Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 61
05 de junho de 2010
Boa tarde a todos, sejam bem vindos.
Eu queria fazer dessa aula, duas notas de rodapé a coisas que foram ditas antes. A primeira, ainda sobre a questão da imortalidade, e a segunda, sobre a função da literatura na sociedade, segundo Ezra Pound.
Com relação ao primeiro tópico, escrevi um texto para esta aula. Primeiro, lerei do começo até o fim, depois vou fazê-lo novamente, parando e fazendo acréscimos. Nome do texto "A imortalidade como premissa do método filosófico".
"Se somos imortais, temos de sê-lo em essência e não por acidente. A imortalidade é então a nossa verdadeira condição e o plano de realidade no qual efetivamente existimos. Nesse caso, a presente vida corporal não é senão uma fração diminuta da nossa realidade, uma aparência momentânea que encobre a nossa verdadeira substância. Em conseqüência, todo o conhecimento que podemos adquirir dentro dos limites da existência corporal é apenas uma aparência dentro de uma aparência. Ainda que apreenda porções genuínas da realidade, não pode ter em si seu próprio fundamento, mas tem de buscá-lo na esfera da imortalidade.
Tudo isso é bem claro. O que confunde as coisas é que o termo "imortalidade", na presente cultura, adquiriu a conotação de algo que só se manifesta -- se existe -- depois da morte física. Esconde-se aí uma sugestão inteiramente absurda: somos mortais em vida, mas "tornamo-nos" imortais após a morte, como se a morte fosse a passagem a um estado de existência radicalmente separado, heterogêneo e incomunicável com a vida presente. É nesse pressuposto que repousa toda a esperança de um conhecimento puramente imanente, sem referências ao "além". Se a imortalidade existe, essa esperança é tão absurda quanto o pressuposto que a sustenta. Se temos uma vida que transcende toda duração, essa vida transcende, e portanto abrange, em vez de excluir, a sua fatia imersa em duração. Se somos imortais, temos de sê-lo agora, desde a vida presente, em vez de sermos, por assim dizer, imortalizados pela morte. A morte não pode imortalizar o mortal: só pode tornar manifesta a imortalidade preexistente e impugnar, no mesmo ato, a ilusão da mortalidade.
Mas, se já somos imortais nesta vida, é claro que não podemos conhecer adequadamente esta última senão à luz da imortalidade: o conhecimento mortal da vida mortal é o conhecimento ilusório de uma ilusão.
O esclarecimento da imortalidade torna-se assim uma exigência primeira do método filosófico: ou demonstramos que a imortalidade não existe ou, caso a aceitemos ao menos como hipótese, temos de fundar nela toda a possibilidade de um conhecimento efetivo da realidade.
Demonstrar que a imortalidade existe pode ser difícil, mas provar que ela não existe é impossível: todas as provas estariam limitadas ao acessível na vida presente, em nada debilitando a possibilidade de que haja algo para além dela. Já as provas da imortalidade nada perdem com essa limitação, de vez que a vida presente está dentro da vida imortal e o que se sabe de uma pode revelar algo da outra.
As provas, no entanto, de nada servem se, uma vez obtidas, não modificam em nada o hábito reflexo de raciocinar a partir da vida presente como se esta fosse um todo fechado e auto-suficiente -- hábito que tanto pode fundar-se na negação quanto na afirmação da imortalidade. A própria busca de provas cientificamente válidas, obrigantes, portanto, para toda a comunidade dos estudiosos, já tende a fazer da existência presente a medida da vida imortal, já que, na escala desta última, a autoridade humana da comunidade científica não conta para absolutamente nada.
De um lado, a prova científica da imortalidade não dá a ninguém, por si, uma consciência de imortalidade pessoal e muito menos a força para operar a passagem de nível desde uma cognição baseada na experiência temporal a outra fundada no senso da imortalidade. De outro lado, quem quer que tenha operado essa passagem não precisa de provas científicas daquilo que lhe foi dado em experiência pessoal direta. Pode usar essas provas como meios pedagógicos para estimular os outros a buscar experiência idêntica, ou para tapar a boca de adversários da imortalidade, mas esses dois objetivos são menores e secundários em comparação com a experiência em si.
A expressão "experiência da imortalidade" é, decerto, metonímica. Designa o objeto da experiência por uma de suas partes, subentendendo que esta requer incontornavelmente a existência do todo. Deve-se falar de experiências de cognição extracorpórea, ou mais propriamente supracorpórea, estando aí implícito que, se a consciência opera fora e acima do corpo, não tem por que morrer quando ele morre.
Essas experiências não são necessariamente "paranormais". Qualquer um pode ter acesso a elas, contanto que se prepare para isso mediante uma série adequada de meditações. Em geral não se trata de perceber objetos à distância, ou futuros, mas de tomar consciência daquilo que, na percepção comum e corrente, já é supracorpóreo embora não seja percebido habitualmente como tal. Tão logo você assuma consciência dos elementos supracorpóreos que perpassam e fundamentam a percepção corporal, sua noção de "Eu" vai modificar-se automaticamente. Quando digo "assumir consciência" quero dizer que há aí algo mais que um simples ato de percepção isolado ou mesmo repetido. "Assumir consciência" é algo mais que "tomar consciência": implica um ato de responsabilidade intelectual e moral pelo qual você se compromete intimamente a não permitir que a porta aberta para a consciência de extracorporeidade se feche e o conteúdo aí assimilado se dilua no fluxo de impressões corporais até ser esquecido ou ao menos perder toda força estruturante sobre a sua vivência de 'Eu'.
Agora lerei novamente, pedaço por pedaço, e acrescentarei alguns comentários. Primeiro:
"Se somos imortais, temos de sê-lo em essência e não por acidente."
Claro que essa última hipótese não pode ser totalmente excluída, mas é tão improvável, que cai no infinitesimal. A hipótese de que um ente mortal se torne acidentalmente imortal seria um fenômeno tão estranho que necessitaria de explicações extraordinárias. Das duas uma: ou a nossa modalidade de ser implica essencialmente a imortalidade, ou não. Não há meio-termo; praticamente não encontramos, em nenhuma cultura do mundo, um sinal de que um ente essencialmente mortal possa ter-se tornado imortal por acidente.
No caso grego, quando se falava em "imortal", tratava-se daqueles imortalizados pelo heroísmo, que se tornaram similares a deuses. Mas os outros também eram imortais, embora condenados a uma vida post mortem bastante evanescente, apagada e triste, numa espécie de purgatório. Os mortos tinham uma existência de sombras, o que não deixava de ser uma imortalidade. Eram todos imortais, havendo apenas diferença entre graus qualitativos de imortalidade -- como se fosse um equivalente, mutatis mutandis, de céu e inferno.
Mas se você observar, ao longo de praticamente toda a história da cultura ocidental -- e também nas culturas orientais --, a consciência de imortalidade é onipresente. Absolutamente todo mundo fala na condição de alma imortal. Mesmo um materialista como Epicuro admite alguma forma de imortalidade. Este fundo de consciência de imortalidade perpassa todas as civilizações, e ele parecia tão natural às pessoas, que, já na entrada da modernidade, Spinoza podia fazer aquela sua famosa confissão -- *sentimus experimurque nos aeternos esse: "*Sentimos e experimentamos, experienciamos que somos eternos". Ele não está enunciando uma teoria; está dizendo que, mesmo que não fôssemos imortais, nós sentimos e experienciamos a imortalidade.
Mas esperem um instante: será que hoje as pessoas ainda sentem e experienciam isso? Houve um momento qualquer na historia -- não sei assinalar exatamente quando, mas acredito em algo entre os séculos 18 e 19 -- em que este "sentir e experienciar" transformaram-se somente em "crer". Sentir e experienciar são uma coisa; crer é outra, completamente diferente. Crer é um produto da sua mente, uma ideia que você tem e à qual você atribui veracidade ou falsidade. Sentir e experienciar são fenômenos completamente diferentes. Eles em si mesmos não provam nada, pelo menos nos termos em que Spinoza os colocou. Sentir e experienciar a sua própria eternidade ou imortalidade não garante que você seja eterno ou imortal, mas Spinoza pelo menos está expressando uma experiência que foi praticamente universal e que hoje ainda pode ser recuperada, de algum modo.
Veremos que, em primeiro lugar, a questão da imortalidade não se coloca como uma teoria cientifica à qual você possa aderir ou não. Ela pode ser isso, também, mas só em segunda instância. Em primeira, é uma questão de uma experiência que você tem ou não; de uma vivência que muitas pessoas tiveram -- praticamente todos os filósofos: Platão, Aristóteles, Sócrates, Duns Scot, S. Tomás de Aquino, Mohiuddin Ibn-Arabi, Avicena, Averróis, Pedro Abelardo e todos que vieram depois -- e que, de repente, pararam de ter.
Curiosamente, esta noção concebida como experiência nunca foi discutida filosoficamente na modernidade. A partir de certo momento, começa-se a discutir a imortalidade como uma crença, como uma teoria, como uma doutrina que você pode aceitar ou negar intelectualmente. E toda essa imensidão de depoimentos sobre a experiência é totalmente esquecida. Isso acontece dentro de um contexto moderno, que é assim descrito pelo Bernard Lonergan em seu livro Topics in Education. Ele está discutindo, está expondo, a corrente dominante, em matéria de educação, na modernidade. Ele diz:
"A tendência modernista em filosofia [ele está subentendendo a filosofia da educação] pode ser resumida em cinco tópicos:
Primeiro: nada deve ser dado por pressuposto ou aceito com base na fé cega; tudo deve ser questionado.
Segundo: não há realidade fixa a ser conhecida, a realidade é um processo, o conhecimento é um componente sempre mutável dentro do processo humano, não há realidade fixa e não há conhecimento fixo.
Terceiro: os métodos da ciência empírica são os únicos métodos válidos; e a palavra significativa aqui é únicos. Esses métodos resolvem todas as questões, não apenas em ciências naturais, mas também em filosofia, na moral e na religião; não apenas naquilo que é comum ao homem e ao resto do universo material, mas em tudo que é distintivamente e basicamente humano também. Escorando-se em Dewey [John Dewey], os modernistas advogam a validade universal e exclusiva dos métodos da ciência empírica.
Em quarto, portanto, é necessária uma reconstrução em filosofia -- e Dewey escreveu um livro a esse respeito [o livro chama-se exatamente A Reconstrução em Filosofia]. Toda a sabedoria do passado e, consequentemente, toda a posição tradicionalista, tem de ser reformulada como hipóteses científicas; elas têm de ser colocada em termos científicos, submetidos a teste e verificação científica, antes que possa ser até chamada de conhecimento. Onde é chamada conhecimento, ela tem a simples validade que as teorias e conclusões científicas podem ter. Não somente é esta demanda por um método exclusivamente empírico uma conseqüência lógica do ponto anterior quanto à tradição filosófica, mas tal demanda também é afirmada sob o fundamento de que a sabedoria tradicional é simplesmente o produto e reflexo de uma era e sociedade pré-científicas, pré-industriais e pré-democráticas. Consequentemente, pelo mero fato de isto ter sido produto de uma era tão diferente da nossa própria, ela deve ser questionada e de fato deve ser posta em dúvida.
Finalmente, com base nesta filosofia, dizem-nos que a experiência é sempre um processo que está sendo reavaliado -- ela é não somente o melhor instrutor, ela é o único instrutor. Portanto, a educação deve ir ou para trás, segundo os padrões de uma era pré-científica, ou para frente, em direção a uma maior utilização do método científico, no desenvolvimento de todas as possibilidades de uma experiência crescente e em expansão.
[Então ele resume, novamente.] Há, portanto, cinco pontos: primeiro, nada deve ser dado por pressuposto ou aceito com base na fé cega; segundo, não há realidade fixa a ser conhecida -- o conhecimento é um componente num processo sempre mutável; terceiro, os métodos da ciência são os únicos métodos válidos; quarto, estes devem ser aplicados à totalidade da tradição filosófica, que é simplesmente o produto de uma era e sociedades pré-científicas, pré-industriais e pré-democráticas, e consequentemente não deve se esperar que seja muito relevante para os nossos tempos, que são totalmente diferentes."
É dentro desse contexto que, aquilo que os antigos denominavam experiência da sua imortalidade -- que eles efetivamente vivenciavam como tal -- , é então transmutado numa hipótese cientifica a ser testada pelos meios científicos.
Ora, acontece que a transição de uma experiência para uma teoria é uma coisa extremamente complexa. Em segundo lugar, a possibilidade de que as ciências empíricas modernas possam colocar em teste toda a herança recebida de civilizações tradicionais é uma hipótese tão louca que simplesmente o fato de alguém tê-la enunciado já deveria ser suficiente para colocá-lo num hospício. É claro que, em tudo, a experiência é o teste último da veracidade ou falsidade das coisas, mas a experiência não é uma coisa assim tão fácil, tão mecânica; é necessário que você desenvolva os conceitos, os métodos para poder fazer o teste experimental de acordo com as exigências de cada domínio ontológico em particular.
Não é fácil criar um critério experimental para testar o que quer que seja. Veja a diferença de teste experimental em medicina, em jurisprudência - no direito - , e na física. É necessário desenvolver métodos específicos para cada um desses três, e o grau de confiabilidade do teste também é variável conforme as circunstâncias. É o caso de dizer: talvez seu método experimental, em si, idealmente, seja o melhor para testar qualquer coisa, contanto que ele se desenvolva para isso. Qual é a possibilidade de que métodos desenvolvidos exclusivamente para relacionar fenômenos dentro do nosso presente estado de espaço e tempo possam testar alguma coisa que está para além deles? Esses métodos simplesmente não existem.
Porém, é possível criar um método indireto. Não podemos fazer um teste experimental da imortalidade, dado que a única maneira de criar uma ciência experimental para ela seria tornar-se imortal, passar para o outro lado e trazer de lá as provas da imortalidade. Isso é absolutamente impossível, mesmo porque, se você trouxesse provas da imortalidade, essas provas teriam de estar adaptadas à condição de vida terrestre, temporal dos observadores. Seria como espremer a experiência da imortalidade dentro da esfera da mortalidade -- e isso é obviamente autocontraditório. Os testes não valeriam nada.
Você pode, no entanto, obter uma verificação empírica de certos fatos que não são, em si, a presença da imortalidade, mas implicam nela. Não se pode falar de experiência da imortalidade, mas pode haver uma experiência da supracorporeidade. Se você tem acesso a modalidades de conhecimento supracorporais, então está claro que a sua cognição não está limitada à sua esfera corporal; e se não está limitada nem determinada pela esfera corporal, não se vê por que essas possibilidades devessem morrer no instante em que o corpo morre, já que não têm nada a ver com ele.
Citei especificamente essas experiências cognitivas vividas em estado de morte clínica e citei um exemplo muito simples -- a música. Ela é a experiência universal da supracorporeidade, especialmente a percepção de melodia. Não podemos dizer a mesma coisa quanto à percepção de ritmo, a qual é inteiramente corporal. A percepção de harmonia também é corporal. Todo mundo percebe ritmo e harmonia. Qualquer um percebe a mudança do tempo de uma batida e todos percebem se determinado som está sendo tocado por um ou dois instrumentos diferentes, ou se um instrumento está tocando uma nota e outro está tocando uma nota harmônica ou inarmônica com ele.
Melodia, porém, nem todos percebem. Daí a minha insistência na memória de melodias. Não existe uma surdez rítmica -- pessoas que não percebam o ritmo. Quem não percebesse ritmo ficaria com um problema cardíaco muito grave, não conseguiria articular os batimentos cardíacos com sua respiração e morreria. Quem não percebesse harmonia não conseguiria perceber a diferença entre uma voz e duas vozes; não saberia se está conversando com uma ou duas pessoas.
Mas existe uma surdez melódica, chamada surdez tonal. Como se observou recentemente, as reações cerebrais da pessoa que sofre de surdez tonal são exatamente as mesmas daquela capaz de perceber melodias, de modo que podemos dizer que o cérebro sempre percebe a melodia; quem não a percebe é você. Não basta um cérebro para perceber; é preciso algo mais. E não há sinais corporais de diferença entre a pessoa que tem surdez tonal e a que não tem. No entanto, a percepção de melodia é uma dimensão decisiva da vida humana. A pessoa que não percebe a melodia não tem acesso a toda uma linguagem de sentimentos e emoções que amplifica enormemente a sua experiência. Tudo isso, para ela, inexiste.
Existe outro tipo de experiência que pode ilustrar a situação, e ela não é como os testes científicos. Estes são, por assim dizer, observados desde fora; o sujeito que conduz a experiência não é, ele mesmo, objeto dela. As experiências devem ser feitas em outra pessoa. A não ser no caso do Ludwig Fechner, que era, ele mesmo, cobaia da própria experiência. Eu mencionei a experiência de Fechner de espoucar um flash dentro do seu próprio olho e medir o tempo após o qual a bola de luz desaparecia do seu campo de visão. O depoimento dele valia duplamente: como o do cientista e como o da cobaia. Mas esta outra experiência que vou relatar não pode ser feita desde fora; cada um tem de fazer por si. Ela não pode ter validade cientifica, a não ser através de depoimento: se você coletar vários depoimentos de pessoas que a fizeram, então poderá criar uma validade científica indireta. E, no entanto, essa experiência é a que dá o maior grau de certeza quanto a este ponto da extracorporeidade.
A experiência consiste simplesmente no seguinte: é fácil você perceber que todos os elementos que compõem a sua esfera mental -- a sua esfera de pensamento, memória, imaginação etc. -- estão em constante fluxo e constante movimento. Eles nunca param. Tudo é absolutamente impermanente. O mesmo se passa na esfera das suas sensações, que são mais impermanentes ainda. Você não tem uma única sensação que dure; elas estão mudando o tempo todo. Tudo na esfera da percepção e do pensamento -- absolutamente tudo -- é transitório e impermanente.
É possível criar uma espécie de muleta mental para isso, mediante os conceitos abstratos. O conceito de quadrado, por exemplo, expressa a essência permanente do quadrado; ele não é mutável. Mas uma coisa é a permanência do conceito de quadrado, e outra é a impermanência do pensamento que o pensa. Não devemos confundir o conteúdo lógico do conceito com o ato psicológico de pensá-lo. O conceito pode, em si mesmo, expressar uma realidade que é permanente, mas você consegue pensá-lo de maneira permanente? É claro que não. Por exemplo: conceba um quadrado de acordo com a sua definição de quadrado -- uma figura geométrica plana com quatro lados e quatro ângulos iguais. Quanto tempo você consegue fixar a imagem desse quadrado na sua mente? Um segundo, dois segundos? É o máximo. Nós podemos repetir as mesmas palavras; repetimos a mesma definição e hipoteticamente pensamos a mesma coisa cada vez que voltamos a pensá-la, porém este mesmo pensamento continua transitório e evanescente.
Não temos nenhuma percepção e nenhum pensamento que nos indique estabilidade e permanência, sobretudo no que diz respeito a nós mesmos. Tudo o que você pensa a respeito de você mesmo é instantâneo, transitório, evanescente -- e, no entanto, você tem uma firme convicção da sua identidade, que permanece ao longo dos tempos. Quando você se lembra de coisas que se passavam quando tinha dois ou três anos, você diz: "Eu fazia tal coisa, tomava mamadeira, caía da cama", e assim por diante. Este Eu a que você se refere é o mesmo que está falando agora. De onde você tirou esta firme convicção de identidade?
Alguns espertinhos dizem que esta identidade do Eu é apenas um artifício lingüístico. Como seus pais dão só um nome a você e o chamam sempre pelo mesmo, você associa esse nome à palavra "Eu" e acaba se acostumando à ideia de que você é um e o mesmo. Se você já não soubesse, antes disso, que é um e o mesmo, como poderia saber que esta palavra, que este nome, refere-se a você? Essa explicação não funciona de maneira alguma.
Se a unidade e permanência do seu Eu fosse uma questão de pensamento abstrato, ela seria tão evanescente quanto qualquer outro pensamento abstrato que você tem; ela entraria e sairia e você só teria a visão dessa unidade nos momentos em que você se concentrasse no conceito, como acontece com qualquer outro conceito. E, no entanto, não é assim. Temos a convicção permanente da unidade e permanência do nosso Eu sem precisar pensar nela. Mais ainda: nós não podemos pensar nela. A unidade e permanência do nosso Eu não pode ser pensada. Você só pode pensar o seu Eu em determinados momentos da sua ação. Você se lembra de estar fazendo certas coisas, ou você tem uma sensação de identidade corporal agora -- mas nada disso permanece; tudo isso é transitório; mas por baixo continua a firme convicção de identidade e permanência do Eu. De onde você tirou isso, ó raios?
Se esta unidade e permanência não têm base física porque o seu corpo se transforma continuamente -- e até para perceber a transformação você precisa do senso de unidade e permanência do Eu, para saber que aquele que é velho agora é o mesmo que foi jovem e criança --, em nenhum instante você consegue pensar em si mesmo como totalidade. Nunca. Você se lembra de um pedaço, de outro, fala de uma coisa, fala de outra. Ninguém pode ter uma visão completa de si mesmo; todas as visões que você tem de si mesmo são fragmentárias e transitórias -- e, no entanto, por baixo delas continua o mesmo sentimento de permanência e identidade do Eu. Resultado: este senso de unidade e permanência do Eu não é um elemento mental e também não é um elemento corporal. Ele não está no seu corpo e também não está na sua mente. Onde ele está? Na sua verdadeira identidade. Você tem um senso de que possui uma identidade permanente e contínua porque tem essa unidade permanente e contínua. É como se fosse uma presença direta da realidade, sem intermediação da percepção sensível ou do pensamento.
Trata-se de um exemplo do que eu chamo de "conhecimento por presença": é algo que você sabe não porque teve uma sensação física ou porque pensou, mas simplesmente porque a coisa está presente em tudo o que você percebe sensorialmente ou pensa. A própria base de todos os seus pensamentos e percepções está continuamente ali. Este é um caso de conhecimento direto da realidade, no qual o conhecimento se identifica com o ser. Você sabe que tem uma identidade permanente porque de fato você é uma identidade permanente e não porque você percebeu isso com o corpo ou porque você pensou nisso. Ora, se esta sua identidade não é nem mental, nem corporal, o que ela é? Eu também não sei, mas alguma outra coisa, certamente. Note bem: esta "alguma outra coisa" -- que não é nem corporal, nem mental -- é a base que articula toda a sua experiência corporal e mental.
Se esse senso de continuidade e identidade do Eu desaparecesse por apenas um segundo, todo o mundo das suas percepções e de seus pensamentos se esfacelaria numa multidão de fragmentos impossível de se reunir de volta. É o que acontece quando você sofre de esquizofrenia. O esquizofrênico tem sensações como nós e é capaz de pensar como nós, só que, num momento, o seu senso da identidade do Eu sumiu. O que falta para ele não é nem pensamento, nem percepção -- é a presença dele a si mesmo, que em algum momento foi soterrada sob a avalanche de sensações e pensamentos. Digamos que estas são como galhos e folhas de uma árvore, e a identidade do Eu é o tronco. Quando você se torna esquizofrênico, os galhos e as folhas cresceram tanto que já não se vê o tronco.
O exercício que eu sugiro é o mais simples do mundo: apenas uma mudança do seu eixo de atenção. Normalmente, a sua atenção está voltada para as suas sensações físicas e para os seus pensamentos, mas, como você sabe que por baixo dessa multidão de percepções e pensamentos existe um senso de identidade que não é nem pensado, nem percebido corporalmente, mas está por baixo das percepções e dos pensamentos e os fundamenta, é neste senso que você vai prestar atenção agora. Este é o seu verdadeiro Eu: não é o que você pensou ou sentiu corporalmente. Ele é aquilo que você é, constantemente, e que está por baixo de todas as suas experiências sensíveis e mentais. Quando usar a palavra Eu, você vai se referir a este fundamento, porque as suas sensações podem mudar e mudam o tempo todo, e os seus pensamentos podem mudar mil vezes -- até as suas crenças mais queridas podem ser abandonadas ou trocadas por outras e assim por diante. Você vai ter de usar algo do pensamento para despertar este senso em maneira consciente.
Todos nós temos esse senso de identidade, mas nem sempre a nossa consciência está centrada nele. Em geral, ela está dispersa em elementos da sensação ou do pensamento e não no Eu. Você pode usar a sua memória para simplesmente lembrar que você agora é o mesmo que era quando criança, só que você vai focar a sua atenção não na sua figura de agora, nem na sua figura de infância, mas simplesmente na continuidade que há entre uma coisa e outra -- e você dirá: "isto sou eu". Esta não é uma experiência paranormal, mas, no momento em que você a faz, os pensamentos e sensações continuam chegando porque eles são o reino da mutabilidade, eles estão continuamente girando por aí. Porém, você vai suprimi-los, simplesmente não vai prestar atenção neles. Deixe que eles venham.
No começo, vão aparecer pensamentos e sensações muito impressionantes, que vão atrair sua atenção e fazer com que você siga o seu fio, perdendo de vista o ponto central. Não tem importância. Isso acontece uma vez, duas vezes, três vezes -- você volta sempre ao mesmo ponto. Lembre a sua continuidade, e você vai saber que sua continuidade não está nem no corpo, nem no pensamento; não está nem no espaço, nem no tempo. O comum das sensações o abrirá para o espaço e o tempo, mas a sua continuidade não nem em um, nem no outro -- embora não esteja fora deles. Tudo o que você pode experimentar e pensar dentro da escala de espaço e tempo está contido dentro do seu senso de continuidade e identidade, porque, sem esse senso, você não poderia experienciar nada.
Você pode imaginar, agora, o seu senso de identidade, de duas maneiras: ou como um pontinho sem dimensão, que está no seu "centro" --- não é um centro espacial, nem temporal, mas um centro hierárquico, por assim dizer; ou você pode imaginá-lo como uma esfera que abrange, de antemão, todo o conjunto das suas experiências possíveis de ordem corporal e mental, de modo que você não perde nada. Você não vai eliminar o mental, nem o corporal, não vai fugir para fora deles --- você simplesmente vai empacotá-los, vai abrangê-los dentro de um senso de continuidade no qual todos estão, porém como se fossem um pedacinho porque, no mesmo instante em que você tem esse senso da continuidade do Eu, tem o senso da eternidade. Você percebe que isto não é espacial, nem corporal. Você entrou na esfera da imortalidade, onde sempre esteve.
É uma experiência muito simples. Dá algum trabalho: no começo, seus pensamentos e sensações vão atraí-lo para mil lugares. Você sente uma coceira aqui, um peso, um não sei o quê. Ou então aparece um pensamento: mil mulheres peladas! É um negócio terrível, é difícil desviar a atenção delas. Porém, não brigue com seus pensamentos, não tente eliminá-los. Simplesmente coloque-os dentro da esfera do senso de permanência. Quando pensar alguma coisa, nessa hora, lembre-se de que é só um dos bilhões, trilhões de coisas nas quais pode pensar. Todo o mundo dos pensamentos e das sensações está aberto para você. Ele sempre esteve assim porque você é alguma coisa, porque você tem uma identidade, porque você é um Eu, de verdade.
Alguns expositores de técnicas parecidas com essa chamam de "Eu" a esfera dos pensamentos e sensações, e dizem que é preciso se libertar do Eu. Mas trata-se de um erro formidável porque, se eu tenho uma verdadeira identidade, é essa que eu tenho de chamar de Eu, e não a esfera dos pensamentos. Longe de eliminar o Eu, ao contrário, tenho de me instalar nesse Eu e pensar: "agora eu sou verdadeiramente eu; agora eu sei do que estou falando".
Na esfera dos pensamentos e sensações existe apenas o Eu narrativo, aquilo que você sabe da sua própria história, que se pode contar; e existe o Eu social, que é a parte da sua história que coincide com aquilo que os outros sabem de você, ou onde pode haver um intercâmbio entre o que você e os outros sabem. Mas isso faz parte das sensações e pensamentos: nem o Eu narrativo, nem o Eu social são o verdadeiro Eu. Este coincide com aquilo que eu sou ontologicamente, efetivamente, objetivamente --- não subjetivamente. E o que eu sou objetivamente é essa continuidade no tempo.
Depois de explicado, percebe-se que se trata de uma obviedade atroz. Por que as pessoas não percebem? A cultura moderna simplesmente pegou todos esses elementos que eram e vinham de tradições imemoriais e os transformou em hipóteses científicas a serem testadas experimentalmente. E o modo de testá-las tem sido completamente errado.
Quando você faz um teste cientifico sobre a imortalidade, sobre a percepção supracorporal etc. quem está fazendo o teste? Quem é a pessoa do cientista ou do experimentador que está conduzindo o experimento? Quem é ele? Qual é o Eu real dele? Se ele está colocado na esfera simplesmente do Eu narrativo ou do Eu social, então ele é apenas uma ilusão e não está qualificado para testar a existência dessa dimensão extra nas outras pessoas porque não percebe a dimensão extra em si mesma. É como um surdo fazendo teste de audição nos outros. Ou um cego trabalhando como oftalmologista. É exatamente isso. Claro que isso representa uma violação monstruosa do método científico, mas é essa violação que eles têm chamado de "método científico". É um erro grotesco, pueril, de método. Eu posso testar essas coisas nos outros desde que eu as tenha percebido em mim mesmo, assim como eu posso testar a visão no outro se eu mesmo enxergo. Somente pessoas que tenham despertada essa consciência de continuidade do Eu estão habilitadas a fazer qualquer teste científico nessa área; os outros, não. São como crianças mexendo em maquinas que elas não compreendem.
Em princípio, aceito a idéia de que a experiência é o teste último da realidade. Porém, para isso, temos de fazer a experiência a sério, levando em conta os requisitos que a natureza do fato impõem ao observador científico, e não adotando um método qualquer e tentando aplicar aquilo como quem tentasse consertar um relógio com um martelo de borracheiro ou com um boticão de dentista -- que é exatamente o que esses imbecis têm feito. Imbecis como John Dewey. Considero John Dewey um verdadeiro imbecil, sem nenhum exagero. Sou contra tratar certos filósofos com muito respeito, em primeiro lugar porque o sujeito precisa se dar ao respeito. Se ele fala com arrogância e desrespeito de coisas que estão muito acima da sua compreensão, respeitá-lo é desrespeitar essas coisas que estão acima dele.
John Dewey afirma que os métodos em educação só valem se forem testados na realidade e derem bons resultados. Ora, a educação proposta por John Dewey e aplicada nas escolas americanas deu péssimo resultado; portanto, pela sua própria teoria, tudo o que ele fez e propôs já está impugnado. Este é um exemplo de paralaxe cognitiva levada ao extremo. Acho que isso era perfeitamente previsível porque o método que ele sugeriu parte de uma absurdidade, de uma proposta impossível.
Agora que nós temos o método científico, tudo o que foi dito antes dele não vale nada a não ser que seja validado por ele. A partir de então, temos de validar tudo novamente. Isso é impossível. Não que isso não deva ser feito. Idealmente, claro, tudo deve ser testado, mas como seria possível validar cientificamente conhecimentos que não foram expressos em linguagem de hipótese científica? Seria preciso, primeiro, fazer a sua transposição.
Por exemplo, eu leio na Bíblia: "No princípio, Deus criou o céu e a terra" e quero testar cientificamente isso. Acontece que "no princípio, Deus criou o céu e a terra" não é uma expressão que esteja formulada em linguagem de hipótese científica. É outra linguagem. É preciso encontrar a hipótese científica correspondente. Quando se desdobra essa frase -- que foi dita em linguagem mito-poética --, não se encontra uma hipótese científica; eu encontro vinte, trinta, quarenta, das quais algumas, decerto, são verdadeiras, e outras falsas. Suzane K. Langer dizia: "o símbolo é uma matriz de intelecções". O símbolo não vem para dizer como as coisas são, mas para fecundar a sua inteligência, para que você perceba como são. O símbolo, em si mesmo, não pode ser transposto em linguagem científica, no mesmo plano em que está. Há uma operação complicadíssima -- à qual, por sua vez, não pode ser feita pelo método experimental. Tem de ser feita pelo método de análise do símbolo, que se faz pela recapitulação meditativa dos significados que ele sugere a você.
Temos aqui um pequeno problema: o método experimental é ótimo, mas antes dele tem de haver alguma coisa. Como John Dewey não sabia disso, ele aplicava o método científico a coisas que não estavam preparadas para ser testadas cientificamente, a coisas que requeriam toda uma análise filosófica prévia, o que ele não sabia fazer. Na prática, o que ele propunha? Nivelar a educação pela sua ignorância. Tudo o que John Dewey escreveu, em matéria de educação, deve ser jogado fora, pelo seu próprio critério. Só vale o que funciona experimentalmente. Bem, a experiência -- a adoção dos métodos do John Dewey -- teve efeitos desastrosos na educação americana. Então, para que servem os experimentos dele? Para serem jogados fora e esquecidos. A não ser que você os aproveite como o sujeito que se apaixona por uma mulher desonesta, que todos sabem ser uma vagabunda e ainda o avisam, mas ele teima no erro. Para que serve isso? Para que ele possa recordar daquilo que não deveria ter feito. Como diz a minha amiga Maria: "eu não sou inútil; sirvo, ao menos, de mau exemplo".
Esses assuntos têm sido tratados, no mundo "acadêmico", com total grosseria e irracionalidade, o que desmente, de maneira acachapante, as suas próprias presunções de racionalidade científica. Mesmo os testes que verificam a existência de algum conhecimento extracorpóreo ou supracorpóreo nos estados de morte próxima -- do que eles servem para o pretenso investigador? Depende de quem seja ele é e do coeficiente de conhecimento supracorporal que ele consiga ter, conscientemente, porque é disso que vai depender --- ou não --- a compreensão dele do sentido da experiência. Se não compreender o sentido da experiência, ele apenas verificará fatos atomisticamente separados dos quais não poderá tirar conclusão alguma. Ele vai dizer que a experiência foi inconclusiva. Mas essa inconclusividade não provém da natureza dos fatos e sim da ignorância e inépcia do experimentador.
Não sei se ficou clara a experiência que eu descrevi, da concentração no senso de identidade permanente. Ela é como uma passagem de nível. Uma coisa são os elementos que compõem realmente a sua estrutura; e outra coisa é o seu foco de atenção.
O ser humano tem a capacidade de poder fixar a atenção em qualquer detalhe, por mais insignificante que seja. Quando o sujeito tem uma obsessão, um vício extremo, ele pode se concentrar em algo perfeitamente insignificante, como um jogo de baralho, ou um fetiche: um sujeito que pensa em calcinhas vinte e quatro horas por dia. Ou o viciado em drogas, que se fixou em certas sensações corporais e psíquicas que quer repetir, repetir, repetir. Podemos estreitar o nosso círculo de atenção até adquirirmos a dimensão espiritual de um tatu-bola, desses pequenininhos.
Nós temos essa capacidade, mas muitas vezes as coisas acontecem como no filme de Clint Eastwood, no qual o sujeito jogou-se num cacto para fugir, e os amigos que o ajudavam a retirar os espinhos lhe perguntaram: "Por que você fez isso?" Ele respondeu: "Na hora, me pareceu uma boa idéia..." Podemos fazer qualquer coisa porque nos parece uma boa idéia no momento, mas quando refletimos a respeito, notamos que se tratava de uma estupidez. Podemos estreitar nosso círculo de atenção até fazer com que certos pontos retornem obsessivamente, e nós não consigamos nos livrar daquilo.
Existem formas brandas de demência, como, por exemplo, pensar em problemas. A quase totalidade das pessoas que eu conheço só vive pensando em problemas. Nunca os resolve, evidentemente, porque não é possível resolvê-los. A maior parte das dificuldades que temos se resolvem pela mudança do quadro geral da nossa vida, e não por alguma coisa que tenhamos pensado. Resolver um problema primeiro em pensamento e depois na prática é uma das coisas mais difíceis que existem. Quando você consegue fazer isso com um problema, é um gênio. Em geral, os problemas se resolvem não porque nós tenhamos a solução teórica na cabeça, mas simplesmente porque o quadro da vida mudou e o problema desapareceu. Pensar em problemas é realmente fazer buracos n'água, mas a quase totalidade das pessoas que eu conheço só pensa em problemas, vinte e quatro horas por dia.
Ou pensar em doenças. Ou esses pais que ficam sempre pensando que estupidez os filhos vão fazer no dia seguinte. "Ele virará um bêbado", "ele cairá para as drogas", "ele virarará veado", "ele casar-se-á com uma prostituta", "ele assaltará um banco" --- eles pensam. Passam o tempo todo preocupados, como se o filho fosse um monstro, uma bomba de efeito retardado, cujo pai está esperando explodir o tempo todo. Confesso que, cinicamente, não tenho o menor interesse por isso. Se os meus filhos decidirem fazer alguma besteira, eles o farão. Eu é que não vou preveni-los. Se fizerem e pedirem socorro, então talvez eu pense no assunto. Eu sei que recusar-me a pensar em problemas jamais agravou a minha situação. E pelo contrário, pensar neles agrava de fato a situação, porque se os problemas não piorarem, ao menos você piora...
Temos toda essa capacidade de estreitar o nosso círculo de atenção, sempre por motivos que são completamente passionais e irracionais. Mas a pergunta é: por que nós deveríamos fazer isso? Se nós temos a capacidade de centrar nossa atenção em certos pontos, nós temos de ter a capacidade de centrá-la em outros. Por que não centrar a atenção naquilo que pode realmente render alguma coisa? E o que pode mais render, na sua vida, é você se concentrar no seu senso de identidade permanente, porque nesse caso tudo, toda a sua experiência, muda de plano.
No momento em que você faz essa operação, essa torção do foco de atenção, e começa a vivenciar o seu Eu como entidade supracorporal, que não está no corpo, apenas tem um corpo, o qual está dentro dela, e é um corpo provisório, que um dia você vai tirar, como uma meia ou cueca -- até calcinha --, então o seu senso de identidade mudou, e você se colocou no plano de imortalidade. Então, as realidades do mundo espiritual, do mundo divino, começam a aparecer para você. Por exemplo, no mesmo instante em que esta consciência que descobriu a sua imortalidade descobre que ela é apenas imortal e não eterna; que ela de fato não tem um limite; que ela está aberta para todos os tipos de conhecimento, todos os tipos de experiência; ela pode saber tudo. Em princípio, até o conjunto das suas experiências -- o conjunto total da sua vida -- pode ser vislumbrado num relance, como o é, de fato, nos momentos que antecedem a morte. Ou seja, esta experiência, que muitas pessoas tiveram em estado de morte clínica e relatam toda a sua vida -- você pode ter sem estar em estado de morte clínica alguma. Você nunca vai poder expressar nem contar isso -- não dá; isso transcendeu a sua capacidade verbal. Mas você já ganhou alguma coisa, verdadeiramente uma interioridade, que não é comunicável, que é exclusivamente sua. É um mundo seu. E um mundo completo, que abrange todas as suas experiências, todos os seres humanos que você conheceu, todos os episódios reais e imaginários da sua vida -- tudo isso agora é você.
É impossível não ficar maravilhado com isso. É impossível não ter uma sensação de júbilo e, ao mesmo tempo, é impossível não perceber a ausência de fundamento interno de tudo isso. É como disse Santo Agostinho: "eu sei que eu sou, mas eu não sei por que eu sou." Você percebe claramente que não é causa sui, percebe que a sua existência é um milagre, e é impossível que você não tenha, então, um sentimento de júbilo, gratidão e amor pela fonte de onde você surgiu -- a fonte que você não conhece e também não vê, mas que sabe estar lá. Assim como, no estado de impermanência e de dispersão no qual vivemos a nossa vida corporal e mental, o Eu permanente está sempre lá -- ainda que você não pense nele --, também quando você passa para a esfera do Eu permanente, o fundamento dele, a sua causa, não está sempre visível, mas está sempre lá. E então é possível começar, como Platão dizia, uma "segunda navegação". É a alma imortal autoconsciente que fará isso.
Costuma-se dizer que a alma terrestre está buscando Deus. Todo mundo está buscando Deus! Filia-se ao PT porque se procura Deus, vai-se a um puteiro porque se procura Deus -- mas, na verdade, só a alma imortal procura Deus. A alma mortal procura a alma imortal. Sem a consciência da alma imortal, a tentativa de buscar a Deus é muita presunçosa. Você não está procurando Deus ainda. Primeiro, é preciso buscar a si mesmo. Por isso, a famosa regra: "conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus." Mas conhecerás a Ele depois. É por isso que eu considero fútil a maior parte das conversas religiosas que circulam atualmente. Só quem entende disso é a alma imortal; a alma mortal não sabe do que está falando.
Mediante essa experiência você entende que:
(...) "a presente vida corporal não é senão uma fração diminuta da nossa realidade (...) e, portanto, o conhecimento que adquirimos dentro do limite, digamos, da vivência corporal é uma aparência dentro de uma aparência."
O verdadeiro senso de realidade só aparece perante a consciência de alma imortal. Antes, não. Antes, você confunde o senso de realidade com o senso de intensidade da experiência -- da experiência corporal, por exemplo. E por isso as pessoas buscam drogas, prazeres sexuais incessantes -- para ter o que eles chamam de "sensação de realidade". Para escapar da angustiante sensação de vazio. Mas acontece que isso não é a realidade: uma sensação muito intensa é tão impermanente quanto uma sensação tênue. Os efeitos do mais espetacular orgasmo do mundo ou da mais terrível martelada no dedo logo somem. Seja a sensação prazerosa ou dolorosa , "não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe". Mas existe algo que não acaba: o que é real, o que tem fundamento ontológico -- e que está, por assim dizer, acima das sensações de dor e prazer que temos durante a vida. Todas essas sensações estão abrangidas dentro dele, como possibilidades suas.
Mais ainda: a partir do momento em que você passa para este outro plano de atenção, as sensações corporais, experiências terrestres etc., em vez de desaparecerem, são tremendamente valorizadas. O que quer que você vivencie no plano terrestre ecoa alguma coisa na eternidade. As experiências começam a ter outro valor. É claro que essa tomada de consciência do Eu permanente é, por sua vez, impermanente. Por quê? A partir do momento em que você percebeu aquilo, a mente e o corpo continuam funcionando, dando-lhe impressões fugazes, que não param. Num primeiro momento, essa atividade mental e sensitiva pode até aumentar. É o que se chama de "terror-pânico". Pan é o rei dos elementais, dos entes sutis da natureza. O terror-pânico, na mitologia grega, é o que acontecia entre esses entes -- e, portanto, entre todos os seres da natureza --, por exemplo, perante o raio, que simboliza a entrada do espírito. O espírito aterroriza a natureza, e então eles começam a se agitar. A mesma coisa vai acontecer em você. Quando se agitar, acalme-se: não está acontecendo nada. Você não pode lutar contra as suas percepções corporais ou o seu movimento mental. Você tem de abrangê-los e acalmá-los. Lembrando-se sempre: tudo aquilo que você está pensando está dentro da esfera do seu Eu permanente, não fora dela. Não se trata de você se desligar do corpo e da mente; não se trata de você eliminar o Eu, mas ao contrário: trata-se simplesmente de dizer as coisas como elas são. Trata-se de você se instalar conscientemente naquilo que você já sabe que é a base permanente da sua existência -- o seu senso de permanência ao longo do tempo.
Para fazer isso, devemos, em primeiro lugar, nos livrar do esquema imaginário que está presente na nossa cultura, a concepção da imortalidade como algo que acontece depois da morte, a suposta passagem da mortalidade para a imortalidade. É inteiramente absurdo. Quer as pessoas acreditem ou não na imortalidade, é esse o conceito de imortalidade que se tem. E ele é autocontraditório. É mais fácil encontrar chifre na cabeça de cavalo do que buscar na realidade algo que é autocontraditório. O chifre na cabeça de cavalo não é impossível, é apenas uma impossibilidade biológica que a natureza pode violar de vez em quando. Mas a procura em vida de sinais de uma imortalidade como sendo outro estado no qual você entra depois de morrer não é possível. Daí a frase do Jorge Luis Borges: "a metafísica é um homem cego, num quarto escuro, buscando um gato preto que não está lá". Você vai fazer exatamente isso. Ou você busca os sinais da imortalidade naquilo que a presentifica, aqui e agora, ou você não vai encontrá-los jamais.
Se, além disso, coincidir de o sujeito ter uma experiência paranormal que lhe abra o acesso ao conhecimento supracorporal, sorte dele, porque haverá mais um motivo para estar consciente da própria supracorporeidade dele. Caso contrário, não há a menor importância. As vezes, a experiência paranormal -- justamente por ser paranormal -- cria uma agitação mental que só tornam as coisas mais difíceis para você. O que eu estou falando -- assumir consciência do Eu permanente -- não é uma experiência paranormal, é uma experiência inteiramente normal.
Quando Sócrates usava a palavra Eu, era nesse sentido. Vejam, na "Apologia de Sócrates", a naturalidade com que ele fala da sua vida após a morte. É a sua biografia que continua, não a de outra pessoa. O Eu é o mesmo. É o único Eu que ele jamais teve, porque o Eu narrativo e o Eu social são apenas produtos mentais que podem estar errados.
Quantas vezes não contamos a nossa história erroneamente para nós mesmos? Nós mentimos para nós mesmos. E, para justificar aquela mentira, você inventa outra, e outra, e outra -- e esquece que mentiu no começo. Está criada uma neurose. Este Eu da sua narrativa, você jamais o teve, você jamais foi aquilo. Note bem: se você tiver dez mil neuroses, você pode dissolver todas elas sem perder nada.
É por isso que considero extraordinário o apego das pessoas às suas neuroses. Eu acho que se apegam a elas porque valorizam aquilo, intelectualmente. O doutor Juan Alfredo Cesar Müller, quando atendia algum cliente com uma neurose do tamanho de um bonde, olhava aquilo, muito impressionado e falava: "Meu filho, você é um gênio! Para inventar um negócio desses, não é qualquer um!" Toda aquela constelação de mentiras, de acusações e defesas, de temores e rancores, todo aquele universo fictício que o sujeito concebeu, eu acho que isso tudo tem algum valor intelectual. Então, eu, na minha neurose, prefiro me apegar àquilo, como quem tivesse escrito um belo romance e não quisesse jogar o manuscrito fora.
Eu garanto que desfiz mil complexos neuróticos que criei! Mil vezes. Eu peguei a prática ainda muito novo. Quando adolescente, tinha um amigo que fazia psicanálise, e a gente brincava de desfazer os próprios complexos, de desmascarar a nós mesmos perante o outro. E depois, dávamos risada da encrenca que tínhamos arrumado. Note: você pode desfazer todos esses complexos neuróticos e não deixará de ser você mesmo -- ao contrário. Quando você perceber que, por trás dos complexos, há alguém que tem a capacidade de desfazê-los, e vir que este alguém é você, então estará mais próximo da realidade do seu Eu do que antes. Porém, por baixo ainda desta capacidade existe o senso de continuidade e permanência do Eu -- que é a coisa mais maravilhosa que o ser humano ganhou neste planeta.
Ao longo do tempo, o senso desse verdadeiro Eu foi perdido e trocado pelo Eu narrativo e social, a tal ponto que, na mesma medida em que se glorificava este Eu narrativo e social -- por exemplo, nas confissões de Jean Jacques Rousseau, em que se inventou uma história da carochinha para dizer que é ele [o seu Eu real] -- este Eu vai, cada vez mais, revelando a sua falsidade. O que acontece? A própria noção de integridade da personalidade desaparece. Quando você chega à literatura moderna, com James Joyce, Proust e outros, não há mais um Eu: só há sensações e pensamentos soltos. O que foi embora? O Eu narrativo e o Eu social. E o Eu profundo, o Eu verdadeiro? Este não pode ter ido embora, senão, não haveria ninguém para contar a história. Só o Eu verdadeiro, permanente, pode perceber, aceitar e até descrever a fragmentariedade do seu mundo psíquico.
Quando David Hume, no século 18, observava que na cabeça dele não havia nenhum Eu, só uma série de sensações, sobrou a pergunta: quem percebeu essas sensações? Não é, certamente, aquilo que nós, na vida diária, chamamos de Eu. Este Eu do qual você está falando não existe, mesmo; ele é uma ilusão. Mas por baixo dele tem de haver outro, capaz de perceber a fragmentariedade e o caráter ilusório do próprio Eu. Trata-se de mudar o sentido da palavra Eu e seguir para outra dimensão, onde realmente você pode dizer que existe, porque não é uma ilusão -- embora os seus pensamentos possam ser, sua personalidade inteira possa ser. Mas você não o é.
Em termos teológicos, você foi criado por Deus como uma alma imortal, como um ente definitivamente existente. Imortalidade quer dizer isso: não volta atrás. Jamais retornará ao nada. Na pior das hipóteses, você vai para o Inferno. E se você acha que o Inferno é um nada, espere para ver... A criação da alma individual é um ato irrevogável de Deus. A sensação de irrealidade, que qualquer um pode vir a ter em determinados momentos, só existe quando se toma como realidade os produtos da mente, e não aquilo que está no fundo -- que não é a alma que você inventou, nem a alma que você criou, narrativamente -- mas aquela que Deus criou. E criou como entidade permanente e imortal.
Aluno: O senhor leu, no final da aula 59, toda a mensagem que continha uma pergunta minha, menos a pergunta, propriamente dita. A pergunta é a seguinte: o que percebi na experiência descrita abaixo é similar à experiência à percepção da alma imortal, que o senhor indicou na aula 57, ou algo totalmente diferente? Acrescento outra: o júbilo sentido nessa experiência nos leva, obrigatoriamente, a uma tomada de consciência da responsabilidade com a nossa salvação, que é graça mas não (...)
Olavo: A responsabilidade para com a nossa salvação é um termo que se aplica, digamos, à vida terrestre. No plano de alma imortal, você não pode mais falar propriamente disto, porque se trata, antes, duma percepção imediata de duas coisas que são bastante contraditórias, mas não desconfortáveis.
A primeira é esta percepção da permanência da sua alma. Percepção de que você existe como ato irrevogável de Deus. E, em contraste a isso, a percepção de que você não tem um fundamento seu. Você percebe que você recebeu o ser, de maneira irrevogável, e, portanto, não é uma ilusão, você não é uma criação cultural, não é um produto dos seus próprios pensamentos, não é uma entidade puramente subjetiva -- mas você é algo que existe, realmente. E se você, ao mesmo tempo, perguntar: "mas por que eu? Entre tantos milhões de seres possíveis, por que eu recebi esta existência e nessas condições, assim, quase angélicas?" É a pergunta do salmista: "que é o homem, para que Deus se ocupe dele?" E, no entanto, é uma criatura um pouco menor do que os anjos. Este paradoxo impele à busca de Deus, necessariamente. Não tem como escapar.
Porém, sempre pode acontecer uma tragédia, no plano metafísico, de a alma encerrar-se em si mesma e tomar-se como fonte, como origem, justamente nesse ponto. Eu não sei como isso pode acontecer, mas acontece. Provavelmente quando esse acesso à experiência de alma imortal se deu através de práticas ocultistas e mágicas indevidas. O sujeito realmente sobe, mas o faz de uma maneira muito perigosa.
Exceto nesse caso, em termos de vida terrestre, ao falar de responsabilidade com a sua salvação, você pode desejá-la, ou pode se descuidar dela, ou pode até trabalhar contra ela. Mas, nesse plano de alma imortal, você não quer a sua salvação -- você quer Deus, mesmo. Você está colocado numa relação de amor intenso, quase imediato. O que o aluno diz não está errado, mas ele está usando uma linguagem que é própria para uma situação temporal.
Aluno: Esse tema da imortalidade da alma me interessa muito. Adoro refletir sobre isso (...)
Olavo: Vocês já devem ter percebido o título que dei ao texto é "A imortalidade como premissa do método filosófico". E, na verdade, ele não fala disso. O texto só fala do próprio senso de imortalidade. Mas tenho a impressão de que vocês podem tirar, por si mesmos, a conclusão do motivo pelo qual a imortalidade é essencial para o método filosófico. Porque, se ela não é levada em conta, a própria pessoa do filósofo que investiga está colocada numa posição falsa.
Essa questão da imortalidade começou, pra mim, quando, anos atrás -- acho que trinta anos atrás --, eu li o seguinte parágrafo de Miguel de Unamuno.
"Um dia, falando com um camponês, eu lhe propus a hipótese de que houvesse, com efeito, um Deus que rege céu e terra, Consciência do Universo, mas que nem por isso seja a alma de cada homem imortal, no sentido tradicional e concreto, e ele mo respondeu: 'Então, para que Deus?"
Miguel de Unamuno lembra que, na Crítica da Razão Prática, Kant coloca a imortalidade da alma como um imperativo categórico do qual ele deduz a existência de Deus. É claro que é uma dedução muito fraca. Eu não creio que a imortalidade da alma tenha de ser conhecida apenas como um imperativo categórico -- algo que tem de ser, senão você ficaria chocado caso não o fosse. O imperativo categórico é o argumento "porque sim". "Por que é de tal maneira?" "Porque sim". Mas Unamuno não desaprova esse procedimento de Kant, porque entende que a imortalidade da alma é uma condição prévia do conhecimento. Unamuno aprofunda o procedimento; a coisa chega num ponto em que Kant não chega. E vejam o que ele diz mais adiante:
"O que determina um homem, o que faz dele um homem, um e não outro, aquele que é e não o que não é, é um princípio de unidade e um princípio de continuidade."
E mais adiante:
"Em cada momento da nossa vida temos um propósito, e para ele conspira a sinergia de nossas ações. Ainda que no momento seguinte mudemos de propósito. E, em certo sentido, um homem é tanto mais homem quanto mais unitária seja a sua ação."
Muito bem: essa convergência de propósitos tem algo a ver com aquilo a que Viktor Frankl chamava "o sentido da vida". E o sentido da vida é um fator unificante, mas apenas na escala psíquica. Ele não vai lhe dar uma unificação ontológica: a descoberta do sentido da vida e a concentração, a sinergia, para realizá-lo traduzem, no plano da vida terrestre -- traduzem e simbolizam, de algum modo -- a unidade ontológica do ser. Mas essa unidade existe, ainda que você não saiba, ainda que você nunca pense nela. Se ela não existisse, então toda a nossa atividade psíquica seria necessariamente desconjuntada, fragmentária, e nós não poderíamos nem construir um Eu histórico, nem o sentido da vida, nem o Eu social, nem coisa alguma. Os animais também têm vida psíquica. Eles têm memória, linguagem, pensamento etc. Por que eles não têm esse nosso sentido de Eu? Porque de fato não têm essa existência permanente por baixo. Os animais não são almas imortais.
Aluno: (...) Fico a pensar, sem pressa de descobrir, me deliciando, como se estivesse saboreando alguma comida deliciosa, torcendo para que não se acabe, mas, ao mesmo tempo, com o desejo de devorar tudo de uma vez. Por que esta alma imortal tem uma existência neste plano finito? Seria esta alma imortal parte de Deus, e a nossa individualidade só poderia começar a existir passando por esse plano finito, quando tomamos consciência de quem realmente somos?
Olavo: São questões filosóficas que a constatação da presença da alma imortal desencadeia na sua mente. É esse pensamento que eu estou lhe dizendo para deixar de lado. Eles não têm importância. A única coisa que tem importância é você se arraigar, cada vez mais, nessa consciência de alma imortal.
Quando eu digo que essa consciência de imortalidade é importante para o método filosófico, é porque eu realmente acredito que as grandes questões filosóficas não encontram resposta no plano da atividade mental humana. Nesse plano, vigora o ditado "de tanto pensar, morreu um burro". Pensar, discutir, trocar ideias, querer provar isso ou aquilo, embora seja legítimo, é uma agitação mental. Você está no plano do trocar palavras por palavras. E de tentar fazer com que a sua simbolização pessoal das coisas valha mais que a simbolização do vizinho. Você está dizendo de um jeito, ele está dizendo de outro, mas pode ser que, no fundo, vocês estejam querendo transmitir a mesma experiência que, em si mesma, não é transmissível. É necessário esperar que a própria experiência do Eu permanente lhe traga gradativamente as respostas, sem atividade mental. Que ela as traga como evidências totais e definitivas.
É exatamente o contrário do que se faz em faculdades de filosofia, onde se incentivam as pessoas a ficar pensando, falando, discutindo. Veja que, nas universidades medievais, havia, também, muito debate, muita confrontação de hipótese etc., mas todas aquelas pessoas tinham uma experiência religiosa profunda. E tinham essa vivência de alma imortal. Uma coisa são essas discussões filosóficas entre pessoas que têm esta mesma vivência em comum, e outra entre as que não a têm.
Os problemas filosóficos vão aparecer para você, mas note bem, eles, em si, não valem mais do que fantasias sexuais, ou desejos de poder, ou temores neuróticos. Eles são apenas atividade mental. Apenas isso. E, definitivamente, não é na atividade mental que você pode encontrar respostas, e sim num verdadeiro, por assim dizer, processo contemplativo, no qual as coisas lhe chegam como realidades presentes, não como ideias em sua mente.
Às vezes, as respostas são bastante simples de se obter, mas não mediante o pensamento. Até mesmo as perguntas filosóficas que lhe ocorrerem devem ser contornadas -- não desprezadas, evidentemente, mas acalmadas. Pense: "espere um pouquinho". Você pode usar essa linguagem -- eu uso muito comigo mesmo -- "espere: isso que você está perguntando, você não sabe, mas Deus sabe, e daqui a pouco Ele vai lhe explicar." Eu já contei para vocês que muitas vezes eu durmo com a pergunta na cabeça e acordo com a resposta, sem ter pensado naquilo.
Eu acho que esse método funciona mais. A diferença é enorme entre o esforço deliberado de pensar e o que você pode obter simplesmente num estado contemplativo, de aceitação plena da realidade, do Eu permanente da vida imortal etc. Você tem de deixar que o Espírito Santo conduza as suas percepções, os seus pensamentos, e não forçar a barra para obtê-los.
É evidente que não estou proibindo as perguntas; estou apenas indicando a maneira de tratá-las. A melhor maneira é dizer -- "sente-se e espere, pois um dia a resposta disso surgirá como evidência". E uma evidência é melhor do que uma prova. Não preciso explicar que, ao dizer, "olha, é assim, assim, assim", eu estou construindo uma doutrina teológica, uma justificação da existência terrestre. Quase um capítulo importante da teodiceia, quer dizer, por que Deus nos colocou aqui? Eu não pretendo construir essa teodiceia. E, além disso, ela será uma coisa, você a compreenderá de uma maneira, se tiver essa experiência do Eu permanente, e a compreenderá de outra, se você não a tiver.
É por isso que muita gente não entende, por exemplo, o argumento de Santo Anselmo, ou a teodiceia de Leibniz: porque os lê apenas do ponto de vista da mente terrestre e da agitação da mente terrestre e para a qual vigora aquele famoso ditado russo: só um idiota pode fazer mais perguntas do que sessenta sábios poderiam responder. A nossa mente é móvel e inquieta, e isso nunca leva a lugar algum. Aliás, ela ou leva a isto que eu estou sugerindo a vocês, ou não leva a parte alguma. Todas essas perguntas filosóficas, embora legítimas, só podem ser respondidas, efetivamente, por um único método -- e é por isso que eu estou dizendo: o conceito de imortalidade é o princípio do método filosófico.
Nós temos de nos habituar a nos colocar nesse plano e a fazer um intercâmbio de evidências que, mesmo expressas em linguagem simbólica e indireta, sejam compreensíveis para outras pessoas que participam da mesma experiência, em vez de tentar expressá-las por uma linguagem filosófica tremendamente exata que não vai ser compreendida por ninguém. Por exemplo, tudo o que eu leio de Leibniz é tremendamente claro; a prova de Santo Anselmo, para mim, é claríssima. Mas eu vejo que um Kant, quando lê a prova de Santo Anselmo, faz uma confusão dos diabos porque trata dela apenas com a sua agitação mental e não com a consciência profunda da realidade do seu próprio Eu.
O que eu estou sugerindo é que o verdadeiro método filosófico não é só um método de investigação; é um método de percepção e, por assim dizer, um modo de ser. Se você vir tudo o que Sócrates fez -- o que aparece nos Diálogos de Platão --, tudo ali é um convite à consciência de imortalidade. Cada linha de Platão. Os tópicos específicos que ele está discutindo. Frequentemente vocês vão reparar que ele os discute de uma maneira irônica. Dá a impressão, às vezes, de que ele não está levando aquelas questões a sério. E, de fato, não está, mesmo, porque ele sabe que a solução não está naquele plano da discussão, mas em outro, mais profundo.
Platão fala da anamnese, que é a transposição a outro plano, ao qual ele chama de "plano das ideias". Acima do plano das ideias, ou formas, há outro, que é o plano dos princípios. Do mesmo modo, há aí uma analogia. Platão diz: "primeiro você sobe ao plano das ideias, e do plano das ideias você percebe os princípios eternos, que explicam, ao mesmo tempo, as ideias e o mundo sensível." Eu estou dizendo: "primeiro você sobe ao plano de imortalidade e, daí, você tem abertura para o que é realmente divino." No fundo, é a mesma coisa, dita em duas linguagens diferentes.
Mas tudo o que Platão escreveu, e o que Sócrates tinha dito antes dele, nunca visam a provar este ou aquele ponto, mas a puxar, a atrair as pessoas para esse plano da imortalidade. Quando eu digo que isto é a premissa do método filosófico, eu estou tentando fazer, com as minhas parcas energias, e com o meu pobre estilo, mais ou menos o que Platão fazia. Mas se nós nos concentramos obsessivamente na materialidade das questões filosóficas, então entramos na discussão acadêmica, que não termina nunca.
Quando se define a filosofia como amor à sabedoria, é disso que nós estamos falando: amor à sabedoria, e não às discussões. Claro que a sabedoria aumenta a sua capacidade de discutir com você mesmo e com os outros, mas, ao mesmo tempo, ela lhe dá certa preguiça de fazê-lo. Porque, se eu posso discutir e provar um ponto, eu só devo fazer isso se eu estiver discutindo com um adversário, não se eu estiver discutindo com alunos ou amigos. Em vez de discutir ou provar o ponto, eu deveria, antes, fornecer-lhes o método para que vocês alcancem a resposta -- que é exatamente o que eu estou fazendo. Mesmo que, ao alcançá-la, vocês a transmitam numa linguagem diferente da minha, e que até pareça, às vezes, não estar completamente de acordo. O importante não é o acordo no plano das palavras, mas no plano da experiência profunda.
Aluno: Sobre essa aula do seu Eu fundamental. Em que espaço do Ser, corpóreo ou psíquico, residem os problemas psicológicos?
Olavo: As chamadas doenças psíquicas -- ou distúrbios psíquicos -- podem ser explicadas por duas linguagens opostas. Uma é a que eu usei na minha apostila "O que é a psique", na qual mostro que todas essas patologias, em última análise, residem numa redução da possibilidade de atividade psíquica. E o problema também pode ser explicado como eu o fiz no começo desta aula: ele ocorre quando a atividade psicofísica, a atividade de sensações e pensamentos, encobre a consciência do Eu fundamental. Normalmente, essa consciência vive encoberta em nossa vida, mas ela é sempre recuperável. E, de certo modo, nós contamos com ela.
Quando a atividade psíquica torna-se predatória -- obsessivamente repetida, com aumento quantitativo, mas diminuição qualitativa; uma espécie de inflação, na qual a atividade psíquica, ao mesmo tempo é multiplicada e diminuída --, ela pode, em certas circunstâncias, encobrir a consciência do Eu fundamental a ponto de torná-lo quase irrecuperável. Digo "quase", pois a esperança é a última que morre.
Aluno: Os santos, indivíduos imersos em estado de graça, seriam um indício concreto da existência do Eu para além da esfera do espaço e do tempo (...)?
Olavo: Mas é claro que são! Ele cita até um trecho de Otto Maria Carpeaux que fala de Santa Maria Teresa, mas não é necessário lê-lo aqui. A presença desses indivíduos é um testemunho: eles estão vivendo num outro plano, e estão aqui na terra. Nós também estamos vivendo neste plano, só que os santos estão prestando atenção a isso, e nós, não. Essa é a única diferença.
Aluno: Sobre o exercício para percepção da unidade do Eu: há poucos anos, no zoológico, detive-me impressionado diante de um avestruz, o qual, como é comum neste tipo de bicho, pregou também os seus olhos em mim. As emoções devem ter-se sucedido mais ou menos assim: estranhamento, angústia, um medo terrível, maravilhamento e, por fim, uma imensa alegria. Era uma situação anormal e, para mim, inédita. Era como se, digamos, a chave da percepção tivesse mudado. O tempo e o espaço, a multiplicidade dos objetos que me cercavam -- nada disso desaparecia, mas é como se estivessem, por assim dizer, neutralizados, como eram submetidos a uma percepção de unidade. Minha mulher estranhou e me chamou pelo nome. Estremeci e desatei a soluçar como uma criança, de susto e alegria (...)
Olavo: Essas coisas acontecem, mesmo. Você pode ter, de repente, essa consciência de permanência, de unidade, sem ter feito nada para obtê-la. Essa consciência é normal no ser humano, e não é um estado paranormal.
Anormal foi tê-la perdido. Anormal foi o fato de que uma cultura inteira a perdesse e ainda quisesse, desde um estado de percepção diminuído -- e, na verdade, patológico --, julgar tudo o que se sabia a esse respeito antes. É como aquelas pessoas que participam de algumas seitas, fazem uns exercícios esquisitos e vão ficando cada vez mais imbecis. Como eles ficam cada vez mais imbecis, entendem cada vez menos, então tudo vai ficando extremamente misterioso e obscuro, e eles têm a impressão de que estão penetrando em profundidades maiores do conhecimento humano. Quanto mais idiota, mais presunçoso.
Todo o processo da cultura moderna é este: um processo de perda de certas capacidades e, ao mesmo tempo, uma ampliação desmesurada do número de pessoas que participam nas atividades intelectuais. Então há, realmente, uma inflação: temos mais gente, pensando pior, sobre as mesmas coisas. Ao ponto de a discussão filosófica virar um caos. Existe um texto -- que eu acho que usei aqui -- de Wolfgang Stegmüller, que fala da progressiva fragmentação do debate filosófico no mundo moderno. Se eu não usei esse texto, vou usá-lo. Stegmüller descreve como, aos poucos, os filósofos perdem uma linguagem comum; depois perdem o foco de atenção comum; e, no fim, um já não sabe do que o outro está falando -- e pior ainda: está tão preso dentro do seu esquema que ele não consegue querer entender o outro. Isto é resultado deste processo.
A situação se complica se o Eu profundo não pode entrar em diálogo com outro e só o Eu superficial é permitido. O Eu superficial é o mundo da multiplicidade, da variedade e da impermanência. A possibilidade de que duas pessoas se entendam no plano do Eu superficial é quase nula, matematicamente. Pode acontecer, de vez em quando, mas é uma coincidência, uma loteria. Ao passo que, no plano do Eu profundo, as pessoas se entendem perfeitamente bem, mesmo quando falam em linguagens muito diferentes.
Não se consegue encontrar duas personalidades mais diferentes que as de Sócrates e Platão. Sócrates é o sujeito que desde o começo da vida aceitou ser um joão-ninguém, socialmente. Embora fosse um herói de guerra e tivesse alguns recursos financeiros, ele não era ninguém, socialmente. Não tinha cargo público, não era sacerdote, político, comandante militar, nem coisa alguma; era um zé-ninguém. Praticamente vivia na rua; raramente ia para casa, porque a mulher dele era uma peste, então preferia ficar na rua, conversando com os amigos.
Platão, ao contrário, era um jovem da aristocracia com um futuro brilhante na política e que teve ambições políticas enormes.
Como essas pessoas, esses dois tipos completamente diferentes, puderam se entender tão profundamente, ao ponto de a gente às vezes não conseguir distinguir quem é um e quem é outro? Isso acontece porque eles estão discutindo no plano do Eu profundo, e não no dos seus Eus empíricos, por assim dizer.
Vou parar com as perguntas e colocar a segunda nota de rodapé, que se refere a coisas explicadas aulas atrás, sobre a função social das letras. Ela é tirada de um ensaio de Ezra Pound chamado "How to read", "Como ler". Existe uma tradução brasileira desse texto; de qualquer modo, vou sugerir à professora Margarita Noyes que use esse texto na aula de inglês. Vou fazer uma tradução meio capenga, mas suficiente para que vocês entendam.
Pergunta Pound:
"Tem a literatura uma função no Estado, na agregação dos humanos, na república, na res publica, que deveria significar a conveniência pública (apesar da burocracia e do execrável gosto do populacho ao selecionar seus governantes)?"
Resposta:
"Ela tem.
E esta função não é a de coagir ou persuadir, emocionalmente, ou de intimidar ou oprimir pessoas para que aceitem um determinado conjunto ou seis conjuntos de opiniões como opostas a um outro conjunto de meia dúzia de opiniões.
Essa função tem a ver com a claridade e vigor de todo e qualquer pensamento e opinião. Ela tem a ver com manter a limpeza das ferramentas, dos instrumentos, a saúde da matéria mesma do próprio pensamento. Salvo nos raros e limitados exemplos de invenção nas artes plásticas ou nas matemáticas, o indivíduo não pode pensar e comunicar o seu pensamento, o governante e legislador não pode agir efetivamente ou moldar suas leis, sem palavras, e a solidez e validade dessas palavras estão sob os cuidados dos malditos e desprezados literatos. Quando o trabalho deles apodrece -- e com isso não quero dizer que eles expressem pensamentos indecorosos, mas quando o meio mesmo, a essência mesma do seu trabalho, a aplicação da palavra à coisa apodrece, isto é, se torna frouxa, inexata, ou excessiva, ou manchada --, a maquinaria inteira do pensamento social e individual e da ordem vai para o brejo. Esta é uma lição da história, e uma lição que ainda não foi aprendida nem pela metade. (...)
Não é somente uma questão de retórica, de expressão frouxa, mas também do uso frouxo das palavras individuais. O que a renascença ganhou em exame dos fenômenos materiais, ela em parte perdeu no sentimento e desejo dos termos descritivos exatos. (...)"
É uma observação maravilhosa porque, de um lado, você vê que de fato houve uma ampliação do campo de observação natural, a partir da Renascença. O surgimento de novas ciências, novos temas, novos meios de investigação. Mas, no plano conceitual, os filósofos modernos são de uma inexatidão, às vezes de uma grosseria, pueril. Por isso Schelling diz que a filosofia caiu, naquela época, para um nível pueril. Por um lado, abraçou mais temas, e temas às vezes até mais difíceis, mas, por outro lado, perdeu o instrumental teórico. Na medida em que o perdeu, ela tentou supri-lo com o uso do método matemático -- como se a possibilidade de fazer contas com exatidão pudesse substituir a compreensão exata da relação entre palavra e coisa. As medições jamais podem suprir algo assim. Se você não sabe do que você está falando, se não tem uma noção muito clara do nexo -- ou da falta dele -- entre palavra e coisa, não adianta medir tudo com exatidão, porque o resultado vai ser a medida exata de algo totalmente indefinido.
Quando René Descartes, com todo o seu cartesianismo, procurava uma sede corporal da alma - sede à qual ele acreditava encontrar na glândula pineal - demonstrava não saber nem o que é corpo, nem o que é alma. Descartes podia observar os fatos cientificamente o tempo que quisesse, mas não sabia o que estava procurando. Erros desse tipo são cometidos o tempo todo. É nessa época que surge a paralaxe cognitiva. Alguns filósofos, no começo da Modernidade, chegavam realmente a parecer loucos ou trapaceiros, tão frouxa era a consciência dos objetos com que estavam lidando, e, ao mesmo tempo, tão rigorosa era a matemática que eles pretendiam inventar.
Ou quando Newton fala de um "espaço absoluto", por exemplo. Até hoje estou tentando entender o que ele quer dizer com isso. Eu não sei e ele também não sabia. E, no entanto, está tudo medido, certinho, exato. Galileu inventou a superfície inclinada sem atrito e, ao mesmo tempo, disse que não era um conceito inventado. Mas uma superfície sem atrito não pode existir no mundo real; ela só pode existir num mundo inventado. Mas, se o conceito não é inventado, então de onde você o tirou? Não foi da realidade, nem do seu pensamento. Onde existe a superfície sem atrito? Nós vemos que ele não tem consciência do material conceptual com que está lidando.
Continua Pound:
"O que eu quero dizer é que a mente medieval tinha pouco mais com o que lidar do que as palavras, e por isso mesmo foi muito cuidadosa na definição dessas palavras. (...)"
De fato, é algo fabuloso o requinte dos filósofos medievais, ao esclarecer exatamente qual é a categoria, qual é o nível de predicação, quais são as várias acepções em que você pode usar uma palavra. Nos famosos debates escolares, em que alguém enunciava uma posição, a pessoa nomeada para ser o seu adversário tinha de primeiro repetir o que o outro tinha dito, depois subdividir os argumentos nos seus vários aspectos, nas suas várias acepções possíveis, e por fim dizer em qual ponto ele ia impugnar aquilo -- se ia impugnar a substância do argumento, a demonstração, o uso de determinado conceito etc. Tudo isso era duma finura extraordinária. Se um pouco disso tivesse se transposto para a fundação das ciências modernas, seria uma maravilha, mas parece que o pessoal trocou uma coisa pela outra.
"A Idade Média não definia um revólver em termos que pudessem designar igualmente uma explosão, nem as explosões, em termos que definiriam os gatilhos.
Citando imprecisamente Confúcio, pode-se dizer: não importa se o escritor deseja o bem da raça ou age meramente para a sua vaidade pessoal. A coisa é mecânica na ação. Na proporção em que sua obra é exata, isto é, verdadeira para a consciência humana e para a natureza do homem, tal como é exata na formulação do desejo, nessa mesma medida ela é durável e é útil; quero dizer que ela mantém a precisão e a claridade do pensamento, não meramente para o benefício de uns poucos diletantes ou amantes da literatura, mas mantém a saúde do pensamento fora dos círculos literários e na existência não literária, na vida geral do indivíduo e da comunidade.
É claro que hoje, nós vivemos numa atmosfera de confusão verbal, mental e perceptiva quase desesperadora. É quase impossível tentar introduzir um pouco de clareza em qualquer debate, porque não só as pessoas perderam a capacidade de fazê-lo, mas perderam a vontade de fazê-lo. Esses ativistas imbuídos de desconstrucionismo frequentemente sabem que estão mentindo, mas querem exatamente impor a mentira, justamente porque é mentira: "Eu sei que é mentira, mas eu quero que seja assim, e eu quero que você aceite isso". Perdeu-se completamente a vergonha. Não é possível introduzir clareza nesse debate porque as pessoas não querem a clareza; querem realmente se enganar umas às outras e a si mesmas. Querem o império do voluntarismo psicótico: "Eu quero que dois mais dois dêem cinco -- e vão dar!".
Esse voluntarismo é frequentemente baseado num desejo de poder, mas, hoje em dia, não é nem nisso. Hoje, você vê políticas baseadas em fantasias sexuais. Quer algo mais subjetivo, mais arbitrário, que fantasias sexuais? Você gosta disso, outra pessoa gosta daquilo; amanhã você pode mudar, completamente. Às vezes, cria-se toda uma política, criam-se argumentos jurídicos com base nisso. É claro que a conversa é totalmente psicótica.
Nossa esperança é a seguinte: nem toda a sociedade foi infectada por essa coisa; ainda há pessoas que procuram pensar, que procuram conhecer, mais ou menos, que querem, mais ou menos, saber o que está acontecendo. E tudo no mundo depende de que sejam essas pessoas, e não os malucos, que tomem as rédeas da sociedade. Eu não sei o que vai acontecer, mas temos de fazer a nossa parte no serviço.
Transcrição: Fabricio Andrade
Revisão: Fernando José da Silva