bem, às vezes expressam mal. Se não fosse assim, não haveria diferença entre estudar uma obra filosófica e uma criação literária. Foi justamente porque não apreendiam bem essa distinção que os professores da Filosofia-USP tiveram de criar uma defesa simbólica postiça contra o fantasma da literatura, que os ameaçava mais desde dentro que desde fora."

Ou seja, aquilo é um bando de literatos tentando fingir que são filósofos.

[2:52:08 Comentários sobre próxima aula e grupos de estudos estratégicos e Mário Ferreira dos Santos.]

Transcrição: Alan Nascimento -- Instituto Olavo de Carvalho-Curitiba

Revisão: Ronald Pinheiro

Footnotes

  1. The yawning heights, Random House, 1979

  2. Schocken, 1984.

  3. Martial Guéroult, Descartes selon l'Ordre des Raisons, 2 vols., Paris, Aubier, 1953.

  4. Ibrasa, 2000 - 240 páginas

  5. S. Paulo, Edit. Livr. Logos, 1958. Também publicado pela Ibrasa.

  6. São Paulo: Loyola, 1997.

  7. Descartes selon l'Ordre des Raisons

  8. Comumente publicado com o título Novos ensaios sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1980. 433 p. (Os pensadores)

  9. Lívio Teixeira, Ensaio sobre a Moral de Descartes, Boletim 204 da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, São Paulo, 1955.

  10. Lectures on the History of Philosophy..

  11. (Pádua l989).

  12. Na verdade publicado como Introdução à filosofia da mitologia.

  13. Publicado em 1809.

  14. Leo Strauss, Thoughts on Macchiavelli, The University of Chicago Press, Chicago 1958, p. 36.

  15. Matrix (no original em inglês: The Matrix) é uma produção cinematográfica norte-americana e australiana de 1999, dos gêneros ação e ficção científica, dirigido pelos irmãos Wachowski e protagonizado por Keanu Reeves e Laurence Fishburne.

  16. Confissões, Livro X, Cap VI*.*

  17. Thoughts on Machiavelli, Leo Strauss, University of Chicago Press, 1978

  18. (Mateus 7:20).