Skip to content

Latest commit

 

History

History
173 lines (87 loc) · 112 KB

COF049.md

File metadata and controls

173 lines (87 loc) · 112 KB

Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 49

13 de março de 2010

Boa tarde a todos, sejam bem-vindos. Hoje o nosso curso está completando um ano de existência e eu recebi uma mensagem do Silvio Grimaldo que queria ler para vocês.

"No dia 14/03/2009, demos início ao curso online de filosofia, uma idéia genial e ousada que se tornou um sucesso. Fazer parte deste empreendimento é algo que muito me honra e não só isso, é algo que me faz redefinir todo o sentido e rumo da minha vida. Não há a menor dúvida de que este curso é o fenômeno intelectual mais importante deste país e de que o futuro da cultura brasileira está selado por ele, e também não há dúvida de que ajudar neste projeto é o que de mais importante eu já fiz em minha vida. Acho que nunca lhe agradeci por isto, mas sei que você conhece bem a importância de tudo isso para mim, até melhor do que eu mesmo, e adivinha a minha gratidão. De qualquer forma, muito obrigado."

Então eu é que agradeço ao Silvio, a colaboração excelente que eu tenho recebido, não só dele, mas também agradeço à Isabela, ao Alessandro, ao Luís Filidis, a todos os que têm me ajudado neste projeto; à Roxane, à Leilah, todos os que de uma maneira ou outra colaboraram, se eu me esqueci de alguém me desculpe, eu mesmo, aliás.

Vamos retomar aquele tema da aula anterior, que é a questão daquela primeira apreensão que você tem de um objeto. É importante notar que esta primeira apreensão em si nunca erra. Você vai direto ao ponto: aquilo que ele está vendo é aquilo que ele está vendo. E mesmo que você não saiba o nome do objeto que está vendo, tem um signo mental que corresponde exatamente à presença dele, à forma de presença dele. Aquilo que você apreende neste momento é uma coisa de uma riqueza tão grande, que praticamente tudo o mais --- todos os demais conteúdos do seu pensamento --- são apenas comentários entorno. É como um rendilhado que você fizesse entorno. Ao ato da percepção do objeto, corresponde uma espécie de nomeação imediata, que nós podemos enunciar, chamado verbum mentis. O verbum mentis, a palavra mental; palavra que não foi proferida ainda, mas que já está virtualmente pensada, é um nome que cabe àquela coisa --- atenção --- chamar de nome não é propriamente exato, porque mesmo que o sujeito não saiba o nome, isto acontece também. E esta representação, este verbum mentis, diz o que a coisa é; é o nome de uma substância e de uma presença também. Para explicar como isto funciona, usarei uma das perguntas que recebi, muito oportuna justamente para este começo de explicação, pergunta do Carlos Felice:

"Queria fazer uso de um exemplo comum e corriqueiro para ilustrar a pergunta: vejo uma bela mulher acenando em minha direção e penso que é comigo, mas o fato é que o aceno é para outra pessoa, que está às minhas costas, não para mim. Trata-se de um engano de percepção, ou de raciocínio? Pergunto, porque neste caso, as conseqüências não passam de um pequeno constrangimento, mas há situações em que meu juízo possa ter implicações mais sérias."

Não importando o tamanho das implicações, o erro é obviamente de raciocínio. Se você tivesse tido uma percepção errada, você tiraria outras conclusões. Você errou naquilo que não percebeu. Tinha uma pessoa às suas costas, você não percebeu absolutamente nada, e é ao relacionar o dado presente com um dado hipotético que você errou. Ou seja, você errou a suposição e não a percepção. O erro da suposição pressupõe a percepção exata. Não há no ser no humano nenhuma função mais perfeita, mais exata do que a percepção. A percepção do objeto mais simples é uma coisa que tem tamanha densidade, tamanha riqueza de significado para nós que se tentássemos explicar, nós não terminaríamos nunca. O primeiro componente dessa riqueza é a união indissolúvel entre uma idéia universal e uma presença singular. Quando o sujeito vê o gato, quando o identifica, mesmo que ele não saiba o nome da coisa vista, ele sabe que aquilo corresponde a uma espécie de seres, e instantaneamente sabe que tudo aquilo que define esta espécie está presente integralmente naquele ente singular, porque se faltasse um só detalhe para ele ser um gato, ele não seria um gato. E ao mesmo tempo, o sujeito sabe que esta mesma presença com esta mesma densidade, este mesmo sendo de totalidade se manifestará em outros seres da mesma espécie. Quando uma pessoa vê uma floresta cheia de árvores, ela sabe que cada uma delas personifica integralmente a espécie árvore. Nada lhe falta para ser árvore. E ao mesmo tempo o sujeito sabe que este mesmo ato de presença poderia ser realizado de outra maneira, tal como está sendo de fato realizado na sua frente pelas outras árvores. E esta tensão entre a percepção do singular e a consciência do universal é o que caracteriza toda e qualquer percepção humana.

É um absurdo imaginar que primeiro tem a percepção exclusivamente física do singular e depois você cria idéias originais entorno. Isto é absolutamente utópico. Colecionando meras percepções singulares, ainda que fossem parecidas umas com as outras, você jamais ia conseguir extrair uma idéia universal. Perceber o universal no singular é a característica do ser humano, e claro quando você descreve a estrutura lógica da formação dos conceitos universais, pode, até por um recurso pedagógico, imaginar que percebe vários signos singulares, depois por semelhanças e diferenças você vai construindo os esquemas gerais. Na verdade, o sujeito não constrói esquemas gerais, ele os apreende na primeira, porque se ao ver um gato a pessoa viu tudo o que compõe sua essência, isto é talvez a coisa mais importante em teoria do conhecimento, tomar consciência disso. Tome um único exemplar da espécie gato; falta nele alguma coisa de tudo aquilo que define a espécie? Não, ele não realiza todos os potenciais de variação da espécie. Se ele realizasse então a visão dele seria impossível. Primeiro, porque ele teria que realizar tudo isso simultaneamente. Você pode ver isso num único gato? O gato pode ter vários tamanhos desde que ele nasce até que ele morre; tamanhos diferentes e vários gatos diferentes também podem ter tamanhos diferentes. Por não realizar, simultaneamente, todas estas possibilidades ele deixa de ser gato? Não, porque não existe o gato simultâneo. O gato que é pequenininho, que é um embrião de gato e que já é um cadáver de gato. Você está exigindo uma impossibilidade.

O mero fato, de um ente não manifestar de imediato todos os potencias de transformação e de variação dentro da espécie, não significa de maneira alguma que ele não manifeste de maneira presente, imediata, instantânea, toda a essência daquela espécie. Mais ainda, além da essência da espécie, ele manifesta a integralidade da sua forma individual, porque além das diferenças entre espécies, existem diferenças individuais entre os membros da mesma espécie. Por exemplo, repara que dois gatos não ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo, então se um gato está colocado aqui e outro gato está colocado a dois metros de distância, a distinção entre um gato e o outro gato também lhe está mostrada de maneira total e perfeita. Não há possibilidade de confusão, os gatos não se superpõem. As individualidades são distintas. As árvores também não se superpõem, [00:10] as pedras também não se superpõem, os seres humanos não se superpõem, os planetas não se superpõem. E em cada um deles está dada, de modo imediato para o seu reconhecimento, a forma integral da espécie a que pertence. O fato de às vezes você poder se enganar, inclusive, acontece raramente. Conhece alguém que já tenha confundido um gato com uma árvore? Uma árvore com uma pedra? Uma pedra com um ser humano? Uma montanha com um pedregulho? Uma lagartixa com uma águia? Isto nunca acontece. No simples ver a forma o sujeito já viu o conceito daquele animal, você tem isto já no seu verbum mentis, ainda que não seja capaz de exteriorizar em palavras. Isto é a mesma coisa que dizer o ser humano jamais vê entes singulares de modo puramente singular, nunca. Para isso, seria preciso separar no ser humano a percepção e a fala interior. E isto simplesmente não é possível. Embora nós possamos distinguir entre a percepção e a fala interior, elas não ocorrem separadamente. Elas se superpõem de maneira absolutamente inextrincável. Este é um dos milagres que compõem o ser humano. Veja, quando você tem um ato de percepção, está consciente imediatamente da diferença entre os entes envolvidos, os personagens que compõem a cena e a ação que a cena desenvolve. Por exemplo, o gato estava no sofá e pulou pro chão. Você o viu pulando e não confunde o gato com o pulo do gato. Ninguém confunde nem o maior retardado mental confunde.

Em todas as línguas do mundo existe uma distinção entre substantivo e verbo. É a distinção mais fundamental. Você está vendo coisas e processos, e quando vê o processo, também o vê inteiro. Por exemplo, quando o gato pulou, faltou algo para que isto fosse um pulo? Foi um semi-pulo? Uma ameaça de pulo? Não, na ameaça de pulo, o gato faz que vai pular e não pula. A ameaça de pulo é um terceiro elemento. O tempo todo nós estamos percebendo coisas e processos. Nós percebemos, não é que pensamos. Porém, as coisas e processos têm alguns aspectos que nós não percebemos. Por exemplo, a semelhança entre um processo que está se passando agora na sua frente, e outro que se passou dois anos atrás. Não tem maneira de você superpor os dois agora na sua presença. Um já acabou e o outro está transcorrendo agora. Esta operação não pode ser feita por percepção, e é aí que entra a imaginação, a memória. O sujeito superpõe a cena presente à outra presença que está na sua memória. O sujeito faz uma comparação; coloca junto dois pares: um substantivo e um verbo aqui; um substantivo e um verbo ali. Dito de outro modo, uma substância e uma ação aqui, uma substância e uma ação ali. Nós estamos fazendo isto o tempo todo e aí nós podemos errar evidentemente. É aí que se introduz a quase totalidade dos erros. É na parte puramente mental da coisa que se introduz a possibilidade de erro, praticamente, não há erros de percepção. Quando a escola pirrônica usava aquele argumento de que se eu ponho um toco de madeira na água ele parece quebrado, o que isso quer dizer? Que um toco de pau na água é diferente de um toco de pau no ar? Quem não sabe, ora? Se eu percebesse o toco de pau dentro da água como se ele estivesse fora da água, aí sim seria espantoso. Ora, aqui nós vemos um muro e a parte mais distante do muro parece menor do que a que está bem aqui do meu lado, está vendo como são erros de percepção? Se eu percebesse tudo do mesmo tamanho e ainda todas as partes do muro iguais; e o sujeito ainda quer que o outro saiba que uma está mais longe que a outra? Isto é absolutamente impossível.

Todas as famosas críticas à percepção humana, todas elas são uma coleção de asneiras absolutamente formidáveis, puros jogos de palavras onde o sujeito toma uma situação de fato, imagina que a situação é diferente e ele confronta a situação presente com outra que ele imaginou e cobra da situação presente real que ela se ajuste ao imaginário. O sujeito imagina que deveria perceber todo o muro do mesmo tamanho. Quem disse que o deveríamos percebê-lo do mesmo tamanho? Quem disse que deveríamos perceber objetos que estão colocados em distâncias diferentes com os mesmos tamanhos? De onde isto foi inventado? Já aconteceu alguma vez de haver um elefante bem ao nosso lado e outro a 2 km, e nós os virmos do mesmo tamanho? Já aconteceu isto? Não, não aconteceu. Mas sabemos que eles são do mesmo tamanho. Sabemos que eles são do mesmo tamanho, mas não conseguimos percebê-los do mesmo tamanho à distância. Porque se nós os percebêssemos do mesmo tamanho, não saberíamos que estão à distância. Eu conheci dois irmãos que passaram 10 anos tomando LSD, cheirando coca, e um deles me disse que esse negócio de fato abre as portas da percepção, dá uma sabedoria fantástica. Como? Por exemplo, o irmão do sujeito está lá a 50m de distância, um cochicho no ouvido do outro "Fulano!", e o outro ouve a 50 metros de distância. Mas como é que o sujeito sabe que ele, estando a 50m de distância, ouve como se estivesse a 50 cm; ou que ele, estando a 50cm do outro, o enxerga como se estivesse a 50m? E o sujeito me disse que nunca tinha pensado nisso.

As famosas objeções pirrônicas da percepção são todas mais ou menos do mesmo tipo, comparações absolutamente forçadas, de onde tiram uma conclusão que não tem nem pés nem cabeça. Existe até um livro de um autor brasileiro, chamado Veneno Pirrônico, e é interessante porque ele condensa todas as objeções da escola pirrônica. Conhecê-las e refutá-las é um mero exercício lógico. Desde que você não os use como eu os estou usando. Eu estou confrontando esquemas verbais, meros esquemas lógicos que os pirrônicos jogam contra a percepção, estou usando exatamente como contraste invertido. Eu contrasto o que eu estou percebendo com o que eles estão imaginando e vejo que em nenhum caso eles estão falando de coisas realmente percebidas, mas apenas de suposições. Renato Lessa é o nome do autor do livro, como um manual de escola pirrônica, não é um mau livro. Mas também só serve para você tentar ver as coisas de uma maneira diferente, ou seja, forçar a sua imaginação e cobrar a realidade, negar a realidade em nome de uma coisa imaginada ou meramente pensada. Fazer isso 10, 20, 30, 1000 vezes e perceber que você sempre fracassa, que a percepção sempre tem a última palavra. Tem muita gente que no processo de fazer esta comparação --- note bem se você teve uma percepção aqui e você confronta com outra puramente imaginária ali, aí acontece uma pequena dificuldade. No momento em que você começa a pensar a respeito, a primeira percepção já começa a se transformar em dado de memória também. E aí você compara um dado de memória com um dado da imaginação. E imaginação e memória são exatamente a mesma função. Você está imaginando coisas, está lidando num plano puramente mental e subjetivo, então parece que as duas coisas valem a mesma. Mas você está comparando duas imagens que você criou. [00:20] Ao comparar uma imagem com a outra imagem, claro que você pode se enganar, mas você tem de se lembrar do seguinte: uma destas imagens foi realmente vista, a outra não., tanto que você pode testar logo a realidade de novo. Exemplo da imagem do pau que na água parece quebrado, realmente, você põe na água e parece que ele quebrou. Você sabe que se você passar a mão por ele, você vai ver que ele está inteiramente liso, que ele não está quebrado, e que a impressão de quebra é apenas a refração da água. Em nenhuma vez, colocando aquele pedaço de pau dentro da água você o verá inteiramente liso e reto. Nunca aconteceu isto, o filósofo pirrônico é que faz a suposição de que ele deveria ser reto. Então, ele imagina reto. Então tem aqui uma imagem e tem ali outra imagem. O pau que parece quebrado, embora não esteja, como você verifica passando a mão por ali e vendo que ele está inteiramente reto. Então, ele agora está comparando duas imagens que estão na sua memória.

Para nós podermos pensar sobre qualquer elemento nós precisamos pensar numa imagem, ou num conceito e continuamos pensando sobre a imagem ou o conceito e já não sobre a coisa. Então você precisa ver de onde você tirou esta, tentar se lembrar de onde você tirou esta imagem ou conceito. Se foi você que inventou, ou se foi percebido, exatamente como neste exemplo: ele vê a moça acenando e supõe que foi para ele. Ele supõe porque ele não tinha visto a pessoa atrás. Esta suposição não é objeto de percepção o que você percebeu foi só a moça acenando, não percebeu mais nada. A idéia: isto é comigo? É completamente separada, tanto que você podia ver a mesma moça acenando, e não pensar absolutamente nada. Ou podia acontecer até ao contrário, a pessoa está acenando para você. E você pensa que uma mulher bonita dessa acenando, jamais deve ser para mim, deve ser para um sujeito bonitão atrás. No entanto ela está acenando para você mesmo. Se quer saber, isto já me aconteceu. Então isto é um pensamento, idéia, interpretação que você está fazendo. Você deve se lembrar, que logo no começo do curso, eu dei para vocês um exercício tirado do livro do Narciso Irala, que é o da distinção entre o dado (aquilo que é dado) na percepção e aquilo que é construído mentalmente. Quanto mais você afinar esta percepção desta diferença, mais facilmente milhares de problemas pseudo-filosóficos ficarão resolvidos. Hoje em dia, como nós estamos numa sociedade onde todo o mundo gosta de discutir, todo o mundo gosta de opiniões; uma das maneiras de parecer inteligente é você criar problemas. Criar enigmas cuja solução você pode ter escondido, ou cuja resposta você não sabe, mas joga aquilo na cabeça dos outros de modo a paralisar o raciocínio dos coitados. Você cria antinomias, paradoxos e oposições, e empurra aquilo para as pessoas dizendo "resolva isto". O sujeito não consegue resolver, daí você fica rindo da cara dele ou mesmo o humilha. Nós todos temos esta tendência, mas temos que lembrar daquele famoso ditado russo: "Que um só idiota é capaz de fazer mais perguntas do que 60 sábios conseguiriam responder." Porque estas perguntas são sempre montadas ou inteiramente com elementos mentais e não elementos da experiência direta, ou mediante um elemento da experiência direta, forçadamente comparado com um elemento puramente mental. Estas coisas nunca vêm da pura experiência. Em cima da experiência pode haver uma atividade mental muito variada e que tenha pouco a ver com ela. Só que não esqueça o seguinte: o mundo da experiência é um mundo de dimensões infinitas cheio de coisas, cheio de entes, cheio de situações, cheio de processos, que você jamais conseguiria inventar. Então uma vez um sujeito disse que uma obra literária vale muito mais do que um gato. Então faça um gato. Com algum talento literário você escreve um poema, mas nem com todo o talento literário do mundo você vai conseguir criar um gato. O gato tem uma espécie de prioridade ontológica. As coisas reais têm uma prioridade ontológica em face de tudo àquilo que nós pensamos. Em face do tamanho, da complexidade do mundo, é natural que nós nos fechemos no nosso pensamento e tentemos nos mover exclusivamente dentro dele, porque aquilo é um microcosmos, um pequeno mundinho no qual nós imaginamos ter algum poder, no qual nós nos sentimos mais seguros.

Devo ter mencionado aqui para vocês a descoberta do grande historiador da arte Wilhelm Worringer, de que a arte das pequenas comunidades primitivas soltas na floresta era abstrata. E que só se encontrava uma arte mais naturalística - de cópia da natureza em estados mais complexos da sociedade. Por exemplo, já num meio urbano em grandes comunidades, onde as pessoas já se sentiam separadas da natureza e de certo modo protegidas dela. Então esta proteção criava a condição para que as pessoas pudessem começar a prestar atenção na natureza , quando antes tentavam fugir dela. E se refugiavam em formas esquemáticas, geométricas, na arte abstrata. Eu me lembro que o grande sertanista brasileiro, Orlando Villas Boas uma vez me disse: o pessoal da cidade é idiota. Eles pensam que índio gosta de mato. Índio tem horror de mato. Eles ficam aí dentro da taba e só quem vai pro mato são os mais velhos, muito experientes. Não é qualquer índio que sai da taba, não. Moleque não vai pro mato, mulher também não nem os jovens. Vão só para aprender. É sinal de que o índio pensa exatamente como nós. Se o sujeito pode estar num lugar tranqüilo e seguro, onde ele pode comer, beber, dormir e sem risco de vida. Por que ele vai correr risco de vida todo dia? Aqueles que correm risco de vida são apenas as pessoas de maior coragem que fazem isso inclusive para estar preparado para proteger os outros. Não é por frescura, nem porque deu na cabeça ir lá pro meio do mato morrer lá.

Este impulso natural humano de se proteger da complexidade de um mundo demasiado grande refugiando-se dentro do pensamento é tendência humana bastante conhecida e natural. Só que ela serve para sua proteção psíquica e não para o conhecimento da realidade. Nem tudo aquilo que é bom para o seu equilíbrio psíquico é bom para o conhecimento. Nem tudo aquilo que é bom para o conhecimento é bom para seu equilíbrio psíquico. Eu confesso para vocês que em busca de saber como as coisas funcionavam, eu muitas vezes tinha que arriscar minha cabeça. Descobri coisas que me fizeram muito mal. Depois eu levava 3, 4 meses para recuperar o meu equilíbrio. Afinal de contas Aristóteles dizia que o conhecimento começa com o espanto. Se você tem uma sucessão de espantos, mais do que você estava esperando, certamente está sabendo mais, mas você não está se sentindo muito bem. A busca do conhecimento não foi feita para os fracotes que só querem auto-proteção. Um dia você tem de escolher entre estar aqui na tribo e ser uma criancinha, uma dona-de-casa que só vai lá ficar cuidando das crianças, dos cabritos; ou ser um homem adulto, guerreiro que assume suas responsabilidades e tem de conhecer esta porcaria em volta até para poder proteger sua família e as famílias dos seus amigos. [00:30] Como faz o índio adulto. Eu espero que aqui só tenha índio adulto. Lugar de criancinha, não é aqui. Pode ter certeza que em grande parte dos erros filosóficos e científicos surgem desta natural busca do ser humano da auto-proteção psicológica.

Esta auto proteção toma forma de um equilíbrio forçado onde para manter um estado de estabilidade, de homeostase como dizem os médicos. Homeostase e todas as tensões se equivalem a tensão que vai pro lado direito é igual a do esquerdo, que é igual a de baixo, então você fica paradinho. Para conservar seu estado de homeostase o sujeito cria então um pequeno mundo, um microcosmos. No qual ele acredita. Levado ao extremo, esta busca de equilíbrio forçado que traduz no fundo, um terror, pânico da realidade, configura uma doença mental. O que é um sujeito maluco? É o cara que entrou no seu estado de homeostase e ele criou um sistema de equilíbrio interno que não é mais abalado pelas informações do mundo de fora. Ele se protegeu tão bem que agora o mundo mental dele só é povoado por elementos que ele mesmo criou. De certo modo, estes estados traduzem uma espécie de delírio de onipotência. O sujeito age como se ele tivesse criado um mundo e ele está dentro do mundo que ele mesmo criou e ali ele está inteiramente protegido, porque nada vem de fora. Em outros casos, como por exemplo, nos estados catatônicos, aquilo que vem de fora é tão esmagador é tão insuportável que a mente do sujeito simplesmente pára. Fica olhando pro vazio. Eu já vi pessoas que entraram em estado catatônico, de quem você precisava fechar os olhos senão secaria. Parou. Não há atividade psíquica ali reconhecida. O fato é que todas essas reações de auto-proteção são inteiramente desnecessárias porque o ser humano tem uma plasticidade enorme e uma capacidade de aprendizado, de incorporação de elementos externos, praticamente ilimitado. Se você vê tudo o que uma criança aprende desde que ela nasce até que ela domina a fala suficientemente para poder se comunicar com pai, mãe; é uma monstruosidade. O alargamento do mundo interior de uma criança em 2 ou 3 anos é uma coisa tão grande que você jamais conseguirá repetir em dose igual. Quando a criança nasce, o que ela sabe está limitado ao mundo da percepção imediata, percepção do seu próprio corpo. Um bebê recém nascido não percebe o mundo exterior ainda, percebe apenas alterações do seu próprio corpo. Aos poucos é que vai aparecendo a modalidade já propriamente humana de percepção. Claro que esta modalidade já está dada desde que ele nasceu, mas nem tudo pode se manifestar ao mesmo tempo, nem todas as potencialidades podem aparecer ao mesmo tempo, depende muito de certas condições externas. Deste pequeno núcleo de sensações intracorporais o sujeito cresce para abranger toda uma rede de relações com o universo externo, com o universo humano, com a sociedade. Você vai de um pontinho até um círculo imenso e isso acontece muito rapidamente. Imagina se nós pudéssemos crescer intelectualmente partindo do estado em que nós estamos, crescer proporcionalmente aquilo que nós crescemos desde o nosso nascimento até os 3 anos de idade. Nós não viraríamos gênios, viraríamos anjos. Isto não vai acontecer, não tem perigo, a gente vai crescer um pouquinho. Alguns elementos novos vão entrar. E vocês podem ter certeza que --- eu acho que não tem ninguém aqui com menos de 18 anos --- muitos destes elementos deixarão você num estado de dúvida, de perplexidade e, portanto, de algum desequilíbrio. Se você quiser fugir do estado de desequilíbrio, o primeiro recurso é inventar alguma explicação improvisada que o faça sentir que o problema não existe. Eu sugiro que não façam isto, porque isto é exatamente o contrário do aprendizado.

Desde o início, expliquei a vocês que para ir para adiante no estado de filosofia, o sujeito precisa ter tolerância para com o estado de dúvida. Esta tolerância é alimentada numa espécie de fé que nós temos. Fé, que é baseada na experiência, de que a impressão de caos que você está tendo é passageira. Lembrar que o caos está em você, na sua mente e não na ordem da realidade. Quando você for examinar, por exemplo, quanto tempo duram as situações de caos histórico-social? Por exemplo, nós podemos estudar um livro de história e vermos ali uma sucessão de golpes revoluções e guerras. Por quê? Porque o historiador não conta o que estava acontecendo nas épocas em que não acontecia nada. A segunda guerra mundial, por exemplo, durou 5 anos, matou no total 40 milhões de pessoas. Mas e as outras pessoas? O que estavam fazendo? Será que a vida cotidiana parou? As pessoas não tomavam mais banho, não comiam, não conversavam, não namoravam? Não iam à praia? Será que isto não acontecia? É claro que não. Mesmo dentro de uma situação de caos histórico-social extremo, a ordem profusa continua lá. Tanto que o número de pessoas que é afetado diretamente pela situação de caos, as vítimas diretas são em número pequeno se você tomar a totalidade da população envolvida. Sendo ou não uma situação de guerra. Por exemplo, teve um terremoto no Chile. Quantas coisas o terremoto quebrou? O que quer que ele tenha quebrado é insignificante em relação ao que ele deixou intacto. Quantos copos o terremoto quebrou? E quantos copos existem no Chile? A experiência humana do mundo real é experiência de uma profunda estabilidade que se prolonga no tempo e de uma sucessão imensa de processos e transformações absolutamente pacíficos, como o crescimento de uma árvore, o germinar de uma planta, o crescimento do feto na barriga da mãe, a lenta acumulação de bens pelo trabalho, o seu próprio crescimento, o desenvolvimento humano. Todos estes são processos regulares, mais exemplos, os movimentos dos planetas no céu, os processos de erosão que estão alisando as montanhas, mudando o perfil das pedras. São processos lentíssimos. Este é o fundo da nossa experiência. O ato mais elementar de percepção, ao qual me referi no começo, de captar um ente singular e apreender nele a forma inteira da espécie que se manifesta integralmente nele - embora não revelando toda suas potencialidades e variação -- revela uma estabilidade real. Mesmo que você seja um evolucionista radical, terá de concordar que se as espécies mudam, elas levam um tempo desgraçado para fazer isso. [00:40] Tanto que para dar alguma credibilidade ao evolucionismo nós temos que raciocinar em termos de milhões de anos. Coisa que nós jamais poderemos conferir. Nós não sabemos de fato o tempo de existência da Terra, do sistema solar, muito menos o tempo da existência do universo inteiro. Os cosmologistas fazem conjecturas, e admitem que as são. E fazer conjecturas de bilhões, trilhões, quatrilhões, é fácil, porque é no papel mesmo. Em suma, as espécies que nós reconhecemos têm uma estabilidade suficiente para que a reconheçamos. E se o sujeito não as reconhecesse, poderia acaso ser um evolucionista? Não dá para ser evolucionista sem reconhecer espécies. Se não há espécies, não há evolução das espécies. Você pode tentar me provar que uma lagartixa virou um orangotango, mas é porque você sabe o que é uma lagartixa e o que é um orangotango. Portanto, o tempo de duração das espécies não muda o que eu estou falando, e o tempo de duração do universo, também não afeta em nada o que estou falando. Nós temos o senso do caos, da desordem do susto, do espanto; porque nós vivemos num mundo que é feito de processos regulares e lentos e entre-mesclados de tal maneira que um não atrapalha o outro. Não é incrível? Porque veja se olhar pra cima os planetas estão girando em torno do sol, fazendo isso há um tempão e ao mesmo tempo aqui as árvores estão crescendo, os ventos sopram, os rios correm; é porque nós vivemos num fundo de estabilidade móvel. Se fosse uma coisa totalmente parada nós não poderíamos chamar de estabilidade, porque se nada acontece você nada percebe. Se não há alteração, não há percepção. Então nós vivemos num mundo que é feito de alterações. E estas alterações são lentas, por assim dizer, orgânicas.

Entre os primeiros filósofos gregos, quando aparece Heráclito dizendo que tudo muda e Parmênides dizendo que o ser é eterno e imutável; nós temos que admitir que os dois têm razão. Esta contraposição de estilos dos dois pensadores reflete uma das tensões permanentes da nossa mente e ela está obviamente capacitada a suportar esta tensão. Por exemplo, perceber que as coisas estão em constante mutação. Mas também que esta mutação tem um fundo de permanência e estabilidade, porque senão você não poderia percebê-la. Se tudo fosse absolutamente estático, você não perceberia nada, porque nada aconteceria. Se tudo estivesse em mutação, de maneira acelerada, e sem nenhum fundo de permanência você também não perceberia nada. Esta experiência de uma tensão permanente entre o estável e o instável, faz parte do mundo onde nós estamos. Não adianta tentar conceber as coisas de outra maneira, porque até para conceber de outra maneira você precisa se apoiar nesta.

Num processo de fazer perguntas e encontrar respostas, em 98% do tempo nós não estamos levando em conta este fundo que se chama Universo. Nós estamos jogando apenas com conceitos e idéias. Estamos lidando com entidades mentais que nós criamos por abstração; e não se esqueça da distinção que eu coloquei entre os dois tipos de abstração. Uma coisa é abstrair de um ente a forma da sua espécie, daí você está seguro de que você está lidando com coisas reais. Qualquer ente, de qualquer espécie que seja manifesta a totalidade da forma da sua espécie pelo simples fato de ele ser o que é. Nada falta a uma pedra, para que ela seja uma pedra, nada falta a um gato para que ele seja um gato, nada falta a uma lagartixa para que seja uma lagartixa. E, se nós víssemos um ente que fosse o mais esquisito possível, um ente incatalogável, ao vê-lo já teríamos integralmente a forma da espécie dele. Não precisamos ver dois exemplares. Mesmo que a espécie tenha um único exemplar, diz-se que o bicho é sui generis, sabemos que ele é precisamente isso.

A segunda espécie de abstração é aquela que capta aspectos isolados que não chegam a compor um ente. Como de um exemplo que citei, mas não é meu, e sim do Jean Daujat, da superfície branca. Uma superfície branca pode existir na parede de uma casa, numa folha de papel, numa tela, num monte de lugares. Mas, superfície branca, em si, não existe. Você não está abstraindo de um ente real a sua forma ou forma de sua espécie, e sim abstraindo, de vários entes reais, um aspecto que é comum a todos e construindo um conceito. Este conceito é inteiramente construído. Você faz abstração do substrato real onde aparecia esta qualidade superfície branca e joga somente com este dado. Todo empreendimento científico que existe no mundo é baseado neste segundo tipo de abstração. Raramente alguma ciência estuda um ente real, porque o ente real não tem apenas os elementos que definem a sua espécie. Mas uma série, todo um substrato material que permite a sua existência, ao mesmo tempo ele está o tempo todo sujeito a uma infinidade de acidentes em número incontável. Por exemplo, você imagina o número total das ações que um gato pode fazer ou padecer. Começa a fazer a lista, você não vai acabar tão cedo. O sujeito sabe que alguns destes acidentes sempre estão acontecendo. Por exemplo, cada gato que existe no planeta está em alguma posição. Pode-se imaginar um gato que esteja em posição nenhuma? Não, não pode. Porque para não estar em posição nenhuma, ele precisaria ser incorpóreo. Aquilo que é incorpóreo não está em parte alguma. Como os gatos são corpóreos não tem jeito. Faça a lista das posições, não vai acabar. Se a ciência fosse lidar com objetos concretos reais, ela teria que dar conta da multiplicidade de acidentes e isto não é possível. Então, não só se isola o conceito de espécie do ente real que a manifesta e passa-se a lidar com o conceito de espécie. Mas do próprio conceito de espécie você separa uma determinada qualidade que possa ser [00:50] mais facilmente observada e medida, independentemente dos entes substantivos reais que apóiam a manifestação desta qualidade. Mas se toda ciência só lida com objetos abstratos no segundo sentido, por que os cientistas não dizem que todo o universo que eles estudam é imaginário? Dificilmente você vai encontrar algum cientista praticante - sujeito que trabalhe com ciência - que acredite que o objeto de estudo dele é irreal, ou meramente formal ou puramente inventado. Ele sabe que ele só trabalha com abstrações e com abstrações de qualidades, fenômenos. Não de entes reais. E não obstante, ele acredita que o mundo que ele está estudando é o mundo real. Este negócio de subjetivismo, idealismo, é bom para filósofos, para homens de ciência, não. Nós temos um problema, estes camaradas só lidam com coisas que não existem e eles vivem dizendo que elas existem. Toda e qualquer atividade científica pressupõe, como base dela, toda uma ontologia realista que a própria ciência não pode fundamentar. E sobretudo que seu objeto, o ser real, não está ao alcance dela. O conjunto das ciências se baseia numa série de pressupostos de natureza ontológica, isto é, referentes à verdadeira natureza do ser, à consistência do ser, e ao mesmo tempo, a ciência não pode fundamentar esta ontologia. Ela pode dar amostras. Mas está baseada nela o tempo todo. E se fosse possível articular todos os resultados de todas as ciências, e construir com ele uma visão científica do universo, você pode dizer que este universo não se parece em nada com o universo da nossa experiência direta real. Porque qualquer fenômeno, objeto, ente pode ser estudado, evocado sob um número ilimitado de perspectivas. Se você separar um determinado fenômeno, e deste fenômeno conservar só os seus aspectos matematizáveis, ainda assim haverá um número indefinido de esquemas matematizáveis que se aplicam a ele. E você não pode garantir de maneira alguma que os esquemas que você não usou não são melhores que aquele que você usou. Por definição, uma concepção científica do universo é impossível. Só o que é possível é uma infinidade de suposições coexistentes todas elas mais ou menos fundamentadas numa ontologia que não foi construída por meios científicos. Mas por outros meios, tais como a análise da percepção direta, a análise do que se chama experiência vulgar, mesmo porque o cientista continua vivendo de experiência vulgar em todos os momentos em que ele não está fazendo alguma experiência de laboratório. O que é no fim das contas uma experiência destas? Quando você observa um fenômeno por meio de instrumentos que lhe permitem uma mensuração exata daquilo. A ligação entre o objeto real e as conclusões que um instrumento lhe fornece só é dada por um encadeamento de teorias. O mesmo que dizer que nenhum experimento científico jamais pôde examinar um objeto real, nunca. Ele faz uma abstração a partir de um aspecto do fenômeno, conecta este conceito com um determinado critério de medição através de todo o encadeamento teórico, e no fim vê que uma coisa mais ou menos bate com a outra. O conhecimento científico na sua totalidade é um grão de areia comparado com o universo real, o qual está aberto à experiência de qualquer ser humano, por mais burro que seja. O universo de percepção da pessoa mais burra que você conheça - do Dr. Emir Sader, por exemplo - é mais vasto que toda ciência universal. E a ciência tapa certos buraquinhos que existem não no universo da percepção, mas buraquinhos que existem entre o universo da percepção e o seu pensamento. E a função toda da ciência é esta, tapar estes buraquinhos.

Voltemos ao exemplo da moça que acenou, e a explicação que o Carlos Felice achou: opa! É comigo. Opa, agora já não é mais comigo. Como é que ele resolveu este problema? Por um procedimento científico, evidentemente, por observação e conclusão. De tudo o que compõe a cena, ele separou só uma coisinha que é o aceno, o sinal que a moça fez. É só isso que ele está estudando e ele fez uma só suposição, uma hipótese como explicação deste sinal. Testou a explicação, ela não funcionou, ele arrumou outra explicação. Ele fez ciência, ou seja, ele conectou um pedaço da percepção real com um pedaço do seu raciocínio lógico. E é isso o que a ciência faz o tempo todo e é por isso que nós precisamos dela, porque nós não percebemos tudo. Nós temos de completar - ainda que o universo de percepção seja imenso - nós não percebemos tudo, uma parte nós temos que inventar. E quando começamos a inventar já não temos mais a mesma certeza que temos no campo da percepção. A ciência é um mecanismo de correção do seu pensamento, à luz de algum fenômeno do mundo exterior com o pequeno detalhe que já neste recorte inicial o sujeito pode cometer um erro. Então não espanta que a ciência seja uma atividade tão enormemente insegura tão cheia de hipóteses falhadas e que tem de estar se corrigindo a todo o momento. A possibilidade da ciência se corrigir se baseia inteiramente numa ontologia de base, fundamental que não foi obtida por meios científicos e que jamais poderia ser obtida por meios científicos. Esta ontologia tem de ser tirada da experiência real que nós temos. Da nossa presença no mundo e daquelas constantes absolutamente universais sem as quais nada seria o que é. Por exemplo, a diferença que existe entre os entes e as suas ações. Uma coisa que se traduz universalmente na diferença entre nome e verbo. Em línguas ainda faltam alguns verbos. Por exemplo, no russo não tem o verbo ser. O sujeito quer dizer: "Isto é uma casa." Então diz: "Isto casa". O verbo não está dito, mas está pensado. A naturalidade com que todas as línguas do mundo se adaptam [01:00] à expressão da estrutura do real é um dos grandes milagres da existência humana. Ou seja, praticamente não existe no mundo da percepção um indizível, em princípio. Mas tudo aquilo que nós possamos construir como conhecimento aprimorando mais que nós desejemos é sempre baseado nesta capacidade imediata de ver, reconhecer a substância e expressá-la ou em um verbum mentis ou já na palavra expressa. O desenvolvimento da linguagem é condição do conhecimento e a linguagem evidentemente não começa produzindo conhecimento científico nem conhecimento filosófico; ela começa criando entre os seres humanos a possibilidade de comunicação sobre coisas que fazem parte da experiência comum. E a maneira principal de articular isto é a maneira narrativa. A narrativa tem tanta importância no mundo, porque tudo o que acontece num tempo. Parece a coisa mais óbvia do mundo. Por exemplo, tem coisas a que são indiferentes ao tempo: as fórmulas da matemática, as equações, são atemporais. Mas estas coisas que são atemporais, nós conhecemos através de mera análise dos nossos conceitos, nossos próprios pensamentos. Nós não precisamos ter a experiência concreta delas; aliás, não existe experiência concreta do ato temporal, só existe experiência no tempo. Ter certo senso de orientação no tempo, depende inevitavelmente da capacidade narrativa. É por isso que em todas as civilizações em que começam a surgir todas as sociedades ditas primitivas, a fórmula fundamental do conhecimento é de ordem narrativa. Quando o sujeito toma, por exemplo, a tribo mais atrasada que tem. Esta tribo tem alguma história a respeito da origem do mundo, da origem da tribo. Esta história pode não corresponder à realidade histórica tal como nós entendemos realidade histórica. Mas é uma estrutura de temporalidade e se eles não a tivessem criado esta estrutura de temporalidade, nós não poderíamos muito tempo depois ter criado a ciência histórica.

A ciência histórica é articulação da capacidade narrativa com alguns critérios de verificação científica que são sempre incompletos. Quando se está contando uma história imaginária, o sujeito mesmo é quem está imaginando e pode dar à esta narrativa a densidade que ele queira. Ele pode contar a coisa até minuto por minuto, se quiser, mas quando lidamos com coisas reais, dependemos de documentos e de testemunhos e estes são, por natureza, incompletos. Os historiadores sabem que os procedimentos narrativos criados pela literatura de ficção são absolutamente indispensáveis na ciência histórica, porque se não todos os fatos e atos narrados ficariam picotados, não se completariam. Aqui um indício de que aconteceu isso, e ali uma prova de que aconteceu isso, mas sabemos que ali no meio aconteceu alguma coisa. O tempo não parou. Fazer ciência histórica é mixaria depois que as civilizações desenvolveram esquemas narrativos tão complexos, tão ricos como os de todas as mitologias que nós conhecemos. E qual é a diferença entre mitologia e as narrativas que nós temos já nos tempos mais modernos? Se tomarmos a história Madame Bovary, ou Crime e Castigo, a diferença é que no caso das mitologias o que está sendo expresso é o senso de temporalidade de uma coletividade inteira, dentro do processo cósmico. Ou seja, existe uma relação entre a comunidade humana que está vivendo num determinado lugar do espaço e os ritmos temporais que a envolvem. E se o sujeito não conseguir contar isto, é claro que os seres humanos continuarão cada um individualmente tendo alguma vivência interior de tempo e do seu próprio encaixe nos ritmos temporais. Mas isto vai ficar mudo, incomunicável. E se isto acontecer, a comunidade então não pode falar sobre suas experiências. Aquilo virará um hospício muito rapidamente.

A ordem narrativa do tempo cósmico é a primeira condição para a orientação do ser humano no mundo. E neste sentido, ela tem verdades fundamentais que nunca poderão ser abandonadas, porque constituem a estrutura de base da nossa presença no mundo. Esta estrutura é a mesma na cabeça do índio mais "primitivo" que você possa imaginar e na cabeça do Max Planck. Até para o sujeito contar sua própria história, ele se lembra de tudo o que aconteceu? Não, ele não se lembra de todos os detalhes, de todas as sensações de percepções no mundo; mas ele tem um senso da continuidade do seu próprio ser no tempo. E se o sujeito preencher as partes faltantes com elementos imaginários. Estes elementos serão falsos somente do ponto de vista factual, mas não do ponto de vista da estrutura da narrativa. Quando alguém não lembra exatamente o que houve. Mas supõe que foi assim, está fazendo uma obra de ficção, costurando os fatos conhecidos. A narrativa não corresponderá ponto por ponto àquilo que efetivamente sucedeu, mas estruturalmente está adequada à ordem do que aconteceu. Esta ordem narrativa do mundo constitui o primeiro fundamento de todo e qualquer conhecimento. O sujeito que pular fora disso por um minuto está realmente num mato sem cachorro; está fora do espaço e do tempo. Este conhecimento é muito mais fundamentado do que qualquer conhecimento científico que ele possa obter, porque é a condição para um conhecimento científico. Não existe um único ser humano que possa criar o seu próprio senso de temporalidade. O nosso senso de temporalidade é dado por duas coisas: a primeira pela temporalidade objetiva na qual vivemos, os ritmos reais desenvolvidos, o próprio ritmo orgânico que não fomos nós que inventamos. Por exemplo, se o sujeito decidir ter sono só uma vez por mês, ele consegue? Ou comer só uma vez por ano? Não consegue. Então estamos colocados dentro do esquema espaço-temporal que nos determina. No qual somos 100% escravos. Nossa margem de manobra nele é muito pouca. Este esquema que é externo, que é dado na própria natureza externa, é a primeira condição da nossa racionalidade. A segunda condição chama-se linguagem, ou seja, o sujeito pode narrar que narrando ele adquire o segundo senso de temporalidade que já é devido na inter-subjetividade entre várias mentes humanas, várias consciências humanas que sabem estar vivenciando o mesmo processo. É uma experiência tão forte e onipresente que [01:10] este é o conhecimento básico que o ser humano precisa ter, a compreensão da seqüência temporal que se transmuta em linguagem, e permite a comparticipação dos seres humanos nesta mesma experiência comum. Tomemos o monte de artes que se desenvolveram em cima disso, pois quando as pessoas dançam, elas dançam no mesmo ritmo. Dançar é estar no mesmo ritmo, mas como é que as pessoas acertam? Se não existe elemento, algum signo que permita que um reconheça o ritmo no qual o outro está? Sem isto não tem civilização, nem filosofia, nem ciência, nem coisa nenhuma, nem ordem social. E cada ser humano estaria solto no mato absolutamente impotente. Quando houve isso? Nunca houve isso, por mais remoto que seja o tempo que concebamos, por mais que nós recuemos na ordem do tempo, não encontraremos gente sem linguagem, sem narrativa, sem o senso da temporalidade. Se perguntarmos quando que isto foi adquirido? Nós jamais saberemos, porque não conseguimos conceber um tempo onde não existisse isso. O sujeito arruma a explicação que quiser: origem divina? Deuses astronautas? Foi milagre na evolução da espécie. Não é este o ponto que nós estamos discutindo. O fato é que tentar conceber uma ordem humana pré-linguística é conceber um coelho "pré-coelhístico", ou um gato "pré-gatístico". É um absurdo, um quadrado "pré-quadradístico", escapar do problema.

A realidade do ser humano é a de um ser colocado na realidade espaço-temporal que se expressa diretamente na linguagem e tem as mesmas estruturas dela. Por exemplo, a diferença entre nome e verbo. O que nos permite distinguir entre um ser e as ações dele? Se não pudéssemos fazer esta distinção, não poderíamos perceber duas ações no mesmo ente. Por exemplo, o gato está dormindo ou o gato está correndo? Esta distinção de dois gêneros de palavras equivale a uma estrutura óbvia do mundo exterior. Mas não vamos dizer exterior, este termo é enganoso. O mundo chamado exterior nos envolve, nós estamos dentro dele e no mesmo processo, porque se eu não posso distinguir entre a minha substância e as minhas ações, eu não posso fazer duas ações diferentes. Eu não poderia estar hora dormindo, hora acordado, eu teria que fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Tudo o que estou dizendo é para enfatizar a vocês a profunda adequação da linguagem humana à situação real. A linguagem humana não é uma estrutura fora da realidade, deslocada, com a qual nós tentamos espremer a realidade. Ela é uma tradução muito exata, muito perfeita das estruturas fundamentais da realidade. Pode haver inadequações parciais momentâneas, elas nunca estão - para usar o termo de Saussure - no nível da língua, estão no nível da fala. Isto já num uso que determinado sujeito, determinada comunidade faz da linguagem, uso momentâneo.

Com o terreno que conquistamos até agora como base técnica para o desenvolvimento do restante do nosso curso, temos: 1) a simples apreensão é o momento decisivo do conhecimento, com ela temos os conceitos exatos das coisas - no momento em que somos capazes de reconhecer uma colher, ainda que não saibamos o nome, já temos o conceito de espécie em nosso verbum mentis - sem isto não dá para fazer mais nada; 2) do mundo da simples apreensão surge a consciência humana, na ordem do tempo, tal como se expressa na arte narrativa. O domínio da arte narrativa é o começo da racionalidade humana, isto vale tanto para o índio, como para Albert Einstein e Max Planck e até para mim. Quando as especulações humanas se afastam desta consciência primordial da ordem narrativa, o sujeito entra num mundo de delírio filosófico, científico. Sempre existe um critério de correção dos nossos pensamentos escritos. Este critério é voltar a ordem narrativa e contar como as coisas aconteceram, como determinadas idéias foram se formando na minha mente. É isto o que se faz quando o sujeito está em uma psicoterapia, uma psicanálise. Dizia o Dr. Muller que uma análise é reescrever a história do eu. Mas o que é o eu, senão uma história? O eu é experiência temporal sedimentada em certas constantes pelas quais você assume uma responsabilidade, assume uma autoria. O eu é uma condensação, uma cristalização. Na formação desta cristalização, pode haver uma série de erros. Por exemplo, certas impressões momentâneas surgidas a partir de situações excepcionais podem se tornar para o sujeito, uma regra constante de interpretação e ele evidentemente vai narrar porque ele está coordenando a experiência não de acordo com a ordem recebida da totalidade daquilo que o cerca e que impacta sobre ele, mas de certos pontos que ele selecionou. Por exemplo, os famosos traumas. O que é um trauma senão um acontecimento ao qual você deu mais importância do que aos outros? Sem que soubesse se era realmente importante, sem contar os traumas imaginários. A maior parte dos traumas são imaginários.

Eu lembro, quando eu era criança, de ter sido atacado por cachorro. Eu nunca tive medo de cachorro, mesmo que me mordesse, não levava a mal. Mas tem gente que o cachorro rosnou uma vez. Mas rosnou num momento que o sujeito estava fragilizado, então ele fica com medo de cachorro para o resto da vida. Não é porque ele foi estraçalhado por um cachorro. Quando era moleque eu sempre defendia os cachorros, eu achava que eles eram sempre inocentes. E uma vez eu tive experiência disso. Uma tia minha tinha um cachorro pastor alemão, eu adorava brincar com ele. [01:20] A gente brincava de caçar o urso, o urso era ele. A gente rolava no chão. Um dia, escapou um parafuso da coleira dele, rasgou o meu braço, e eu cheguei em casa sangrando. Todo o mundo imediatamente se voltou contra o cachorro. E eu tentava explicar que o cachorro era inocente e ninguém acreditava em mim. E, no entanto, eu vi pessoas, que quase que instintivamente, sem nenhum motivo externo tinham medo de cachorro ou de qualquer outra coisa. Isto acontece também com os animais, porque meu falecido cachorro tinha medo de ventilador. Como vou explicar isso? Ele teve acidente de aviação? Ele foi piloto e a hélice escapou? Não é possível. O cachorro atual, o BicMc tem medo de cadeira. Se alguém move uma cadeira ele desaparece. Aquele bicho daquele tamanho que não tem medo de nada de repente tem medo de uma inocente cadeira. Eu não consigo recompor, não sei de onde apareceu isto, de algum lugar apareceu.

Estas ordens narrativas erradas que são pessoais ou grupais, nunca são humanas de modo geral, elas têm de ser corrigidas, contando a história de novo. É uma ordem narrativa maior e mais integrada que vai corrigir a ordem narrativa menor e deformada. Mas as idéias filosóficas e as crenças que se espalham pela coletividade também têm sua história e freqüentemente as pessoas aderem a estas idéias sem saber de onde surgiram. Neste caso, o sujeito cria uma cristalização que serve como autodefesa contra a experiência. O sujeito se apega àquela teoria, porque aquilo para ele é o microcosmo no qual ele se sente seguro, sente que tem algum domínio racional da coisa. Mas nós não fomos dotados da capacidade da razão para estes fins. A capacidade da razão é uma das capacidades mais complexas do ser humano. Em primeiro lugar, razão é a capacidade de articular uma coisa com outra, ou seja, é a capacidade de buscar as estruturas gerais, nas quais os vários dados apareçam de uma maneira coordenada e translúcida. A razão em primeiro lugar é o senso de totalidade e parte. Ernst Cassirer dizia que a função da razão é unir e separar. Sem um senso de totalidade não pode ter nenhuma articulação racional, e sem o senso da separação também não pode. Acontece que uma parte quando você presta muita atenção nela, ela pode virar um todo para você. Porque é um todo no qual você está prestando atenção e sonegando atenção ao resto. É evidente que nós temos a capacidade da razão porque nós estamos num mundo que tem uma unidade orgânica que tem uma unidade, continuidade, embora a nossa experiência dele seja sempre fragmentária. Eu expliquei isto já aulas atrás.

Toda experiência humana é só fragmento, mas nós sempre sabemos que por trás deste fragmento existe uma unidade, porque se nós não soubéssemos disso, nem mesmo poderíamos captar o fragmento. Nós perguntamos de onde surge este senso de unidade? Se o sujeito estudou muito Kant, vai dizer que esta unidade é uma forma do entendimento humano. O ser humano dá unidade àquilo que não tem. A experiência é caótica, mas nós ordenamos. Mas o sujeito não pratica este ato de ordenar, constantemente; ele também é fragmentário. Se a capacidade de ordenar viesse de seu cérebro, ela teria que ser uma atividade permanente. E se esse ordenar, num esquema fechado, fosse permanente, a sua capacidade de experiência terminaria no primeiro dia. Minha proposta é, ao contrário, nós estamos dentro de um universo que tem unidade, e ele nos confere um aspecto desta unidade. Mas não é este o ponto de agora, estou só lembrando o que já foi explicado antes.

Hoje, o que interessa ressaltar é a riqueza da simples apreensão, sua importância, sua expressão direta na linguagem e a ordem narrativa como começo de toda ciência humana. O Eric Voegelin assinala que as primeiras ordens narrativas que nós conhecemos são de ordem mitológica. Elas expressam a vivência de uma coletividade que percebe a si mesma inserida dentro de um acontecer espaço-temporal total, da qual ela mesma é uma expressão. Porém, evidentemente isto é o que acontece às coletividades, mas isso não é tudo. Existe uma faixa de experiência que é individual humana e que não é participada inteiramente pela coletividade. Um indivíduo dentro de uma coletividade pode perceber coisas que a coletividade não percebe, pode ter acesso à dimensões da experiência que os outros não perceberam. E isto é exatamente o que Eric Voegelin diz que acontece quando a idéia do cosmos, como padrão de unidade do acontecer, foi substituída pela idéia de um Deus transcendente, que não está no Cosmos. Esta unidade móvel do Cosmos se apóia numa outra unidade, mais profunda, que é permanente e imutável. E quando o sujeito começar a perceber isto, como acontece entre os profetas hebraicos, eles estão tendo acesso a uma dimensão de experiência que para aquelas coletividades não existia explicitamente. Não quer dizer que as coletividades não tivessem experiência nenhuma disso. Tinham, mas não a haviam incorporado na linguagem comum. Por isso é que São Paulo Apóstolo, num dos seus sermões, diz aos pagãos: "Vocês têm aqui um Deus desconhecido, vocês sabem que para além de todas estas divindades cósmicas móveis existe algo e é disso que eu estou falando justamente. Vocês não deram nome a ele, mas que está lá está." Aquilo que estava colocado embaixo da linguagem coletiva como espécie de fecho lógico do conjunto de repente se torna visível por si mesmo. Pelo simples fato de que o acesso a esta nova experiência se dá fora da ordem coletiva, e acontece em determinados indivíduos. Neste momento, Diz Voegelin, que estes indivíduos descobrem que a imagem da ordem não está dada só no Cosmos movente em torno, mas também na alma individual. A alma também é uma totalidade.

É daí que surge a diferença entre as narrativas antigas e modernas. As narrativas modernas dizem respeito à ordem da alma. Ordem ou desordem da alma e não necessariamente à ordem da coletividade. Pelo menos surge daí uma tensão entre a ordem coletiva existente e a ordem que a alma busca em si mesma. Na medida em que o indivíduo se esforça para se realizar, se definir a si mesmo, perante este observador onisciente que está por cima da ordem cósmica, ele desenvolve problemas totalmente novos [01:30] que ele só compartilha com as outras pessoas que tiveram a mesma experiência, mas não com toda a coletividade. Toda a cultura que nós temos, não só no Ocidente, como em outras civilizações que se desenvolve a partir deste momento, é uma cultura das experiências mais profundas e significativas. Já não são compartilhadas coletivamente, mas o são por algumas pessoas. E estas pessoas então sentem que ou elas vão ficar no isolamento total, ou elas vão ter que compartilhar isto com mais pessoas, terão de contar o que aconteceu. A literatura narrativa inteira do Ocidente é uma tentativa de comunicar estas coisas. E, como tal, é um patrimônio de valor absolutamente fantástico porque são as experiências mais profundas e mais significativas dos indivíduos mais sensíveis e observadores.

Eu acho que já está bem demonstrado pelo Eric Voegelin e, sobretudo pelo Glenn Hugues no livro História e Transcendência que nada disto aconteceria se não tivesse havido esta descoberta fundamental da divindade transcendente, de que há uma dimensão da realidade que está para além do Cosmos, para além do processo histórico-cósmico. Existe um fundamento deste processo histórico-cósmico. No entanto, o desenvolvimento desta nova capacidade narrativa, embora se baseie inteiramente nessa experiência do fundamento eterno da realidade, não tem nada a ver com a adesão a esta ou aquela expressão religiosa desta experiência. As pessoas, capazes de observar o valor desta documentação melhor --- sobre o desenvolvimento da ordem da alma dentro da ordem cósmica, tal como balizada por uma ordem transcendente --- e de expor isto da maneira mais clara, não estão necessariamente ligadas a uma tradição religiosa fundamentada na ordem transcendente. E uma coisa não tem absolutamente nada que ver com a outra. O conhecimento da literatura ocidental inteira deve ser considerado o dever número um do estudante, porque senão ele nunca vai ter a linguagem necessária. Primeiro: para poder se comunicar com outras pessoas que tiveram a mesma experiência dele. E segundo: para ele abrir essa experiência a outras pessoas que ainda não a tiveram. O domínio da linguagem literária no mais alto grau que o sujeito possa atingir, é obrigação extrema. Isto é tão importante que Santo Ambrósio, doutor da igreja, considerava que a mera linguagem é um dom do Espírito Santo. E Santo Hilário considerava que escrever mal era um pecado. São palavras que não devem ser tomadas levianamente. A forma da narrativa, a forma da obra literária, por si mesma expressa um dom do Espírito Santo, independentemente do sujeito acreditar ou não acreditar, de ser cristão, ateu, muçulmano, judeu, budista, não tem nada a ver. A adesão específica a uma crença religiosa é uma das possibilidades de desenvolvimento da alma dentro deste novo contexto. Mas o problema do desenvolvimento da ordem da alma, dentro da ordem cósmica, e em face da ordem eterna é o mesmo problema para todas as pessoas, a não ser que você ainda esteja dentro do contexto de ser índio. Então, o problema da alma individual ainda não apareceu, mas vai aparecer. Se tirarmos o índio de lá e o mandarmos para Oxford --- não mande para USP, senão não adianta --- de repente, ele perceberá outra dimensão que não está na cultura originária dele, mas que faz parte desta cultura em que está agora. E através dele, esta nova dimensão pode se introduzir dentro de sua cultura e modificá-la completamente, basta um índio fazer isso. Por exemplo, um índio que expressa sua experiência através dos mitos que contam a história da tribo, conta agora a história da sua própria alma. E ela vira um símbolo da posição do homem no cosmos. O primeiro índio que fizer isto pode ter certeza que já fez um upgrade formidável, já acabou com a cultura cosmológica, virou outro negócio.

Que esta transição aconteça é mais ou menos fatal, porque a existência da ordem eterna por cima da ordem cósmica é uma realidade. E se os camaradas não perceberam ainda, não é porque são ignorantes, é porque por enquanto a referência à ordem eterna está dada apenas como um núcleo central indizível do conjunto da linguagem da tribo, ou da cultura. Mas ele está lá presente, então há uma mudança na articulação narrativa, e não propriamente uma mudança na substância da consciência. A nossa consciência não é diferente da do "primitivo", por assim dizer. A diferença está, sobretudo, na ordem da linguagem narrativa. Hoje em dia, todas as pessoas são mais ou menos capazes de contar a sua história, de maneira mais ou menos perfeita. E elas sabem que nessa narrativa da vida delas se expressa algo de muito decisivo e importante, que é o eixo da relação entre o tempo e a eternidade. Por exemplo, ninguém é suficientemente idiota para contar a sua história e acreditar que esta história se prolongará indefinidamente. Note bem, as culturas primitivas que contavam a história da origem da sua tribo podiam supor a eternidade da tribo. O conjunto da ordem cósmica era, para eles, a totalidade da realidade e não tinha outra. Mas o indivíduo que conta a sua vida sabe que ela terminará. E quando ele lança um olhar retroativo, ele vê em que ponto da trajetória ele está; e o que ele espera que aconteça em seguida, ou o que ele quer que aconteça em seguida. Qualquer vida individual narrada, por mais idiota que seja é um julgamento de si dentro da ordem histórico-cósmica, porém em face da eternidade. Todo o mundo sabe que para ele mesmo vale o princípio do Mallarmé: "Tel qu'en luimême enfin, l'éternité le change". Um dia o sujeito fechará a sua narrativa, que não mudará mais.

Este é o mundo do conto, da novela, do romance, do teatro, do cinema, de todas as artes narrativas que nós conhecemos. A expressão disto em palavras --- é até errado dizer "expressão em palavras", porque não há uma diferença entre a narrativa como conteúdo e a narrativa como tecido de palavras, elas são exatamente a mesma coisa --- tem certas exigências que se não cumpridas, [01:40] a narrativa falha completamente. O sujeito está contando a sua vida, a realidade, mas está contando de maneira tão inadequada que está inventando outra história no momento, e falseando sua vida. É nesta exigência de que a narrativa acompanhe a experiência real, que residem todos os princípios da estilística universal. A diferença entre escrever bem e escrever mal está toda dada aí. Por exemplo, todos nós sabemos que é impossível o sujeito escrever tudo com expressões novas. Ele não pode inventar todos os giros verbais, todas as construções frasais. Não é possível inventar. Em algum momento o sujeito terá de usar lugares-comuns, chavões. Todo escritor os usa, os maiores usam. Mas então, no que reside a diferença? Por exemplo, se o sujeito lê meus artigos de jornal, encontrará mil vezes a expressão miséria moral. Eu vivo usando isto. E o Dr. Emir Sader escreveu miséria moral dos ex-esquerdistas. Só tem o seguinte, quando o sujeito procura no artigo dele o que ele quer dizer com miséria moral dos ex-esquerdistas? Onde está a miséria moral? O sujeito não encontra em parte alguma. Os motivos que ele alega para isto são tão bobos. Não pode ser que ele esteja vendo nisto realmente uma miséria moral. Ele diz assim: a imprensa brasileira está cheia de pessoas que abandonaram a esquerda e se venderam ao grande capital das indústrias de mídia e passaram a ganhar muito dinheiro. Fizeram isto, venderam a sua honra, a sua dignidade por dinheiro. Mas será que isto acontece mesmo? Eu fui ver na mídia do que ele está falando? E encontrei um único exemplo. O Reinaldo Azevedo, um sujeito que escreve na Veja, era um camarada da esquerda, e foi passando mais ou menos para a direita. Isto coincidiu com a ascensão profissional, porque ele começou a fazer uma coluna que dizia coisas que os outros não diziam, e fez sucesso. Procurei mais outro, mais outro e não tem mais ninguém. Supondo, Denis Rosenfield subiu na vida com isto? Não, quanto a Folha de São Paulo paga por um artigo? Duzentos reais. Parei de escrever para a Folha, eu me recuso a escrever por esta mixaria. Então, colaboradores da Folha são pessoas que ganham dinheiro com outra coisa, por exemplo, Ives Gandra da Silva Martins, que tem um escritório de advocacia muito próspero, não depende do dinheiro da Folha, então, se não pagar nada para ele, tanto faz. Demétrio Magnóli, professor universitário, este dinheiro também não vai fazer diferença para ele. Não é possível! Esta coletividade de pessoas de quem ele está falando, pessoas que se venderam e subiram na vida, tem um membro. E no que consiste a miséria moral? A que ele está se referindo? Vi que a miséria moral consiste em deixar de ser esquerdista, porque na cabeça do Dr. Emir Sader, as mais altas qualidades morais humanas se condensam numa determinada ideologia política. O que é uma coisa impossível, porque qualquer ideologia política surgiu num determinado momento da história em face de certos problemas, certos males que ela achava que podia corrigir etc., mas as qualidades morais humanas são muito anteriores a isto. Por exemplo, supondo a diferença entre um soldado corajoso, bravo; e um soldado covarde: é a mesma desde que o mundo é mundo. A generosidade de um amigo que empresta sujeito a outro, e ainda dá em dobro. E o outro que diz: "Vá trabalhar, vagabundo". Você não reconhece esta diferença? A diferença entre um pai bondoso que cuida dos seus filhos, que os afaga, que os estimula. E outro que só vive batendo, ou xingando. Quem é que não sabe dessa diferença? Estas diferenças são estruturais na conduta humana. São as mesmas. Por exemplo, você chega para uma mocinha e pergunta: "Você quer casar com um sujeito que gosta de você e que vive lhe chamando de meu amorzinho, ou um cara que vive lhe enchendo de porrada?" Não tem de pensar duas vezes.

Essas qualidades são permanentes e estruturais, portanto elas não podem se identificar nem com o socialismo, nem com o liberalismo, nem com coisa nenhuma. Portanto, quando se fala de miséria moral de uma determinada atitude política, você teria que mostrar na qual ela reside. Por exemplo, as pessoas quando elas aderem a uma determinada ideologia seja socialismo, liberalismo etc., elas ficam más, elas eram generosas e ficam mesquinhas, elas eram corajosas e ficam covardes; e assim por diante. Aí o sujeito teria mostrado alguma miséria moral, mas se a miséria moral a que o sujeito se referia ali era mudar de partido é muito pouco. O que está fazendo, ali, a expressão miséria moral? Está sobrepondo uma emoção associada a determinadas palavras a uma situação, que não tem nada a ver com isso. Aliás, ao contrário, nós poderíamos ver exemplos de pessoas que fizeram carreira na vida exatamente no sentido contrário. Eram pessoas que eram da direita, ou tinham boas posições no tempo da ditadura militar, e que depois, fizeram carreira alegando esquerdismo etc.. Por exemplo, Élio Gaspari se dava muito bem com os militares na época da ditadura, quando acabou aquilo, ele imediatamente virou. Outro exemplo: Delfim Neto. E assim por diante. Havia um governo de direita, e o sujeito estava bem, e depois, ele continua bem, quando muda para a esquerda. Há uma infinidade de exemplos em que o sujeito subiu na vida passando para a esquerda. Agora, quando você procura exemplos do caso contrário na mídia, você só encontra um. Então, a expressão miséria moral, quando eu a profiro, não é porque o sujeito está no outro partido. É porque a conduta concreta do indivíduo mudou. A partir da hora que ele aderiu àquele partido, ele passou a fazer outra coisa. Por exemplo, o sujeito combatia a corrupção gostava que todos fossem honestos, aí ele entrou no PT e no mensalão. Aí, sim tem sinal de miséria moral. Então, nós dois estamos usando um chavão. Miséria moral é um chavão, uma expressão que já existia. Não fui eu que inventei, não foi o Dr. Emir Sader que inventou. Só que eu a estava usando como nome de alguma coisa que eu estava tentando descrever. Ao passo que o Dr. Emir Sader está usando como carimbo verbal para recobrir uma situação que não tem nada a ver com isto. A diferença é que eu estou tentando expor uma experiência, algo que eu vi. E o Dr. Emir Sader está tentando criar uma impressão. Quer receita para escrever mal? Queira criar impressão.

Praticamente todos os erros, deformidades de estilo que se vê, são baseados nisto. O sujeito está querendo criar uma realidade, uma impressão de realidade, com meras palavras. [01:50] Isto é possível porque as palavras são usadas por uma coletividade e acabam se imantando, por assim dizer, de determinadas reações emocionais que elas designavam no começo. Por exemplo, a palavra miséria evoca imediatamente uma emoção de pena misturada de desprezo. A palavra por si, porque ela foi usada para descrever coisas que evocavam exatamente isto. Mas depois você pode tentar evocar a mesma coisa só com a palavra. Ou seja, você não está descrevendo uma situação que expresse isto. Você está descrevendo outra situação qualquer e cobrindo em cima com esta palavra. Na situação brasileira de hoje, praticamente todo o mundo escreve como o Dr. Emir Sader. Ninguém permite que as palavras, os fatos, as situações declarem os seus verdadeiros nomes. Eles nem sabem fazer isto mais. Eles só sabem pegar um dicionário de chavões e lugares-comuns, e tentar recobrir com aquilo a realidade do que estão falando.

Por exemplo, toda a discussão que surgiu sobre liberalismo e liberdade etc.. "Quem é que quer ser escravo? Vamos fazer uma enquête: o que o sujeito prefere? Ser escravo ou ser cidadão livre? Estar na cadeia? Ou na rua? Estar na sua casa." Claro, a palavra liberdade está imantada por si mesma. Então, como eu estava tentando explicar que a liberdade como um princípio de organização política não existe. O que nós chamamos de liberdade é um tipo de ordem. Não existe a liberdade em si. Existem ordens políticas. Algumas delas sufocam a liberdade, outras não. A diferença não é entre liberdade e ordem, mas entre duas ordens. Ou seja, eu estava usando as palavras para descrever o que realmente acontece. As pessoas ficaram bravas, começaram a fazer apologias da liberdade. O indivíduo está reagindo a meras palavras. E não tem mais, digamos, nem sequer a representação hipotética do que o outro está falando. Se você analisar artigos de jornal, discursos no parlamento, conferências, verá que, hoje, no Brasil todo o mundo só fala assim. E é por isso que não tem mais literatura. Nós chegamos num nível de falsificação completa da linguagem. Então, você está usando palavras não para expressar algo que você está percebendo, mas para re-evocar certas emoções que estas mesmas palavras já despertaram no passado. São como cadáveres, você está agitando cadáveres na esperança de que eles tenham uma impressão de vida. Sem corrigir isto na nossa própria linguagem, nós nuca vamos poder criar uma cultura superior, não importam as nossas idéias, não importa o acerto das nossas idéias. Você pode aderir à coisa mais certa do mundo, se você continuar falando assim, você vai estar falsificando, estragando tudo. Por exemplo, outro dia alguém me mandou uma série de considerações tiradas de um artigo retiradas de um jornalista americano Cristopher Ferrara que fazia duras críticas ao Ludwig von Mises, porque ele tinha falado mal da Igreja Católica. Quando você via as críticas que ele fazia, correspondia aos fatos históricos, fatos que não poderiam ser generalizados, mas que em certas circunstâncias aconteciam. Você não poderia, com base naquelas frases, criar uma teoria econômica geral com base nas relações entre religião e economia, não dava para fazer isto. Eram observações factuais, que embora não expressando fatores constantes, expressavam coisas que aconteceram realmente desde determinados lugares, determinados momentos. Sendo que Ludwig von Mises jamais fez um exame sistemático desta coisa, ele não tem uma teoria a respeito. São apenas observações soltas. E o jornalista em questão estava louco da vida, dizendo: "Vocês ficam seguindo este Mises, ele é anticristão etc..". Uma observação de um indivíduo a respeito de uma determinada situação histórica jamais pode ser anticristã em si mesma. Ser anticristão é opor-se doutrinalmente a uma determinada doutrina. A doutrina católica enquanto teologia tem pretensões de universalidade; são sentenças que são colocadas num nível de generalidade que abrange a humanidade toda, independentemente das diferenças individuais. Como é possível confrontar isto com uma afirmação histórica? Não é possível. Nenhuma afirmação histórica pode ser jamais contra ou a favor da doutrina católica. Ela pode dar uma impressão de que é. Então é claro que numa comparação desta você tem uma tensão entre o universal e o particular. Você tem uma doutrina universal na qual você supostamente acredita e você tem um, dois ou três fatos que escandalizam você, porque eles parecem contrariar aquela doutrina. Note bem, quando você vê assim é você que está elevando os fatos históricos ao nível de doutrinas gerais, isto significa não saber ler. Para pessoas que não têm cultura suficiente, não estão ainda bem formadas no domínio da linguagem, estas confusões acontecerão sempre. E por melhores intenções que tenham, cometerão injustiças monstruosas. Veja, quem foi o poeta cristão mais importante do século XX? Foi T. S. Eliot. Todos os conceitos fundamentais da teoria literária do Eliot, ele tirou de um sujeito não só ateu, mas terrivelmente anti-religioso que foi Remy de Gourmont, porque ele sabia fazer esta diferença entre os diversos níveis de predicação. Poucas pessoas dominaram uma ou várias linguagens tanto quanto Eliot. Então, ele pode entender o que o outro está dizendo e antes de julgar ou de se escandalizar etc.. Ele chega a uma compreensão profunda do que o outro está dizendo e sabe qual é o significado que isto pode ter para uma doutrina geral, ou não. Para isto é preciso desenvolver o senso da linguagem até a disposição de você entender tudo. E entender com qualquer pessoa. Inclusive ser capaz de captar dentro da experiência dela a veracidade singular do que ela está dizendo, o nível de generalização que aquilo admite, a conversão possível dessa generalização factual numa generalização doutrinal religiosa e aí sim fazer a comparação. A maior parte das pessoas não é capaz disto, e no Brasil o nível de incapacitação geral é muito alto. Vocês também são vítimas disto, eu sou vítima disto e cada vez que vou escrever, eu tenho de vencer este reflexo em mim. Eu já estou acostumado, tenho certa prática, comecei 40 anos antes de vocês. Mas isto é todo um trabalho que tem de ser feito ainda.

A confusão entre estes vários níveis reflete pouca sensibilidade literária. E espero que isto não soe ofensivo a ninguém, porque Goethe aos 70 anos de idade dizia: "Ler [02:00] é a coisa mais difícil do mundo. Estou praticando isto há meio século e ainda não estou seguro de que eu estou entendendo o que eu estou lendo." Aprimorar a sensibilidade lingüística para que tudo o que os seres humanos dizem se torne inteligível a você, e que seja capaz de pegar o valor direto de experiência humana que tem os textos mais disparatados, e aparentemente, os mais ofensivos. Isto é o começo de toda educação e sem isto a prática da filosofia é um desastre, porque a filosofia é uma reflexão crítica sobre isto. Se você não tem a experiência, você está refletindo sobre o nada.

Tem um escritor francês chamado Paul Leáutaud que é um dos personagens mais singulares da literatura universal, porque ele conversava mais com gatos do que com pessoas. Não gostava muito de pessoas, então ele enchia a casa dele de gatos, catava gato da rua e ficava cuidando dos gatos. E ao mesmo tempo era um sujeito que compreendia o ser humano profundamente e ele dizia o seguinte: "Qual é a definição de povo? Povo é o conjunto dos que não compreendem." E dizia: "O povo está cheio de duques e ministros." Existe uma diferença: a elite consciente e existe o povo, aqueles que não compreendem, assim como o povo está repleto de duques e ministros, na elite também pode ter o pé rapado, como Paul Léautaud, que parecia um mendigo, ou Leon Bloy, que era realmente um mendigo. Esta elite é definida por seu nível de humanização, de compreensão da variedade da experiência humana, portanto da compreensão dos códigos lingüísticos em que isto se expressa. É claro que toda esta atividade literária pode se coisificar também. Se o sujeito a entender como profissão, como finalidade última de existência, ou se tiver esta adoração idolátrica por artistas; verá que o prestígio já acumulado do artista --- que é uma coisa que começa no Ocidente a partir de Dante Alighieri --- provém do fato de que ele é capaz de expressar a sua experiência; dar forma verbal expressa à sua experiência, com a ressalva de que não se trata de dar uma forma, mas é a própria experiência que se transmuta em verbo interiormente, um processo quase espontâneo. E ao fazer isto, é capaz de integrar experiência individual atual, moderna dentro de uma ordem temporal bem maior. Toda e qualquer obra de arte narrativa ou poética é uma apresentação da alma diante da eternidade. O prestígio dos artistas vem, porque aquilo que fazem é um dom do Espírito Santo. Se o sujeito não faz isto, faz outra coisa, e ainda assim tem prestígio de escritor, é porque esse prestígio está determinado não por exigências internas da própria arte literária, mas por exigências externas do aparato sócio-econômico necessário ao prosseguimento das atividades literárias dentro de tal ou qual contexto social.

A documentação que a literatura universal reuniu a respeito da experiência humana é imensa. Eu não acredito que, alguém que não tenha sério interesse a respeito disso, seja sério no que quer que seja. Se o sujeito diz: "Estou estudando teologia." Mas leu a literatura universal? E responde: "Não, são coisas muito mundanas, não me interessam." É uma besta quadrada, nunca vai entender nada da teologia, porque estas atividades superiores que ou partem de uma revelação, ou partem da reflexão sobre a experiência humana supõem o domínio imaginativo desta experiência humana, e se não tem isto, não tem nada. Por exemplo, Santo Tomás de Aquino dizia que todas as regras morais são fórmulas gerais, mas todas as situações que exigem decisões morais são particulares, individuais, que às vezes não se parecem em nada com as regras correspondentes. Um sujeito burro pode pensar que é questão de dedução, que é só pegar o geral e achar o particular. Se o sujeito toma a mesma regra geral, pode tirar dela milhares de conclusões diferentes, como vai saber qual é aquela que se aplica? Nunca vai saber. A não ser que tenha a compreensão direta da experiência, através justamente desta imensidão de símbolos narrativos e poéticos que a expressam dentro da sua imensa variedade. Esta variedade tornaria a literatura irreconhecível, se por natureza a narrativa da experiência individual, não fosse um comparecimento diante do observador onisciente. Todo e qualquer escritor seja católico, ateu, judeu, budista não conseguiria escrever a experiência da sua alma individual se não estivesse diante do observador onisciente, porque se este não existisse, o autor cairia para o nível do que o Voegelin chama civilizações cosmológicas, e não haveria consciência nenhuma de alma individual.

Aluno: Tratar a lógica como mero jogo, mera convenção não seria o pontapé inicial para correntes tais como pragmatismo, relativismo e afins e se aproveitar de um artificialismo criado pelos lógicos modernos que negam a realidade mesmo sobre si?

Olavo: Sem sombra de dúvida. Foi a partir da lógica dos sinais, criada especialmente por Guillermo de Occam e Pedro Abelardo que começa toda a inabilidade moderna de lidar com a realidade, os dados da realidade. À medida que aumenta a capacidade combinatória, lógica, que é uma coisa fascinante em si mesma, uma espécie de um abismo que não tem mais fundo, é que o compromisso da lógica com a ontologia --- que é coisa básica --- se perde por completo.

Aluno: Participo freqüentemente de Congressos e Workshops de física, de modo que no workshop realizado na semana passada tive uma experiência muito reveladora do nível real de alguns problemas. Refiro-me à necessidade psíquica da aprovação das pessoas do meio, que o Sr. costuma abordar. Compreendi perfeitamente a incompatibilidade deste sentimento e o espírito de um filósofo genuíno. O interessante é que mesmo dominando esta questão num nível racional e analítico, eu ainda me encontro contaminado por estes sentimentos espúrios. (...)

Olavo: Eu também, você pensa que não? Nós nunca nos livramos disto completamente.

Aluno: (...) Tenho certa experiência em congressos, mas sempre fico muito ansioso e nervoso antes de apresentar algum trabalho oralmente. Desta vez, tive a curiosidade de examinar as causas deste nervosismo. Não pude concluir outra coisa, senão exatamente o medo da opinião dos meus pares. Se por um lado, meu intelecto domina esta questão, meu lado emotivo é dominado por isso. Isto não é péssimo? O senhor provavelmente tem mais experiência neste ponto.

Olavo: O que o sujeito tem de fazer é o seguinte: concentrar-se mentalmente na imagem das pessoas cuja opinião ele realmente respeita. E falar para elas como se estivessem presentes. Nestas questões filosóficas, [2:10] tinha duas ou três pessoas que eu respeitava. Então eu supunha que estava falando para quem compreende. Eu não estou falando para o povo no sentido do Paul Léautad. O povo pode pegar um respingo do que eu disse, mesmo porque eu tento fazer com que ele compreenda, tento abrir o leque e não me fechar numa linguagem exotérica. Eu estou abrindo para uma parte que eu sei que vai me compreender. Estou falando para o Miguel Reale, para o Bruno Tolentino, para dois ou três como se estivessem presentes. E eu estou tendo em vista o julgamento deles. Isto é um truque que o sujeito pode fazer. A regra é a seguinte: quem não sabe respeitar, não sabe desprezar, e vice-versa. Há de ter algumas pessoas que o sujeito respeite extremamente e ele vai falar para elas, acolher o julgamento delas. E daí livra-se do julgamento dos outros. Se não tiver esta defesa, então não tem jeito. É algo para se fazer com a imaginação. Quando eu era moleque, eu tinha um problema muito sério. Quando ficava sozinho eu murchava, tudo perdia a graça; eu não sabia ficar sozinho de jeito nenhum. Eu me livrei disso imaginando todas as ligações que eu tinha com todas as pessoas, com a minha mãe, com o meu irmão, com os amigos, com o meu tio, e fazendo de conta que eles estivessem lá. Eles sabem que eu existo e não parei de existir só porque eu não estou dentro dos olhos deles. O que estou fazendo é para uma platéia que existe realmente, embora não esteja presente. O sujeito incorpora em si estas companhias. Estas pessoas se tornam valores que se incorporam na personalidade do indivíduo. É assim como se o sujeito ama uma pessoa, não precisa estar com ela 24h por dia. Apenas quando está longe daquela pessoa, tem de agir de maneira que ainda seja boa para ela, ou seja, digna dela, é isso o que tem de fazer.

Aluno: O Senhor está sustentando que Deus não é matéria de fé, mas de conhecimento, além disso, o senhor afirmou que o logos foi parcialmente conhecido por várias civilizações antigas, citou a obra de Scwaller de Lubicz como exemplo desta tese, somente os fatos singulares do credo católico seriam matéria de fé. (...)

Olavo: Quem diz isto é a Igreja Católica, não sou eu. Isto é São Tomás de Aquino.

Aluno: (...) visto não poderem ser apreendidos diretamente da realidade a partir da investigação filosófica. Além disso, o senhor afirma que o mesmo logos que fora parcialmente conhecido pelos antigos manifestou-se em sua plenitude na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tornando-se, de certa maneira, descartáveis, desnecessárias, quiçá inúteis as investigações, descobertas parciais dos antigos. (...)

Olavo: Não sei se são inúteis.

Aluno: (...) diante disto, pergunto: como o senhor entende a obra muitas vezes superficial, desinformada e até estúpida de Alvin Kuhn com Gerald Massey e outros que propõem provar que a vida história de Jesus não possui nada singular sendo uma réplica quase exata de outros mitos solares, Hórus, por exemplo, teria nascido dia 25 de dezembro, anunciado por uma estrela do oriente. (...)

Olavo: Os esquemas gerais analógicos simbólicos que o sujeito usa para expressar uma realidade é uma coisa e a realidade histórica é outra completamente diferente. Esses personagens míticos, se reunidos, fornecem um monte de recursos míticos e simbólicos para contar a vida do Nosso Senhor Jesus Cristo, porque a linguagem é a mesma para todos. Só tem uma diferença, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo efetivamente aconteceu. Este argumento é tão estúpido. Eu conto a história, por exemplo, de um grande guerreiro que eu conheci, eles daí acham um monte de analogias com guerreiros anteriores mitológicos, e dizem que não há novidade nenhuma, pois já estava na mitologia. A diferença não é esta, a diferença é que aconteceu.

Aluno: (...)Mesmo sem concordar com as conclusões dos autores anteriores, não poderíamos afirmar que os próprios fatos da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo seriam manifestações simbólicas como outras? E que já haviam sido reveladas em outras épocas. (...)

Olavo: É claro que nem tudo o que Jesus Cristo disse era novidade, e nem tudo o que ele fez era novidade. A questão é que ele fez realmente. Esta é a única diferença. Nós poderíamos dizer que a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo tem alcance mítico. E, portanto, neste sentido é um mito. Só que é um mito que, historicamente, aconteceu, e é esta a verdadeira importância. Todos estes simbolismos antigos se condensavam na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo? Como poderia ser de outra forma? Absolutamente impossível. Daí não significaria nada. Se não correspondesse a nenhum arquétipo mitológico anterior, então não seria nada. A novidade está não está no símbolo, está no acontecer. A mesma coisa, o sujeito observa um milagre que aconteceu e aí diz que aconteceu a mesma coisa num romance que leu. Acontecer num romance é uma coisa, acontecer na realidade é outra. É claro que os símbolos e arquétipos são os mesmos e todos eles se condensam e se articulam na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Estes símbolos não eram vãos, não eram bobagens.

Aluno: Na última aula, eu e meu amigo Juliano Muller, que nos lê, tivemos a mesma percepção com relação à verticalidade. Aproveito para parabenizar por esta aula que foi maravilhosa. (...)

Olavo: Obrigado.

Aluno: (...) pergunta 1: desde pequeno quando olhava uma catedral, uma árvore, um grande prédio, a percepção imediata que sempre tive era como se tivesse uma seta apontando para um ser maior, esta verticalidade é natural que nos leve sempre ao Criador? (...)

Olavo: É óbvio, é assim mesmo. O senso de em cima e embaixo é universal, não tem nada a ver com as propriedades do espaço físico. Num espaço físico indeterminado, não faz sentido dizer em cima ou embaixo. É apenas uma direção entre outras. Mas para além da verticalidade expressa aquilo que vai para além do espaço. Além do mais, a possibilidade de que o sujeito possa manter as coisas numa posição vertical é absolutamente fundamental em todos os domínios da vida. O simples fato de que as plantas crescem para cima, evidentemente as árvores; e de que quando repousamos é na horizontal. Esta diferença de horizontal e vertical, como todo símbolo, pode ser vista em dois sentidos. Todo símbolo tem um sentido positivo e um negativos que se articulam um com o outro, diferentemente conforme as situações. Por exemplo, a horizontal pode significar o repouso e, portanto, o predomínio da gravidade, mas ela pode significar, também, expansão. E a vertical significa não só equilibrar para cima e também equilibrar para baixo. Ambos podem ser vistos como sinais ou de uma libertação ou de uma limitação, conforme a situação concreta a que aquilo se aplique. Este duplo sentido dos símbolos é uma das regras fundamentais do simbolismo. Você tem sempre uma oposição de símbolos e uma oposição [2:20] de leituras destes símbolos. O símbolo, em si, contém uma oposição, por exemplo, em cima e embaixo. Em cima pode significar a transcendência, mas também pode significar superficialidade, se não for profundo o suficiente. E o horizontal pode significar o repouso, o sujeito está estendido na horizontal, descansando ou morto; mas também pode significar expansão e, portanto, o poder. É uma dupla de símbolos e cada um deles por sua vez tem dois significados, articula numa cruz. E esta cruz, por sua vez, é determinada por uma terceira dimensão que é a da aplicação às várias situações específicas, uma variação de situações. Já não é um eixo espacial, é um eixo temporal. É por isso que esta estrutura de seis pontas é fundamental para a interpretação de qualquer símbolo. Se o sujeito não pega o jogo das seis pontas, não está entendendo o símbolo.

Aluno: (...) Por que teimamos em crescer nos equilibrando o tempo todo? A gravidade nos puxando para baixo... (...)

Olavo: O sujeito pode explicar este impulso da verticalidade, um impulso de transcendência. Mas, por que, na hora de rezar, o sujeito se ajoelha, prostra-se? Porque a verticalidade ora está no sujeito, quando se levanta, ora, está acima do sujeito. E ele se abaixa para que ela se mostre em toda a sua dimensão. Este jogo, esta tensão é a coisa mais linda no estudo do simbolismo. Se o sujeito está no nível do "isto representa aquilo", então ele está no nível dos sinais e não dos símbolos; o símbolo sempre tem esta tensão. Ele, em si, tem dois significados e se articula necessariamente com outro símbolo que também tem dois significados e este conjunto de quatro, por sua vez, se move no tempo para diferentes aplicações, onde outros valores respectivos vão mudar e se articular uns com os outros.

Aluno: Gostaria que o senhor explicasse a diferença da sua colocação sobre o homem como medida de todas as coisas, como única medida do real universo objetivo e eixo da construção do universo versus o homem-medida de Protágoras fonte do relativismo ocidental?

Olavo: As duas coisas são, no fundo, a mesma, porque até hoje ninguém esclareceu exatamente o que Protágoras quis dizer com isto. O sujeito pode interpretar de um jeito ou do outro. Por um lado a medida da percepção humana e a estrutura da linguagem humana guardam a conexão tão íntima com a realidade, que nós podemos dizer sem sombra de erro que o único animal para o qual existe a realidade é o homem; neste sentido, de fato, o homem é a medida de todas as coisas. Por outro lado, pode-se dar mesmo uma interpretação relativística no sentido de que o homem a que nós estamos nos referindo no primeiro sentido é o homem enquanto potência humana realizada. Os indivíduos nesta ou naquela situação histórica e socialmente condicionados podem errar evidentemente; o relativismo surge como um corretivo desses erros. Ele tem um valor negativo e corretivo. Podemos entender que o conhecimento de toda verdade de natureza eterna, à qual nós possamos ter acesso, expressa também algo de uma realidade eterna. Porém, expressa sempre imperfeitamente porque se pode dizer a pior verdade da paróquia numa linguagem humana e o sujeito que ouve pode entender diferentemente. Tome os 10 Mandamentos poder-se-ia dizer que é a expressão da verdade, mas não é, porque o sujeito pode entender de maneira completamente errada.

Não existe nenhuma única sentença humana que se possa dizer: isto é a verdade, porque a verdade vai aparecer na linguagem, e não na formulação verbal em si, aparece no verbum mentis; naquilo que foi efetivamente apreendido e que por sua vez pode ser quase indizível. Toda a lógica moderna, com tábuas de verdade e falsidade, é apenas um jogo. Não existem sentenças verdadeiras, existem juízos verdadeiros. E o juízo é a sentença acompanhada da sua aprovação ou desaprovação interior. A verdade habita no interior do homem, dizia Santo Agostinho. Não é na frase. Não adianta querer pegar uma fórmula de uma frase e dizer que isto é a verdade. Se o sujeito rezar o credo católico e disser: "Isto é a verdade?" Não, depende de como ele entende isto. Mesmo rezando isto 24 por dia, por mais católico que seja o sujeito, não está na verdade. Depende do que o sujeito pensa, e como está entendendo concretamente naquele momento. Por um lado, a verdade é eminentemente dizível porque existe a correspondência íntima entre língua e realidade a que eu estava me referindo. Por outro lado, também se pode dizer que a verdade é eminentemente indizível, porque a força da linguagem só se perfaz na intimidade da consciência humana e não materialmente na letra. De acordo com o apóstolo São Paulo: "É o espírito que vivifica contra a letra que mata." A verdade é eminentemente dizível, então se condensa em letra. A expressão verbal da verdade condensa a verdade de fato, mas ela condensa em letra. E a verdade não está nesta letra, está no espírito de onde ela provém e está no espírito onde ela se realizará. Este jogo do dizível e do indizível é outra coisa maravilhosa com a qual nós precisamos nos acostumar. Tudo é explicável e tudo é inexplicável. Tudo é dizível e tudo é indizível e nós vivemos dentro desta tensão. A verdade inteiramente dizível é o logos divino, a totalidade da razão divina, Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas não conhecemos Jesus Cristo inteiro, só aquilo que Ele nos mostra. E nisso está a sua verdade. Um dos grandes males dos estudantes de filosofia é querer chegar à fórmulas perfeitas da verdade; quanto mais exato for, mais na mentira está. O que interessa não é chegar a uma fórmula perfeita, mas a uma comunicação perfeita, quando o que estou dizendo vem do espírito da verdade, passa pela minha fórmula verbal, atinge outra alma humana e lá se realiza a verdade. Isto que é o bonito da história.

Eu tenho impressão, não é para me gabar, mas eu tenho impressão de que isto acontece muitas vezes nessa aula. Eu aqui crio uma fórmula verbal evidentemente imperfeita, mas quando ela chega na sua alma ela se realiza e aí se tornou perfeita. Houve a comunicação. [2:30] Por que Cristo diz que quando dois ou mais de vós estiverdes reunidos em meu nome, eu estarei presente? Porque a verdade humana só se realiza nesta comunicação, neste encontro das consciências daí o Cristo está lá, a verdade está lá. A verdade está numa fórmula verbal perfeita? Depende. Às vezes, sim, outras não. A fórmula verbal é como o bilhete de entrada para um espetáculo, mas o bilhete pode cair do seu bolso, perder-se, daí não tem espetáculo nenhum. Na verdade, não existe a fórmula verbal perfeita, o que existe é a performance perfeita. Performance supõe o ator e o espectador, um que fala e outro que ouve, no mínimo. Se tiver inteiração, melhor ainda. Existe a comunhão. E nós só temos a verdade nesta comunhão. A verdade, em si, é o Nosso Senhor Jesus Cristo.

Aluno: Prossigo há algum tempo na pesquisa e desenvolvimento do tema da infantilização da mente do início do século XX até os dias de hoje, e um dos pilares da progressiva infantilização das almas é a sucessiva retirada da responsabilidade interna de cada indivíduo para consigo mesmo. (...)

Olavo: Este tema do qual estamos falando, uma espécie de coisificação da verdade em fórmulas verbais ou matemáticas é um dos grandes responsáveis por isto. Querem chegar a uma ciência tão perfeita que nenhum ser humano precisa estar lá, um computador fala com outro. E isto daria uma garantia total da verdade, mas não tem nenhuma verdade nisso, é a coisa mais louca do mundo.

Aluno: (...) já que uma das características principais da criança é a irresponsabilidade pelos próprios atos seria esta retirada do peso da responsabilidade um dos quesitos fundamentais para a impossibilidade da confissão? (...)

Olavo: Mas sem sombra de dúvida. Quando Cristo diz para carregar sua cruz, é a história do sujeito. A cruz, independentemente de seu significado no contexto cristão, é a cruz do espaço-tempo. No qual o sujeito está preso, é sua história, da qual ele não pode se livrar de maneira alguma. O sujeito está grudado nela de qualquer maneira. Mas o sujeito pode carregá-la, torna-se responsável por sua história. Isto realiza perfeitamente a idéia da consciência segundo Maurice Pradin, é a memória do passado preparada para as tarefas do futuro. Eu sei quem eu sou, sei o que eu fiz, sei o peso que estou carregando, e sei o que tenho de fazer adiante. Existe o grande livro do Jan Huizinga, Nas Sombras do Amanhã, teve uma tradução americana, evidentemente, The Shadow of Tomorrow, mas também uma tradução de uma editora portuguesa, chamada Armênio Amado, de Coimbra, uma edição já antiga, que fala muito sobre este problema da infantilização. Está piorando cada vez mais, sobretudo, na medida em que a administração estatal tenta fazer as pessoas se sentirem protegidas contra tudo, vacinando as pessoas contra a própria realidade. Exemplo: precaver-se contra a possibilidade de uma doença que o sujeito pode contrair daqui a 10 anos etc. Está oferecendo proteção e ao mesmo tempo instigando o medo, infantilizando, evidentemente.

Aluno: Numa das aulas do ano passado, o Sr. sugeriu que os alunos deveriam procurar o domínio da linguagem, mas também empregar uma ou outra vez uma preguiça proposital ao escrever, com o objetivo de deixar o texto mais sincero e evitar o respeito humano. (...)

Olavo: Sim, esta é uma recomendação que vale especificamente para a circunstância brasileira de hoje. Se o sujeito é aluno de uma universidade medieval, discursando para outros alunos. Ele tem de falar na linguagem deles, uma linguagem eminentemente culta, formal etc.. Ele terá um círculo de pessoas que o compreendem. E tem uma série de convenções que não foram feitas para sufocar o seu pensamento, mas para ajudar a expressar, todo um vocabulário técnico que os escolásticos desenvolveram; uma verdadeira maravilha. Mas no caso do Brasil de hoje, estamos lidando, de certo modo, com uma matéria bruta. E no Brasil tem-se toda a linguagem formal utilizada na mídia, nos discursos parlamentares etc. É uma defesa completa contra a realidade. Até as normas de polidez que se usam no Brasil e até em parte nos EUA se tornaram defensivas. Para se dizer certas coisas tem de quebrar aquilo. É claro que é uma situação, por assim dizer, anormal. Mas como dizia o Schuon: "Uma anomalia vale outra".

Aluno: (...) Pergunto, porque eu tomo pontuadas atitudes deliberadamente excêntricas para espantar e evitar e cortar o barato de certas pessoas, e funciona. (..)

Olavo: Mas é claro que funciona.

Aluno: (...) só uso quando percebo que alguém fala e não sabe o que está dizendo.

Olavo: Não tenha dó, porque os efeitos dessa farsa intelectual brasileira são tão devastadores, chegam a tampar a realidade ao ponto de que num país onde morrem 50 mil pessoas assassinadas por ano, as pessoas ficam preocupadas com questões administrativas e ninguém quer discutir isto. Chegou a um nível de alienação completo. Por exemplo, outro dia nos jornais brasileiros discutindo a questão da liberação das drogas, voltou o famoso argumento da lei seca: "A lei seca foi o período mais violento da história dos Estados Unidos." O ano mais violento na cidade mais violenta, que foi Chicago, teve 365 assassinatos, um por dia. O que é isso comparado com a média de qualquer cidade brasileira hoje? É nada. Em segundo lugar, a lei seca não funcionou, diminuiu em 10 vezes o consumo de álcool. Diminuiu a criminalidade em tudo o que é lugar. Mas veja, criou-se uma fórmula "a lei seca não funcionou", e o sujeito sai repetindo aquilo. E vira uma convicção porque é a palavra, o esquema verbal imantado de poder autônomo. Exemplo: dizem que na guerra do Iraque não encontraram armas de destruição em massa. Eu li o livro do Richard Miniter, Disinformation; e a lista oficial das armas de destruição em massa está lá. Como não foram encontradas? Sabendo que este tipo de formalismo que é aceito como uma coleção de slogans, de chavões, de efeito-imediato, sabendo até que ponto isto está embotando a consciência brasileira, tem a obrigação de quebrar isto. E os mentirosos, grandes farsantes, sempre se defendem atrás de regras de polidez que eles mesmos inventaram para se tornarem inatingíveis. Se, dizem que certas coisas não se falam, são estas mesmas que o sujeito tem de falar. O desrespeito total e sistemático é a única solução em determinadas situações. Não pense que eu gosto de xingar pessoas. [2:40] Não, claro que não. Se fosse possível chamar todo o mundo de meu anjinho, eu chamaria. Se fosse, por exemplo, falar respeitosamente com certas pessoas, porque tem certos brasileiros que quando eu falo para eles com requintes de respeito: o falecido Miguel Reale, Paulo Mercadante. Estas pessoas são tesouros que sobraram de outra época, o Herberto Sales, falava com ele de coração na mão. Não é para não ofender é até para afagar, para fazê-los se sentirem felizes. Eu me lembro de quando era pequeno, as amigas da minha mãe gostavam de ir à casa dela só para que me vissem fazer palhaçada. E as velhinhas todas ficavam rindo. Eu ficava feliz, porque eu via que a vida delas era sofrida. Eu, com estes velhinhos, também ficava assim. Eles já sofreram muito, eu quero torná-los alegres, tratar da melhor maneira possível. Agora se eu encontro uma Dilma Roussef, um Lula, o Emir Sader, ora! O que é isto? Como é que a mesma norma de polidez pode valer para um e para outro? Não é possível que as normas de educação estejam tão separadas da realidade da vida, ao ponto de se tornarem uma vacina. Aqui nos EUA, para você levantar o problema da certidão de nascimento do Obama, as pessoas dizem que é falta de educação. Se o sujeito está querendo investigar o negócio, e o outro diz que investigar é falta de educação. Se o sujeito responde polidamente a isso, já caiu na armadilha. Além disso, existem ofensas que são consagradas, chamar o sujeito de racista, preconceituoso, nazista é considerado bom. Agora, se chamar o sujeito de "seu filho disso"... é claro que se o sujeito me acusa de racismo, racismo é crime, ele está me imputando um crime. Ser prostituta não é crime, então estou imputando à sua mãezinha uma conduta bem menos ofensiva do que a que o sujeito está imputando a mim. No entanto, quando a gente faz isto, as pessoas ficam muito ofendidas. Se eu disser: "Racista é a puta da sua mãe!" O sujeito me diz que sou muito agressivo. É a total perda do senso das medidas. Ou a ofensa tem algum significado que corresponde às realidades do mundo, ou então ela é apenas um emblema imantado de valor em si, virou uma hipnose.

Aluno: (...) Como a escolha pelo absurdo na vida e nas artes seria uma maneira de buscar a sinceridade?

Olavo: Depende, você terá de fazer uma distinção muito fina entre as pessoas que merecem o seu respeito, afeição, sinceridade e os outros que não merecem nada. Por exemplo, no mundo sempre houve, sobretudo a partir do século XIX, artistas que protestam contra a hipocrisia reinante se comportavam sempre de maneira extravagante. Mas é claro que eles não se comportavam de maneira extravagante sempre. Baudelaire pintava o cabelo de verde, e saia puxando uma tartaruga dizendo que era um cachorro, mas ele não fazia isto no círculo das pessoas que o compreendiam.

Aluno: Hoje o Sr. disse que o ser humano percebe o universal no singular e concordo com isso. Entretanto, no Brasil, com freqüência, sinto um ataque do meio quando quero falar da universalidade de algum fato singular. As pessoas chegam mesmo a negar o universal dos fatos singulares (...)

Olavo: Mas se elas só pudessem perceber singulares, elas não poderiam falar.

Aluno: (...) e criticam o meu comportamento, insinuando que estou fugindo da realidade. Você acha que uma das características do atual cenário brasileiro é uma certa cegueira contra o universal?

Olavo: Bom, isso se enquadra naquelas Seis Doenças do Espírito Contemporâneo, do Constantin Noica, o horror do universal, que ele chama de acatonia. Dê uma olhada no livro do Noica, que o sujeito vai ver que todas aquelas seis doenças estão presentes no Brasil. Não é só esta, não. Por exemplo, às vezes em nome de regras universais que eles subscrevem, eles negam os fatos singulares mais patentes.

Aluno: (...) No campo da percepção imediata como ficam os seres que sofrem metamorfose radical? Ao ver uma lagarta pela primeira vez, não conseguimos conceber a potencialidade de ela virar borboleta, menos uma borboleta adulta.

Olavo: Isto significa que nem todas as espécies, como nem todos os objetos são tão auto-evidentes assim. Há alguns objetos cujo modo de existência é equívoco. Se a lagarta só existe com a finalidade de virar outra coisa, a ambigüidade não está no meu modo de perceber, está nela. Isto significa que a sua percepção "errada" da lagarta como definitiva faz parte da camuflagem natural que ela tem. Como animais que são capazes de se disfarçar tão bem num galho de árvore, que o sujeito pensa que eles são galhos de árvores. Não é um erro da sua percepção, é uma ambigüidade da forma natural deles. A natureza está cheia destas coisas, seres que parecem uma coisa, mas são outra, ou são as duas. Mas é isto o que eles são. Se não existisse nenhum bicho assim --- que só revela a sua natureza quando observado ao longo da sua existência --- tudo na natureza seria igualmente translúcido. Mas isto não é possível, porque a ocultação faz parte da natureza. Por exemplo, quando o sujeito vê a forma externa de um bicho, ele não está vendo os órgãos internos que funcionam. Não se pode observar o gato correndo e abrir a barriga dele ao mesmo tempo. Este negócio do encobrimento, da ocultação, faz parte da estrutura do mundo real. E jogar com estas luzes e sombras da natureza é capacidade eminentemente humana. Por exemplo, no caso a compreensão da lagarta, supõe a narrativa que o sujeito está usando para ver só um aspecto dela. Este aspecto é real, uma lagarta tem tudo para ser lagarta, só não se sabe a história inteira dela. E quando você souber a história, vê que ela não era só uma lagarta, era um bicho que sai de dentro de outro bicho. Agora a lagarta pode ser lagarta e borboleta ao mesmo tempo? Não, ela terá de mudar. E qual é a novidade? O sujeito está vendo, separadamente no tempo, duas coisas que de fato estão separadas no tempo, claro que existem erros. Mas isto não tem nada a ver com a adequação da percepção. A percepção é eminentemente adequada à realidade, inclusive certos aparentes erros de percepção. Existe algum erro de percepção em ver uma lagarta como lagarta? E depois ver a borboleta como borboleta? Sem que o sujeito relacione uma coisa com a outra, caso ele não tenha acompanhado a história? Não, porque esta é a estrutura de existência da própria lagarta. É como o sujeito que vê um ovo que não sabe do que é. Um ovo é um ovo. Lá dentro pode ter uma galinha, um jacaré, uma lagartixa, urubu, mas ovo continua sendo ovo. Agora a história inteira do ovo, ovo de quê? Aí precisa esperar nascer**. [02:50]**

Aluno: [2:50:37-2:50:40]... É possível, através da linguagem, descobrir a totalidade da expressão da realidade?

Olavo: Por definição, não. A linguagem não foi feita para isto. A linguagem é uma parte do processo existencial total, parte especificamente humana. Como parte, por definição, não pode abranger o todo. Se o sujeito pudesse expressar a totalidade da realidade não haveria diferença entre sua expressão e a realidade. O sujeito teria acabado de criar outro universo, que saiu de sua boca, como num novo Fiat lux. Há parcelas importantíssimas da realidade que são indizíveis. É curioso: elas são indizíveis, mas são totalmente incomunicáveis? Não, certas situações, por exemplos, nas quais o sujeito vê que não conseguiria descrever, mas que se tem outra pessoa, ao seu lado, ele troca um olhar com aquela pessoa e instantaneamente, os dois compreenderam a mesma coisa. Se pedir para eles nos explicarem o que compreenderam, levariam três anos, não dá. E quando terminassem de explicar a situação já teria passado e já não seria mais a mesma coisa. Esta não é uma deficiência da linguagem, é da sua própria natureza. A linguagem não foi feita para dizer tudo. Ela não existe para dizer tudo e não precisa dizer tudo, porque existe a comparticipação dos seres humanos vivos dentro do contexto real onde eles estão. Por que precisaríamos dizer tudo? Eu estou dando esta aula aqui sem explicar onde estou, em que bairro etc.. Mas vocês sabem que eu estou em algum lugar, sabem que eu não sou uma figura extra-planetária que baixou aqui. Agora, estamos falando em uma rede que tem centenas, milhares de pessoas. Elas não se conhecem uma por uma, não estão diretamente ligadas umas às outras. Mas nós sentimos este contexto, nós estamos presentes dentro dele. Mesmo que eu estivesse sozinho nesta sala, não tivesse ninguém, e eu estivesse falando apenas para uma câmera, ainda assim eu saberia que estou falando para a câmera. O número de elementos não-ditos, improferidos, inexpressos, e que são comparticipados, conscientemente, por várias pessoas é enorme. Dizer tudo, expressar toda a realidade, seria uma coisa auto-contraditória. É uma noção auto-contraditória. Para encerrar vou contar uma historinha sobre Wittgenstein. Já que vocês estão estudando o livro do Frank Raymond Leavis, alguém por quem eu tenho uma grande apreciação. Ele e Wittgenstein eram colegas em Cambridge, e o Wittgenstein era a própria arrogância encarnada, um sujeito que desprezava todo o mundo. Eles estavam numa festa, e tinha um rapaz que ia cantar. O Wittgenstein fez observações tão pejorativas sobre o rapaz, que ele acabou cantando mal mesmo. E quando terminou, o Wittgenstein disse para a primeira pessoa que estava do lado dele, que ele não conhecia, era o Leavis: "Ah! Esse rapaz é um idiota." E o Leavis disse: "Mesmo que ele fosse um idiota, ninguém tem o direito de tratar uma pessoa como você o tratou." Como o Wittgenstein era um cara que estava acostumado a todo o mundo lhe puxar o saco, pela primeira vez, ele levou um puxão-de-orelha, e ficou admirado, disse para o Leavis: "Puxa nós precisamos nos conhecer melhor." O Leavis respondeu: "Não vejo a menor necessidade disso." Um cara admirável. Até a semana que vem. Muito obrigado.

Transcrição e revisão: Juliana Camargo Rodrigues, 27/02/2011 [juliana.rodrix@gmail.com]